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 Roseli
                  Fischmann*
                  
                   "Não
                  se trata de duvidar da miséria humana - do domínio que as
                  coisas e os maus exercem sobre o homem (…). Mas ser homem é
                  saber que é assim. A liberdade consiste em saber que a
                  liberdade está em perigo. Mas saber ou ter consciência é
                  ter tempo para evitar e prevenir o momento da
                  inumanidade."
                  
                   Emmanuel
                  Levinas - Totalidade e Infinito
                   
                   Um tema forte e delicado
                   
                   Pressupostos teórico-metodológicos
                  da temática
                   Algumas experiências de
                  trabalho
                   Ensino
                  Religioso em escolas públicas - a discussão do Estado de São
                  Paulo
                   
                   Pluralidade
                  Cultural como tema curricular transversal para as escolas de
                  ensino fundamental
                   
                   Manual
                  “Direitos Humanos no Cotidiano”, a valorização da
                  diversidade e do pluralismo
                   
                   Rede
                  Unesco das Américas e Caribe de Cientistas para a Tolerância
                  e a Solidariedade
                   
                   Alguns apontamentos sobre
                  intencionalidade, esperança e o papel da educação, à guisa
                  de conclusão
                   
                   Bibliografia
                  
                    
                                   Um tema forte e delicado
                  
                  Tratar
                  da temática da discriminação étnica e religiosa é tratar
                  de identidade, autonomia, alteridade, valores, tradições, símbolos,
                  indivíduos, coletividades, singularidades, pluralidades. É
                  tratar também de fronteiras, relações intra e inter-grupos,
                  inclusões, exclusões.
                  
                   O
                  cuidado que se pode observar, no rol de categorias
                  apresentadas, de não usar conectivos, aditivos ou
                  alternativos, é devido à complexidade dos vínculos que se
                  estabelecem entre eles.
                  
                   A
                  propósito, a própria categoria “vínculos” tem sentido
                  especial, assim como a idéia de que “se estabelecem”, ou
                  seja, algo que é um construído e não um dado. Vínculos
                  entre indivíduos e seus grupos - étnicos, religiosos - de
                  origem têm tal força, que dificilmente se encontra quem os
                  conteste. Podem ser mais ou menos valorizados, plenamente
                  aceitos ou absolutamente rejeitados - jamais serão um dado
                  neutro na vida de alguém.
                  
                   Por
                  etnias e religiões fazem-se guerras, como tem demonstrado a
                  História Mundial em todos os tempos. Por isso, tratar da
                  discriminação religiosa e étnica e tratar da possibilidade
                  da Paz. Como lembra Javier Péres de Cuellar, "a cultura da paz, da democracia e dos direitos humanos constitui
                  um todo evidentemente indivisível, assim como os direitos
                  civis e políticos e os direitos econômicos, sociais e
                  culturais"
                  
                   De
                  fato, é absolutamente insuficiente a perspectiva da paz como
                  ausência de guerra. De certa forma, a humanidade está ainda
                  parcialmente imersa no que Raymond Aron denomina "paz de
                  impotência", onde não se dá a guerra pela perspectiva
                  de extermínio mútuo, frente às armas de que o inimigo também
                  dispõe.
                  
                   Talvez
                  o sobressalto do Absurdo, somado à barbárie quotidianamente
                  espalhada pelas ruas das grandes metrópoles e, mais ainda,
                  por todo o Terceiro Mundo traga o despertar definitivo, não
                  mais só de alguns, para a imperiosa necessidade de alcançarmos
                  a "paz de satisfação":
                  "as unidades políticas deveriam, antes de mais nada,
                  deixar de ambicionar a extensão de sua soberania a territórios
                  ou países estrangeiros (...). Além da satisfação, nascida
                  do respeito por um princípio de legitimidade, deve haver a
                  suspensão da rivalidade em termos de terras e de homens, de
                  forças, de idéias e de amor-próprio".
                  
                   É
                  interessante observar que o mundo acadêmico não diretamente
                  relacionado às discussões referentes à Política e ao
                  Direito Internacional também tem dado atenção a esta
                  problemática, a partir de diferentes enfoques, em geral
                  plenos de perplexidade e indagações. São alertas,
                  implantados aqui e ali, como buscando tirar aqueles que se
                  dedicam à descoberta, elaboração e divulgação do
                  conhecimento científico, de sua rotina auto-centrada.
                  
                   É
                  interessante observar que diferentes autores, de diferentes áreas,
                  têm - e já há algumas décadas - clamado por que se dê
                  atenção aos rumos que a Humanidade vem tomando. Vejamos
                  alguns.
                  
                   O
                  arqueólogo Grahame Clark, em seu livro A Identidade do Homem
                  afirma: "Para uma abordagem mais positiva do futuro
                  necessitamos, sobretudo, de uma percepção contemporânea do
                  que significa ser humano. Só assim poderemos definir os
                  valores que precisamos sustentar se quisermos reter o nosso
                  'status' adquirido por antepassados predominantemente pré-históricos,
                  no transcurso de muitos milhares de gerações. Da perspectiva
                  inaugurada pela arqueologia e suas disciplinas associadas, o
                  nosso problema não consiste em como absorver ou processar
                  mais materiais, ou mesmo como dividi-los em porções mais
                  iguais. É, antes, como manter, em face de crescentes ameaças,
                  uma qualidade de vida sem paralelo para a nossa própria espécie".
                  
                   Apresentando
                  uma crítica à postura adotada pelos cientistas, que, ao
                  rejeitarem religiões e ignorarem preocupações básicas de
                  leigos, abandonam a questão básica da identidade - "o
                  que significa ser humano" - que persegue desde sempre a
                  Humanidade. Afirma, assim: "Por
                  muito útil e válido que possa ser, para fins de laboratório,
                  descrever um ser humano em termos de seus componentes químicos
                  contidos numa fórmula ou mesmo, em um nível superior, como
                  uma organização de protoplasma sensível, isso é totalmente
                  inútil para uma pessoa em busca de sua identidade".
                  
                   Feito
                  o alerta ao mundo científico, Clark dirige-se à análise da
                  organização econômica e seus reflexos nas sociedades,
                  particularmente levando em conta a aceleração do ritmo de
                  mudança e lembrando que muitos avanços tecnológicos, hoje
                  alcançados em minutos, dependeram de descobertas ancestrais,
                  cultivados ao longo de gerações, por culturas que, em si,
                  desapareceram.
                  
                   Comparando
                  o empobrecimento do banco genético provocado pela extinção
                  de espécies animais e vegetais, à homogeneização da
                  cultura humana que hoje vivemos, a qual "desafia
                  a nossa própria identidade como homens", Clark
                  pondera: "um dos
                  dilemas das sociedades pós-industriais, por enquanto só
                  parcialmente percebido, consiste em como reconciliar as tendências
                  homogeneizantes de um mundo cada vez mais organizado na base
                  da tecnologia mecânica, racionalidade e ciência natural, com
                  a diversidade de valores humanos que sintetizam a história
                  dos homens"
                  
                   Como
                  se observa, já não se coloca a questão apenas em termos de
                  organização política, mas há um esforço para ponderar
                  acerca da interferência da organização mundial na vida
                  cotidiana dos seres humanos, em especial no que se refere a
                  como preservam sua própria dignidade.
                  
                   Talvez
                  possamos lembrar, aqui, ainda que brevemente, da análise do
                  filósofo Jean Baudrillard, ao apontar a relação existente
                  entre aquilo que tem sido servido como "alimento
                  cultural", de maneira geral, propiciando o fim do social,
                  transformado em quase irrestrita massificação. Contudo, esse
                  trabalho escrito originalmente em 1979, previa que, ao contrário
                  da percepção vigente que indica uma passividade extrema das
                  massas, as reações que poderão ainda advir são, em
                  verdade, imprevisíveis.
                  Nessa análise, Baudrillard lança mão do conceito de massa
                  em Física, mostrando, então, que tudo que é endereçado às
                  massas humanas é recebido, porém, não passivamente; dá-se,
                  segundo sua análise, assimilação e processamento, uma
                  elaboração inconsciente, não visível, e, por isso,
                  incontrolável. Além disso, a forma de "devolução"
                  dos conteúdos assimilados pode ser esperada: o que não
                  significa, é claro, que se possa saber 'o que' esperar.
                  
                   Assim,
                  o que é identificado por Clark como uma busca de afirmação
                  de dignidade, que pode resultar, não raro, em conflitos
                  violentos,
                  é complementado, por Baudrillard, analiticamente, a partir de
                  outra perspectiva teórica, afirmando a não-passividade das
                  massas e, sim, a imprevisibilidade quanto ao momento e
                  qualidade de sua ação.
                  
                   Neste
                  ponto, a discussão assume concretude imediata. Podemos, por
                  exemplo, entender a eclosão de guerras étnicas em vários
                  pontos do mundo, assim como os movimentos de afirmação de
                  identidade étnica, em suas diversas manifestações. Frente a
                  um mundo homogeneizador, onde a violência do preconceito e da
                  discriminação étnica, embora injustas é apenas parte do
                  processo, a reação possível - em busca da dignidade dada
                  pela identidade definida, clara, assumida, valorizada - apenas
                  começa a se manifestar. Contudo, quais os rumos que tomarão,
                  ou poderão tomar, tais manifestações?
                  
                   O
                  rumo da violência e do confronto é o mais direto e, de certa
                  forma, mais simples, porém o menos humano, no sentido em que
                  Grahame Clark nos relembra, em termos das conquistas alcançadas
                  desde nossos ancestrais pré-históricos, para nos
                  constituirmos como espécie.
                  
                   Aqui,
                  um autor que oferece a contribuição mais carregada de um
                  forte "pathos" humanitário é Konrad Lorenz.
                  Considerado "pai da Etologia", ciência que estuda o
                  comportamento animal, prêmio Nobel de Medicina em 1972,
                  Lorenz tem uma vasta obra, cuja contribuição mais marcante
                  é a análise da espécie humana comparativamente a outras espécies
                  animais, a qual conclui, surpreendentemente, que nós, seres
                  humanos, estamos em desvantagem, por nossas próprias
                  escolhas.
                  
                   Lorenz
                  afirma que a espécie humana é a única, dentre as espécies,
                  que usa seu diferencial em relação às demais contra si
                  mesma, e não em busca de preservação e aprimoramento.
                  Assim, o raciocínio abstrato, formal, e a linguagem verbal
                  levaram, por um lado, a um aprimoramento tecnológico jamais
                  imaginado em outros tempos pelo ser humano. Por outro lado,
                  concorreram para o desenvolvimento de sentimentos de posse,
                  promoveram deslocamentos de consciência, disseminaram
                  doutrinação e passividade.
                  
                   Os
                  resultados facilmente visíveis dessa situação encontram-se
                  nos resultados da seleção intra-específica, no caso humano,
                  dada pela concorrência generalizada. Em outras espécies a
                  seleção feita pela via intra-específica mostra-se cheia de
                  armadilhas para o próprio processo de evolução, onde nem
                  sempre o que seria melhor para a espécie é o que vence. Ora,
                  seres humanos dotados de razão, assistimos e, muitas vezes,
                  promovemos essa linha de "evolução", em verdade
                  demolidora da espécie.
                  
                   Frente
                  a uma análise como essa, Lorenz vê saída: a
                  imprevisibilidade característica de todos os seres vivos -
                  inegável, apesar da tendência humana de procurar dominar a
                  teleologia - é uma garantia de possibilidade de mudança de
                  rumo. Mais ainda, lembra que a cultura é criação humana,
                  podendo, portanto, ser alterada por quem a desenvolveu.
                  
                   Ora,
                  se a imprevisibilidade é o que garante a liberdade,
                  indicando-nos, portanto, limitações quanto ao que podemos
                  conhecer e prever, por outro lado é essa mesma liberdade que
                  nos permite programar ações visando reverter o quadro em que
                  se encontra, ainda no momento, a espécie humana. E, para
                  isso, é reservado papel de destaque para a educação.
                  
                   Citando
                  André Malraux, Péres de Cuellar lembra que o mundo da
                  cultura "não é o da imortalidade, é o da
                  metamorfose".
                  A solidão que vivemos nós, seres humanos, neste final de milênio
                  é a de quem contempla a si; contemplando-nos, em nossas
                  imagens, perfeitamente adequadas às exigências externas,
                  vemos esmaecer, distante, nossa identidade, nossa dignidade.
                  Metamorfose é menção de esperança, lembrando que já
                  trazemos em nós o que poderemos ser. É transformação que não
                  se faz ao acaso, mas é cheia, sim, de busca e
                  intencionalidade, como nos ensina Lorenz. E onde a educação
                  é instrumento privilegiado.
                  
                   Nesse
                  sentido, a própria acepção da educação é ampliada, ao
                  contemplar a questão das minorias, assim como se aprofunda o
                  sentido universal dos Direitos Humanos. Vejamos.
                  
                   A
                  vida humana, enquanto ação e reflexão, distingue-se de
                  todas as demais formas de vida. Em uma perspectiva
                  evolucionista, diferentes espécies desenvolveram diferentes
                  respostas às circunstâncias do meio ambiente, como forma de
                  sobreviverem a elementos hostis. Os seres humanos, com sua
                  racionalidade, criaram sistemas de cultura, diversificando-se
                  entre si mais a partir de diferentes cosmologias, que a partir
                  de diferenças biológicas, expressas em características físicas,
                  como cor da pele, formato dos olhos, textura dos cabelos, etc.
                  
                   Um
                  dado que corrobora a afirmação dessa diferenciação feita
                  pela cultura, refere-se aos processos de aculturação imposta
                  a imigrantes, em diferentes partes do planeta, em diferentes
                  momentos históricos. Muitas vezes, perdido o solo original, e
                  freqüentemente deparando com sentimentos de xenofobia (ainda
                  que difusos, ou encobertos), o ser humano vê-se na iminência
                  de adaptar-se, ou fenecer, quando não lhe é dada a
                  alternativa de evadir-se. A metáfora do camaleão sobre a
                  manta escocesa, expressa por Woody Allen em Zelig, daquele que
                  é capaz de se adaptar de forma incondicional, no tempo exato,
                  para sobreviver, fala também de certa esquizoidia, distante
                  da desejável integridade do ser humano.
                  
                   O
                  jogo de submeter o estrangeiro,
                  tem sido suficientemente forte, na história da humanidade, a
                  ponto de se constituir esse termo - “estrangeiro” - em
                  referência metafórica freqüentemente adotada na literatura,
                  no cinema, nas artes em geral. Morte em Veneza, O Estrangeiro,
                  são alguns exemplos dessa referência.
                  
                   Já
                  não apenas como metáfora, encontra-se o jogo de submissão
                  operando sobre aquele que se encontra indefeso - a inocência,
                  a ingenuidade, e, sobretudo, toda forma de exclusão,
                  frequentemente são interpretados como fraqueza e incompetência,
                  certo tipo de “displacement”, alguém que está deslocado
                  como um apátrida, frente a um mundo no qual a competitividade
                  exacerbada ensina a tentar sempre vencer a qualquer custo -
                  vitória que tem, então, o significado de sobrepor-se, de
                  forma autoritária, aos vencidos.
                  
                   Convém
                  lembrar que a derrota em uma guerra significou, por diversas
                  vezes na história, a vivência da escravidão, como conseqüência.
                  Os perdedores, vistos como mais fracos, ou supostamente menos
                  competentes, viam-se escravizados, em uma prática reconhecida
                  e legitimada naqueles tempos. Paulatinamente, a barbárie da
                  escravidão ganhou tal aceitação, que já não era necessário
                  vencer a guerra - bastava comprar o escravo que traria o
                  direito ao ócio e ao reconhecimento de prestígio social -
                  a guerra fora ganha por outros meios.
                  
                   Da
                  mesma forma, a legitimação da desigualdade, pelas estruturas
                  de senhor e servo, príncipe e súdito, passou a ser matizada
                  pela expansão do capitalismo moderno, na definição da posse
                  dos meios de produção. Exacerbada a desigualdade entre indivíduos
                  e grupos humanos, nosso século assistiu guerras que colocaram
                  o tema da dominação entre Estados, assim como a retomada
                  intensa e dramática de lutas internas, por motivos étnicos
                  e/ou religiosos, e ainda a luta pela hegemonia sobre territórios,
                  na definição de fronteiras.
                  
                   A
                  barbárie do Holocausto, de Hiroshima e Nagasaki, na Segunda
                  Guerra Mundial, deixaram o terrível registro de até onde o
                  ser humano é capaz de chegar. Com a morte de milhões no
                  genocídio perpetrado de forma brutal, e a criação científica
                  posta a serviço da morte, a humanidade pode olhar-se a si, e
                  perceber quão incontroláveis são as tendências humanas à
                  destruição e à violência. Barrington
                  Moore Jr.., em seu livro Injustiça - as bases sociais da
                  obediência e da revolta - lembra que é necessário haver
                  normas básicas, que sobrevivam à necessidade de a sociedade
                  estar refazendo a cada vez seu contrato social. A obediência
                  a tais normas constitui-se, nesse caso, num gesto de
                  maturidade, pela adesão aos valores da sociedade específica
                  em que se vive. Haveria, aqui, incluídas na normatização e
                  no contrato, formas de coerção social previstas, assim como
                  de punição, consideradas por todos como justas.
                  
                   Por
                  outro lado, existem alguns elementos, como a opressão e a
                  injustiça, que, uma vez surgidos, podem significar uma
                  ruptura do contrato social, frente a qual é próprio da
                  maturidade não mais obedecer, mas resistir. Moore Jr.
                  destaca, então, que o perigo está nas sociedades onde se
                  encontraram formas de controlar toda resistência, onde a
                  injustiça é vista como inevitável, e portanto se sufoca na
                  base toda indignação e ira moral geradas pelo sentimento de
                  injustiça.
                  
                   Mais
                  ainda, com freqüência desenvolvem-se argumentos de justificação
                  da situação, significativos de experiências de auto-anulação,
                  como na citação de Octávio Paz, ao lado de certo “orgulho
                  na resignação” ,
                  que de fato é estratégia para tornar tolerável suas vidas.
                  Adorno e Horkheimer, por sua vez, tratam de certa atitude que
                  denominam metaforicamente de “mentalidade ciclista”:
                  aquele que calca o que está embaixo, enquanto se curva ao que
                  está acima.
                  
                   É
                  sobretudo frente a ordens injustas ou a uma ordem opressiva
                  que se revelam a autonomia moral e a coragem moral. Barrington
                  Moore Jr. identifica três qualidades da autonomia moral:
                  
                   “A
                  primeira qualidade pode ser chamada de coragem moral, no
                  sentido de uma capacidade de resistir a poderosas e ameaçadoras
                  pressões sociais para a obediência a regras ou ordens
                  ‘opressivas’ ou ‘destrutivas’. A segunda qualidade é
                  a capacidade intelectual para reconhecer que as regras e as
                  pressões são de fato opressivas. (...). A terceira
                  capacidade, a inventividade moral, é mais rara (...). É a
                  capacidade de criar, a partir das tradições culturais
                  vigentes, padrões historicamente novos de condenação ao que
                  existe.”[2]
                  
                   Tratando
                  dos efeitos do poder de pressão do grupo sobre o julgamento
                  expresso por um indivíduo, com base em experimentos de Asch,
                  Moore Jr. enfatiza que “um único aliado pode fornecer
                  suficiente apoio para capacitar uma pessoa a elaborar um
                  julgamento correto”. A mesma conclusão
                  resultou do famoso experimento de Stanley Milgran, envolvendo
                  cobaias humanas pseudo-submetidas a choques por ordem de
                  pseudo-experimentadores a agentes que demonstraram sua
                  capacidade de resistir a ordens cruéis, ou, ao contrário, de
                  extrapolá-las. Nesse experimento, a oferta de apoio social
                  foi a mais eficaz variante no solapamento da autoridade cruel
                  e sádica do “experimentador”.
                  
                   Entre
                  outras conclusões do longo e denso estudo de Barrington Moore
                  Jr.., a capacidade de identificar a opressão e a injustiça
                  é tratada como sendo central na busca da construção de uma
                  situação social mais justa a cada vez. Da mesma forma, o
                  desenvolvimento do sentido de inevitabilidade como sendo ilusório
                  - ou seja, a compreensão de que há certas condições
                  desumanas, dolorosas ou degradantes das quais não se
                  necessitam, não se podem e não se devem suportar.
                  
                   A
                  reversão do sentido de inevitabilidade significa que as
                  pessoas possam compreender que a dificuldade na alteração de
                  certa situação dolorosa vigente não significa que a mesma
                  integre a ordem “natural” das coisas, sendo por isso
                  inevitável, mas que essa dificuldade talvez diga respeito a
                  outras dificuldades, como tradições arraigadas ou outros
                  interesses, que não a melhoria da qualidade da vida humana.
                  
                   Nesses
                  processos pelos quais se desenvolve a capacidade de identificação
                  da opressão e da injustiça, e de solapamento do sentido de
                  inevitabilidade, a informação desempenha um papel crucial,
                  assim como o debate aberto e esclarecido,
                  que possa servir como o apoio social, de que tratou Moore
                  Jr.., capaz de fortalecer o discernimento facilitador do
                  sentimento de injustiça, dando suporte à capacidade de
                  resistência.
                  
                   Neste
                  ponto evidencia-se a relevância da escola, seja como
                  favorecedora de informação, seja como facilitadora de
                  processos que conduzam à formação da capacidade crítica,
                  bem como de habilidades de expressão de opinião e,
                  sobretudo, de resistência à opressão.
                  
                   No
                  âmbito social, as minorias têm representado a personalização
                  da possibilidade de se colocar em discussão os processos
                  humanos de dominação, muitas vezes por seu sofrimento, como
                  já vimos. Theodor Adorno e colaboradores desenvolveram em sua
                  obra Personalidade Autoritária uma série de reflexões com
                  base em pesquisas empíricas quantitativas e qualitativas, que
                  são de extrema relevância para essa temática. Devido aos
                  limites deste trabalho, procurarei destacar alguns mais
                  especificamente ligados à temática educacional.
                  
                   Adorno
                  constatou em suas pesquisas que quanto mais submisso um indivíduo,
                  maior sua tendência ao autoritarismo -
                  submete-se, porque legitima o que o outro faz, e se estivesse
                  em seu lugar, faria igual ou pior. Assim, constatou que
                  existem traços presentes na personalidade autoritária, que
                  tendem a apresentar atitude preconceituosa e a legitimar
                  formas várias de discriminação de minorias, aí incluídas
                  nós mulheres, os homossexuais, todos aqueles que integram
                  etnias ou religiões não dominantes, além das crianças.
                  Essa formas de discriminação incluem comportamentos
                  violentos, agressivos, excludentes.
                  
                   Da
                  mesma forma, são personalidades que submetem-se em campo público
                  a toda e qualquer autoridade, ainda que arbitrária, enquanto
                  submetem, freqüentemente de forma violenta, aqueles com os
                  quais convive no domínio privado da família.
                  
                   Um
                  dos principais méritos do trabalho de Theodor Adorno é
                  operar esse vínculo entre a temática das minorias e o
                  fortalecimento da democracia. Aquilo que pareceria interesse
                  de alguns, na verdade coloca-se como a evidência da relevância
                  da proteção ao espaço público, às relações igualitárias,
                  as quais podemos chamar de emancipadoras, ao respeito a todo e
                  qualquer indivíduo, como base da democracia.
                  
                   É
                  interessante observar que a Declaração dos Direitos das
                  Minorias Nacionais ou Étnicas, Lingüísticas ou Religiosas
                  proclamada pela Assembléia Geral das Nações Unidas em
                  dezembro de 1992, incorpora essas conclusões, destacando que
                  a pluralidade cultural (aí incluindo todas as especificações
                  citadas na Declaração) é a base visível do pluralismo político.
                  Enquanto esse pode, em algumas circunstâncias, apresentar-se
                  de forma excessivamente vaga e abstrata, a preservação,
                  proteção e promoção das identidades e tradições diversas
                  de uma comunidade nacional podem significar o constante mirar
                  da pluralidade. Ou seja, de fato interesse de todos, e não de
                  alguns.
                  
                   No
                  trabalho de Adorno, a questão de medidas voltadas para a
                  superação do racismo, da discriminação étnica e religiosa
                  em geral, é apresentada como pauta para a sociedade que se
                  quer construir e manter de forma democrática. Em especial,
                  uma pauta para a educação de todos, uma vez que seria, em
                  sua análise, uma forma eficiente de prevenir o surgimento de
                  personalidades autoritárias, que viessem a fundamentar, em
                  suas vidas cotidianas, o surgimento do autoritarismo e do
                  totalitarismo, no nível da organização política.
                  
                   Da
                  mesma forma, uma pauta para a educação é a elaboração de
                  propostas que visem enriquecer a capacidade argumentativa .
                  Nesse sentido, o ponto mais fundamental refere-se à
                  possibilidade de formação de indivíduos capazes de escapar
                  à tentação maniqueísta. Novamente aqui, a existência da
                  diversidade étnica, religiosa, cultural é crucial, porque
                  ensina a relativizar afirmações, bem como a desenvolver a
                  consciência de que existem tantos sistemas humanos, quanto
                  nos é impossível conhecê-los a todos. Ou seja, passamos a
                  entender que nosso conhecimento - e portanto nosso julgamento
                  - é necessariamente limitado, o que nos obriga a uma tolerância
                  efetiva para com a diversidade, para com o outro, base da
                  negociação democrática.
                  
                   Ainda
                  propõe Adorno, como medidas preventivas ao surgimento do
                  totalitarismo, mesmo reconhecendo a inutilidade de receitas
                  nesse campo, trabalhos que evitem clichês, tão ao gosto de
                  ditadores, mesmo os camuflados, que falam em nome da
                  democracia. No mesmo sentido, desenvolver flexibilidade,
                  capacidade e gosto para lidar com mudanças, servirão para
                  evitar a rigidez e a constância quase obsessivas, características
                  da personalidade autoritária. Nesse sentido, na escola,
                  revezar papéis, a possibilidade de assimilar contribuições
                  da comunidade são dados essenciais para o desenvolvimento da
                  permeabilidade e flexibilidade.
                  
                   Às
                  propostas de Adorno podemos somar as de Barrington Moore Jr..,
                  do papel da educação no desenvolvimento da autonomia moral,
                  mesmo quando se considera que essa autonomia é muito limitada
                  pelas circunstâncias. Apoiando-se em Freud, destaca a importância
                  de que as crianças tenham modelos adultos com os quais possam
                  assumir compromissos morais, base do adensamento da autoridade
                  (não autoritarismo) na sociedade. Em suas propostas
                  destaca-se a manutenção da capacidade de se indignar frente
                  à injustiça e à opressão, portanto da capacidade de resistência
                  ao arbítrio, o questionamento do consenso criado e aceito dos
                  processos de dominação.
                  
                   Retornando
                  a Konrad Lorenz, a base de suas propostas para a educação
                  será a valorização do ser humano, enquanto criador, como
                  sujeito sócio-cultural, e enquanto ser dotado de capacidade
                  de compaixão. Atente-se que a noção de compaixão que traz
                  à reflexão não guarda relação com a visão piegas do
                  termo, mas sim com seu sentido etimológico “compaixão”,
                  a capacidade de “sentir com”, de “mobilizar-se por”.
                  Entende Lorenz que a educação tem o papel de desenvolver a
                  sensibilidade e a consciência, de promover uma revalorização
                  dos valores. Mais ainda, ao oferecer conhecimento, deve
                  fundamentar-se em uma perspectiva epistemológica que se funde
                  na aceitação dos limites do conhecimento do ser humano,
                  sujeito, sempre e necessariamente, aos interesses do conjunto
                  da humanidade. Ao colocar esse tema ético, volta-se ao
                  universal kantiano, de que o limite da ação humana é o de
                  que cada ser humano seja tratado como fim em si, jamais um
                  instrumento de outro ou de seus interesses.
                  
                   Pressupostos teórico-metodológicos
                  da temática[9]
                  
                  Diz
                  Levinas que "a ética, 'já por si mesma', é uma óptica".
                  Em meu credo de pesquisadora completo: "a ética é uma
                  óptica", instaura a conduta, define a direção metodológica.
                  
                   Trabalhar
                  com questões inerentes à condição humana é assumir um
                  compromisso, e em especial no caso da pesquisa educacional,
                  estabelece premissas metodológicas claras: a melhoria das
                  condições básicas de vida do sujeito da pesquisa é a
                  finalidade da busca do conhecimento, não só como indivíduo,
                  mas também como partícipe de uma coletividade social. Em
                  particular o estudo das relações de etnia - singularidade a
                  ser valorizada e ampliada pela participação na pluralidade,
                  em um processo de construção de novos paradigmas de
                  relacionamento entre indivíduos, entre comunidades e entre
                  estas e a sociedade - remete à discussão do que é esse
                  sujeito como espécie humana, ameaçada de "demolição",
                  como dramaticamente nos ensina Konrad Lorenz.
                  
                   Proponho,
                  então, um trabalho que compõe pesquisa e intervenção
                  educacional. É Levinas que nos traz à reflexão a certeza de
                  que o contato com o Outro e a busca do Absolutamente Outro é
                  o verdadeiro ensino. Assim, que melhor tema haveria para uma
                  intervenção educacional que a busca da compreensão objetiva
                  de como se dá a negação do Outro pelo preconceito, pela
                  discriminação, pela estigmatização? Ora, trata-se de
                  estudar, investigar, aprender e apreender, em um processo que,
                  ao mesmo tempo que identifica o problema, busca alternativas
                  para sua superação. Nesse sentido não pode ser uma
                  atividade solitária, mas sim solidária, tratando-se de
                  indispensável integração entre ações teóricas e ações
                  práticas, em uma dinâmica de revezamentos.
                  
                   Por
                  lidar com temas do cotidiano, onde há um conhecimento vulgar
                  estabelecido. trata-se também de superar obstáculos
                  epistemológicos arraigados, entre outros motivos, por inércia
                  do espírito, pela valorização indevida de idéias, o que
                  acaba por se opor à circulação de valores, onde
                  "aquilo que se julga saber claramente ofusca aquilo que
                  se deveria saber" .
                  
                   A
                  proposta, então, é a participação de representantes de
                  movimentos e organizações étnicas e de minorias religiosas,
                  em interação com o mundo acadêmico, como um investimento na
                  possibilidade de rediscussão das fontes de autoridade na
                  construção do saber sobre etnias, ao mesmo tempo em que se
                  tecem novas relações da prática com a teoria.
                  
                   Abrange
                  o levantamento constante dos "Paradigmas do Outro",
                  tal como se apresentam em crianças e adolescentes das
                  escolas, considerando o "Outro Visível" e o
                  "Outro Não-Visto". Este discernimento é
                  particularmente relevante para o Brasil, cuja composição
                  populacional abriga cosmopolitismo peculiar e raro pluralismo,
                  vivido às vezes de maneira apenas virtual por parcelas da
                  população.
                  
                   Tal
                  levantamento de "Paradigmas do Outro" busca a
                  explicitação de características étnicas auto-atribuídas e
                  hetero-atribuídas, visando identificar a existência de
                  preconceito (latente ou patente), discriminação (implícita
                  ou explícita) e estigma (no sentido atribuído a este termo
                  por Goffman).
                  
                   Preliminarmente
                  esclareço que conceituo "Paradigmas do Outro"
                  apoiando-me em Thomas Kuhn e Emmanuel Levinas. O termo
                  "paradigma", tal como utilizado por Kuhn, tem uma
                  riqueza heurística insubstituível para nosso trabalho.
                  Analisando a organização do mundo científico, Kuhn ressalta
                  que "os cientistas nunca aprendem conceitos, leis e
                  teorias de uma forma abstrata e isoladamente. Em lugar disso,
                  esses instrumentos intelectuais são, desde o início,
                  encontrados numa unidade histórica e pedagogicamente
                  anterior, onde são apresentados juntamente com suas aplicações
                  e através delas".
                  
                   Estabelecendo
                  um paralelismo entre a organização do pensamento científico
                  e a organização do pensamento da vida cotidiana, proponho
                  uma hipótese segundo a qual as manifestações de
                  preconceito, discriminação e estigma têm uma "unidade
                  histórica e pedagogicamente anterior", da qual seriam
                  uma aplicação. Seria, portanto, uma modalidade de
                  "paradigma de senso comum", que por encontrar-se
                  articulado traduz-se em expectativas com relação ao
                  comportamento do Outro, configurando o que chamarei de "síndrome
                  DPE", propiciando, frequentemente, condições objetivas
                  suficientes para sua confirmação, como nos processos de
                  "profecia auto-realizadora".
                  
                   Lembra
                  Kuhn que "na ciência (...) a novidade somente emerge com
                  dificuldade (dificuldade que se manifesta através de uma
                  resistência) contra um pano de fundo fornecido pelas
                  expectativas".
                  No campo da "síndrome DPE", a mudança dessas
                  expectativas depende - e estas são outras hipóteses: (a) do
                  conhecimento objetivo, pelo sujeito, do "paradigma do
                  Outro" do qual ele é portador; (b) do contato direto e
                  intencional com o Outro, o qual esteja ciente do
                  "paradigma" que norteia seu interlocutor.
                  
                   De
                  Levinas aproveito o conceito de Outro e Outrem (em especial
                  Levinas, 1988), parafraseando-o, aqui, ao nomear o "Outro
                  visível" e o "Outro não-visto", diferenciação
                  indispensável no estudo das relações de etnia e entre
                  minorias religiosas, onde freqüentemente, como já foi dito,
                  o Outro é um contato virtual, o que traz complexidade social
                  e analítica.
                  
                   Algumas experiências de
                  trabalho
                  
                  Os
                  protagonistas desses trabalhos que temos desenvolvido são
                  movimentos sociais, por meio de ativistas e lideranças,
                  terceiro setor, universidade, mídia, governo, agências
                  internacionais. Para facilitar relatos e análises do que tem
                  sido realizado com base nesses paradigmas, esses
                  interlocutores aparecem um a um, assim como na sistematização
                  de resultados alcançados tratamos evento por evento. Contudo,
                  na prática, tudo se entrelaça e se compõe em um processo de
                  interação rico e dinâmico.
                  
                   Ou
                  seja, sem a intervenção, a pesquisa teria sido menos
                  instigante e menos exigente, com relação à preparação teórica,
                  definição metodológica e busca de resultados. Sem a
                  pesquisa, a intervenção poderia reduzir-se a empirismo.
                  
                   A
                  urgência da temática, gerando uma atitude de prontidão
                  desses interlocutores - universidade, comunidades, mídia,
                  governo -, assim como a consolidação de vínculos de apoio
                  internacional têm sido cruciais para que atender os
                  compromissos éticos assumidos com as comunidades, entre nós
                  que partilhamos a proposta e com agências financiadoras.
                  
                   Passemos
                  a um brevíssimo relato de algumas experiências mais
                  significativas, em nível nacional e internacional, do
                  trabalho desenvolvido com base no referencial teórico e
                  metodológico citado, onde a valorização, respeito e presença
                  direta de diversos grupos de minorias, e em particular étnicas
                  e religiosas, tem sido central.
                  
                   Ensino
                  Religioso em escolas públicas - a discussão do Estado de São
                  Paulo
                  
                  Em
                  1995, o tema do ensino religioso em escolas públicas
                  constituiu-se em fonte de cooperação entre nosso trabalho e
                  o Governo Estadual. Tal cooperação foi tão mais
                  significativa, quanto mais séria a crise suscitada pela
                  Conferência Nacional dos Bispos do Brasil - CNBB - Seção São
                  Paulo. O Governo do Estado de São Paulo não aceitou sua
                  proposta de impor ensino religioso, alegando exigência
                  constitucional, porém, de fato, dentro de certa concepção
                  que feria os direitos das minorias religiosas e de todos os
                  alunos, por impedir a livre escolha, o que se encontra
                  previsto na Constituição.
                  
                   A
                  Secretaria de Educação pediu-me a cooperação, dela
                  resultando a proposta e efetiva criação de uma Comissão
                  Especial do Governo do Estado, com representantes de diversos
                  setores governamentais, para a qual fui nomeada como um dos
                  membros, no caso, representante da Universidade Pública.
                  
                   O
                  trabalho da Comissão estendeu-se de julho de 1995 a janeiro
                  de 1996, envolvendo ampla participação das comunidades de
                  minorias religiosas, mobilizadas por intermédio das
                  comunidades que participavam de nosso projeto. Foi uma lição
                  de cidadania, pela seriedade e prontidão das comunidades que
                  estiveram presentes em defesa de todas as crianças e
                  adolescentes que estudam em escolas públicas, reafirmando o
                  direito de respeito e valorização, como na Declaração das
                  Minorias da ONU.
                  
                   A
                  mobilização significou a dedicação de muitos, que se
                  empenharam em divulgar a importância da liberdade de religião,
                  da laicidade do Estado, como presente na Constituição
                  Federal, e, assim, a reafirmação da importância do respeito
                  à liberdade de consciência e de pensamento.
                  
                   A
                  imprensa e os meios de comunicação, de maneira geral, foram
                  parceiros ativos e decisivos para aquela que foi uma vitória,
                  embasada em parecer jurídico da professora Anna Cândida da
                  Cunha Ferraz, da Faculdade de Direito da USP, preparado por
                  nossa solicitação.
                  
                   Essa
                  vitória repetiu-se na promulgação da Lei de Diretrizes e
                  Bases da Educação Nacional, em dezembro de 1996, quando essa
                  abordagem da temática foi vitoriosa, após debate acirrado no
                  Congresso.
                  
                   Contudo,
                  lei complementar posterior, de julho de 1997, deu nova redação
                  ao artigo referente ao ensino religioso, criando uma situação
                  de ambigüidade e ameaça aos direitos fundamentais, que, sem
                  dúvida, o tempo já demonstra o desacerto. Essa nova situação,
                  gerada como resultado de pressão da CNBB na fase preparatória
                  da visita do Papa João Paulo II ao Brasil em outubro de 1997,
                  deverá ser corrigida em prol da cidadania, uma vez que a
                  mobilização havida em São Paulo em 1995, demonstrou à
                  exaustão os perigos desse tipo de exposição compulsória de
                  crianças à religião - sem garantias às minorias - no
                  ambiente da escola pública.
                  
                   Pluralidade
                  Cultural como tema curricular transversal para as escolas de
                  ensino fundamental
                  
                  O
                  documento “Pluralidade Cultural”, do qual fui redatora e
                  especialista junto à equipe geral, é integrante dos temas
                  transversais dos Parâmetros Curriculares Nacionais - PCNs. É
                  inovador, em nível nacional, porque pela primeira vez temos a
                  temática da pluralidade e da diversidade étnico-racial
                  presente como política pública de educação para todo o
                  território nacional, em uma perspectiva que privilegia a voz
                  dos sujeitos desse processo, valorizando, portanto, as populações
                  brasileiras. Foi redigido com base em toda a experiência que
                  desenvolvemos em nosso projeto, com a participação de
                  lideranças das comunidades como pareceristas da proposta
                  preliminar, fato inédito na história da educação
                  brasileira.
                  
                   É
                  proposto, também, em interação com os demais temas
                  transversais, a saber, Saúde, Educação Sexual, Ética, Meio
                  Ambiente, colaborando para entrelaçá-los na abordagem que
                  faz dos direitos humanos, da liberdade de consciência, de
                  opinião, dos direitos da criança e do adolescente, da temática
                  da igualdade entre homens e mulheres, em uma proposta que toma
                  em consideração a realidade da sala de aula, portanto viável,
                  apresentada para ser efetivada. Propõe, além disso, estratégia
                  didática de “intercâmbio”, cooperando para o adensamento
                  dos projetos pedagógicos das escolas, pela via da interação
                  com a sociedade e comunidades, voltando-se para o conhecimento
                  da diversidade regional, cultural e política brasileira.
                  
                   Os
                  valores que são ali trabalhados voltam-se para o
                  fortalecimento da auto-estima de professores e professoras,
                  pessoal auxiliar e administrativo e, de forma central, alunos
                  e alunas, voltando-se para a valorização das origens de
                  todos, ao mesmo tempo em que afirma a inviolabilidade do
                  direito individual de escolha dos rumos que cada um escolha
                  dar à sua vida. Trata, também, da urgência da disseminação
                  do conhecimento dos direitos humanos e do respeito à máxima
                  que estabelece todos os direitos humanos para todos.
                  
                   Encontra-se
                  em aplicação em todo o território nacional, no ensino
                  fundamental (oferecido no Brasil a crianças e adolescentes de
                  7 a 14 anos).
                  
                   Manual
                  “Direitos Humanos no Cotidiano”, a valorização da
                  diversidade e do pluralismo
                  
                  A
                  repercussão de diversas iniciativa do projeto que
                  coordenamos, assim como do documento de Pluralidade Cultural,
                  levaram a outra experiência formidável de entrelaçamento
                  teoria-prática. O Secretário Nacional de Direitos Humanos,
                  Dr. José Gregori, convidou nosso projeto a colaborar com a
                  Secretaria Nacional de Direitos Humanos - SNDH, pedindo que
                  concebêssemos projeto de elaboração de um manual de
                  direitos humanos para a sociedade, como estabelecido no
                  Programa Nacional de Direitos Humanos.
                  
                   A
                  familiaridade e envolvimento do Terceiro Setor, a consolidação
                  de uma abordagem de valorização da voz dos sujeitos do
                  processo social, a ampliação temática da perspectiva da
                  diversidade - tudo se constitui em fortalecimento de estratégias
                  de superação da discriminação étnica e religiosa - em ação.
                  Assim, é processo que não se interrompe, porém gera
                  produtos a cada novo desafio surgido, realimentando-se,
                  consolidando-se e diversificando formas de presença no cenário
                  acadêmico, social, cultural e político.
                  
                   O
                  manual, que envolve mais de 30 artistas das artes visuais,
                  mais de 50 personalidades, como escritores, jornalistas,
                  artistas, religiosos, mais de 60 ONGS, além da equipe do
                  projeto. Expressa uma abordagem efetivamente em prol da
                  pluralidade, apresentando, na prática, a diversidade que
                  tanto valorizamos.
                  
                   Rede
                  Unesco das Américas e Caribe de Cientistas para a Tolerância
                  e a Solidariedade
                  
                  Em
                  novembro de 1997, realizou-se o Seminário Internacional “Ciência,
                  Cientistas e a Tolerância”, em cooperação com a UNESCO,
                  Unidade da Tolerância e da Paz, envolvendo quase todas as
                  unidades da Universidade de São Paulo, por intermédio de
                  seus Programas de Pós-Graduação, trazendo cientistas de
                  diversos países das Américas e Caribe, assim como da Europa.
                  Foi patrocinado pela USP, UNESCO, FAPESP, Fundação Alexandre
                  de Gusmão, do Itamaraty, Secretaria Nacional de Direitos
                  Humanos, Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento,
                  por intermédio do Coordenador do Sistema da ONU no Brasil e
                  pelo Consulado-Geral dos Estados Unidos da América em São
                  Paulo - USIS.
                  
                   Estruturou-se
                  em Grupos de Trabalho e englobou processo do qual resultou a
                  Criação da Rede das Américas e Caribe para a Tolerância e
                  Solidariedade, associada às demais redes regionais da UNESCO.
                  A Rede das Américas encontra-se em fase preliminar de
                  organização, porém anuncia-se como uma grande oportunidade
                  de trabalho, que há de florescer. Traz a possibilidade de
                  envolvimento e participação efetiva de colegas de diversas
                  áreas científicas, discutindo a temática da tolerância,
                  dos direitos humanos, da ética e da ciência, na perspectiva
                  de constituir-se em núcleo disseminador de novas iniciativas.
                  
                   Alguns apontamentos sobre
                  intencionalidade, esperança e o papel da educação, à guisa
                  de conclusão
                  
                  Frente
                  à situação em que se encontra a humanidade, onde a miséria
                  de muitos faz a riqueza de poucos, onde a ameaça da guerra
                  persiste, e se efetiva em vários pontos do planeta, com os
                  riscos de aniquilação física total da espécie, onde os
                  valores culturais têm sido homogeneizados gradativamente, em
                  prejuízo da preservação de tradições às quais se liga a
                  própria dignidade humana, o caminho ditado pela
                  racionalidade, pela intencionalidade e, sobretudo, pela ética,
                  é aquele que conduz à construção de um mundo livre, porque
                  justo e fraterno, pela via da solidariedade.
                  
                   O
                  que poderia ser proposto, então, como relevante, quando se
                  pensa na educação como fator de transformação dos rumos da
                  espécie humana? Um primeiro aspecto é destacar, do conceito
                  amplo e de fato indivisível de educação, a sua acepção de
                  Educação para Direitos Humanos, pauta que está plenamente
                  assimilada como parte fundamental da formação e consolidação
                  de uma Cultura da Paz, solidificadora de laços internacionais
                  como os propostos na constituição das Nações Unidas. Quais
                  as relações entre a educação assim concebida, a temática
                  das minorias e a possibilidade da consolidação dos direitos
                  humanos? Tomemos algumas sugestões de Lorenz, combinando-as
                  às experiências decorrentes de nosso trabalho.
                  
                   Um
                  primeiro aspecto liga-se à possibilidade da criança e do
                  jovem experimentarem o prazer da criação. Para tanto, uma área
                  privilegiada é a das Artes, pelo que oferece em termos de
                  possibilidades criativas e de fruição do belo, elemento
                  recomendado por Lorenz.
                  
                   De
                  fato, o desenvolvimento do senso estético pode estar ligado,
                  segundo esse autor, tanto à percepção de harmonias e
                  desarmonias, e o papel desempenhado pelo ser humano no
                  estabelecimento das mesmas, quanto ao desenvolvimento da
                  sensibilidade.
                  
                   Aqui,
                  Lorenz oferece-nos algumas das mais belas páginas de esperança
                  na educação e no ser humano. Limitando seu argumento,
                  objetiva e declaradamente, ao mundo material - não por
                  renegar crenças, mas por considerar ser essa a única forma
                  de se atingir o que há de universal no ser humano - Lorenz
                  aplica-se em explicar o valor da compaixão para a espécie
                  humana. Afirma, por exemplo:
                  
                   "Não
                  reneguemos as dores que nos são causadas pela compaixão.
                  (...) O sofrimento é incomparavelmente mais antigo do que a
                  compaixão; o sofrimento surgiu, e nisto não há o que se
                  possa mudar, juntamente com a vivência subjetiva de uma
                  criatura, juntamente com a inevitável morte de um indivíduo
                  qualquer que ele seja - muitos milhões de anos antes de
                  surgir a compaixão. (...) Essa característica de
                  compartilhar dos sentimentos de outra pessoa só existe, com
                  absoluta certeza, quando um indivíduo se sente ligado a outro
                  por laços de amor. O amor por seres vivos é uma emoção
                  importantíssima, imprescindível. Pois é esta emoção que
                  transfere ao homem, a este ser que tudo domina, a
                  responsabilidade pela vida no planeta. A pessoa responsável não
                  pode 'alijar de si' nem 'reprimir em si' os sofrimentos de
                  outras criaturas, sobretudo em se tratando de outras criaturas
                  humanas, suas semelhantes. Assim, não é nada fácil sua
                  tarefa".[14]
                  
                   Neste
                  sentido, Lorenz acentua que uma das formas com as quais se
                  evita a compaixão é "desviando o olhar" - como se
                  diz popularmente, "o que os olhos não vêem, o coração
                  não sente". Nesse sentido, Lorenz propõe que a educação
                  aponte os obstáculos que se colocam à reversão do quadro de
                  auto-demolição em que se encontra a humanidade,
                  desenvolvendo nas crianças e jovens a capacidade de resposta
                  a esses obstáculos. Talvez possamos complementar com a
                  abordagem do historiador Barrington Moore Jr.., que dá à
                  educação o papel, que me parece complementar a essa proposta
                  de Lorenz, de desenvolver nos indivíduos imunidades quanto a
                  perda da capacidade de se indignar. Com base nesses valores, a
                  discriminação que leva à exclusão passa a ser encarada,
                  sempre, como alvo de indignação, enquanto todos aqueles que
                  sofrem a exclusão são percebidos com compaixão, ou seja,
                  com a capacidade de sentir como o Outro e mobilizar-se por
                  ele.
                  
                   No
                  mesmo sentido, podemos propor, com Lorenz, uma revalorização
                  dos valores, onde se comece, por exemplo, por revalorizar a
                  verdade, em contraposição a uma linguagem que adotou a
                  mentira como forma de obter vantagem na competição.
                  Sobretudo, que se possa revalorizar o ser humano, cada ser
                  humano que vive sobre a face do planeta, colocando a serviço
                  da vida humana, digna e autônoma, todos os esforços de
                  reorganização jurídica internacional e internamente, em
                  cada nação.
                  
                   Ao
                  tratar desses valores que aos poucos a Humanidade viu serem
                  perdidos no horizonte do desenvolvimento tecnológico e do
                  ritmo frenético de mudança, Lorenz assemelha-se a Allen
                  Wheelis, autor que propõe retomarmos o contato com as gerações
                  passadas, para recapturarmos o senso de tempo - tema no qual
                  as tradições religiosas, em particular de minorias, têm prática
                  acumulada.
                  
                   As
                  propostas de Lorenz podem também ser compostas com as do já
                  citado Grahame Clark - mostrando que a preservação de
                  valores das diversas tradições é indispensável à preservação
                  da própria espécie humana. É Clark quem alerta, ainda, que
                  se uma mão carrega a preservação, a outra deve levar o
                  esforço de preservá-la de si mesma, evitando a fossilização,
                  o que se faz, apenas, com a permeabilidade a outras tradições
                  e adaptabilidade aos diferentes momentos. Um desafio,
                  portanto.
                  
                   Destacamos,
                  ainda, com Lorenz e outros autores, como Bachelard, a
                  necessidade de uma atitude epistemológica de humildade,
                  frente à aceitação dos limites do conhecimento humano. A
                  transformação da espécie humana e a transformação do
                  indivíduo colocam-se, assim, como renovação, tanto para sua
                  investigação, quanto para sua prática da agenda educacional
                  - algo tão antigo quanto a própria humanidade.
                  
                   É
                  preciso lembrar que esse aspecto ligado à sensibilidade e à
                  afetividade, complementa-se com uma perspectiva ética. Nesse
                  sentido, a análise de Emmanuel Levinas é muito oportuna,
                  porque reúne, analiticamente, o que é indissociável
                  eticamente, ou seja autonomia e alteridade. Sua reflexão
                  sobre tal indissociabilidade segue assim:
                  
                   "a
                  coletividade em que eu digo 'tu' ou 'nós' não é um plural
                  de 'eu'. Eu, tu, não são indivíduos de um conceito comum.
                  Nem a posse, nem a unidade do número, nem a unidade do
                  conceito me ligam a outrem. Ausência de pátria comum que faz
                  do Outro - o Estrangeiro; o Estrangeiro que perturba o 'em sua
                  casa'. Mas o estrangeiro quer dizer também o livre. Sobre ele
                  não posso 'poder', porquanto escapa ao meu domínio num
                  aspecto essencial, mesmo que eu disponha dele: é que ele não
                  está inteiramente no meu lugar. Mas eu, que não tenho
                  conceito comum com o Estrangeiro, sou, tal como ele, sem gênero.
                  Somos o Mesmo e o Outro. A conjunção 'e' não indica aqui
                  nem adição, nem poder de um termo sobre o outro".[15]
                  
                   Nessa
                  proposição que reúne, em uma mesma prioridade -
                  porque intersecção ontogênese e filogênese -
                  autonomia, alteridade, compaixão, em resumo, ética e
                  sensibilidade, expressa como compaixão, é que podemos
                  depositar esperança no papel a ser desempenhado pela educação
                  para o nosso tempo e do lugar central desempenhado pelas
                  minorias, em particular étnicas e religiosas, como consciência
                  da riqueza cultural que é a diversidade humana.
                  
                   Bibliografia
                  
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