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Limitando a Arbitrariedade do Estado
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                                                                                                                   Bacre Waly Ndiaye*  

Limitando a arbitrariedade do Estado através de normas internacionais de direitos humanos  

Limitando a arbitrariedade do Estado através de mecanismos externos às convenções  

Limitando a arbitrariedade do Estado através da comunidade internacional  

Limitando a arbitrariedade do Estado através da sociedade civil  

Desafios e tendências para o futuro  

 

 

Este ano parece particularmente pertinente e oportuno para refletirmos sobre de que maneira e até que ponto a comunidade internacional, a partir da adoção da Declaração Universal dos Direitos Humanos em 10 de dezembro de 1948, conseguiu criar um sistema de direitos humanos que efetivamente regule as relações entre o Estado e seus cidadãos e promova os direitos humanos e as liberdades fundamentais.

A partir da adoção da Declaração Universal, criou-se um sistema sofisticado de mecanismos, para a promoção um conjunto de valores básicos referentes aos os direitos humanos, a fim de garantir o aperfeiçoamento desses direitos e restringir a arbitrariedade do Estado. O sistema também lida com as violações dos direitos humanos em suas ocorrências, em níveis internacionais, regionais e nacionais. Este artigo pretende examinar alguns desses mecanismos e práticas que se desenvolveram nesses três níveis, bem como avaliar sua eficácia e explorar os efeitos que a crescente globalização e a oscilação contínua das relações de poder internacionais trazem para esses regimes.

Limitando a arbitrariedade do Estado através de normas internacionais de direitos humanos

Ao centro do sistema internacional de direitos humanos, existem dois tipos de mecanismos cujo objetivo é proteger os direitos humanos, criando instrumentos que obriguem o Estado a prestar contas de suas atividades a seus cidadãos e à comunidade internacional e, assim, restringindo as ações arbitrárias por parte dos Governos. O primeiro tipo de mecanismo compreende um conjunto de instrumentos jurídicos internacionais que elevaram os direitos da Declaração Universal à categoria de obrigações jurídicas internacionais. Em outras palavras, ao ratificar tratadosinternacionais, os Governos concordam em proceder a um processo de revisão de sua legislação e de sua prática com respeito aos direitos humanos, executado por um grupo de especialistas independentes que, através da Assembléia Geral, repassam publicamente, para a comunidade internacional, as informações sobre o grau de observância dos direitos humanos daquele Governo.

É preciso que se dê a devida importância aos limites que o Estado impõe à sua própria soberania, pois, nesses casos, ele não só se compromete a não violar os direitos humanos, como também concorda em tomar medidas para proteger e promover esses direitos e as liberdades fundamentais. Além disso, através dos mecanismos que fiscalizam o cumprimento do tratado, os governos, também voluntariamente, abrem suas fronteiras para outros, ou seja, para as Nações Unidas e para a comunidade internacional mais ampla, permitindo-lhes interferir no que eram tradicionalmente considerados assuntos internos do país. Os limites tradicionais da soberania do Estado vão, assim, sendo sistematicamente desgastados, e isso contribui para aumentar a obrigação de todos os Estados a aderirem às normas sobre direitos humanos reconhecidas internacionalmente.

Como foi explicado acima, os Estados submetem suas legislações, políticas e práticas a uma fiscalização internacional, voluntariamente, com base no diálogo e na cooperação entre os organismos relevantes que monitoram o tratado e o órgão do Governo que assinou a convenção ou tratado. Existem seis tratados principais sobre direitos humanos que incluem procedimentos de monitoramento, respectivamente, a Convenção Internacional sobre a Eliminação de Discriminação Racial (1965), os Tratados Internacionais Sobre Direitos Civis e Políticos (1966), a Convenção Sobre a Eliminação da Discriminação contra a Mulher (1981), a Convenção contra a Tortura e outros Tratamentos ou Punições Desumanas ou Degradantes (1987) e a Convenção Sobre os Direitos da Criança (1989). Todos os respectivos comitês são compostos por especialistas independentes que examinam os relatórios periódicos submetidos pelos Estados signatários, sobre a legislação nacional, e outras medidas, no contexto da convenção relevante. Quando examinam os relatórios, os comitês procuram utilizar informações de fontes adicionais, tais como organizações não- governamentais e outros órgãos e mecanismos das Nações Unidas.

Na verdade, em muitos casos, a contribuição das organizações não- governamentais é essencial, já que essas fornecem detalhes e estudos de caso que não estariam disponíveis às fontes governamentais - especialmente nos casos em que não existe legislação em uma área determinada, ou quando a observância da legislação existente é insatisfatória. Em particular, o Comitê Sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (que monitora o Tratado Internacional Sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais) fez das organizações não-governamentais seus parceiros iguais, em seus esforços para monitorar a implementação dos direitos econômicos, sociais e culturais por parte dos países signatários.

Como resultado do crescente envolvimento da sociedade civil, através das organizações não-governamentais, no processo de monitoramento, aprimora-se ainda mais a responsabilidade final do Estado e, com isso, torna-se cada vez mais difícil para esses Governos, justificarem, perante a opinião pública do próprio país e no exterior, atos governamentais arbitrários que violem as normas de direitos humanos internacionalmente reconhecidas.

Segundo Philip Alston, Presidente do Comitê Sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, o relacionamento interativo que os comitês desenvolveram com os representantes dos Estados, mostrou ser um fator importante para o progresso dos direitos humanos em nível nacional. Por exemplo, o fato de que, na Conferência Habitat, em Istambul, o direito à moradia passou a ser um item prioritário na pauta da comunidade internacional, contribuiu para ampliar a oficialização e o reconhecimento dos direitos econômicos e sociais. Como conseqüência disso, vários Governos abandonaram planos de desapropriação forçada e começaram a preocupar-se em garantir moradias para a população: a República Dominicana, que durante seis anos foi criticada pelo Comitê por suas condições inadequadas de moradia, acaba de convidar este último para realizar uma visita ao país, e reunir-se com organizações não-governamentais a fim de fazer recomendações concretas sobre possíveis soluções para o problema. No Panamá, depois de uma missão do Comitê em 1996, para verificar denúncias de desabrigo em massa e de desapropriações forçadas, um diálogo muito mais intenso, em nível nacional, sobre o direito à moradia, levou a uma emenda na legislação e a uma nova política de habitação, que incluía um compromisso, por parte do Governo, de evitar futuras desapropriações forçadas e a demolição de moradias existentes. Esses são exemplos concretos de como os Estados se submetem voluntariamente ao escrutínio internacional a fim de ampliar a proteção aos direitos humanos.

Além de suas funções de supervisão, os organismos que monitoram o cumprimento dos tratados têm um papel significativo a desempenhar com relação à conscientização da opinião pública com respeito aos direitos humanos. As observações e conclusões dos comitês são divulgadas, e devem ser traduzidas nos idiomas locais para garantir que a própria sociedade irá desempenhar um papel importante no monitoramento do Estado e sua observância dos direitos.

Outro exemplo importante de restrições que Estados impõem a suas próprias ações é a ratificação, por parte desses Estados, de protocolos opcionais, constantes de alguns tratados, que estabelecem um procedimento individual de comunicação. Através desses mecanismos, indivíduos podem submeter diretamente às Nações Unidas, reclamações relacionadas com um Estado que ratificou o protocolo, para que essas sejam levadas à atenção do Governo em questão, com uma solicitação de esclarecimento. Como a palavra “opcional” indica, os Estados não são obrigados a abrirem suas portas à fiscalização internacional dos direitos de seus próprios cidadãos (em fevereiro de 1998, o Primeiro Protocolo Opcional do ICCPR, por exemplo, tinha84 países signatários). O Segundo Protocolo Opcional ao Convênio Internacional Sobre Direitos Civis e Políticos, cujo objetivo é a abolição da pena de morte, foi adotado em 1989 e, em junho de 1998, tinha 33 países signatários.

É importante observar que, devido, sobretudo, ao respeito pelo princípio tradicional de não-interferência em assuntos internos, só muitos anos após a adoção dos tratados respectivos, foi que as Nações Unidas estiveram em condição de agir com relação a muitas das reclamações individuais que recebiam, fora da esfera de ação do mecanismo acima descrito. Em 1970, no entanto, a resolução 1503 do Conselho Econômico e Social estabeleceu um procedimento de comunicação confidencial, envolvendo a Comissão dos Direitos Humanos e sua Subcomissão, para examinar alegações de violações flagrantes e sistemáticas de direitos humanos. No entanto, como é o caso com outros procedimentos, o sucesso desse mecanismo depende em grande parte da disposição dos Governos de negociarem com as Nações Unidas.

Apesar dos sucessos obtidos em nível nacional e internacional através do sistema de monitoramento do órgão do tratado, existem, naturalmente, uma série de falhas e limitações no sistema que precisam ser destacadas se quisermos entender seu verdadeiro impacto. Quando ratificam um tratado, muitos dos Estados apresentam ressalvas a uma ou mais de suas provisões, fazendo exceções ao seu conteúdo. Embora, por lei, essas ressalvas não possam ser contrárias ao objetivo principal de qualquer convenção, infelizmente, o número de ressalvas que contradizem as respectivas convenções ainda é alto. A ressalva apresentada pelos Estados Unidos da América ao CIDCP, por exemplo, na qual o país se reserva o direito de “impor a pena capital a qualquer pessoa, que não seja uma mulher grávida, que foi devidamente condenada sob leis existentes ou futuras... inclusive para pessoas com menos de dezoito anos de idade” contradiz o espírito e o objetivo do Art. 6 do CIDCP.

É nesse contexto, que as Nações Unidas reconheceram que as ressalvas aos instrumentos internacionais dos direitos humanos são um obstáculo importante à sua plena implementação e estão realizando uma campanha para eliminar as ressalvas tanto quanto possível. Por essa razão, a Conferência Mundial Sobre Direitos Humanos em Viena, em 1993, pediu a ratificação unânime da eliminação das ressalvas feitas à Convenção Para a Eliminação da Discriminação contra a Mulher até o ano 2000. [1]

Nos últimos anos, outro desafio que ameaça reduzir a efetividade dos tratados internacionais de direitos humanos é a tendência de alguns países participantes a anunciarem sua retirada das convenções ou dos respectivos protocolos opcionais. Um exemplo dessa tendência tão preocupante foi a denúncia, seguida de uma nova adesão com ressalvas, apresentada por Trinidade e Tobago ao Primeiro Protocolo Opcional do CIDCP, no início deste ano, com relação aodireito à petição nos casos de pena de morte. Outro exemplo recente, é a notificação de retirada do CIDCP apresentada, no mês passado, pela República Popular Democrática da Coréia, após a aprovação pela Subcomissão das Nações Unidas Para a prevenção da Discriminação e Proteção das Minorias de uma resolução sobre a situação dos direitos humanos naquele país. Nesse contexto, é preciso deixar claro, no entanto, que como a CIDCP não contém uma provisão específica para a denúncia ou para a retirada do tratado, “o Secretário Geral é da opinião que uma retirada do Tratado pareceria não ser possível, a não ser que todos os países participantes do Tratado estivessem de acordo com essa retirada”.[2]

O trabalho dos Comitês também é prejudicado pelo fato de que esses dependem, obrigatoriamente, da submissão dos relatórios dos países participantes, e isso pode ser adiado por anos a fio, sendo que, em alguns casos, os relatórios nem chegam a ser apresentados. Para solucionar esse problema e assegurar-se de que a não-apresentação de relatórios não venha a ser um benefício para o país participante, os Comitês estão considerando que, se um país participante apresentou pelo menos seu relatório inicial, seria apropriado que o Comitê entrasse em cena e tomasse providências à priori com respeito a uma determinada situação para a qual sua atenção tivesse sido chamada, mesmo sem o correspondente relatório do país em questão.

Limitando a arbitrariedade do Estado através de mecanismos externos às convenções

Outra camada de proteção dos direitos humanos em nível internacional, compreende os mecanismos de monitoramento externos às convenções, estabelecidos pela Comissão das Nações Unidas Sobre Direitos Humanos com o objetivo de superar algumas das inflexibilidades dos mecanismos de monitoramento convencionais descritos acima. Historicamente, as Nações Unidas nunca consideraram como parte de seu mandato exigir que os Países Membros prestassem contas das violações de direitos humanos na ausência de mecanismos incorporados aos tratados que oferecessem normas e procedimentos claramente definidos. Essa relutância começou a diminuir quando, no final da década de 70, a Comissão de Direitos Humanos admitiu a necessidade de dar uma resposta ao fenômeno do desaparecimento de pessoas em alguns países latino-americanos. Consequentemente, o primeiro mecanismo de fiscalização ad hoc (o Grupo de Trabalho sobre Desaparecimentos Forçados e Involuntários) foi estabelecido em 1980 para receber denúncias individuais e realizar visitas de campo nos países em questão. De uma forma mais flexível que a dos órgãos de monitoramento convencionais, a Comissão de Direitos Humanos pode reagir a preocupações específicas, relacionadas com a violação de direitos humanos em um país ou em uma área temática, nomeando especialistas independentes para investigarem a situação em sua capacidade de relatores especiais, representantes, ou grupos de trabalho (mecanismos de procedimentos especiais).

Os mecanismos de procedimentos especiais, incluindo relatores, representantes e grupos de trabalho, recebem um mandato para estudar, em escala global, temas específicos de direitos humanos[3] ou a situação dos direitos humanos em determinados países. [4] A flexibilidade do mecanismo de procedimentos especiais está em que, dependendo da aceitação por parte do Governo em questão, eles podem enviar missões ao local da ocorrência, para que essas estabeleçam um diálogo, não só com todas as partes relevantes no Governo, mas também com a sociedade civil e com as próprias vítimas das violações dos direitos humanos. Além disso, os relatores especiais têm toda a liberdade para usarem quaisquer recursos, inclusive as comunicações individuais das violações alegadas, e relatórios das organizações não-governamentais, na preparação de seus relatórios anuais para a Comissão de Direitos Humanos e/ou para a Assembléia Geral. Os relatores especiais também podem fazer uso dos procedimentos de emergência para interceder junto aos escalões mais altos dos Governos. De 1992 a 1996, por exemplo, o Relator Especial sobre execuções extrajudiciais, sumárias ou arbitrárias, fez 818 apelos urgentes em nome de mais de 6.500 pessoas, em 91 países diferentes, e recebeu respostas em mais da metade dos casos. O Relator Especial sobre Tortura, em 1995 e 1996, enviou 68 cartas a 61 Governos a respeito de 669 casos, bem assim como 130 apelos urgentes em nome de 500 pessoas. Quarenta e dois países deram resposta em 459 desses casos. Depois de uma extensa visita ao Paquistão e da cooperação das autoridades locais, o Relator Especial pôde transmitir a notícia da abolição do castigo físico e do uso de grilhões nos presídios. Os relatórios dos relatores especiais são divulgados publicamente perante a Comissão de Direitos Humanos e contribuem enormemente para a divulgação das violações e para criar a responsabilidade final do Governo, limitando desta forma, as ações arbitrárias por parte dos Estados. Na área de procedimentos especiais, há uma tendência crescente a que vários relatores especiais organizem missões conjuntas a um mesmo país, a fim de obter uma visão mais completa da situação examinada e também para evitar a duplicação de esforços. Outra prática positiva, identificada nesse contexto, é a disposição crescente de Governos de conceder permissão de acesso a seus países e, assim, de se abrirem ao escrutínio público.

Naturalmente, existem imbricações ou uma certa indefinição das diferenças entre mecanismos convencionais e extra-convencionais, mas os procedimentos especiais ad hoc ainda estão em uma melhor situação quando se trata de responder à priori às violações de direitos humanos e de estabelecer limites para os Governos responsáveis por essas violações. No entanto, o trabalho de muitos dos relatores especiais é seriamente prejudicado pela dificuldade de obter vistos para visitar os países, ou, quando a visita é permitida, de ter acesso a todas as localidades desejadas. Por outro lado, as visitas dos relatores especiais aos países não só geram uma série de preparativos em nível nacional,como são divulgadas amplamente na mídia local. As organizações não-governamentais e a opinião pública do país envolvem-se nas questões relacionadas com a missão do relator especial, estimulando o debate nacional e a agitação política em torno de temas geralmente polêmicos. Por exemplo, a visita ao Brasil, em 1997, do Relator Especial sobre Violência Contra a Mulher para examinar a questão da violência doméstica, destacou o papel das delegacias de mulheres no país e impulsionou o debate nas câmaras estaduais sobre a necessidade de se adotar uma legislação especial para a violência doméstica.

O grande desafio para o sistema, no entanto, encontra-se na necessidade de equilibrar o número crescente de procedimentos especiais, com os recursos financeiros e humanos que lhe são destinados. Além disso, o respeito pela autonomia e integridade dos especialistas independentes ou dos relatores especiais infelizmente está sendo ameaçado.

Limitando a arbitrariedade do Estado através da comunidade internacional

O Secretário Geral das Nações Unidas tem uma posição única e o mandato para desempenhar um papel fundamental no estabelecimento de limites à arbitrariedade do Estado. A recente publicidade outorgada ao Secretário Geral na mídia internacional é uma conseqüência direta de seu maior envolvimento com a mediação e intervenção diplomática em conflitos, o que torna os seus esforços para antever e prevenir esses conflitos extremamente valiosos. Um dos exemplos principais são as recentes e bem sucedidas negociações do Secretário Geral com o Iraque. Além disso, o Secretário Geral está cada vez mais envolvido nas investigações sobre direitos humanos, tendo recentemente enviado uma equipe à República Democrática do Congo para investigar uma suposta série de massacres e nomeado uma equipe de especialistas para serem enviados ao Cambódia com o objetivo de explorar formas de levar a julgamento os responsáveis pelos massacres cometidos no final da década de 70.

Com a criação do posto de Alto Comissário das Nações Unidas para Direitos Humanos pela Assembléia Geral, em 1994, os Países Membros das Nações Unidas, uma vez mais, demonstraram claramente seu apoio ao fortalecimento global da proteção e da promoção dos direitos humanos, bem como sua disposição de permitir o monitoramento lamentação dos direitos humanos no nível mais alto possível. De acordo com o mandato estabelecido pela Resolução 48/141, de dezembro de 1994, da Assembléia Geral, o Alto Comissário deverá: “...respeitar a soberania, a integridade territorial e a jurisdição interna dos Estados e promover o respeito universal a todos os direitos humanos e sua observância, reconhecendo que, no contexto dos objetivos e princípios da Carta, a promoção e a proteção dos direitos humanos é uma preocupação legítima da comunidade internacional”. Com base nessa resolução, a atual Alto Comissária para Direitos Humanos, Ms. Mary Robinson, deverá promover os direitos humanos em todo o mundo, enfrentando os obstáculos à implementação desses direitos através de seus bons ofícios e por outros meios. A idéia não é que a Alta Comissária substitua os órgãos responsáveis pela investigação de direitos humanos, tais como os relatores especiais ou os organismos previstos nos tratados, e sim que atue como um complemento político para o sistema jurídico de proteções já existente. Ao realizar visitas aos vários países para estabelecer um diálogo com seus governos, fazendo declarações à imprensa e discursando publicamente sobre temas relacionados com os direitos humanos, a Alta Comissária está contribuindo para coibir a atuação arbitrária dos Estados que desrespeitam os direitos humanos e, consitentemente, ganhando a atenção do público e publicidade para seu trabalho.

Além disso, e no contexto das propostas de reforma do Secretário Geral, a oficialização ou integração dos direitos humanos em todos os aspectos do trabalho do sistema das Nações Unidas, tornou-se uma das tarefas principais da Alta Comissária e de seu posto. É estimulante observar que memorandos de entendimento foram assinados, por exemplo, com o Programa das Nações Unidas Para o Desenvolvimento, (PNUD), e com o Fundo das Nações Unidas para Populações (FNUP) com o objetivo de, concretamente, abrir caminho para os direitos humanos nas atividades relacionadas com o desenvolvimento e com populações. Um acordo semelhante deverá ser assinado com o Departamento de Operações para a Manutenção da Paz (DOMP), em um futuro próximo.

Com freqüência crescente, também vem sendo possível detectar restrições à arbitrariedade do Estado na implementação de programas de ajuda aodesenvolvimento e nas reformas econômicas realizadas por entidades tais como o Programa das Nações Unidas Para o Desenvolvimento, os fundos bilaterais para o desenvolvimento e até mesmo o Banco Mundial e o Fundo Monetário Internacional. Como conseqüência da maior conscientização dessas organizações com respeito a direitos humanos, as cláusulas condicionais associadas à concessão de recursos de ajuda ao desenvolvimento, ou de ajuda financeira internacional, cada vez mais dão ênfase a questões relacionadas com direitos humanos, tais como a administração da justiça e o respeito à regra da lei. Esses desenvolvimentos contribuirão para garantir a utilização de uma abordagem fundamentada nos direitos, nas atividades das Nações Unidas relativas à paz, à segurança e ao desenvolvimento.

Uma tendência crescente nas atividades das Nações Unidas que promovem o desenvolvimento é a orientação voltada para uma “abordagem fundamentada nos direitos”, que defenda o desenvolvimento como um direito mais complexo, que combina inextricavelmente os direitos econômicos, sociais e culturais, com os civis e políticos, na tentativa de alcançar a meta de “todos os direitos humanos para todos”. Essa tendência garantirá, também, a participação popular e criará uma responsabilidade final do Estado.

Além da criação do posto de Alto Comissário, os anos 90 testemunharam uma proliferação de atividades das Nações Unidas relacionadas com direitos humanos, tais como operações locais, escritórios e presenças em muitos países de regiões distintas, inclusive Angola, Bósnia e Herzegovina, Burundi, Cambódia, Croácia, República Democrática do Congo, República Central Africana, Colômbia, El Salvador, Gaza, Abkhazia/Geórgia, Guatemala Libéria, Malaui, Mongólia, Tanzânia, Togo, Somália, África do Sul, Sierra Leone, República Federal da Iugoslávia e a antiga República Iugoslava da Macedônia. Essas presenças, estabelecidas com a aprovação do país em questão, representam ainda uma outra forma de garantir a observância das normas internacionais de direitos humanos por parte de Governos. As operações de campo podem ter componentes de cooperação técnica, que fornecem ajuda na revisão da legislação nacional, no estabelecimento de instituições de direitos humanos nacionais, no treinamento da polícia, de juizes e promotores; e/ou componentes de monitoramento, através dos quais os monitores de direitos humanos observam a situação desses direitos no país. Com freqüência, a presença de monitores internacionais de direitos humanos, estejam esses sob o comando do Alto Comissário ou do Relator Especial, com um mandato outorgado pela Comissão de Direitos Humanos para estudar a situação do país em questão, é considerada altamente intrusiva por alguns dos Governos. Embora as operações de monitoramento de direitos humanos sejam, muitas vezes, a maneira mais eficiente de restringir a arbitrariedade do Estado, elas são extremamente delicadas. O recente término da Operação de Campo sobre Direitos Humanos em Ruanda, (OCDHR), a pedido do Governo, ilustra como é difícil manter o equilíbrio entre a integridade da operação de campo e a sensibilidade com relação às preocupações do Governo. Não se pode ignorar, no entanto, que a presença do Escritório do Alto Comissário para Direitos Humanos no campo permite (nas palavras do Assistente da AltaComissária para Direitos Humanos) “entender a verdadeira situação dos direitos humanos em uma sociedade; dá substância às palavras de Governos, rostos às vítimas das violações de direitos humanos e urgência às ações daqueles que trabalham com direitos humanos”.

O papel das Nações Unidas e de suas agências nas situações posteriores a conflitos também está se tornando cada vez mais importante para a instauração do respeito aos direitos humanos e às liberdades fundamentais que contribuíram para a estabilidade de qualquer sociedade onde exista conflito e também para a estabilidade das demais sociedades da região. Nesse contexto, existe, já há bastante tempo, um reconhecimento da importância da cooperação técnica e dos programas de desenvolvimento das Nações Unidas e de outros atores internacionais, incluindo doadores bilaterais e agências para o desenvolvimento, que tenham como meta a criação de instituições, o fortalecimento das instituições democráticas e dos direitos humanos, a implementação da lei e a conscientização dos direitos humanos. Ao estimularem o estabelecimento de um sistema de monitoramento e comparações em nível nacional e regional, as atividades de cooperação técnica orientadas para a criação de uma cultura nacional de direitos humanos, passam a ser um outro meio de reforçar o compromisso com a paz e de limitar a arbitrariedade.

Outra maneira importante pela qual a comunidade internacional, através das Nações Unidas, pode contribuir para criar um ambiente mais estável e mais seguro para a manutenção da paz e da segurança internacionais é a manutenção da paz. Muitos dos conflitos atuais podem parecer remotos para os que não estão na linha de fogo, mas as nações do mundo precisam pesar os riscos de uma ação e os perigos evidentes da inação. Poucos são os conflitos modernos que podem ser considerados realmente “locais”, já que a história recente mostra a rapidez com que guerras civis entre facções, em um mesmo país, podem desestabilizar os países vizinhos e espalhar-se por regiões inteiras, como foi demonstrado no conflito que ainda persiste na República Democrática do Congo.

Dadas as ameaças constantes à paz e à segurança internacionais, as atividades das Nações Unidas para a manutenção da paz são um instrumento indispensável nas mãos da comunidade internacional. A legitimidade e a universalidade dessas atividades são oriundas de sua natureza de ação realizada em nome de uma organização global com 185 Países Membros (em junho de 1998). O envio de uma missão de manutenção da paz para um país não tem as mesmas implicações para a soberania nacional que outras formas de intervenção estrangeira. No entanto, a missão pode atuar como um foco para os esforços de cooperação internacionais, demonstrando às partes envolvidas que a comunidade internacional fala com uma única voz a favor da paz e que, além disso, tem como objetivo eliminar a proliferação de alianças e de ações, por parte de todos aqueles envolvidos no conflito que desrespeitem os direitos humanos e os padrões humanitários internacionalmente reconhecidos.

No contexto das missões para a manutenção da paz, é possível detectar uma tendência que aponta para o caráter cada vez mais complexo e multidimensional dessas missões, que podem incluir questões civis, humanitárias e políticas, além dos componentes relacionados com os direitos humanos. Atualmente, existem exemplos bem sucedidos de integração dos direitos humanos nas operações de manutenção da paz em Sierra Leone, Libéria, República Central Africana e na Geórgia. Ao mesmo tempo, no entanto, a crescente relutância do Conselho de Segurança de enviar missões para a manutenção da paz nos últimos anos, teve como conseqüência uma óbvia redução nos recursos humanos e financeiros disponíveis para as atividades de manutenção da paz. Os obstáculos que as Nações Unidas enfrentam com relação à manutenção da paz são ainda maiores, devido à reação negativa das partes em questão a um maior envolvimento das Nações Unidas; o resultado disso são os mandatos difusos ou restritos outorgados pelo Conselho de Segurança. Como conseqüência dessas limitações, cabe perguntar se estará havendo uma mudança na orientação das atividades das Nações Unidas para a manutenção da paz, no sentido de apenas apoiarem iniciativas regionais para a manutenção da paz, como no caso da Libéria e de Sierra Leone, em vez de assumirem o comando dessas operações.

É difícil prever, também, se a efetiva integração dos direitos humanos em todo o sistema das Nações Unidas, irá penetrar o Conselho de Segurança e seu trabalho cotidiano, uma vez que existe um consenso quase geral, de que as violações de direitos humanos são uma das causas principaispara a maioria dos conflitos e, consequentemente, de que a promoção e a proteção dos direitos humanos deve ser o primeiro passo em qualquer processo de paz sustentável. Os exemplos dos conflitos em Kosovo e na República Democrática do Congo ilustram esse argumento claramente.

Desde 1945, as Nações Unidas vêm também se envolvendo na área de assistência eleitoral e têm um mandato para enviar missões de ajuda e/ou de fiscalização eleitoral para os países, normalmente como parte de missões já existentes, seja para a manutenção da paz ou observadoras, a fim de garantir o estabelecimento de um governo eleito democraticamente, em processo eleitoral livre e justo. Embora, tradicionalmente, a ajuda eleitoral prestada pelas Nações Unidas tenha incluído a promoção do princípio de autodeterminação dos povos, através do desenvolvimento de um governo próprio e da descolonização, em períodos mais recentes, essa ajuda tem requerido, o estabelecimento e a promoção do princípio da democracia e dos direitos humanos. Como afirma a Declaração Universal dos Direitos Humanos: “A vontade do povo será a base da autoridade do governo; será expressa em eleições periódicas e verdadeiras por sufrágio universal e igualitário, e realizadas através do voto secreto”.

A expressão máxima da preocupação internacional em limitar a arbitrariedade do Estado foi a decisão tomada pela Conferência Diplomática das Nações Unidas que teve lugar em Roma, em 17 de julho de 1998, de criar um Tribunal Criminal Internacional. [5] A importância de um tribunal criminal internacional permanente, ao contrário dos tribunais ad hoc criados anteriormente, está na possibilidade de aumentar o poder de coibição, em âmbito universal, e de gerar efeitos preventivos, nos casos de crimes sérios como o genocídio, os crimes de guerra e contra a humanidade, fundamental para a proteção e promoção internacional dos direitos humanos e para o respeito à lei, em nível internacional, de forma significativa. A importância da vigoração de um direito criminal internacional sólido, que possa romper o ciclo de impunidade nos países conturbados por violência comunitária e em países onde os Governos não estão dispostos a impor o direito criminal local, ou são incapazes de fazê-lo, já foi reconhecida há muito tempo. O princípio de complementaridade, incorporado nos Estatutos do Tribunal Criminal Internacional, garante que o tribunal não tomará o lugar dos sistemas jurídicos penais locais, e sim, que irá fornecer aos sistemas judiciários municipais um regime complementar, nos casos em que o Governo seja incapaz de desempenhar sua obrigação mais básica que é a de processar ou punir crimes contra o direito internacional, ou não esteja disposto a fazê-lo. Como a Alta Comissária afirmou no discurso que fez na Conferência de Roma, em 15 de junho de 1998, “um tribunal criminal internacional permanente enviará uma forte mensagem indicando a todos aqueles em posições de poder e liderança que não lhes é mais permitido utilizarem, como armas de guerra, táticas de terror, estupros sistemáticos, “purificações” étnicas, tortura e massacres, mutilações e matança indiscriminada de civis. O estabelecimento de um tribunal como esse pela comunidade internacional foi uma forma de promover o reconhecimento de que é preciso que os países ultrapassem as definições estritas, de auto-interesse nacional, e que entrem em acordo sobre um instrumento forte que atue em benefício da paz, da justiça e da dignidade duradouras.

Limitando a arbitrariedade do Estado através da sociedade civil

Um dos parceiros mais eficazes na ação internacional de combate à arbitrariedade do Estado é a sociedade civil. Ao fornecerem dados importantes sobre violações de direitos humanos, as organizações não-governamentais locais e nacionais têm um papel importante a desempenhar no sentido de fazerem com que a máquina de direitos humanos existente, tais como relatores especiais e órgãos previstos nos tratados, funcionem de uma maneira eficiente. Ao mesmo tempo, seu trabalho contribui para uma maior conscientização dos direitos humanos, entre a população em geral, e isso gera uma das formas mais eficazes de controlar a arbitrariedade do Estado: a opinião pública. Em um mundo onde a voz do povo não pode ser ignorada, o crescente envolvimento da mídia, e seu caráter transnacional, podem promover a responsabilidade final do Estado. Se um Governo quiser ganhar eleições ou ser respeitado por sua natureza democrática, precisará necessariamente obter o apoio tanto de sua sociedade civil, como da comunidade internacional. Nas palavras do Secretário-Geral, “Se um Estado deseja o apoio da população, é preciso que ele seja honesto, acessível, transparente e eficiente. Ele deve fornecer uma boa governabilidade e respeitar os direitos humanos”. [6]

Estamos testemunhando o nascimento de uma sociedade civil global: organizações não-governamentais de todas as regiões do mundo se unem para trabalhar por causas globais, desde a proibição de minas terrestres ou a punição de criminosos de guerra, até a erradicação da pobreza e a promoção do desenvolvimento sustentável. Em seus esforços para alcançar o bem comum, esses movimentos contribuem para as políticas governamentais e as influenciam. Nesse contexto, a divulgação de dados sobre direitos humanos é fundamental, pois, fortalecer a população constitui o método mais básico e essencial para chegar-se a uma democracia. A promoção e a proteção dos direitos humanos bem como o desenvolvimento de uma cultura de direitos humanos são remédios eficazes contra as violações de todos os direitos humanos em todas as sociedades.

Desafios e tendências para o futuro

Tendo em vista o que foi dito até aqui, fica claro que existe um número de camadas que contribuem para que os Estados se abstenham de agir arbitrariamente em um vácuo, sem responsabilidades, fiscalização e ponderações que limitem suas ações - seja através de mecanismos jurídicos internacionais, intervenção política por parte da comunidade internacional ou como resultado da opinião pública e das expectativas criadas pela sociedade civil. Ao mesmo tempo, no entanto, continua a ser uma triste realidade o fato de que, na véspera do qüinquagésimo aniversário da Declaração Universal de Direitos Humanos, há hoje muitos mais conflitos e violações de direitos humanos no mundo do que jamais existiram antes. A impressão que temos é que a luta permanente por direitos humanos está sempre enfrentando desafios novos e mais complexos que afetam, também, a ordem mundial. Os Estados soberanos que, tradicionalmente, eram os atores principais, e para os quais se orientam os atuais sistemas de proteção dos direitos humanos, hoje têm, a seu lado, atores não-governamentais, forças regionais e movimentos de solidariedade e comunitários que ultrapassam as fronteiras nacionais e enfraquecem a centralidade do Estado.

Esses acontecimentos geram uma série de questões que exigem reflexão. Este artigo tentou explicar como a comunidade internacional está tentando controlar e solucionar os poderes arbitrários de um Estado, mas a pergunta que realmente permanece é se a comunidade internacional se encontra em uma situação na qual, em um contexto nacional determinado, possa atuar como substituto der um vácuo de poder? Em situações nas quais o Governo perdeu o controle de violações perpetradas em seu território, como é o caso do Afeganistão, ou onde o Governo é indiferente à população ou a parte dela, é praticamente impossível para a comunidade internacional tomar providências efetivas ou provisórias. Não há receitas para enfrentar, por exemplo, atores não governamentais que exercem a autoridade e o poder de um Governo, mas que não podem ser forçados a prestar conta de seus atos ou de serem responsabilizados por eles. Apesar de um consenso crescente sobre direitos humanos e de um movimento de solidariedade global, a hora parece ainda não ter chegado para uma autoridade supranacional que substitua o Estado.

A tendência oposta parece ser uma relutância cada vez maior, por parte de órgãos políticos das Nações Unidas, tais como o Conselho de Segurança, de se envolverem em intervenções internacionais. O envio de missões de manutenção da paz, ou iniciativas diplomáticas concretas orientadas para o estabelecimento da paz e a sua manutenção, continua a ser, ou está ainda mais, eclipsado por considerações políticas. A inação do Conselho de Segurança em face das tragédias que se desenrolam em Kosovo ou na República Democrática do Congo, por exemplo, é de difícil compreensão. Parece, portanto, que a única maneira viável de enfrentar os desafios constantes à paz e à segurança mundiais, seria dar às Nações Unidas a capacidade para reagir de forma independente a essas ameaças à lei e à ordem internacionais. Uma atuação maior em termos de avisos prévios, aliada a um rápido envio de forças, por solicitação do Secretário-Geral (o que já existe de uma forma restrita), daria às Nações Unidas meios para enfrentar seriamente os novos desafios de nosso tempo e para superar os debates profundamente políticos, no Conselho de Segurança, que atualmente orientam as iniciativas das Nações Unidas com relação à proteção da paz e da segurança globais.

Como afirmouo Secretário-Geral em seu discurso à Reunião de Cúpula do Movimento Não-Alinhado em Durban, África do Sul, em 2 de setembro de 1998, “a globalização melhorou as condições de vida para muitos, mas sua volatilidade tornou mais difícil a vida de muitos outros, ameaçando fazer com que grande parte do mundo fique para trás”. O fenômeno de tráfego de pessoas e o aumento no número de trabalhadores migrantes são duas das questões que ganharam novo ímpeto como resultado da globalização e em detrimento particularmente de milhares de mulheres e meninas, cujos direitos humanos são violados nesse processo. O Secretário-Geral afirmou ademais que “É verdade também que aquele tempo em que as pessoas podiam contar com o Estado para satisfazer suas necessidades, ou na qual os Estados aspiravam a, sozinhos, poderem certamente controlar todos os aspectos da vida social e da sociedade civil, já é passado. Portanto, não é de surpreender que, em face de tais desafios, a reação imediata seja refugiar-se nas antigas economias de planejamento estatal centralizado e protecionismo, nas antigas políticas de ênfase nas diferenças regionais ao invés de se reconhecer valores universais. Temos, no entanto, que reconhecer que, “embora os processos de globalização não possam ser combatidos, eles podem ser administrados” - e o cumprimento da lei, bem como o respeito pelos direitos humanos devem ser suas linhas básicas. “É nos casos em que as pessoas têm a oportunidade de se expressarem livremente, de escolherem seus líderes democraticamente, de viverem em paz e de contribuírem plenamente para o desenvolvimento de seu próprio país, que o Estado e a comunidade internacional como um todo estão melhor equipados para administrar todas as pressões que recaem sobre eles. Questões globais, exigem respostas globais”[7]. A única solução é conseguir que os Estados trabalhem juntos, fazendo uso das instituições multilaterais que existem há décadas e criando espaço para os novos atores multinacionais e não-pertencentes ao Estado que não podem ser ignorados. Pois é evidente que o futuro verá uma multiplicação de atores externos não estatais e não-governamentais, desde corporações empresariais multinacionais até grupos e órgãos da sociedade civil, que influenciarão a ordem mundial de maneira significativa.

E para fazer com que essa nova ordem mundial seja justa, tanto no interior dos próprios Estados como entre eles, a globalização deve permitir a participação comum entre os países do Norte aos países do Sul – participação comum tanto em termos de ideologia e de valores, como no compromisso de compartilhar problemas e tarefas.

Em resposta a um mundo em transformação, às exigências maiores feitas ao Estado e por parte do Estado, como também ao reconhecimento universal de direitos definidos de uma forma mais abrangente, os mecanismos estabelecidos para garantir os direitos definidos pela Declaração Universal, na prática e na lei, tornaram-se cada vez mais complexos. Esses mecanismos foram criados à medida que as necessidades foram surgindo e não como parte de um plano geral. Muitos esforços foram despendidos na tentativa de solucionar as crises dos direitos humanos resultantes da guerra, da pobreza e da opressão, mas poucos são orientados para lidar com a complexidade da atual ordem mundial. Apesar disso, é preciso lembrar que o inter-relacionamento dos direitos econômicos, sociais e culturais com os direitos civis e políticos, assim como a universalidade, a indivisibilidade e a interdependência de todos os direitos humanos fornecem uma base sólida, sobre a qual será possível aprimorar o sistema dos direitos humanos, para que se possa enfrentar esses novos desafios.

É claro que existe uma aceitação crescente de uma jurisdição internacional e um desejo de garantir que tragédias como as do genocídio em Ruanda sejam evitadas a todo o custo. A concessão de poderes ao Tribunal Criminal Internacional para processar Governos por sua falta de transparência e para romper o ciclo de impunidade, é um sinal vívido de que a comunidade internacional está finalmente disposta a adotar uma posição firme contra as agressões ilícitas. Talvez seja um truísmo dizer que o cumprimento efetivo das leis criminais internacionais seja parte integrante de uma proteção coerente e sustentável dos direitos humanos; no entanto, uma coibição efetiva é o objetivo subjacente e a longo prazo, pelo qual estamos lutando.

O monitoramento internacional das normas de direitos humanos através de mecanismos convencionais e extra-convencionais, bem como através da presença local, parece estar aumentando. O interesse da Comissão de Direitos Humanos em nomear, por exemplo, quatro especialistas novos para estudarem vários aspectos dos direitos econômicos, sociais e culturais, mostram que esses mecanismos estão sendo cada vez mais utilizados para monitorar todos os direitos humanos, sejam eles civis, políticos, econômicos, sociais ou culturais. Além disso, o trabalho realizado pela Comissão de Direitos Humanos para elaborar novas normas de direitos humanos, tais como os esboços de protocolos opcionais à Convenção dos Direitos da Criança, sobre crianças em conflitos armados, ou sobre a venda de crianças, prostituição infantil e pornografia infantil, assim como a contribuição da Comissão sobre a Situação da Mulher com relação à elaboração de um protocolo opcional à Convenção da Mulher para introduzir um procedimento de petição individual, são evidentemente medidas cujo objetivo é assegurar que o sistema internacional de direitos humanos esteja apto a enfrentar os novos desafios no futuro.

O fortalecimento das mulheres - geralmente os grupos mais fragilizados entre os mais fragilizados - é, por exemplo, uma das melhores formas de fortalecer a sociedade civil e de limitar a arbitrariedade do Estado. Nesse sentido, projetos como o atual programa da FAO, cujo objetivo é fortalecer as mulheres nas áreas rurais, são alguns dos passos mais práticos nessa direção e que, se implementados com sucesso, terão um efeito direto sobre as relações de gênero, assim como sobre as estruturas políticas e sociais da sociedade.

A adoção, este ano, pela Comissão de Direitos Humanos do esboço da declaração de direitos e responsabilidades de indivíduos, grupos ou órgãos da sociedade, na promoção e proteção dos direitos humanos universalmente reconhecidos e das liberdades fundamentais (ou Declaração Sobre os Defensores dos Direitos Humanos), após mais de 10 anos de negociações, é outro sinal evidente de que a comunidade internacional não irá mais tolerar violações contínuas e flagrantes dos direitos daqueles indivíduos e grupos que arriscam suas vidas em defesa de outros. Seria mais apropriado se esse documento fosse adotado pela Assembléia Geral dia 10 de dezembro de 1998, culminando as comemorações do qüinquagésimo aniversário da Declaração Universal de Direitos Humanos.

O número rapidamente crescente de presenças locais de atividades de direitos humanos (incluindo operações e escritórios). que era inexistente, em 1991, passando a 22 em 1998 (veja acima a lista de países), é outra clara indicação de que os Estados estão se encorajando mutuamente a não cometerem violações de direitos humanos e de que, se as violações persistirem, a comunidade internacional está pronta para agir e para testemunhar, através dos olhos de monitores independentes, qualquer situação que possa por em perigo as normas internacionalmente reconhecidas de direitos humanos.

Como anteriormente mencionado, o papel crescente das Nações Unidas na construção e capacitação de instituições nacionais, sobretudo em sociedades que acabam de sair de um conflito, é evidente. Os pedidos de ajuda técnica, por parte de Governos - cujo número cresce a cada dia - para que esses possam fortalecer a capacidade que o país tem de melhorar a situação dos direitos humanos, também são evidentes. Apesar das tendências crescentes da globalização, reconhece-se que a estrutura do Estado não pode, de modo algum, ser considerada desnecessária ou irrelevante. E mais, reconhece-se, também, que um Estado forte e eficiente é, sem dúvida, a melhor forma de evitar conflitos. Como afirmou o Secretário-Geral, os países mais infelizes, no mundo de hoje, são aqueles onde o Estado fracassou e a sociedade civil ficou à mercê de facções que lutam entre si, onde as crianças são recrutadas para fazer parte das milícias em vez de serem enviadas à escola e onde populações inteiras têm que fugir e abandonar suas casas. Em vista desses fatos, o Escritório da Alta Comissária vem aumentando drasticamente suas atividades em nível nacional, fornecendo assistência no treinamento de funcionários responsáveis pelo cumprimento da lei, pela revisão da legislação nacional ou pela reforma do sistema judiciário, com o objetivo de criar fortes estruturas nacionais que possam tanto dar apoio ao Governo como monitorá-lo (de 2 projetos de assistência técnica em 1984, para quase 200 em 1998).

Mas a questão mais geral de compensação às vítimas continua sem resposta, embora um número crescente de comissões da verdade, estejam, pelo menos parcialmente, tentando satisfazer os direitos dessas pessoas à verdade e à justiça.

Em conclusão, uma reflexão final sobre o tema da arbitrariedade do Estado seria o argumento de que, talvez, a questão mais pertinente não seja a de limitar a arbitrariedade do Estado, mas de como agir diante de estruturas estatais desgastadas e de um envolvimento crescente de atores externos ao Estado e multinacionais, no desafio às bases de nossa sociedade e na proteção dos direitos humanos e das liberdades fundamentais.

 


+ Traduzido por Vera Lúcia Mello Joscelyne.

* B.W. Ndiaye é atualmente Diretor do Escritório de Nova Iorque do Alto Comissariado para Direitos Humanos, Sede das Nações Unidas, Nova Iorque. Foi fundador da Seção Senegalesa da Anistia, relator especial das Nações Unidas sobre Execuções Sumárias (1992 a 1998); Presidente da Comissão Executiva Internacional da Anistia Internacional (1985 a 1991); Membro da Comissão de Verdade e Justiça – Haiti, 1995 a 1996.

[1] Declaração e Programa de Ação de Viena, Parágrafo 39.

[2] Notificação Depositária das Nações Unidas (C.N. 467.1997.Treaties.10), endereçada ao Serviços de Tratados do Ministério de Relações Exteriores e as organizações internacionais envolvidas, 12 de novembro de 1997.

[3] Execuções extrajudiciais, sumárias ou arbitrárias (relator especial); tortura (relator especial); a autonomia e imparcialidade de juizes e advogados (relator especial); violência contra mulheres (relator especial); venda de crianças, prostituição infantil e pornografia com crianças (relator especial); intolerância religiosa (relator especial); liberdade de opinião e da palavra ((relator especial); uso de mercenários (relator especial); racismo, discriminação racial e xenofobia (relator especial); direito à educação (relator especial); efeitos de movimento e o lançamento ilícitos de lixo tóxico e de produtos e refugos perigosos que prejudiquem a fruição plena dos direitos humanos (relator especial); efeitos da dívida externa sobre a fruição plena dos direitos econômicos, sociais e culturais (relator especial); pobreza extrema (especialista independente); direito ao desenvolvimento (especialista independente); refugiados internos (Representante Especial do Secretário-Geral); detenção arbitrária (grupo de trabalho) (especialista independente); desaparecimentos forçados ou involuntários (grupo de trabalho).

[4] Afeganistão, Burundi, Cambódia (Representante Especial do Secretário-Geral) República Democrática do Congo, El Salvador, Guiné Equatorial, Haiti (especialista independente), República Islâmica do Irã, Iraque, Myanmar, Nigéria, territórios ocupados palestinos, territórios da antiga Iugoslávia, Ruanda, Somália (especialista independente), Sudão e Comitê Especial para a Investigação de Práticas Israelenses nos territórios ocupados palestinos)

[5] Documento das Nações Unidas A/CONF.183/10*, Ato Final da Conferência Diplomática das Nações Unidas de Plenipotenciários sobre o Estabelecimento de um Tribunal Criminal Internacional, 17 de julho de 1998.

[6] Press release das Nações Unidas SG/SM/6688, Declaração do Secretário-Geral na Reunião de Cúpula do Movimento de Países Não-Alinhados, Durban, 2 de setembro de 1998.

[7] Press release das Nações Unidas SG/SM/6688, Declaração do Secretário-Geral na Reunião de Cúpula do Movimento de Países Não-Alinhados, Durbã, 2 de setembro de 1998.

 

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