Direitos
Humanos, Democracia
e Desenvolvimento
Jack
Donnelly*
O
tópico que me coube neste seminário, “direitos humanos, democracia e
desenvolvimento”, é muito vasto. Poder-se-ia imaginar um resumo mais
amplo – o tema paz, por exemplo, foi misericordiosamente deixado de
fora de meu encargo – mas deveria estar claro, desde o princípio, que
posso fazer somente a mais preliminar abordagem sobre o tópico. Feitas
essas considerações, escolhi ser provocativo, enfatizar as diferenças,
mesmo conflitos, entre esses três objetivos sociais e políticos quase
universalmente endossados. Discutirei que as lógicas dos direitos
humanos, democracia e desenvolvimento estão, freqüentemente, em tensão
significativa entre si. A interdependência política verdadeira, mesmo
a sinergia, é possível. Não é, contudo, automática ou inevitável.
Debaterei, em particular, que, a menos que a democracia e o
desenvolvimento sejam perseguidos de formas muito particulares, os
direitos humanos podem correr risco, e, na prática contemporânea, freqüentemente
é o que está ocorrendo.
A Linguagem Contemporânea da
Legitimidade Política
Desenvolvimento,
democracia e direitos humanos tornaram-se idéias políticas hegemônicas
na sociedade internacional do final do século vinte. Virtualmente,
todos os países reivindicam perseguir o crescimento econômico rápido
e sustentável (“desenvolvimento”), participação política popular
(“democracia”) e respeito aos direitos humanos de seus cidadãos
(“direitos humanos”).
Países contemporâneos encontram-se tipicamente forçados a adotar,
pelo menos, a linguagem do desenvolvimento, democracia e direitos
humanos nas suas relações internacionais. A própria legitimidade de
regimes que não estão compromissados centralmente com esses objetivos
está aberta a um sério questionamento, tanto nacional quanto
internacionalmente.
O
desenvolvimento, entendido como uma prosperidade auto-sustentável, tem
sido, por muito tempo, uma aspiração central dos modernos estados nação
– e muitas outras formas de organização política. “É a economia,
estúpido!” é uma versão americana recente da lição política com
aplicação universal próxima. Qualquer que seja a base sociológica e
ideológica de um regime predominante, uma forte inabilidade para
garantir prosperidade (como quer que isso possa ser entendido
localmente) leva tipicamente a um sério desafio político. As formas
podem diferir: tumultos por causa de alimentos e revoltas de camponeses
na China Qing ou Indonésia contemporânea; descontentamento de
consumidores na Alemanha do Leste comunista, Alemanha Ocidental
capitalista ou Rússia caótica; medo de inflação ou desemprego, ou
ambos, em praticamente todos os países atualmente. O elo entre
legitimidade política e desenvolvimento (prosperidade) está próximo,
no entanto, de uma lei política intercultural, universal no mundo
contemporâneo.
O
elo da democracia com a legitimidade política é mais recente. A
maioria das constituições políticas baseadas no estado, ao longo da
história, firmou-se na autoridade de cima para baixo, com uma dádiva
divina, ordem natural, ou tradição legitimando o poder daqueles com
virtude superior (definida pelo nascimento, idade, riqueza, habilidades
ou poder). Na metade do século vinte, porém, muitos regimes apelaram,
em lugar disso, à autorização de baixo para cima do “povo”. Os
mecanismos variaram – i.e. eleições multipartidárias, partidos de
vanguarda, e um respeito quase filial pelos nacionalistas fundadores do
passado – mas, ao longo da última metade do século, quase todos os
regimes extraíram sua legitimidade do “povo” ao invés de uma fonte
“superior”.
Os
direitos humanos são o componente mais recente nesse triunvirato. A idéia
de que a legitimidade de um governo é baseada na extensão do respeito
e defesa aos direitos humanos dos seus cidadãos tem estado no coração
da tradição do contrato social liberal da teoria política, pelo
menos, desde o embrionário Segundo Tratado de Governo de John
Locke, no final do século dezessete. No nível internacional, recebeu
um endosso poderoso nos documentos internacionais como a Declaração
Universal dos Direitos Humanos de 1948 e a Convenção Internacional dos
Direitos Humanos de 1966. Mas, somente há vinte e cinco anos, a maioria
dos estados no mundo justificou, publicamente, sacrifícios sistemáticos
de alguns, mesmo a maioria, dos direitos reconhecidos nesses
instrumentos legais. E o fizeram não em nome da segurança nacional
(como oposta à segurança pessoal) e relativismo cultural (como oposto
aos direitos humanos universais) mas também com apelos aos imperativos
“superiores” de desenvolvimento e democracia (como opostos aos
interesses de indivíduos e grupos particulares).
Na
sociedade internacional do pós-Guerra Fria, no entanto, os direitos
humanos são geralmente vistos antes como intimamente ligados do que
opostos à democracia e ao desenvolvimento. As democracias dos povos –
que sacrificaram os direitos das classes inimigas e dissidentes em favor
de um bem coletivo maior (como entendido pelo partido) – passaram
rapidamente da cena política onde quer que ao povo fosse oferecida uma
escolha. Os estados de segurança nacional – que sacrificaram o que
quer e quem quer que eles julgassem necessário para proteger o povo e a
nação do comunismo – também se tornaram largamente desacreditados.
A queda de Kaunda, na Zâmbia, e Suharto, na Indonésia, constituem
exemplos surpreendentes do declinante apelo do paternalismo (embora, de
nenhum modo, extinto). E o governo militar encontra-se em declínio até
mesmo na África subsaariana onde tem sido, de longe, a forma mais comum
de governo desde a independência.
As
falências econômicas de tipos alternativos de regime foram,
certamente, centrais para seu colapso. Adicionalmente, apelos “democráticos”
à nação e à coletividade do povo têm sido, freqüentemente, tão
importantes quanto os apelos aos direitos humanos de cidadãos
individuais. Contrastando acentuadamente com duas décadas atrás, nos
dias atuais, porém, somente uma minoria diminuta dos estados justifica
publicamente recusas sistemáticas de direitos humanos
internacionalmente reconhecidos. Apelos ao relativismo cultural e
particularidades nacionais quase desapareceram das discussões dos
direitos humanos. Mas o endosso surpreendentemente forte da
universalidade dos direitos humanos internacionalmente reconhecidos na
Conferência Mundial de Viena de 1993 sobre Direitos Humanos – apesar
dos esforços substanciais da China e seus aliados em favor de um forte
relativismo cultural – ilustra a mudança dramática nas atitudes
internacionais dominantes.
O
fosso entre teoria e prática permanece tipicamente profundo. Na maioria
dos países, os direitos humanos – junto com a democracia e o
desenvolvimento – permanecem, quando muito, parcial e fragilmente
realizados. Praticamente todos os estados no mundo pós-Guerra Fria
firmam, no entanto, sua legitimidade nacional e internacional, em grande
medida, num compromisso verbal com algo próximo à ampla extensão dos
direitos humanos internacionalmente reconhecidos, em adição à
democracia e ao desenvolvimento.
Convergência e Divergência Conceitual
Existe
uma forte tendência tanto no discurso popular quanto internacional de
que todas as boas coisas – e democracia, desenvolvimento, e direitos
humanos em particular – são essencialmente interconectadas. A Declaração
Universal dos Direitos Humanos de 1948 começa com a assertiva de que o
“reconhecimento da dignidade inerente e dos direitos inalienáveis e
igualitários de todos os membros da família humana é a base da
liberdade, justiça e paz no mundo.” A Declaração de Viena de 1993
é particularmente eloqüente, argumentando que “democracia,
desenvolvimento e respeito aos direitos humanos e liberdades
fundamentais são interdependentes e se reforçam mutualmente.”
Mesmo reconhecendo os elos importantes entre embates pelo
desenvolvimento, democracia e direitos humanos, esta seção introduz
divergências não menos importantes, que constituirão meu principal
foco neste paper.
Trata-se
de uma simplificação grosseira, mas útil, dizer que a ideologia
internacional hegemônica do desenvolvimento, democracia e direitos
humanos baseia-se no sucesso percebido dos estados democráticos
liberais de bem-estar social (e social democratas) da Europa Ocidental.
Esses países, especialmente os menores, membros nórdicos da União
Européia (UE), são os que mais se aproximam do ideal pós-Guerra Fria
da prosperidade humana democrática. Economicamente, são muito ricos
– porém, profundamente comprometidos com um estado redistributivo de
bem-estar social extensivo. Politicamente, desfrutam de sistemas
eleitorais abertos vigorosos e competitivos – junto com um forte e
inigualável consenso sobre valores políticos e estruturas básicas. E
em nenhum outro lugar foi alcançado tanto progresso na garantia de que
algo próximo à população total goza a maioria dos direitos civis,
políticos, econômicos e sociais internacionalmente reconhecidos.
O
poder dos Estados Unidos pode prover o principal apoio militar
internacional para esses valores. Com a recessão japonesa e a crise
financeira asiática suscitando dúvidas acerca do milagre e modelo asiático,
e com a privatização na moda, até mesmo na Europa, a visão americana
da democracia de mercado pode enfrentar menos o desafio hoje do que
nunca antes. Mas a arrogância do poder americano, o significado do
estado de bem-estar social americano, e o legado persistente do racismo
fazem dos Estados Unidos um ideal problemático para boa parte do mundo.
Países como a Holanda e a Noruega oferecem um modelo mais atraente para
outros países ao procurar fundir compromissos com a democracia, o
desenvolvimento e os direitos humanos num regime próspero, democrático
e que protege os direitos.
Não
importa que visão prefiramos – americana, canadense, holandesa, britânica,
germânica, australiana ou japonesa – é necessária ou contingente
essa fusão de desenvolvimento, democracia e direitos humanos nos
estados democrático-liberais contemporâneos de bem-estar social?
Debaterei que as convergências refletem largamente um equilíbrio
particular e contingente de mercados, eleições, respeito às leis e
direitos individuais. Mas antes de uma consideração mais extensa
acerca das diferenças de tensões entre esses três ideais, quero
reconhecer algumas das afinidades que tornaram possível o estado democrático
liberal de bem-estar social.
O
artigo 21 da Declaração Universal assevera que:
Todos têm o direito de
participar do governo de seu país, diretamente ou através de
representantes livremente escolhidos … A vontade do povo deverá ser a
base da autoridade do governo; essa vontade deverá ser expressa em eleições
periódicas e genuínas que deverão ser pelo sufrágio universal e
igualitário e deverão ser realizadas pelo voto secreto ou por
procedimentos equivalentes de voto livre.
O
artigo 27 acrescenta que “Todos têm o direito de participar
livremente da vida cultural de sua comunidade”, estendendo a exigência
da participação democrática não somente na política mas também na
vida social e cultural. Normas internacionais de direitos humanos
demandam claramente um governo democrático.
A
democracia pode não ser uma condição necessária ao desenvolvimento,
especialmente no curto e médio prazo. Trata-se, porém, de um mecanismo
para controlar o desgoverno economicamente predatório que precede
qualquer chance real de desenvolvimento. Muito disso é verdade com relação
aos direitos civis e políticos. Ao prover responsabilidade, transparência,
ampla participação, e um fluxo livre de informação, os direitos
humanos e a democracia podem ajudar a assegurar que o crescimento econômico
seja canalizado para o desenvolvimento nacional ao invés do
enriquecimento privado. As redistribuições exigidas pelos direitos
econômicos e sociais procuram assegurar, igualmente, que a prosperidade
seja difundida em toda sociedade, ao invés de concentrada numa elite
minoritária. Pode-se mesmo adiantar um argumento de que a distribuição
dos benefícios do crescimento trazidos pela democracia e pelos direitos
humanos é essencial para o desenvolvimento sustentável quando uma
economia alcançar um status
de renda média.
Por
outro lado, o desenvolvimento pode, em muito, facilitar a democracia e o
efetivo desfrute dos direitos humanos. A tolerância das diferenças é
muito mais fácil, tanto para a democracia quanto para os direitos
humanos, quando existe um bolo econômico grande e em expansão a ser
repartido por toda sociedade. Observando-se a questão de outro ângulo,
aqueles vivendo à margem da economia, ou sem nenhuma perspectiva
realista de rendas melhores para si próprios e, especialmente, suas
crianças, são muito menos propensos a acomodar os interesses e
direitos dos outros.
Sem
negar essas importantes afinidades, quero salientar que elas são
amplamente eletivas. O quanto a democracia, o desenvolvimento, os
direitos humanos chocam entre si ou complementam um ao outro é, em
grande medida, uma questão eventual de contexto e desenho
institucional. Por exemplo, o povo freqüentemente quer fazer coisas
extremamente desagradáveis para (alguns dos) seus cidadãos “irmãos”.
Por outro lado, conforme discuto abaixo, uma função principal dos
direitos humanos é excluir amplas áreas de decisão política
do controle democrático. Igualmente, não há nenhum elo necessário
entre desenvolvimento e direitos humanos (ou democracia). Diferenças
nacionais dramáticas na realização dos direitos econômicos e sociais
são aparentes em qualquer nível dado de renda per capita.
Desigualdades acentuadas, abuso de direito em países como o Brasil e os
Estados Unidos, sublinham o papel central da política ao traduzir
“desenvolvimento” (prosperidade nacional agregada) no desfrute de
direitos humanos internacionalmente reconhecidos. E países como a Coréia
do Sul e Taiwan – assim como (em vários graus) Cingapura, Malásia,
Tailândia e Indonésia, em décadas recentes, ou Alemanha, no século
dezenove – sugerem que o desenvolvimento sustentável pode coexistir
por décadas ou mais com recusas sistemáticas de democracia e de
direitos civis e políticos.
O
restante deste paper é
voltado para discussões (necessariamente breves) sobre direitos
humanos, democracia e desenvolvimento. Enfatizarei as divergências
entre direitos humanos e os outros dois valores, e as falhas de
compromissos com o desenvolvimento e democracia na ausência de um forte
componente de direitos humanos. Assim, começo com direitos humanos.
Definindo Direitos Humanos
Direitos
humanos são, literalmente, os direitos que se têm simplesmente como
ser humano. Como tal, trata-se de direitos iguais e inalienáveis:
iguais porque somos todos igualmente seres humanos; inalienáveis
porque, não importa quão desumanos nós sejamos em nossos atos ou na
forma de sermos tratados, não podemos ser nada além de seres humanos.
Temos,
de fato, tais direitos? De onde provêm? São os direitos
originariamente morais – noções de princípios que não podem ser
reduzidas a ou derivadas de outros valores – ou derivam de conceitos
de virtude - o bom, certo - ou dever? Como determinamos quais direitos
humanos em particular nós temos? Tais questionamentos filosóficos
suscitam questões interessantes e importantes. Para os propósitos das
relações internacionais contemporâneas, porém, podemos considerá-los
como tendo sido respondidos de modo positivo.
Nos
cinqüenta anos desde que a Assembléia Geral das Nações Unidas adotou
a Declaração Universal dos Direitos Humanos, ela tem sido endossada
por virtualmente todos os estados e adquiriu, discutivelmente, o status
de lei internacional comum.
A Convenção Internacional sobre Direitos Civis e Políticos tem,
atualmente, 140 signatários. A Convenção Internacional sobre Direitos
Econômicos, Sociais e Culturais tem 137 signatários. A Declaração de
Viena e o Programa de Ação foram adotados, por consenso, pelos 171
estados que participaram da Conferência Global sobre Direitos Humanos
de 1993. Esses documentos fornecem normas internacionais positivas de
direitos humanos. Para melhor ou pior – e, em muitos aspectos,
considero para melhor – o significado de “direitos humanos” na
sociedade internacional contemporânea tem sido amplamente definido por
esses documentos.
A Fonte dos Direitos Humanos
O
Artigo 1 da Declaração Universal inicia com “todos os seres humanos
nascem livres e iguais em dignidade e direitos.” Os preâmbulos de
ambas Convenções afirmam que “esses direitos derivam da dignidade
inerente da pessoa humana.” A Declaração de Viena utiliza
praticamente a mesma linguagem, reivindicando, no seu preâmbulo, que
“todos os direitos humanos derivam da dignidade e valor inerente na
pessoa humana.”
Cada
e toda pessoa, simplesmente como ser humano, tem direito a usufruir seus
direitos humanos. “Todos têm o direito …” “Ninguém deverá
…” “Todo ser humano tem …” são as formulações características
desses documentos sentenciosos. Em outras palavras, direitos humanos
internacionalmente reconhecidos brotam da natureza inerente (moral) da
pessoa humana e são usufruídos por seres humanos individuais. Conforme
a Declaração de Viena, “a pessoa humana é o sujeito central dos
direitos humanos e liberdades fundamentais, e, portanto, deveria ser o
principal beneficiário e deveria participar ativamente na realização
desses direitos e liberdades.”
Direitos Humanos e Legitimidade Política
Os
indivíduos são, apropriadamente, sujeitos a um amplo espectro de
obrigações sociais e políticas. Os direitos humanos, porém,
especificam um conjunto inalienável de bens, serviços e oportunidades
individuais que o estado e a sociedade são, em circunstâncias comuns,
chamados a respeitar ou prover. Os direitos humanos restringem o leque
legítimo da autoridade do estado e estabelecem obrigações que o
estado deve a cada e todo cidadão, independente de outras considerações.
O
cerne de uma perspectiva de direitos humanos é a prioridade moral e política
prima facie desses direitos
inerentes de indivíduos sobre os interesses e desejos da sociedade e do
estado. Embora essa prioridade seja raramente categórica,
uma função principal do direito é, como Ronald Dworkin declarou,
“enganar” outras reivindicações.
E os direitos humanos usualmente iludem, aliás, interesses legítimos e
reivindicações do estado e da sociedade.
A
legitimidade de um estado, de uma perspectiva de direitos humanos, é
uma função do quanto ele respeita, protege e realiza os direitos
humanos ou “naturais” dos seus cidadãos. Assim, a Declaração
Universal se proclama como “um padrão comum de realização para
todos povos e todas nações.” A Declaração de Viena é
extraordinariamente sincera, reivindicando, no seu primeiro parágrafo
operativo, que os “direitos humanos e liberdades fundamentais são a
herança de todos seres humanos; sua proteção e promoção constitui a
primeira responsabilidade dos Governos.”
É
certamente possível imaginar outros sistemas para a regulação de relações
entre indivíduos, estados e sociedade. Ao longo de praticamente toda a
história, em todas as regiões do mundo, outros padrões de
legitimidade política têm sido, de fato, a norma. A sociedade
internacional contemporânea, porém, escolheu endossar os direitos
humanos nos termos mais fortes possíveis.
A Substância de Direitos Humanos
Internacionalmente Reconhecidos
A
era da Guerra Fria presenciou uma considerável controvérsia
internacional sobre a substância da lista de direitos humanos
internacionalmente reconhecidos. A língua oficial era sempre que os
direitos humanos eram “interdependentes e indivisíveis”. A existência
de duas Convenções separadas, porém, refletia melhor a realidade de
um enfoque altamente seletivo. A maioria dos estados defendia uma
prioridade estratégica sistemática tanto para direitos econômicos e
sociais quanto para direitos civis e políticos. Em particular, estados
socialistas e do Terceiro Mundo regularmente enfatizaram direitos econômicos,
sociais e culturais para a exclusão de direitos civis e políticos.
Nas Nações Unidas, focalizou-se, adicionalmente, atenção nos
direitos da autodeterminação e não-discriminação.
Embora
tais argumentos continuem a ser levantados na era pós-Guerra Fria,
talvez mais fortemente pela China, eles têm pouco da ressonância de
vinte e cinco, ou mesmo dez anos atrás. Em Viena concordou-se que
“enquanto o desenvolvimento facilita o usufruto de todos os direitos
humanos, a ausência do desenvolvimento pode não ser invocada para
justificar a privação de direitos humanos internacionalmente
reconhecidos.” Mesmo mais pontualmente, a Comissão sobre Direitos
Humanos adotou uma série de resoluções que reafirmaram “a
universalidade, indivisibilidade, interdependência e inter-relação de
todos direitos humanos” e concluiu que “ao promover e proteger uma
categoria de direitos nunca deveria, portanto, isentar ou desculpar os
Estados da promoção e proteção de outros direitos.” Assim, a legenda do
escritório do Alto Comissariado para Direitos Humanos, neste ano do qüinquagésimo
aniversário da Declaração Universal, é “todos direitos humanos
para todos.” A Tabela 1 fornece uma lista de todos os direitos
reconhecidos na Declaração Universal e nas Convenções.
Na
parte restante deste paper,
persigo algumas das implicações de um compromisso com todos os
direitos humanos para todos para lutas em curso pela democracia e pelo
desenvolvimento.
Definindo Democracia
“A
democracia é baseada na vontade livremente expressa do povo para
determinar seus próprios sistemas, político, econômico, social e
cultural e sua participação completa em todos os aspectos de suas
vidas.” Essa assertiva da Declaração de Viena é, talvez, o melhor
ponto de partida. Como todas as definições plausíveis, está
enraizada na etimologia do termo, o grego demokratia,
literalmente, governo ou poder (kratos) do povo (demos).
A Concepção Clássica de Democracia
O
demos para os gregos não era a população total mas sim uma
classe social particular, a massa: hoi polloi; literalmente, os
muitos, mas com as mesmas conotações como o termo transliterado na
Inglaterra vitoriana. Mesmo na “Era Dourada” de Péricles, a
democracia de Atenas era um governo de classe por cidadãos comuns –
uma classe (de homens) que excluía não somente os bem-nascidos mas
escravos e residentes estrangeiros – que tipicamente viam seus
interesses como sendo distintos da, freqüentemente mesmo opostos a, sua
aristocracia (literalmente, governo dos melhores), oligarquia (governo
dos poucos), ou plutocracia (governo dos mais ricos). Assim David Held
começa Modelos de Democracia, um influente estudo acadêmico
recente, ao definir democracia como “uma forma de governo na qual, em
contradição a monarquias e aristocracias, o povo governa.”
A oposição entre as reivindicações de autoridade por parte de
classes sociais em competição tem estado no cerne da história da
teoria e prática de democracia ao longo de boa parte de sua história.
Não
surpreendentemente, então, democracia tem usualmente recebido um mau
nome – consideremos, por exemplo, as conotações negativas de
“demagogo”, literalmente, líder do povo – e não somente porque
democratas até o fim do século dezoito quase sempre perdiam. A menos
que assumamos que a razão ou virtude estão mais ou menos distribuídas
(ou casualmente) entre cidadãos ou súditos – uma pressuposição que
muito poucas sociedades fizeram –as reivindicações de cidadãos
comuns para governar baseiam-se em “simples números”. Assim, de
Platão a Aristóteles, passando por Kant e Hegel, a democracia,
classicamente entendida, tem sido depreciada como incompatível com um
governo razoável e virtuoso. Defensores de um regime
misto (ou republicano), de Aristóteles para Machiavelli, Madison e
Kant, respeitaram os interesses e reivindicações dos muitos mas
contrabalançaram-nas por aqueles dos poucos (com sabedoria ou virtude
superior) ou as demandas da lei moral universal.
A
democracia só pode ser plausivelmente defendida como uma forma
intrinsecamente desejável de governo quando “o povo” é visto como
tendo sabedoria e virtude, ao menos, iguais àquelas dos seus
“melhores” sociais. Tal visão social é largamente um fenômeno do
século dezenove e vinte.
Mesmo a revolução americana foi, ao menos, tanto “republicana”
quanto “democrática”, e os fortes democratas da Revolução
francesa foram amplamente derrotados (ou viram suas idéias cooptadas e
corrompidas), tanto internamente quanto no exterior. Somente durante os
últimos dois séculos, valores e lutas liberais, socialistas e
anticoloniais, transformaram concepções dominantes do povo, e assim
gradualmente tornaram ilegítimos governos não-democráticos. Conforme
Pierre Rosanvallon observa, mesmo na França o termo democracia não
conquistou aceitação geral política difundida até 1848.
Governo do Povo
O
que, então, significa para o povo governar? Held oferece uma lista
parcial de alguns dos significados mais comuns.
§
Que todos deveriam governar, no sentido de que todos deveriam se
envolver com legislar, com decisões sobre política geral, com aplicação
de leis e administração governamental.
§
Que todos deveriam estar pessoalmente envolvidos em tomadas de
decisão cruciais, o que significa na decisão de leis gerais e assuntos
de política geral.
§
Que os governantes deveriam ser responsáveis governados; eles
deveriam, em outras palavras, ser obrigados a justificar suas ações
para os governados e serem removidos pelos governados.
§
Que os governantes deveriam ser responsáveis aos representantes
dos governados.
§
Que os governantes deveriam ser escolhidos pelos governados.
§
Que os governantes deveriam ser escolhidos pelos representantes
dos governados.
§
Que
os governantes deveriam agir de acordo com os interesses dos governados.
O
último desses significados, embora freqüentemente encontrado, não
pode, no meu ponto de vista, ser defendido como uma concepção plausível
de democracia. Reis Bourbon, imperadores chineses e sultões otomanos,
todos (contenciosamente, embora plausivelmente) reivindicaram governar
de acordo com os interesses do povo. De fato, é difícil imaginar uma
ideologia legitimadora plausível que não confira lugar central aos
interesses dos governados. Governo para o povo pode ou não ser
democrático. Governo democrático, se aquele termo deve significar
muito mais do que a ausência de desgoverno sistemático por parte de um
segmento restrito da sociedade, deve ser governo do povo ou pelo
povo. Além de se beneficiar do bom governo, o povo, em uma democracia,
deve ser a fonte da autoridade do governo para governar.
Os
outros seis significados de Held abrangem, porém, uma imensa variedade
de formas políticas. O segundo, por exemplo, requer uma extensa
participação direta dos cidadãos, enquanto o quarto e sexto envolvem
governo representativo por completo. Os outros três, apesar de claros e
plausíveis, são extremamente abertos. O que significa “estar
envolvido” em tomada de decisão? Quais são os mecanismos e medidas
de um governo “responsável”? Como os governados deveriam
“escolher” seus governantes?
A
formulação de Viena com a qual começamos esta seção focaliza
apropriadamente nossa atenção na “vontade livremente expressa do
povo.” O truque é determinar essa vontade. Teorias democráticas freqüentemente
são distinguidas pela sua confiança em testes “substantivos” ou
“de procedimento”.
Rousseau
oferece uma boa ilustração da diferença. Uma forma de determinar a
vontade do povo é consultá-lo, diretamente ou através de
representantes, e perguntar o que, de fato, deseja. Rousseau, porém,
despreza essa “vontade de todos” (procedimentos) em favor do que
denomina “a vontade geral”, o interesse racional, de reflexão, do
povo como um todo.
Perguntar, simplesmente, com freqüência, ao povo não fornecerá seu
verdadeiro interesse e vontade, porque as respostas usualmente dadas
refletem interesses individuais e de grupo mais do que o bem comum (que
freqüentemente não é o mesmo do que as preferências agregadas de
indivíduos e grupos).
Existe
uma forte e, no meu ponto de vista geralmente justificada, tendência em
discussões recentes de salientar concepções de procedimento da
democracia. Nas discussões populares e de política, a ênfase tende a
ser em eleições multipartidárias. Na literatura teórica, concepções
dominantes de procedimento tendem a enfatizar consideravelmente
mecanismos para assegurar que o processo eleitoral é aberto e sem
fraude. Por exemplo, o tipo ideal de “poliarquia” de Robert Dahl é
um ponto de referência comum em discussões acadêmicas vigentes. Além
dos governos oficiais escolhidos em eleições livres e justas baseadas
em privilégio, a democracia entendida em termos de poliarquia requer
uma liberdade política extensa para assegurar a abertura verdadeira de
eleições, incluindo o direito de todos concorrerem a um cargo, a
liberdade de expressão, acesso extensivo a fontes alternativas de
informação, uma liberdade de associação.
Concepções
puramente substantivas perdem o elo com a idéia do povo governando,
mais do que só se beneficiando. O adjetivo “democrático” resvala,
assim, facilmente, para um sinônimo essencialmente supérfluo de
“igualitário”. Concepções substantivas também se emprestam a um
paternalismo elitista: a massa do povo não pode ser confiada para
governar mas deve ser dirigida por aqueles com a virtude ou o
discernimento para conhecer seus interesses. Por outro lado, concepções
substantivas podem superestimar, em muito, a bondade do povo real.
Seria,
no entanto, perigoso abandonar, por completo, concepções substantivas.
Democracia pura de procedimento pode facilmente degenerar em um
formalismo não-democrático ou mesmo antidemocrático. Eleições e
outros procedimentos democráticos são simples mecanismos para
averiguar a vontade do povo ou deter os governantes para averiguações.
Concepções substantivas insistem, com propriedade, que nós não
percamos de vista esses valores centrais.
Poderíamos
proceder com uma multiplicidade de definições e formas de democracia
quase sem fim.
Para nossos propósitos, porém, isso não é necessário. Reconhecendo
que o que conta como governo do povo é imensamente controverso, quero
focalizar algumas das formas nas quais a democracia, entendida, em seu
sentido primário, como governo do povo, pode se chocar com os direitos
humanos.
Democracia e Direitos Humanos
Já
notamos que normas internacionais de direitos humanos exigem um governo
democrático. Nesse sentido, existe uma conexão necessária entre
direitos humanos (como definidos positivamente na Declaração
Universal) e democracia. Mas o elo não corre na direção contrária.
Democracia, como discutirei abaixo, contribui só contingencialmente
para a realização da maioria dos direitos humanos internacionalmente
reconhecidos. “Democracia plena”, o que quer que possa significar, não
precisa significar realização completa de direitos humanos
internacionalmente reconhecidos – a menos que estipulemos que o faz,
em cujo caso tudo que temos é uma tautologia desinteressante.
Direitos
de participação democrática constituem uma pequena seleção de
direitos humanos internacionalmente reconhecidos. E aqueles direitos se
aplicam igualmente contra governos democráticos e não-democráticos.
‘Todos são iguais perante a lei e têm o direito, sem qualquer
discriminação, à igual proteção da lei.” (Declaração Universal,
Artigo 7) O povo, não menos do que um restrito segmento da sociedade,
está impedido de negar a qualquer indivíduo ou grupo proteção igual
da lei. “Todos têm o direito ao trabalho, à escolha livre de
emprego, a condições justas e favoráveis de trabalho e à proteção
contra o desemprego.” (Artigo 23) Essa exigência se põe tanto para
governos democráticos quanto para qualquer outra forma de governo.
Pode
ser o caso que todo o povo está menos propenso a violar os direitos
humanos do que qualquer outro segmento particular. Mas, em muitos casos,
não está. Pode ser o caso que uma população emancipada está mais
propensa a usar seus direitos humanos de forma democrática. Mas freqüentemente
não o fazem. Sem negar as afinidades entre democracia e direitos
humanos – especialmente o compromisso compartilhado com uma idéia de
dignidade política igual para todos –enfatizarei, a seguir, os
conflitos possíveis entre a lógica da democracia e a lógica dos
direitos humanos individuais.
“Conferir poder a quem? Para que?
A
democracia visa conferir poder ao povo, para assegurar que o povo, ao
invés de outro grupo na sociedade, governe. A democracia exige que a
autoridade soberana seja dirigida num caminho particular. Exige pouco do
povo soberano, que precisamente porque é soberano é livre, conforme a
Declaração de Viena expressa, “para determinar seus próprios
sistemas político, econômico, social e cultural.”
Os
direitos humanos, por outro lado, visam conferir poder aos indivíduos,
para assegurar que cada pessoa receba certos bens, serviços e
oportunidades. Os direitos humanos estabelecem, assim, um conjunto de
restrições substantivas no espectro aceitável de sistemas políticos,
econômicos e sociais assim como a legislação comum e prática
administrativa de qualquer governo, democrático ou não. Mais
importante do que quem deve governar – o que é solucionado com
uma resposta democrática – os direitos humanos preocupam-se com como
o povo (ou qualquer outro grupo) governa. Os direitos humanos limitam
mais do que conferem poder ao povo e seu governo, exigindo desses que façam
certas coisas e se abstenham de fazer outras.
Discriminação
na base de raça ou etnia, por exemplo, é definitivamente proibida, não
importa quanto o “povo” a favoreça. Minorias étnicas podem, freqüentemente,
estar mais em situação de risco quando sujeitas a governos não-democráticos,
mas nem sempre. Por exemplo, os sérvios na Croácia sofreram menos
discriminação durante o governo comunista iugoslavo (não-democrático,
ou, pelo menos, menos democrático) do que durante o governo de uma Croácia
independente e democrática. Mas a propensão relativa de governos
democráticos e não-democráticos violar este ou qualquer outro direito
humano foge ao escopo da discussão principal. Nenhum governo pode,
porque todos têm o direito de não sofrer discriminação.
A
vontade do povo freqüentemente diverge dos direitos dos cidadãos
individuais, não importa como essa vontade é averiguada – a menos
que estipulemos que o povo não queira nada inconsistente com os
direitos humanos internacionalmente reconhecidos.
Os
governos freqüentemente são eleitos para servir os interesses de uma
maioria eleitoral, mais do que os direitos de todos. A democracia direta
de pequena escala, como o povo de Atenas ilustra tão dramaticamente,
pode ser tão intolerante e paranóica como qualquer outra forma de
governo. O destino de direitos humanos internacionalmente reconhecidos
nas “democracias dos povos” (regimes de partidos de vanguarda) tem
sido, pelo menos, tão ruim como na maioria de outras formas de governo.
“As
democracias dos povos” marxistas oferecem um exemplo particularmente
surpreendente das diferenças nos projetos políticos implícitas nos
slogans “todos direitos humanos para todos” e “todo poder para o
povo”. Quaisquer que sejam os problemas práticos do mundo real dos
regimes stalinistas, existe um sentido profundo no qual a idéia
marxista da ditadura do proletariado é a culminação do ideal democrático
clássico, atualizado numa visão igualitária profunda do proletariado
como a classe universal.
Aqueles que insistem em perseguir os interesses de classe (ou outro egoísta)
inconsistentes com aqueles do proletariado estão, em nome da
democracia, coagidos a agir de conformidade com o bem de todos. Qualquer
outra alternativa seria, num sentido muito real, antidemocrático.
A
resposta dos defensores dos direitos humanos seria “ tanto pior para a
democracia.” Os direitos humanos são profundamente antidemocráticos,
sob qualquer definição plausível de democracia sem um modificador
que construa sobre direitos humanos. De fato, num regime democrático,
a função mais importante dos direitos humanos é “frustrar a vontade
do povo” quando aquela vontade se intromete nos bens, serviços e
oportunidades garantidas a todos pelos direitos humanos. Por exemplo, a
Suprema Corte dos Estados Unidos é freqüentemente criticada como sendo
antidemocrática, no sentido de que regularmente frustra a vontade do
povo. É. E aquele é um propósito central da revisão constitucional:
assegurar que o povo não exerça sua soberania em caminhos que violam
direitos básicos.
Democracia Liberal
Neste
ponto – ou talvez vários parágrafos antes – o leitor pode
responder “mas isso não é o que realmente nós queremos dizer por
democrático.” Por “democrático” a maioria das pessoas entende
hoje não a Grécia antiga ou o que figuras do século dezoito, como
Kant e Madison, entenderam por “democracia”, mas governos como
Inglaterra, França, Alemanha, índia, Japão e Estados Unidos (ou
alguma outra lista).
Que
forma é aquela, então, de governo? A resposta padrão da política
comparativa contemporânea é “democracia liberal.” Meu objetivo na
parte que se segue é enfatizar o adjetivo liberal, para insistir que se
trata de um tipo muito específico de democracia no qual os direitos
moral e politicamente prévios dos cidadãos (e a exigência do poder da
lei) estabelecem limites constitucionais no curso de tomada de decisão
democrática. Tal governo é o que, no idioma aristotélico anterior,
era chamado de regime misto (não de democrático) ou o que Kant e
Madison chamaram de governo republicano (ao invés de democrático).
Inclui um elemento democrático substancial, mesmo central. Mas o poder
do povo é severamente restrito pelas demandas dos direitos humanos (ou
constitucionais) e o poder da lei.
Democracia
e direitos humanos não são, de fato, meramente compatíveis mas se
reforçam mutuamente nas democracias liberais ocidentais contemporâneas.
Mas aquele elo foi forjado através de lutas políticas difíceis que
produziram um equilíbrio particular entre as reivindicações rivais da
democracia e dos direitos humanos. Qualquer laço entre democracia e
direitos humanos, além da exigência de direitos humanos de que o
governo seja democrático, é eventual mais do que essencial.
O
compromisso liberal com direitos individuais, mais do que o compromisso
democrático de conferir poder ao povo, torna as democracias liberais
contemporâneas regimes de proteção dos direitos. A lógica da
democracia (governo popular) adquire um livre controle somente dentro
dos limites definidos pela lógica dos direitos humanos individuais. O
trabalho dos direitos humanos da democracia liberal é feito amplamente
pelo adjetivo liberal mais do que pelo substantivo democracia.
Numa
veia similar, o adjetivo liberal faz muito do trabalho de direitos
humanos na idéia de uma democracia consociational,
um modelo que tem sido freqüentemente avançado como uma forma de
democracia especialmente apropriada para sociedades pluralistas.
O compromisso consociational
de defender direitos especiais para grupos sociais estabelecidos – por
exemplo, católicos e protestantes na Holanda, ou pessoas de expressão
francesa e flamenga – podem contribuir para um sistema que protege os
direitos de todos muito mais efetivamente do que qualquer outro
mecanismo. O mesmo é verdadeiro para o que, algumas vezes, é chamado
corporativismo de sociedade, onde, por exemplo, residentes de uma região
particular, ou outros grupos sociais conquistam um status
especial no processo de decisão política.
O que torna a democracia consociational
ou corporativista de proteção aos direitos não é a confiança na lógica
democrática de conferir poder ao povo mas uma lógica substantiva,
baseada nos direitos que limita o escopo do que o povo ou seus
representantes podem fazer legitimamente.
As Falhas dos Direitos Humanos da
Democracia
Saliento
os conflitos potenciais entre direitos humanos e democracia para
enfatizar que a busca da democracia somente pode assentar as fundações
para um regime largamente de proteção aos direitos. De fato, pode
mesmo não ir muito longe em direção a assentar fundações firmes ou
profundas. Por exemplo, a retórica da “democracia de mercado” tem
freqüentemente esvaziado discussões sobre direitos humanos na política
externa americana recente. A implicação parece ser a de que a
democracia é a solução para os problemas de direitos humanos. Talvez
isso seja verdade se quisermos dizer democracia liberal. Mas, mais freqüentemente,
o que se quer dizer é democracia eleitoral, que, na prática, pode
divergir profundamente da democracia liberal. Como resultado, a política
externa norte-americana volta, muitas vezes, sua atenção dos direitos
humanos prematuramente para outro lugar, uma vez que a “democracia”
(eleitoral) tenha sido estabelecida.
Antagonismos
entre democracia e direitos humanos não são, de nenhum modo, necessários
ou constantes. Quando acontecem, podem mesmo não ser centrais
politicamente. Existem, freqüentemente, boas razões para os defensores
dos direitos humanos defenderem a democracia, ou mesmo para focalizarem
seus esforços em reformas democráticas. Por exemplo, as duas lutas
tendem a ser largamente coincidentes durante a fase de resistência e ruína
de regimes não-democráticos. Mas uma vez que a democracia seja
estabelecida, os defensores dos direitos humanos tendem a ser críticos
vigilantes de governos democráticos.
A
maioria – ou não importa como “o povo” seja definido na prática
política – pode largamente tomar conta de seus direitos e interesses
através de meios democráticos. A defesa dos direitos humanos será
focalizada em minorias e indivíduos isolados que a maioria maltrata, ao
negar-lhes bens, serviços ou oportunidades aos quais são intitulados
pelos direitos humanos internacionalmente reconhecidos. São eles que
precisam da proteção dos direitos humanos contra os interesses e
vontade da maioria.
A
democracia pode remover antigas fontes de violações de direitos
humanos internacionalmente reconhecidos. Não precisa nos levar muito
longe em direção ao respeito pelos e implementação e vigência de
muitos direitos humanos. O estabelecimento de uma democracia eleitoral
segura em, digamos, Indonésia ou Nigéria, será somente um pequeno
passo (se valioso) em direção ao estabelecimento de regimes de proteção
de direitos.
Mesmo
que nós admitamos que a democracia é, na prática, próxima a uma
condição necessária para o usufruto efetivo de direitos humanos
internacionalmente reconhecidos, não é, definitivamente, uma condição
suficiente.
A democracia contribuirá para a realização dos direitos humanos
somente na medida em que as vontades de um povo soberano respeitem os
direitos humanos internacionalmente reconhecidos e, assim, limitem seus
próprios interesses e ações. E a criação de um tal povo constitui
tarefa difícil na qual muitas democracias não conseguiram progredir.
Durante
o período de fim da Guerra Fria e começo do pós-Guerra Fria, a
democracia registrou um acentuado progresso, especialmente na América
Latina e Europa do Leste e Central. Para isso, tanto os democratas
quanto os defensores dos direitos humanos podem estar satisfeitos. Ainda
existem grandes lutas democráticas a serem travadas em países como a
China,
Síria (e boa parte do restante do mundo árabe)
e Nigéria (e boa parte do resto da
África).
Forças antidemocráticas estão se reafirmando com vigor renovado em
muitos países que passaram por revoluções democráticas,
especialmente no antigo bloco soviético. No entanto, as revoluções
democráticas dos anos oitenta e início dos anos noventa contribuíram,
de fato, para um maior respeito pelos direitos humanos.
Mas
mesmo onde as vitórias democráticas da década passada ou duas décadas
atrás foram sustentadas e aprofundadas (i.e. Argentina e República
Checa), existe muito trabalho a ser feito no campo dos direitos humanos
– como existe até mesmo nos países que mais protegem os direitos no
mundo. A democracia sozinha, sem um adjetivo, nunca é suficiente. Mesmo
onde a democracia e os direitos humanos não estão em conflito direto,
esses dois conjuntos de valores e práticas políticas freqüentemente
apontam em direções significativamente diferentes.
As
lutas por democracia e direitos humanos são, analiticamente, lutas
separadas que, somente em circunstâncias fortuitas, são relacionadas.
O trabalho pela democracia, não importa quão dura e bem sucedida
aquela luta possa ser, é, no melhor, um primeiro passo parcial no
caminho para um regime largamente de proteção de direitos antevistos
pelas normas internacionais de direitos humanos. Precisamos estar certos
de lembrar disso, tanto na nossa política nacional quanto
internacional, se não quisermos que os direitos humanos acabem súbita
mas significativamente limitados nesta era de triunfo democrático.
Definindo Desenvolvimento
As
definições de desenvolvimento são quase tão diversas e, talvez até
mais controversas, do que as definições de democracia. Genericamente,
porém, podemos dividir as opiniões predominantes nas discussões
contemporâneas em dois grupos: aqueles que enfatizam o desenvolvimento
econômico, entendido largamente em termos de crescimento em capacidades
produtivas nacionais e aqueles que enfatizam o desenvolvimento eqüitativo
(ou humano), muito amplamente entendido.
Crescimento e Desenvolvimento
Entre
as concepções do desenvolvimento baseadas na economia, três enfoques
proeminentes merecem atenção aqui. Teorias neoclássicas e de
“modernização” enfatizam o crescimento no produto interno bruto
(PIB) per capita. Os enfoques da dependência enfatizam as distorções
do subdesenvolvimento. Os enfoques do desenvolvimento sustentável
incorporam um período de tempo mais amplo e uma responsabilidade social
mais ampla nas concepções orientadas para o crescimento.
A
teoria clássica da modernização viu o desenvolvimento como um assunto
de mudança estrutural de uma economia tradicional, agrícola para uma
economia moderna, industrial, que proveu a base para continuados
incrementos no PIB per capita.
Apesar de, literalmente, décadas de crítica, relatos simples de
crescimento continuam a dominar o pensamento vigente econômico, político
e mesmo popular. O PIB per capita permanece a medida mais comum de
desenvolvimento na maioria das discussões, com o nível de
industrialização – visto largamente como um indicador de crescimento
potencial no PIB – ocupando um próximo segundo lugar. O renascimento
de estratégias orientadas para o mercado, nas últimas duas décadas,
aumentou dramaticamente a compreensão das concepções de crescimento
do desenvolvimento: mercados são instituições sociais modulados para
maximizar o crescimento (resultado agregado).
Entre
as críticas, a mais influente e vigorosa, especialmente nos anos
setenta e no início dos anos oitenta, enfatizou a dependência. Em
contraste agudo com a teoria de modernização orientada para o
crescimento, os teóricos da dependência argumentavam que o
subdesenvolvimento, ao contrário de um estado natural pré-industrial,
era uma condição de desenvolvimento precário produzida pela inserção
no sistema mundial capitalista numa posição de subordinação
estrutural. Embora largamente morta
como uma teoria nos dias atuais, a perspectiva da dependência fez a
valiosa contribuição de focalizar a atenção nos aspectos
distributivos não aparentes das estratégias padrão de crescimento
econômico, tanto nacional quanto internacional.
Uma
resposta condizente, tanto para os argumentos da dependência quanto
para uma preocupação crescente com questões ambientais, foi a emergência
das perspectivas de desenvolvimento sustentável, que possuem uma
considerável vitalidade contemporânea. O crescimento permanece um
objetivo central mas um objetivo de longo prazo (respondendo à preocupação
da dependência com desenvolvimento obstruído resultando da subordinação
estrutural). Ademais, as perspectivas de desenvolvimento sustentável
conferem maior atenção às “externalidades” ambientais e outras,
que são caracteristicamente excluídas dos relatos neoclássicos. Mas
os enfoques do desenvolvimento sustentável, excluindo-se alguma versão
ambientalista radical, usualmente adotam uma concepção de
desenvolvimento orientada para o crescimento. Eles possuem uma concepção
mais rica de crescimento (caráter sustentável) e uma compreensão mais
holística de processos econômicos (responsável por algumas
externalidades). No entanto, o que deve ser sustentável é largamente a
capacidade para aumentos autônomos na capacidade produtiva, e assim o
PIB per capita.
O
desenvolvimento sustentável, todavia, foi somente uma resposta
condizente com o estreitamento do foco da teoria da modernização
simplesmente no crescimento. Outras respostas, que hoje são talvez
melhor representadas nas publicações do Programa das Nações Unidas
para o Desenvolvimento (PNUD), adotaram uma concepção de
desenvolvimento com uma justiça social mais ampla e orientada para a eqüidade.
Concepções de Desenvolvimento
Orientadas para a Eqüidade
No
final dos anos sessenta e anos setenta, o Programa de Emprego Mundial da
Organização Internacional do Trabalho procurou focalizar a atenção
em aumentar o emprego, não somente para seu próprio intento mas como
um mecanismo para divulgar a renda, e assim, mais amplamente, os benefícios
do crescimento. No Banco Mundial crescente atenção tem sido focalizada
para tornar possível crescimento com eqüidade.
Nos últimos vinte anos, o trabalho para explorar o papel das mulheres
no desenvolvimento suscitou uma preocupação com um tipo importante de
questões de distribuição no pensamento nacional, bilateral e
multilateral vigente. A visão do PNUD de um “desenvolvimento humano
sustentável” proporciona a culminação atual da busca por uma concepção
expandida de desenvolvimento.
Definimos
desenvolvimento humano como expandindo as escolhas para todas as pessoas
na sociedade…
Existem
cinco aspectos do desenvolvimento humano sustentável – todos afetando
as vidas dos pobres e vulneráveis:
“Empoderamento”
– A expansão das capacidades e escolhas de homens e mulheres aumenta
sua habilidade para aquelas escolhas livre da fome e privação. Também
aumenta sua oportunidade para participar em, ou endossar, tomadas de
decisão que afetam suas vidas.
Cooperação
– Com um sentimento de “pertencer” importante à realização
pessoal, bem-estar e um sentido de propósito e significado, o
desenvolvimento humano preocupa-se com as formas nas quais as pessoas
trabalham juntas e interagem.
Eqüidade
– A expansão das capacidades e oportunidades significa mais do que
renda – também significa eqüidade, tal como um sistema educacional
ao qual todos deveriam ter acesso.
Sustentabilidade
– As necessidades desta geração precisam ser satisfeitas sem
comprometer o direito das gerações futuras de serem livres da pobreza
e privação e de exercerem suas capacidades básicas.
Segurança
– Particularmente a segurança de subsistência. As pessoas precisam
ser livres de ameaças, tais como doença ou repressão e de rupturas
nocivas repentinas em suas vidas.
Embora
eu nutra uma simpatia considerável pelos motivos que subjazem tais
esforços, eu os rejeito em termos analíticos. Na forma extrema de
desenvolvimento humano sustentável, a maioria das coisas boas é
simplesmente circunscrita na idéia de desenvolvimento. Direitos
humanos, democracia e desenvolvimento – junto com paz, justiça e
muitas outras coisas boas – tornam-se compatíveis ao tornar os
direitos humanos e democracia subgrupos do desenvolvimento. Certamente
concordo com o PNUD que “direitos humanos e desenvolvimento humano são
interdependentes e se reforçam mutualmente” e que “direitos humanos
e desenvolvimento humano sustentável são intrinsecamente ligados.”
Mas isso ocorre simplesmente porque o desenvolvimento tem sido definido
para tornar essa relação tautológica.
Rejeito
tal definição por duas razões principais. Primeiro, essa simplesmente
não é a forma como a maioria das pessoas comuns usa o termo. Segundo,
e decisivamente no meu ponto de vista, mesmo que aceitemos essa definição,
ela nos deixa com a questão de explorar a relação entre
desenvolvimento econômico, entendido largamente como um assunto de
crescimento sustentável, e direitos humanos. As tensões potenciais
entre esses objetivos não podem ser evitadas por definições
perfeitas.
Versões
menos extremas de esforços para discutir o desenvolvimento em termos
que vão além do crescimento, como a linguagem do Banco Mundial de
“redistribuição com crescimento”, também obscurecem as questões
nas quais quero focalizar este paper.
Redistribuição com crescimento é, de fato, um objetivo desejável.
Mas, como discutirei mais detalhadamente abaixo, trata-se de um objetivo
que envolve dois processos – crescimento e redistribuição – que,
algumas vezes, apoiam um ao outro e, algumas vezes, estão em tensão.
Como foi o caso acima com a democracia liberal, o esforço é combinar,
num modo particular, duas lógicas social e política diferentes. Embora
eu endosse esta combinação particular não menos entusiasticamente do
que eu endosse a democracia liberal, existem, eu argumentarei, boas razões
analíticas e políticas para chamar a atenção para as diferenças
entre lógicas de crescimento e de redistribuição. Este será meu propósito
na seção seguinte.
Assim,
no que se referir a “desenvolvimento”, eu estarei tratando de
crescimento econômico sustentável, medido pelo PIB per capita. Estou
propenso a chamá-la de definição de desenvolvimento estipuladora,
mesmo defectiva. Trata-se, porém, de um objetivo de alta prioridade da
maioria, se não, de todos estados contemporâneos, e o sucesso na
consecução deste objetivo contribui dramaticamente, talvez mesmo
decisivamente, para a legitimidade percebida da maioria dos governos
contemporâneos. Meu propósito ao adotar esta definição é permitir
uma consideração de como a busca pelo “desenvolvimento”
(crescimento sustentável) caracteristicamente interage com a busca, não
menos importante, dos direitos humanos internacionalmente reconhecidos.
Antes
de prosseguir, no entanto, uma questão de definição final precisa ser
tratada. A Declaração de 1986 sobre o Direito ao Desenvolvimento
(resolução da Assembléia Geral 41/128) proclama que “o direito ao
desenvolvimento é um direito humano inalienável por meio do qual toda
pessoa humana e todos os povos têm o direito de participar, contribuir
para e usufruir do desenvolvimento econômico, social, cultural e político,
no qual todos os direitos humanos e liberdades fundamentais podem ser
completamente realizadas.” A concepção de desenvolvimento aqui –
econômico, social, cultural e político – é quase tão amplo quanto
“desenvolvimento humano sustentável”. E existe uma tendência, em
muitas discussões, para usar o direito ao desenvolvimento como pouco
menos do que uma declaração resumida de todos direitos humanos
internacionalmente reconhecidos, com uma ênfase especial no direito à
autodeterminação, nos direitos econômicos, sociais e culturais.
Em
outro lugar eu tenho discorrido, exaustivamente, contra a sabedoria
moral, política, legal e analítica de reconhecer tais direitos
humanos.
Aqui, porém, simplesmente noto que o reconhecimento do direito humano
particular ao desenvolvimento, internacionalmente reconhecido, ainda nos
deixa com a questão da relação entre desenvolvimento entendido como
crescimento sustentável e os demais direitos humanos internacionalmente
reconhecidos na Declaração Universal e nas Convenções. Este será
meu foco abaixo.
Desenvolvimento e Direitos Humanos
O
caráter das discussões internacionais sobre direitos humanos e
desenvolvimento tem mudado consideravelmente no decorrer dos últimos
vinte anos. A primeira vez que tratei essa questão, no início dos anos
oitenta, muitos analistas ainda discutiam uma tensão fundamental, pelo
menos no curto e médio prazo, entre direitos humanos e desenvolvimento
(crescimento). Naquela época, identifiquei duas possibilidades
distintas de escolha que predominavam, igualmente, nas discussões acadêmicas
e políticas: o que eu chamei de subjugação da eqüidade
(o sacrifício da eqüidade de distribuição em favor da acumulação rápida
de capital, que era vista como uma força condutora por trás do
crescimento que era facilitado pelos mecanismos de mercado e, pelo
menos, certas formas de desigualdade de renda) e a subjugação da
liberdade (o sacrifício dos direitos civis e políticos em nome da
eficiência ou uma guerra nacional concertada no subdesenvolvimento).
Enfatizei, então, a contingência dessas escolhas, que eram tipicamente
apresentadas como necessárias, e a possibilidade de perseguir estratégias
de crescimento que evitavam, largamente, a subjugação da igualdade e,
talvez mesmo igualmente, a subjugação da liberdade.
Hoje continuo a enfatizar a contingência e a possibilidade de discutir
direitos humanos e desenvolvimento – mas contra um pensamento
dominante muito diferente.
A Subjugação da Liberdade
A
ditadura do desenvolvimento, e assim a subjugação da liberdade, perdeu
muito da sua popularidade internacional. Países como a Coréia do Sul,
Taiwan e Singapura demonstraram, nos anos setenta e oitenta, de modo
conclusivo, que o crescimento industrial sustentável pode ser alcançado
por regimes altamente repressivos (replicando a experiência anterior da
Europa Ocidental). A China continua a aderir a uma estratégia de
crescimento repressiva, com um considerável sucesso econômico e político.
Mas a maioria das ditaduras do desenvolvimento provaram ser fracassos
sombrios. Em grande parte do Subsaara e do mundo árabe, mesmo o
crescimento de curto prazo não foi alcançado (exceto entre
exportadores de óleo). Na maioria das ditaduras socialistas, junto com
grande parte das ditaduras militares da América Latina e oligarquias
civis, o crescimento de curto e médio prazo, que freqüentemente foi
alcançado, não pode ser sustentado. Mais freqüentemente, então, as
pessoas foram obrigadas a sacrificar seus direitos e liberdades pessoais
mas não receberam desenvolvimento (crescimento sustentável) em troca.
A
comunidade internacional parece ter aprendido com essa trágica experiência
que “bom governo” é um pré-requisito para o crescimento sustentável.
Concepções padrão de bom governo não incluem o amplo espectro de
direitos políticos e civis internacionalmente reconhecidos. Elas
enfatizam, no entanto, transparência, responsabilidade e o respeito às
leis, que são caracteristicamente vistos para demandar a democracia
eleitoral e um considerável espectro de liberdades civis (incluindo
liberdades de expressão, imprensa, assembléia e associação).
Versões
genéricas da subjugação da liberdade são hoje raramente encontradas.
O chamado autoritarismo suave permanece uma opção que é tratada com
um certo respeito, especialmente quando, como em países como Cingapura,
os bens econômicos prometidos são, de fato, entregues. Em geral, porém,
a tendência predominante, especialmente em fóruns multilaterais, é
enfatizar a compatibilidade do desenvolvimento e direitos civis e políticos
(assim como direitos econômicos, sociais e culturais).
Por
razões que não posso explorar aqui, devido à limitação do espaço,
aceito tais argumentos.
O desenvolvimento pode ser alcançado apesar da repressão. Não existe
nenhuma evidência, porém, de que o desenvolvimento é necessário
à repressão. Ninguém nunca discutiu que a subjugação da liberdade
era intrinsecamente desejável. Muito pelo contrário, por muito tempo
foi defendida como uma necessidade instrumental trágica. Tais
argumentos foram, por muito tempo, refutados, tanto na teoria quanto na
prática. Portanto, uma ênfase continuada na compatibilidade entre
direitos civis e políticos e desenvolvimento econômico me parece
inteiramente apropriada. Mesmo que tal ênfase não contribua para o
desenvolvimento – e acredito que a evidência mostre, de fato, que a
participação popular e a responsabilidade política fomentam o
desenvolvimento mais rápido – é desejável de uma perspectiva de
direitos humanos.
Mercados e a Subjugação da Eqüidade
O
entusiasmo contemporâneo por mercados, às vezes quase incontrolável
– especialmente em instituições financeiras internacionais e entre
seus patrões ocidentais, assim como tomadores de decisão econômicas
em um grande número de seus clientes – é muito mais problemático de
uma perspectiva de direitos humanos. Quero focalizar aqui a tensão
entre crescimento direcionado ao mercado e direitos econômicos e
sociais internacionalmente reconhecidos.
Mercados
são instituições que, quando operam do modo segundo o qual foram
concebidos, apresentam eficiência econômica. Em outras palavras, com
uma quantidade dada de recursos econômicos, sistemas de produção e
distribuição de um mercado em operação produzirão, quase sempre, um
resultado maior de bens e serviços do que esquemas alternativos.
Existe, assim, uma relação quase tautológica entre crescimento rápido
e mercados, ambos entendidos em termos de resultado econômico agregado
crescente.
De
modo mais substantivo, o sucesso no curto e médio prazo, mas a derrota
no longo prazo, de países como Cuba e Sri Lanka sob planos que
enfatizaram a (re)distribuição sobre o crescimento, sugere que um
certo grau de eficiência econômica pura é essencial para o
desenvolvimento sustentável. Como um assunto prático, portanto, é
essencial ao desenvolvimento confiança considerável na eficiência de
mercados. E um nível crescente de PIB per capita é essencial para um
progresso continuado na implementação de direitos econômicos e
sociais.
A
comunidade internacional aprendeu claramente essa lição. Mas muito
freqüentemente as formas nas quais a eficiência do mercado está em
tensão com os direitos econômicos e sociais é sistematicamente
ignorada nas discussões contemporâneas. Raramente vemos uma defesa
explícita da subjugação da eqüidade. As conseqüências, no curto e
médio prazo, para os direitos econômicos e sociais das estratégias
comandadas pelo mercado são, porém, tipicamente ignoradas,
especialmente nas atividades de instituições financeiras
internacionais e na política de assistência ao desenvolvimento e política
externa norte-americana, japonesa e, em grande medida, mesmo européia.
Quero chamar a atenção para esta tensão ao enfatizar as lógicas
fundamentalmente diferentes do crescimento comandado pelo mercado e
direitos humanos.
Da
mesma forma que (pura) democracia, (livres) mercados são justificados
por argumentos de bem coletivo e benefício agregado, não direitos
individuais (ao contrário, talvez, do direito à acumulação econômica).
Mercados fomentam a eficiência e não a eqüidade social ou o usufruto
de direitos individuais por todos. Mercados simplesmente não são
desenhados para assegurar que todos sejam tratados com um certo grau de
preocupação econômica e respeito. Muito pelo contrário, quando
deixados por si, os mercados sistematicamente prejudicam alguns indivíduos
para alcançar os benefícios coletivos da eficiência.
Os
mercados eficientes aumentarão, de fato, o fornecimento total de bens e
serviços disponíveis numa economia. Mas os mercados distribuirão,
necessariamente, aquele crescimento de modo desigual e sem preocupação
com as necessidades, interesses e direitos dos indivíduos. A única
base das distribuições do mercado é a contribuição para o valor
econômico agregado, que varia acentuadamente e sistematicamente entre
indivíduos e grupos sociais. Os pobres tendem a ser “menos
eficientes”; isto é, como uma classe, eles possuem menos das
habilidades altamente valorizadas pelos mercados.
Mercados, o Estado do Bem-estar Social e
a Distribuição do Sofrimento
Tudo
isso é amplamente conhecido, apesar da desatenção que recebe por
parte da maioria dos defensores contemporâneos do mercado. Trata-se de
uma das razões subjacentes para os controles do governo que estão
agora sendo desmantelados em todo globo. E nas democracias liberais
ocidentais, a necessidade para compensar aqueles que têm menor êxito
no mercado é uma justificativa central para o estado de bem-estar
social (que pode estar sujeito a cortes em vários países ocidentais
mas que permanece uma força poderosa e um elemento central na
legitimidade de todos regimes democráticos liberais existentes).
Indivíduos
que são prejudicados pelo funcionamento de instituições sociais que
beneficiam o todo – mercados e direitos de propriedade privada – têm
direito a uma fatia justa do produto social que sua participação
ajudou a produzir. Se os mercados produzem mais para todos, a
coletividade que se beneficia tem a obrigação de olhar pelos membros
individuais que estão em desvantagem ou prejudicados por aqueles
mercados. O estado de bem-estar social, e os direitos econômicos e
sociais internacionalmente reconhecidos que procura implementar,
constituem esquemas para assegurar que todo indivíduo tenha assegurado
certos bens, serviços e oportunidades econômicas e sociais
independente do valor de mercado do seu trabalho.
Defensores
de reformas de mercado admitem que alguns são prejudicados na busca do
ganho coletivo. Mas, argumentam, todos se beneficiam no longo prazo, com
o fornecimento maior de bens e serviços. “Todos”, porém, não
significam cada indivíduo. O referencial é o indivíduo médio,
uma entidade coletiva abstrata. E mesmo “ele” tem assegurado um
ganho significante somente em algum ponto no futuro. No aqui e agora, e
no futuro próximo, muitos seres humanos individuais e famílias reais,
de carne e sangue, sofrem.
Reformas
orientadas para o mercado simplesmente não estão de acordo com
o referencial ótimo de Pareto. Mercados eficientes melhoram a sorte de
alguns (idealmente os muitos) somente às expensas de um sofrimento
crescente de outros. E esse sofrimento está concentrado entre os
elementos mais fracos, mais pobres e mais vulneráveis da sociedade.
Aqueles
que sofrem agora não têm nenhuma razão para esperar uma recompensa
total no longo prazo. Os mercados distribuem inteiramente os benefícios
coletivos do crescimento de longo prazo sem preocupação com as privações
do curto prazo. Aqueles que sofrem os “custos do ajuste” – a perda
de um emprego, preços alimentícios mais elevados, pensões reduzidas,
auxílio médico ou educação piorada ou inexistente – não adquirem
nenhuma participação nos benefícios coletivos que os mercados
eficientes produzem. Uma “parcela justa” de alguém é uma função
unicamente de eficiência, de valor monetário agregado. O valor humano
do sofrimento, os custos humanos da privação, e as reivindicações
que eles justificam, não entram no relato dos mercados.
Aliviar
o sofrimento de curto prazo e assegurar recompensa de longo prazo são o
trabalho do estado (bem-estar social), não do mercado. Esses são
assuntos de justiça, direitos e obrigações, não eficiência. Eles
suscitam questões de direitos individuais. Mercados simplesmente não
podem resolvê-las – porque não são designados para esse fim.
O Estado Democrático Liberal de
Bem-estar Social
Mercados
livres são um análogo econômico para um sistema político do governo
da maioria sem os direitos da minoria. O estado de bem-estar social é,
dessa perspectiva, um plano para assegurar que a minoria, que está em
desvantagem ou se encontra prejudicada pelos mercados, ainda seja
tratada com um mínimo de respeito e preocupação econômica. E porque
essa minoria está mudando e é indeterminada – muito como a minoria
que se engajaria num discurso político impopular ou se sujeitaria a uma
prisão arbitrária – esses “direitos minoritários” são, na
verdade, direitos individuais para todos. Nós o mantemos não porque
somos membros de um “grupo minoritário” mas simplesmente porque
somos humanos (ou, de algum modo mais preciso, cidadãos).
Se
os direitos humanos são o que civilizam a democracia, o estado de
bem-estar social é o que civiliza os mercados. Se os direitos civis e
políticos mantêm a democracia dentro de limites convenientes, direitos
econômicos e sociais estabelecem os limites adequados dos mercados.
Livre mercado, da mesma forma que democracia pura, sacrifica os indivíduos
e seus direitos para um bem coletivo “maior”. Somente quando a busca
da prosperidade é submetida aos direitos econômicos e sociais –
quando os mercados são imbuídos de um estado de bem-estar social –
uma economia política merece nosso respeito.
Os
estados democráticos liberais de bem-estar social da Europa ocidental,
Japão e América do Norte constituem modelos atraentes para boa parte
do resto do mundo graças ao equilíbrio particular que lograram entre
as exigências conflitantes de participação democrática, eficiência
de mercado e direitos humanos internacionalmente reconhecidos. Essa
conjunção eventual particular de democracia, desenvolvimento e
direitos humanos confere ao estado democrático liberal de bem-estar
social seu apelo hegemônico. Separadamente, cada objetivo é muito
menos atraente. Em particular, enfatizei as falhas da tomada de decisão
democrática na ausência de um compromisso prévio com os direitos
humanos internacionalmente reconhecidos e do crescimento comandado pelo
mercado na ausência de um compromisso com políticas de redistribuição
com vistas a realizar direitos econômicos e sociais.
Democracia,
desenvolvimento e direitos humanos podem ser perseguidos
simultaneamente, em caminhos onde se reforçam mutuamente (assim como se
limitam mutuamente). Mas não precisam sê-lo. Na era do pós-Guerra
Fria do triunfo democrático e do mercado, é especialmente importante
manter os direitos humanos no centro de nossa atenção. Enfatizei –
talvez tenha mesmo enfatizado em excesso - as tensões entre a lógica
essencialmente individualista, baseada nos direitos humanos, e a lógica
essencialmente coletivista, utilitarista da democracia (sem um adjetivo)
e desenvolvimento (sustentável, crescimento comandado pelo mercado).
Meu propósito, porém, não foi fomentar tais tensões, que não são
mais necessárias do que as compatibilidades entre esses três
objetivos. Pelo contrário, meu objetivo foi nos lembrar que é somente
a combinação particular da democracia, desenvolvimento e direitos
humanos, alcançada no estado democrático liberal de bem-estar social,
que vale nosso louvor e esforço sustentado.
Mercados
e eleições - “democracia de mercado” na linguagem da política
externa americana da administração Clinton – são, da perspectiva
dos direitos humanos, de amplo valor instrumental. Sem eficiência de
mercado e políticas eleitorais democráticas, direitos humanos
internacionalmente reconhecidos correm, de fato, sério risco. Mas
mercados e eleições sozinhos só nos levarão para metade do caminho
em direção a um mundo de todos direitos humanos para todos.
Todos
os estados democráticos liberais de bem-estar social de hoje ainda têm
uma distância a percorrer para realizar esse ideal mesmo para seus próprios
nacionais. Embora essa distância seja maior nos Estados Unidos do que,
digamos, na Noruega ou na Holanda, permanecem os grupos sistematicamente
em desvantagem, mesmo no estado democrático liberal com melhor
desempenho de bem-estar social da Europa do Norte, e ainda se exige
muito progresso no campo dos direitos humanos. Somente tais estados são,
porém, sistematicamente compromissados com o amplo espectro de direitos
humanos internacionalmente reconhecidos. Somente em tais estados
mercados robustos e democracias operam dentro de limites sistemáticos
definidos pelos direitos humanos. E somente (ou pelo menos
primariamente) em virtude de tais limites, seus mercados e democracias
merecem ser imitados.
Aqueles
que usufruem os benefícios do estado democrático liberal de bem-estar
social têm, acima de tudo, uma obrigação de manter isso em mente nas
suas análises acadêmicas. Seus governos têm uma obrigação de manter
esse discernimento central nas suas políticas externas bilaterais e
multilaterais. Em anos recentes, porém, tanto os acadêmicos quanto os
governos muito freqüentemente confundiram meios (mercados e eleições)
com fins (direitos humanos). Ao enfatizar as tensões possíveis entre
direitos humanos e democracia e desenvolvimento, procurei sublinhar essa
confusão e seus perigos. Minha esperança é ter contribuído, assim,
numa parcela muito pequena, ao fortalecimento das práticas nacionais e
internacionais que mais amplamente exploram as complementaridades entre
democracia, desenvolvimento e direitos humanos, que são possíveis
quando o objetivo primordial é todos direitos humanos para todos
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