Desenvolvimento,
Direitos Humanos
e Cidadania
Ignacy
Sachs*
A
comemoração do cinqüentenário da Declaração Universal dos Direitos
Humanos constitui oportunidade para examinar simultaneamente duas
problemáticas estreitamente imbricadas, ambas em plena evolução e
chamadas a desempenhar papel relevante na política internacional do próximo
século: os direitos humanos e o desenvolvimento considerado como expansão
dos direitos positivos, segundo fórmula do eminente pensador indiano
Amartya Sen.
O
século XX foi marcado por duas guerras mundiais e pelo horror absoluto
do genocídio alçado à condição de projeto político
e industrial. Ele se encerra com um cortejo de massacres na África
Central e na Argélia, sem esquecer a limpeza étnica realizada na Bósnia.
É para exorcizar essa descida aos infernos que, logo após a guerra, os
povos e os Estados democráticos mobilizaram-se para fazer dos Direitos
Humanos o fundamento do sistema das Nações Unidas, “a quintessência
dos valores pelos quais afirmamos, juntos, que somos uma única
comunidade humana”, ou seja “o irredutível humano”.
A
Carta das Nações Unidas, a Declaração Universal dos Direitos do
Homem, o Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos e o
Pacto Internacional sobre os Direitos Econômicos e Culturais balizam o
processo de internacionalização dos direitos do homem.
Paralelamente,
sob a pressão dos movimentos sociais, de opinião pública e de
cidadania, assiste-se, em numerosos países, à consolidação dos
estados de direito, ao fortalecimento das garantias das liberdades
negativas (freedom from) e
à ampliação das liberdades
positivas (freedom for). Por
toda parte, a luta pelos direitos do homem, com seus sucessos e
fracassos duramente pagos, constitui o eixo fundamental da política.
Enquanto o registo da primeira
geração de direitos políticos, civis e cívicos se consolida
balizando o poder de ação do Estado, toma corpo a segunda
geração dos direitos sociais, econômicos e culturais, impondo uma
ação positiva ao Estado, uma terceira
geração de direitos, desta vez coletivos,
emerge: direito à infância, direito ao meio ambiente,
direito à cidade, direito ao desenvolvimento dos povos, enfim
reconhecidos na Conferência de Viena, em 1993.
Luiz Carlos Bresser Pereira postula uma quarta
geração de direitos republicanos garantindo aos cidadãos o acesso
e o uso adequado do patrimônio público – histórico, ambiental e
econômico (a res publica no
sentido literal do termo).
Não
se insistirá nunca o bastante sobre o fato de que a ascensão dos
direitos é fruto de lutas, que os direitos são conquistados, às
vezes, com barricadas, em um processo histórico cheio de vicissitudes,
por meio do qual as necessidades e as aspirações se articulam em
reivindicações e em estandartes de luta antes de serem reconhecidos
como direitos. O caminho a percorrer será longo e árduo a julgar pela
distância a vencer para ultrapassar a extrema pobreza que constitui
negação manifesta dos direitos fundamentais,
sem falar de outras violações que surgem a cada dia. Entretanto, em um
impulso de otimismo e de aposta na perfectibilidade da espécie humana,
restabelecendo os laços com a filosofia do Século das Luzes, Bobbio não
titubeou em intitular um de seus livros
L’âge des droits (1990),
como se se tratasse de uma onda sísmica na longa história da ascensão
da humanidade.
Idade
dos direitos, mas também idade dos extremos, para retomar o título da
magistral história do curto século XX escrita por Eric Hobsbawm
(1994). Graças ao poderio tecnológico multiplicado ao longo do século,
a economia mundial conheceu crescimento sem precedentes, alcançando
elevados níveis de produção de bens
materiais.
Porém, a parte maldita do
produto não para de crescer, engolida pelo aumento dos custos das
transações e dos custos
embutidos para o funcionamento do capitalismo
e esterilizada nos circuitos de especulação financeira, gerando uma riqueza virtual, sem esquecer as despesas bélicas.
Disso
resulta gigantesco potlatch e
a má distribuição cada vez mais pronunciada entre as nações e no
interior delas, desencadeando fenômenos de desemprego em massa, de
subemprego e de exclusão social, mais do que desperdício, destruição
de vidas humanas. Enquanto um bilhão de habitantes de nosso planeta
vive na prosperidade, outro bilhão sobrevive em estado de miséria que
desafia qualquer descrição; quatro bilhões dispõem de renda modesta
próxima ao mínimo vital. O fenômeno que marca este século é, por
conseguinte, o desenvolvimento às
avessas, enquanto o produto mundial eqüitativamente dividido seria
suficiente, para assegurar vida confortável ao conjunto das populações.
Entretanto,
penso que, por analogia com a idade
dos direitos, a segunda metade do século XX pode também ser
considerada como a idade do
desenvolvimento. Explico:
Tanto
quanto os direitos humanos, a noção de desenvolvimento ocupa posição
central nas preocupações das Nações Unidas. No decorrer deste meio século,
ela se enriqueceu consideravelmente. A idéia simplista de que o
crescimento econômico bastaria por si só para garantir o
desenvolvimento foi rapidamente abandonada e o conceito ganhou
complexidade, com sucessivos acréscimos de epítetos: desenvolvimento econômico,
social, cultural, certamente,
político, em seguida sustentável
(sustainable),
por fim, como última adição, humano
para significar que o desenvolvimento tinha por objetivo a plena realização
dos homens e das mulheres em vez da multiplicação dos bens.
Essa
inflação de epítetos é difícil de manejar na esfera do discurso e
da escrita. É mais do que tempo de retirá-los da palavra
desenvolvimento, contanto que seja definido corretamente, levando em
conta todas as suas dimensões
pertinentes.
Isto posto, reconhecemos o caráter eminentemente positivo do acréscimo
sucessivo de dimensões ao conceito de desenvolvimento. Foi apenas por
ter sofrido essa transformação que se tornou noção central para a
compreensão de nossa época e para a concepção de projetos
nacionais voltados para o futuro. Sartre dizia que o homem é um
projeto. O que, com mais razão ainda, as sociedades humanas deveriam
vir a ser.
Em
sua forma pluridimensional, o desenvolvimento entendido a um só tempo
como projeto (norma) e como caminhamento
histórico em direção a esta norma é aplicável à totalidade as
nações. Não se limita de forma alguma apenas ao caso dos países
denominados sucessivamente atrasados, subdesenvolvidos, menos
desenvolvidos, em vias de desenvolvimento.
É reconhecido como um dos dois eixos da ação do sistema da ONU, ao
lado da manutenção da paz. Seria uma lástima abandonar esse conceito,
como muitos gostariam, simplesmente porque o “desenvolvimento às
avessas” sobrepuja com freqüência o desenvolvimento ou, ainda,
porque vilanias foram cometidas em nome dele, reduzido a mero
encantamento destituído de qualquer conteúdo.
Alinho-me,
ao lado de Bobbio, entre aqueles que continuam a apostar na
perfectibilidade de nossa espécie a despeito de todos os fracassos e do
desencanto provocado pelo desmoronamento do socialismo real,
distanciando-se da fé ingênua dos filósofos do Grande
Século no progresso linear. Penso que o desenvolvimento constitui,
também, uma onda sísmica na história longa, balizada no decorrer
deste meio século pela independência dos países coloniais, pela
emancipação das mulheres, pela emergência da sociedade civil
organizada como detonadora de um terceiro sistema auto-instituído de
poder, ao lado do poder político e do poder econômico,
enfim a mola propulsora (hoje ameaçado) dos Estados protetores (welfare
States).
O
desenvolvimento pode ainda ser visto como processo de aprendizado social, apelando para as faculdades da memória e da
imaginação que constituem um traço distintivo de nossa espécie e
explicam sua extraordinária adaptabilidade.
Finalmente,
quando se fala de desenvolvimento em termos de liberação, trata-se mais do que uma metáfora. O desenvolvimento
passa, de fato, pela liberação dos homens das dificuldades materiais,
o que supõe uma partilha eqüitativa do ter
e a supressão de todos os entraves à sua realização na busca do
bem-estar.
Desenvolvimento e democratização confundem-se
como processo histórico, com a condição
de se dar ampla acepção ao segundo termo. Além da simples instauração
(ou reabilitação) do estado de direito e das instituições de governo
democráticas, a democratização é também o aprofundamento, nunca
concluído, da democracia no
cotidiano, do exercício da cidadania
em vista da expansão, da universalização e da apropriação efetiva
dos direitos de segunda e de terceira geração.
Na
verdade, melhor seria falar de cidadania no plural pois a construção
da democracia requer a articulação de vários espaços complementares
de cidadania: do local ao planetário, passando pelo nacional e pelo
regional. Esta questão constitui um desafio capital no debate atual
sobre globalização e, para os europeus, sobre o papel das instituições
européias. Em particular, convém questionar-se sobre o futuro dos
Estados nacionais e suas relações com o Estado supranacional em formação.
Tratar nosso planeta de Terra-Pátria (é o título de uma obra de Edgar
Morin) não é de forma alguma contraditório com a reafirmação do
papel dos Estados nacionais no âmbito de um sistema internacional
dotado de instituições supranacionais, praticando a descentralização
para criar espaços de autonomia local. No plano ideológico, o universalismo
e o internacionalismo autêntico fundado no princípio da equidade
internacional
não devem ser confundidos com globalismo.
Os partidos socialistas europeus preparam uma conferência para
definir a mundialização com feição humana. Desejamos-lhes sucesso.
Nessa
ótica, convém proceder à releitura da história social e à análise
dos mecanismos de proteção dos direitos do homem e das condições
institucionais das práticas de sua apropriação. Cada geração
reescreve a história, colocando novas questões de acordo com sua
experiência e sensibilidade. Neste fim de século XX, o social
e o ecológico emergem como principais preocupações diante da devastação
provocada pela hegemonia incontrolável do econômico
e da primazia da lógica de mercado sobre a lógica das necessidades.
Uma história do desenvolvimento surgirá
dessa dupla releitura, permitindo entender melhor em que condições o
crescimento é acompanhado de autêntico desenvolvimento.
Entre
outras tarefas, também urgentes, igualmente à espera de pesquisadores
em ciências sociais, trabalhando sobre o desenvolvimento como apropriação
dos direitos, mencionarei duas devido às polêmicas por elas
suscitadas.
A
universalidade dos direitos do homem é, por vezes, contestada em nome
da diferença cultural dos países asiáticos. Tratar-se-ia de projeção
ilegítima dos conceitos eurocentristas sobre as civilizações
detentoras de valores próprios. Por mais sensível eu seja aos perigos
de eurocentrismos,
não me parece que essa objeção seja aceitável, tanto mais quanto
serve, com freqüência, para mascarar ataques contra o Estado de
direito. Como já foi dito, a própria idéia de Nações Unidas
fundamenta-se sobre a universalidade dos direitos do homem como norma última
de qualquer política.
Mary
Robinson (1998) tem razão em alertar contra a construção de um novo
muro de Berlim entre o enfoque “nórdico” e o “meridional” dos
direitos humanos. Porém, não basta afirmar que os direitos humanos são
universais, indivisíveis e interdependentes. É preciso ainda
reconhecer que os direitos humanos são direitos em movimento. O debate
atual, na França, sobre o direito a uma morte digna e sobre a eutanásia
demonstra que mesmo em matéria de direitos individuais há uma dinâmica.
Ademais, existe grande variedade de instituições tradicionais de proteção
aos direitos humanos própria às diversas culturas; seu estudo se impõe
(Penna e Campbell, 1998). Cada cultura tem seu modo particular de
formular as grandes interrogações relativas à aplicação dos
direitos humanos. A construção de um direito comum da humanidade, como
assinala, com razão, Mireille Delmas-Marty pode acomodar-se com um
pluralismo jurídico harmonizado.
Enquanto
na teoria os direitos do homem são indivisíveis, na prática não se
pode escamotear a questão de sua hierarquia, especialmente no que toca
à aplicação dos diferentes direitos econômicos e sociais considerada
a multiplicidade das necessidades e a penúria dos meios. A partir dessa
constatação, é grande a tentação de proceder a arbitragens
abusivas. A eficiência socioeconômica não poderia em hipótese alguma
ser invocada para justificar a deriva autoritária. A trágica experiência
de nosso século nos ensinou que os direitos de primeira geração
constituem valor absoluto.
Quanto às arbitragens delicadas relativas aos direitos de segunda geração,
elas dependem do funcionamento eficiente do Estado de direito democrático.
A
Declaração e o Programa de Ação de Viena, adotados pela Conferência
Mundial sobre os Direitos do Homem, propõem, no parágrafo 98, para
reforçar o gozo dos direitos econômicos, sociais e culturais, a
implantação de sistema de indicadores para avaliar os progressos alcançados
na realização dos direitos anunciados no Pacto Internacional.
Continuo
céptico em relação a essa proposta, caso se trate de indicadores
quantitativos e sintéticos a exemplo do indicador do desenvolvimento
humano.
Em contrapartida, penso que a análise do desenvolvimento, como apropriação
dos direitos do homem, poderia dar lugar à elaboração de um relatório
sobre a condição humana extremamente rico e útil para a formulação
de políticas públicas de desenvolvimento, centradas na promoção das
quatro gerações de direitos do homem.
Após
a escolha dos direitos considerados, seria preciso pesquisar, país por
país, sobre o estado da apropriação efetiva de cada direito,
diferenciando a situação das diversas categorias sociais.
A
empreitada pode parecer ambiciosa. Está na medida do desafio e é
absolutamente factível, contanto que se mobilize as organizações de
cidadania do setor terciário, trabalhando nas diferentes áreas
cobertas por tal relatório.
Ela presta-se, ademais, a ser realizada, por módulos, caso a operação
deva ser escalonada em vários anos ou se torne permanente. Bastaria,
nesse caso, escolher anualmente um número limitado de direitos, ou
ainda, restringir o alcance do estudo a uma determinada região,
privilegiar ora as populações urbanas, ora as populações rurais, os
recortes sendo estabelecidos de acordo com os meios disponíveis.
No
momento em que celebramos os 50 anos da Declaração Universal dos
Direitos do Homem seria demais pedir o engajamento nesta direção?
Ainda é tempo de produzir o primeiro relatório
do cidadão sobre a condição humana para o ano I do século XXI,
etapa na constituição de observatórios
permanentes dos direitos humanos,
nacionais e regionais.
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