Projeto DHnet
Ponto de Cultura
Podcasts
 
 Direitos Humanos
 Desejos Humanos
 Educação EDH
 Cibercidadania
 Memória Histórica
 Arte e Cultura
 Central de Denúncias
 Banco de Dados
 MNDH Brasil
 ONGs Direitos Humanos
 ABC Militantes DH
 Rede Mercosul
 Rede Brasil DH
 Redes Estaduais
 Rede Estadual RN
 Mundo Comissões
 Brasil Nunca Mais
 Brasil Comissões
 Estados Comissões
 Comitês Verdade BR
 Comitê Verdade RN
 Rede Lusófona
 Rede Cabo Verde
 Rede Guiné-Bissau
 Rede Moçambique
 Você Decide...e Freud Explica

 

Maria Rita Kehl

Psicanalista

 

A dobradinha “você decide e Freud explica” sintetiza, a meu ver, duas formas de alienação características da subjetividade moderna:  de um lado, o delírio de autonomia que consiste em acreditarmos que não devemos prestar contas a ninguém a respeito de nossas escolhas, nem pagar qualquer preço por elas. De outro, a esperança de que uma certa psicanálise venha nos socorrer para fundamentar e desculpar nossos atos através da explicação das motivações inconscientes, que serviriam assim como justificativa para o exercício da soberania narsísica do cidadão reduzido ao estatuto de consumidor.  

A psicanálise e a publicidade funcionam, assim, como duas técnicas privilegiadas de produção de subjetividade. Em entrevista ao psicanalista Contardo Calligaris para o caderno Mais! do jornal Folha de São Paulo (5/11/94), o fotógrafo Toscani, responsável pelas campanhas publicitárias da Benetton, chamou a atenção para o fato de que os gastos com publicidade nos países ricos, hoje, são cerca de duas vezes superiores aos gastos com educação pública. Guardadas as devidas diferenças orçamentárias, o número revela que a publicidade é mais presente e mais eficiente como produtora de subjetividade do que a formação escolar tradicional, no Ocidente.

 A publicidade convoca os sujeitos a apostar em sua onipotência. O sujeito das “culturas do narcisismo” no dizer de Christopher Lasch, adaptado às condições desejantes das grandes sociedades de mercado (independente de suas condições materiais), acredita que tem uma espécie de direito natural ao desfrute de todos os bens que a publicidade lhe oferece ou, pior ainda, acredita que tem uma espécie de dever de desfrutar deles. No discurso publicitário, evidentemente, o dever de gozar suplanta toda interdição ao gozo que funda as sociedades humanas - suplanta até mesmo a dimensão fundamental do Princípio de Realidade, que nos ensina que nenhum desfrute é possível sem um adiamento inicial, seguido de um certo investimento de, digamos, trabalho físico ou mental. O sujeito onipotente da Cultura do Narcisismo vive um delírio semelhante ao que Freud descreveu como o estado psíquico regido pelo Princípio do Prazer: sem história, sem mediação de tempo e esforço entre desejar e obter, sem dívida para com nenhum passado, nenhuma instância paterna. É o self-made-man imaginário (como todo self-made-man), que se acredita sem outro compromisso a não ser com o próprio gozo, ao qual a mídia publicitária - ou a mídia em geral, já que toda mídia é pautada pelos imperativos da publicidade -  apela incessantemente.  

Ora, gozar plenamente é tão impossível ao ser humano quanto renunciar completamente ao gozo, mas o sujeito contemporâneo não sabe disto - esta é a dimensão de sua alienação que chamei de “você decide”, quando a “decisão" se inscreve não no registro político da cidadania (dimensão construída coletivamente) mas no registro privado do consumo. Esta forma de alienação exige o recalque da dimensão simbólica que sustenta as formações sociais. O sujeito das culturas do narcisismo se esquece de que até mesmo a liberdade de escolhas de que desfruta hoje é fruto de uma história de trabalho e sacrifícios humanos   - encarnados e atualizados nas mercadorias.  

O esquecimento é necessário para produzir a dimensão imaginária de um gozo sem  dívidas e sem limites. O consumidor contemporâneo representa a si mesmo como um eterno filho do presente, sem história e sem lei,  regido por um pastiche do Princípio do Prazer e voltado para um futuro imediato que só lhe promete mais mercadorias. Na velocidade própria das sociedades industriais sustentadas por uma produção de tecnologia que ultrapassa os indivíduos, tudo parece “caído do céu”: os objetos não têm história nem parecem encarnar um capítulo da grande construção das sociedades humanas.  

A filósofa Hannah Arendt[1] chama a atenção para o fato de que, ao contrário do que as aparências poderiam indicar, o preço pago por este esquecimento ativo das nossas origens é de conformismo e resignação em relação às condições do presente, já que todo desejo de mudança, apartado da consciência do que nos determina, se esgota numa rebeldia inútil. Ou na crença de que nada se pode fazer para transformar o que está posto, pois ignoramos que o que está posto foi, algum dia, construído por nossos antepassados. Arendt escreve que somos prisioneiros das tradições que recalcamos: “o fim de uma certa tradição não significa necessariamente que os conceitos tradicionais percam poder sobre as mentes dos homens. Pelo contrário, às vezes parece que este poder das noções e categorias cediças e puídas torna-se mais tirânico à medida que a tradição perde sua força viva e se distancia da memória de sua origem. Ela revela toda sua força coercitiva somente depois de seu fim, quando os homens nem ao menos se rebelam contra ela”. Ao que está se referindo esta passagem, senão ao poder de “eterno retorno” próprio do recalcado? O texto de Hannah  Arendt não faz um apelo conservador pela manutenção das tradições; faz um apelo ao desesquecimento das origens do presente, do caráter histórico (portanto mutável) de situações que tendemos a considerar como naturais e imutáveis.  

Uma das respostas a esta forma de alienação contemporânea é a neurose. Por que as sociedades modernas produzem culpa e neurose, se elas apelam incessantemente para que o sujeito goze sem culpa e seja feliz? Por que as formações sociais não sustentam mais os sujeitos, escreveu Freud em Totem e Tabu. Em sociedades arcaicas, as estruturas simbólicas determinavam os destinos dos sujeitos. Laços de parentesco, a posição dentro da família, origem de classe, etc, decidiam pelo sujeito, em grande parte, a vida que ele deveria ter. A neurose se produz quando o sujeito se acredita senhor de seu destino, e inteiramente responsável (portanto culpável) pelo que fizer dele. Penso que esta esperança moderna contém um germe de libertação individual - vivemos aliás em sociedades do individualismo - mas contém também as condições para que o oposto se realize, o aprisionamento dos sujeitos na culpa neurótica pelo que não consegue realizar. Não quero me aprofundar aqui sobre todas as condições de produção da neurose, mas apontar para uma delas, a meu ver fundamental: o recalque da dimensão simbólica que transcende os indivíduos e, em larga medida, ainda determina seus destinos. O sujeito moderno é neurótico porque se acredita soberano e o que é pior, acredita que a soberania é condição de sua liberdade. Assim, ele está sempre angustiado diante de um excesso de responsabilidade não para com os outros mas para consigo mesmo - só o reconhecimento do Outro, da dimensão coletiva que também determina sua vida e delimita seu destino poderia aliviá-lo deste sofrimento, desta eterna culpa por não conseguir ser tudo, possuir tudo, gozar de tudo.  

A psicanálise, outra técnica moderna de produção de subjetividade, vem sendo convocada pela mídia para resolver este impasse, da pior maneira possível, como se lhe coubesse inventar uma solução de compromisso entre o imperativo do gozo e a angústia neurótica dos sujeitos, que nem ao menos entendem por que não conseguem gozar da herança que lhes foi legada pela história. Nas últimas décadas, a mídia vem tentando transformar a psicanálise numa espécie de panacéia consoladora das frustrações e/ou legitimadora das transgressões que se cometem em obediência ao imperativo do gozo.

A psicanálise substitui as ciências sociais como fantasia de panacéia universal na medida em que o homem social, político, vai sendo substituído pelo homem psicológico. É claro que os sujeitos das culturas do narcisismo são tão sociais quanto quaisquer outros, mas têm que se acreditar livres e soberanos para tudo desejar e tudo consumir.  

A mídia recorre à psicanálise em busca não de intervenções que destruam esta forma de alienação, mas de explicações apaziguadoras da angústia que a onipotência produz. “Você decide e Freud explica" seria a dobradinha ideal para apaziguar a má consciência do homem moderno sem estragar sua condição de criança mimada do discurso publicitário. Em nome de uma explicação “freudiana”, tudo é permitido. A idéia de que a verdade freudiana do desejo é passível de realização e reconhecimento no mundo das mercadorias é um subproduto da banalização da psicanálise pela mídia, que busca num certo discurso psicologizante legitimar a infantilidade de seu próprio público. Do mesmo modo, as ideologias neoliberais banalizam os direitos de cidadania dos indivíduos, confundindo-os com direitos do consumidor - o que significa que os que estão abaixo de um padrão significativo de consumo, não possuem direito algum.

 No Brasil, particularmente, o enfraquecimento das instituições que deveriam sustentar a lei e zelar por seu cumprimento para todos sem exceção, contribuiu para esta passagem tipicamente moderna, em que os conflitos que deveriam se dar entre os indivíduos e as instâncias públicas se transformam em conflitos íntimos, entre instâncias psíquicas subjetivas. Aquilo que deveria ser decidido fora da subjetividade, pelo temor à lei ou pelo enfrentamento entre os que transgridem e os que defendem a lei, transforma-se num drama subjetivo cuja solução deve ser “explicada" pela psicanálise. Dostoiévski antecipou este mal-entendido moderno criando o jovem Raskólhnikov[2], compelido a praticar um crime, qualquer crime, para comprovar a liberdade que lhe conferia sua superioridade intelectual, livre das amarras terríveis do catolicismo russo.

Se o pacto simbólico foi esquecido - ativamente esquecido, esquecimento que a mídia produz diariamente - ou desqualificado; se a dimensão  coletiva das interdições que sustentam a vida em sociedade está obscurecida pela onipotência das elites que se acreditam acima da lei; se todos os indivíduos são igualmente convocados a gozar de privilégios que por sua própria natureza excluem a grande maioria, estão dadas as condições para a expansão, no melhor dos casos, do conflito neurótico - no pior, da perversão dos laços sociais. Se cada indivíduo vive suas escolhas como se fosse soberano, às custas de todos os seus iguais, paga por isto o preço altíssimo de se ver destruindo os laços sociais que o sustentam.  

Por fim, gostaria de sugerir alguns preconceitos produzidos em conseqüência deste mal-entendido contemporâneo. Em primeiro lugar, já que todos são convocados para gozar de privilégios - o que seria  impossível - logo se estabelece uma distinção entre quem goza e quem não goza nas sociedades de consumo, implicando numa diferença de qualidade entre os sujeitos: capazes e incapazes, competentes e incompetentes até, no limite da perversidade, merecedores e não merecedores (de privilégios, de excessos, etc). A sociedade se divide entre os que “conquistam” o direito de gozar e os outros, otários, a serem usados e abusados pelos mais espertos.  

Em outras palavras: quem é e quem não é cidadão, no sentido definido pela Declaração dos Direitos do Homem (que fundou a modernidade!), passa a ser decidido em termos de quem é e quem não é consumidor. No Brasil isto fica ainda mais terrível , uma vez que cerca de um terço da população está abaixo dos padrões de consumo considerados mínimos pelas pesquisas de mercado - abaixo do que as empresas de publicidade chamam de “classes C e D”. Excluídos tanto do “você decide" quanto do “Freud explica”, estes milhões de brasileiros, estes absolutamente outros, parecem não pertencer à mesma ordem simbólica que nós - não sendo consumidores, também não seriam cidadãos.  

Assim, o maior preconceito em vigor no Brasil, hoje, não é de raça, gênero ou credo - é o preconceito contra os pobres. A  palavra deve ser politicamente incorreta, mas já que convivemos tranqüilamente com o fato, ela não deveria nos chocar: estamos convencidos de que os que não consomem, valem menos do que nós. Junto a isto, cria-se um preconceito contra todos os projetos que ainda chamaria de esquerdistas, isto é, que partem do ideal iluminista de que uma sociedade deva ser capaz de criar soluções coletivas, racionais, que sacrifiquem privilégios individuais a favor de direitos democráticos. Diante do imperativo do gozo, tais ideais parecem ingênuos, fantasiosos. Já nos esquecemos que até mesmo os privilégios “conquistados" por uma elite, hoje consolidada, na sua origem dependeu de condições coletivas favoráveis - ou, o que é pior, de uma certa prática consentida de apropriação de bens públicos.  

O esquecimento nos condena a uma eterna indiferença, perturbada somente pela angústia que nos avisa que nenhuma situação de privilégios dura para sempre. Nos condena a um estado de adolescência permanente, impotente e ansiosa, em que cada um se acredita sempre capaz de, sozinho, partir do zero e conquistar o mundo - e quanta culpa sentimos ao ver que isto não acontece! Esta adolescência envelhecida do homem contemporâneo, acompanhada do medo pânico de nossos únicos limites naturais- o envelhecimento, a morte - não oferece nenhum porto onde possamos ancorar ou de onde zarpar o navio de nossos sonhos, já que nos rouba a dimensão coletiva e histórica a que pertencemos. Assim, até os mais belos sonhos se transformam em delírios narcísicos, impotentes na medida justa da nossa fantasiosa onipotência. Termino com um verso da poeta Ana Cristina Cezar sobre a adolescência: “É sempre mais difícil/ ancorar um navio no espaço”.[3]  

Consumo: o que é, o que não é...  

P: Quando a psicanálise vai chegar às favelas e aos cortiços de São Paulo?  

Bom, na verdade a psicanálise não chega às favelas e aos cortiços. De vez em quando alguém de cortiços e favelas procura um psicanalista. Às vezes chega, não sei como. O cara conhece alguém, que  conhece alguém, que conhece alguém, cai no consultório do psicanalista, e funciona, todo mundo no inconsciente é igual, ou seja, essa história de que não adianta fazer psicanálise, porque eles não vão entender, porque a cultura é outra, não tem, o inconsciente é uma coisa muito democrática. Eu já tive poucos pacientes quase analfabetos, que me vieram por caminhos muito obscuros, e você fala "talvez o seu desejo seja esse, e talvez eu esteja entendendo que você quer dizer isto", e o cara entende como se fosse um universitário. Quer dizer, a linguagem do inconsciente talvez seja uma das mais universais, então eu não teria nenhum problema da psicanálise chegar aos cortiços e favelas.  

P: A sociedade de consumo privilegia a individualização. A libertação dessa sociedade de consumo deve então partir de uma iniciativa individual para que se possa alcançar a dimensão coletiva? Por favor, comente.

Bom, não é que eu não ache que, individualmente, a gente não possa sair disso que eu estava chamando da alienação produzida pela sociedade de consumo. Eu acho que se pode. Em geral os tipos românticos de todas as sociedades, não só da nossa, são os tipos que individualmente rompem com os padrões e que bom quando a gente consegue, é um prazer duplo! É o prazer de romper e o prazer de se sentir um indivíduo muito especial, porque não está no padrão de todo mundo. Mas isso já é um critério bem sacana de individualidade. "Eu sou melhor do que os outros, porque eu rompi com os padrões individualistas". Eu acho que de qualquer maneira, soluções e rompimentos só são possíveis coletivamente. Indivíduos podem até morar no deserto, como tentaram os jovens nos anos 70, com toda a ruptura da cultura hippie, etc., etc. Agora essas rupturas que isolam, em geral elas tendem a ser de novo engolidas. A ruptura que isola, o próprio mercado faz daquilo um paradigma, faz daquilo um padrão desejável, e você se vê de novo sendo engolida. Toda mudança consistente tem que ser coletiva, mudanças individuais servem para a história de vida de cada um, mas não é isso que vai mudar a sociedade.

 

P: De onde vem a influência que possibilitou a formação das inúmeras ONG’s, as Organizações Não-Governamentais, que defendem direitos humanos, ambiente, interna e externamente ao sujeito narcisista? É um novo tipo de ocupação "cult" permitido pela sociedade de consumo?  

Olha, eu não posso historiar da onde vem a formação das ONG’s. Eu entendo a ironia de quem fez essa pergunta, e eu vou fazer a minha leitura dessa ironia, que numa sociedade de mercado, de mídia, de imagem, de narcisismo, qualquer iniciativa de ruptura pode ser tomada como um fenômeno de mercado, cult ou não cult. Mas eu não acho que isso esgota o assunto, eu acho que as ONG’s vem substituir outras organizações da sociedade civil que foram engolidas. Eu acho que isso sempre vai acontecer, quer dizer, cada vez que instituições que são feitas para civilizar a sociedade forem engolidas pela corrupção, enfim por toda essa incivilidade reinante, novas instituições vão se formar, sejam ONG’s, sejam novos partidos políticos, etc. Eu acho que isso é muito saudável. Pior é se ficassem aquelas velhas instituições tentando dar conta de tudo, se corrompendo e se esvaziando de sentido. Eu acho que as ONG’s são mais interessantes do que meramente um fenômeno cult. Eu acho que são instrumentos de luta mesmo.  

P: Existe a possibilidade de gozo e cidadania a quem não admite corromper-se, sem querer levar vantagem em tudo e sempre? Existe a possibilidade de se tornar um consumidor de educação, lazer, cultura, bem-estar em geral, bens de consumo em uma sociedade de consumo? Como consumir sem se corromper? 

Primeiro eu acho que tem aí uma espécie de um preconceito, não no sentido negativo, do preconceito intencional, mas com uma má formação de conceito da pessoa que faz a pergunta, de que achar que educação, lazer, saúde, etc. são bens de consumo. Não são bens de consumo. Seriam direitos coletivos que a própria sociedade devia garantir a todos cidadãos, isso é muito diferente de bem de consumo. Justamente o que eu percebo é que tem já uma perversão do nosso pensamento de achar que tudo isso é consumir, isso não é consumir, isso é usufruir de direitos, o consumo já são necessidades secundárias. Quer dizer, eu ter que comer, o que vestir, onde morar, isso não é consumismo, isso são direitos para poder ser um cidadão civilizado numa sociedade que concede a todos esse direito, dentro da perspectiva de direitos humanos. Então isso não tem nada a ver com consumismo.  Além disso, aquilo que eu vou consumir, eu acho que a questão é você consumir dentro do que você pode, o problema é você achar que você tem consumir  tudo, e cair nessa alienação de que se você não consumir tudo você é um otário. Uma vez eu achei muito graça de ouvir uma esposa de um prefeito de cidade do nordeste, o estado queria que se tornasse área de proteção ambiental e a prefeitura queria lotear e vender. E a esposa do prefeito, que estava ali na sua casa de esposa de coronel nordestino, que já agora não era  mais coronel mas  político, manipulando ali, dizia assim: “bom a gente não pode ser ingênuo, né, eu também tenho que comer.” Essa pessoa não estava com nenhum problema de ter que comer, o problema dela não era de sobrevivência, ela queria lotear a área, vender e passar a mão no que pudesse daquele dinheiro, já não tinha mais  nada a ver com comer, e nem com consumir sapatos, bolsas e cinemas, tinha a ver com o excesso do excesso do excesso, porque ela achava que ela tinha que ter direito, porque ela era a esposa do prefeito, e ela nasceu numa elite, afinal de contas, econômica, e evidentemente numa ralé mental. Mas de qualquer maneira, é essa mentalidade que alia o consumo à corrupção, quer dizer, as pessoas dizem: “é, eu tenho meus filhos para criar, eu não posso passar fome”, ou seja, eu tenho que ter piscina, jatinho, isso não tem nada a ver com passar fome. Então eu acho o seguinte, não tem para todos nesse nível, não tem e não tem porque ter. O prazer pode passar por mil outras coisas, e principalmente pela convivência, pelas formas de sociabilidade, pelas formas criativas de produção de lazer, de arte, etc. Então achar que tem que ter jatinho, celular, carro importado, helicóptero para todos, evidentemente não vai ter e esse “pega para capar”, desculpem a expressão, é para ver quem chega primeiro. Eu acho que nesse nível não há como consumir sem se corromper.  

P: Se existem preconceitos em todas as épocas, em todas as sociedades, em todas as culturas, será que o preconceito não faz parte da natureza humana? 

Eu acho que sim, eu acho que faz parte da natureza humana, e é por isso que a gente tem que combater. Como o crime faz parte da natureza humana, como o estupro faz parte da natureza humana, como o incesto faz parte da natureza humana, e como eu coloquei, e não é uma idéia minha, a gente cria civilizações para melhorar a natureza humana, se a gente estiver entregue à natureza humana, a gente está entregue à barbárie. Então dizer que o preconceito faz parte da natureza humana de maneira alguma justifica que a gente o aceite.  

P: Esta palestra, você a tem publicada em algum livro, ou em caso negativo, duas ou três obras que você recomenda para leitura?  

Pelo que o Júlio acabou de nos informar ela vai ser publicada, então até aí não tem problema. Ela nem está redigida, mas eu vou entregar em tempo e ela vai ser publicada nesse livro, que os organizadores estão fazendo. Eu citaria um obra. Minha fala não foi muito baseada em obra, eu fui juntando essas coisas, mas tem um trabalho que para mim foi fundamental, que foi, e até é uma coisa muito conhecida e muito antiga já, de uma pensadora que é Hannah Arendt. É um livro, já tem vinte ou trinta anos, chama-se Entre o Passado e o Futuro, era da Editora Perspectiva, não sei se está reeditado, se ainda está em circulação. Ele tem dois capítulos que são fundamentais sobre essa questão da alienação contemporânea, um que se chama O que é tradição?, e um outro que se chama O que é Liberdade?. Nesses dois capítulos eu fundamentei muito minhas reflexões, se alguém estiver interessado, eu recomendo.  


[1] - Hannah Arendt, “O que é Tradição”? em: Entre o Passado e o Futuro. SPaulo, Ed.Perspectiva, 1976.

[2] - Fiódor Dostoiévski, Crime e Castigo. São Paulo, Editora Abril, 1979. Tradução de Natália Nunes.

[3] - Ana Cristina Cézar, “ Recuperação da Adolescência”, em  A Teus Pés. SPaulo, Ed. Brasiliense, 1983.

Desde 1995 © www.dhnet.org.br Copyleft - Telefones: 055 84 3211.5428 e 9977.8702 WhatsApp
Skype:direitoshumanos Email: enviardados@gmail.com Facebook: DHnetDh
Busca DHnet Google
Notícias de Direitos Humanos
Loja DHnet
DHnet 18 anos - 1995-2013
Linha do Tempo
Sistemas Internacionais de Direitos Humanos
Sistema Nacional de Direitos Humanos
Sistemas Estaduais de Direitos Humanos
Sistemas Municipais de Direitos Humanos
História dos Direitos Humanos no Brasil - Projeto DHnet
MNDH
Militantes Brasileiros de Direitos Humanos
Projeto Brasil Nunca Mais
Direito a Memória e a Verdade
Banco de Dados  Base de Dados Direitos Humanos
Tecido Cultural Ponto de Cultura Rio Grande do Norte
1935 Multimídia Memória Histórica Potiguar