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 SOCIEDADE DE CONSUMO (OU O CONSUMO DE PRECONCEITOS)

 

Eugênio Bucci

Jornalista

 

Antes de começar, vamos lembrar o “parêntesis irritante” de um velho livro brasileiro:

 

“Um parêntesis irritante:

 

Abramos um parêntesis...

 

A mistura de raças mui diversas é, na maioria dos casos, prejudicial. Ante as conclusões do evolucionismo, ainda quando reaja sobre o produto o influxo de uma raça superior, despontam vivíssimos estigmas da inferior. A mestiçagem extremada é um retrocesso. O indo-europeu, o negro e o brasílio-guarani ou o tapuia, exprimem estádios evolutivos que se fronteiam, e o cruzamento, sobre obliterar as qualidades preeminentes do primeiro, é um estimulante à revivescência dos atributos primitivos dos últimos. De sorte que o mestiço — traço de união entre as raças, breve existência individual em que se comprimem esforços seculares — é, quase sempre, um desequilibrado. (...)

 

Como nas somas algébricas, as qualidades dos elementos que se justapõem, não se acrescentam, subtraem-se ou destróem-se segundo os caracteres positivos e negativos em presença. E o mestiço — mulato, mameluco ou cafuz — menos que um intermediário, é um decaído, sem a energia física dos ascendentes selvagens, sem a atitude intelectual dos ancestrais superiores. Contrastando com a fecundidade que o acaso possua, ele revela casos de hibridez moral extraordinários. (...) O mulato despreza, então, irresistivelmente, o negro e procura com uma tenacidade ansiosíssima cruzamentos que apaguem na sua prole o estigma da fronte escurecida; o mameluco faz-se o bandeirante inexorável, precipitando-se, ferozmente, sobre as cabildas aterradas...”

 

Fim do parêntesis.

 

Estamos ainda no início de Os Sertões, na segunda parte, O homem, e só o que se lê são ofensas à qualquer indivíduo que não seja de uma raça pura. Branca, de preferência. Algumas páginas mais adiante, porém, Euclides da Cunha escreveria a sua frase célebre: “O sertanejo é, antes de tudo, um forte”. Assim, concederia um histórico elogio àquele que é produto de uma intensa miscigenação. Interessante é que o elogio vem seguido de uma ressalva: “Não tem o raquitismo exaustivo dos mestiços neurastênicos do litoral.” Euclides detectou no sertanejo, apesar de todas as “conclusões do evolucionismo”, uma subcategoria étnica dotada de uma originalidade surpreendente. Mas quis destacar que o caso constituía uma exceção à mestiçagem.

 

Os Sertões é um clássico, uma obra magnífica sem paralelos na cultura brasileira. Não obstante, está repleto de frases e pensamentos racistas, terrivelmente racistas. Preconceituosos, como dizemos hoje. É verdade que o próprio autor registrou, nas notas que preparou para a terceira edição, de 1905, que se encontram em seu livro “coisas disparatadas”. Explica-se: apesar dos


impropérios contra a mestiçagem, ele mesmo escreveu, quase quinhentas páginas adiante, que o sertanejo era “o cerne da nacionalidade”, “a rocha viva da  nossa raça”. Mais ainda, Os Sertões, para além dos trechos que possamos hoje chamar de racismo, é a defesa eloqüente do sertanejo. Euclides descreve, denuncia e condena o crime que contra o sertanejo foi cometido. Em Canudos, “a rocha viva da nossa raça” foi em parte destruída por um poder que não o admitia como interlocutor, como igual, como cidadão. Para conforto daquele poder e de seu exército, era preciso varrer da terra árida o Antônio Conselheiro e sua gente (que não era para ser tratada como gente).

 

Quero insistir nessa idéia de “coisas disparatadas”. Eu poria da seguinte forma essa contradição: um pensamento filiado a uma ciência racista, de fins do século XIX, que acreditava em raça superior e outras coisas assim, serve para erguer uma obra-prima do humanismo, uma obra contra a prepotência, a intolerância e a matança. Retomo a contradição para alertar que, em matéria de preconceitos, as “coisas disparatadas” fazem parte do nosso dia-a-dia. Em matéria de preconceitos, não há pecadores e santos, não há preconceituosos nojentos e não-preconceituosos puros. Entre os dois, há uma bagunça imensa. E é dela que eu gostaria de tratar.

 

O meu tema é a sociedade de consumo. Não vou aqui tratar dos preconceitos já exaustivamente apontados na publicidade, que dá preferência às mulheres jovens e esguias de olhos claros; não vou reclamar dos shopping centers que não têm rampas para as cadeiras de rodas, nem pretendo denunciar a inexistência de xampus para negros no mercado brasileiro. Isso tudo já foi mais do que registrado, denunciado, e até já começa a ser corrigido. Creio que o debate será mais produtivo se buscarmos contradições e preconceitos menos comentados do que aqueles. Daí eu ter recuperado o trecho de Os Sertões. Ele nos obriga a raciocinar a partir do contraditório. Se podemos encontrar e, com os olhos de hoje, delimitar claramente as “coisas disparatadas” no livro de Euclides, na atual sociedade de consumo há coisas ainda muito mais disparatadas, das quais nós mal tomamos consciência. Percebê-las é muito mais difícil. O que pretendo expor aqui é de que modo o ato de consumir mercadorias nos leva a consumir preconceitos inadvertidamente; em muitas ocasiões o desejo de consumir pode nos conduzir a posturas preconceituosas e nós nem percebemos. Para aumentar a confusão, nem sempre esses preconceitos se mostram como tal.

 

A minha hipótese é que a intensa propaganda, a celebração permanente e reiterada do consumo nos meios de comunicação e mesmo o gesto de consumir como via de afirmação e de realização pessoal, para além da simples satisfação de necessidades materiais objetivas, são processos que a um só tempo produzem e ocultam preconceitos de uns homens em relação a outros. Não pretendo cair em generalizações e nem condenar as relações de consumo de um modo dogmático (em princípio, não há nada de errado em consumir mercadorias; trata-se, aliás, de um direito das pessoas), mas a busca obstinada de cada um em saciar desejos, desejos erotizados pela publicidade, a procura do prazer individual como orientação para o consumo, embora possa apresentar-se como um caminho para algum tipo de felicidade, talvez seja o agravamento do egoísmo (e do egocentrismo) numa sociedade em que a autoestima depende da desvalorização do outro, isto é, uma sociedade em que o indivíduo, para afirmar-se, precisa se imaginar melhor, ou maior, ou mais poderoso, ou mais rico, ou mais afortunado, ou mais atraente, ou capaz de ter mais prazer que os seus semelhantes.

 

Sei bem que não se trata de uma hipótese de fácil aceitação. Como eu disse, no início, vamos lidar aqui com “coisas disparatadas”. Há preconceitos onde há satisfação de necessidades, assim como há racismo numa obra clássica, vocacionada a combater a prática da exclusão social e, portanto, a combater o racismo e o próprio preconceito.

 

A ambição da reflexão que proponho não é convencer a todos. A mim bastaria que admitíssemos as ambigüidade das situações, ou melhor, a sua polaridade, bastaria que não nos


pretendêssemos libertos de todo preconceito acusando a multidão à nossa volta de preconceituosa. A ambição, aqui, é encarar as polaridades e pensar alguma coisa (“disparatada”) a partir delas.

 

*   *   *

 

Muitos têm preconceito contra filmes brasileiros. Ou têm mesmo uma birra justificada: sentiram-se desconfortáveis vendo filmes nacionais e não querem mais repetir a dose. Assim, dá-se o “não vi e não gostei” a cada novo longa metragem brasileiro que aparece. Quanto a mim, tenho um preconceito ao contrário. De filme brasileiro eu gosto por princípio. Gostei especialmente de um (na verdade uma co-produção entre Brasil e Estados Unidos), lançado em 1995: Jenipapo, dirigido por Monique Gardenberg. É um bom ponto de partida para a nossa discussão.

 

O filme conta a história de um padre estrangeiro no Brasil, o fictício padre Stephen (interpretado por Patrick Bauchau), que apóia o movimento dos trabalhadores rurais sem-terra. Padre Stephen, reconhecido internacionalmente por seu trabalho humanitário, tem sua paróquia numa região marcada por conflitos agrários. O que intriga o espectador é que, enquanto as tensões políticas se agravam no país, e exatamente no momento em que uma importante lei agrária será votada no Congresso Nacional, o padre Stephen se recusa a dar entrevistas. Uma palavra dele poderia influenciar os deputados a adotar uma posição favorável aos sem-terra mas, mesmo assim, ele se recusa a falar. Justo ele que era tão falante. Antes, em seus pronunciamentos dentro e fora do Brasil, ele demonstrava que sobre os sem-terra pesava não apenas a pobreza, mas um certo desprezo da opinião pública. Eles não eram vistos como pessoas no exercício de seus direitos, ou melhor, pessoas que buscam o atendimento de um direito. Eram retratados como baderneiros, não como cidadãos. Antes, as declarações do Padre deixavam claro que os sem-terra, além da violência física, sofriam a violência de um preconceito de classe. Agora, a razão de seu silêncio é um mistério.

 

Um repórter americano, Michael (Henry Czerny), decidido a entrevistar o padre, não se rende àquela resistência. Homem de muita ambição e pouco caráter, Michael resolve inventar uma entrevista. Profundo conhecedor das idéias e da biografia do líder religioso, forja declarações que soam como se fossem verdadeiras. E sua entrevista repercute decisivamente. Graças àquelas falsas declarações, a maioria do Congresso vota favoravelmente aos sem-terra.

 

Surge aí uma primeira contradição. Uma mentira (a entrevista forjada) leva a realização de uma justiça. Em função dela, os excluídos sociais obtém uma vitória legislativa. Uma falsificação jornalística contribui para o não agravamento de um preconceito de classe, para atenuar uma iniqüidade. Vendo isso, o padre Stephen não desmente o repórter sem escrúpulos. Quer dizer: alia-se a um mentiroso. Com sua anuência, torna verdadeiras as falsas declarações.

 

É só então que vem a tona o motivo do silêncio do padre Stephen. Ele vinha sendo chantageado pelos latifundiários. Nunca mais poderia dizer nada à imprensa. Seus inimigos conseguiram contra ele um argumento incontornável: fotos íntimas em que o sacerdote aparece fazendo amor. Caso ele se manifeste, as fotos serão divulgadas. Portanto, após a publicação da entrevista, o religioso se encontra na iminência de sua completa desmoralização diante do país e do mundo.

 

O desfecho será trágico. Se o preconceito contra os despossuídos não bastou para imobilizar o trabalho daquele homem, que dedicou a vida a combater a injustiça no campo, o preconceito sexual terá sido bastante para emudecê-lo. Tivesse ele um romance com uma mulher e a situação poderia até ser vencida de alguma maneira, mas o caso de amor do padre Stephen é um caso de amor homossexual. Isso nem mesmo os trabalhadores sem-terra aceitariam. Vem daí, do preconceito que os excluídos sociais compartilham com os fazendeiros mais reacionários, a grande força da

chantagem armada contra o padre. Se ele não perdeu a guerra contra os latifundiários, arrisca-se a perder a honra (e a própria vida) para o preconceito sexual.

 

Por isso lembro aqui a história de Jenipapo. O filme nos ajuda a perceber que, em matéria de preconceitos, não existem apenas dois lados: um absolutamente compreensivo e generoso e outro perverso e inteiramente intolerante. Os dois pólos se confundem e se entrelaçam, num complexo difícil de ser repartido de modo maniqueísta. É ingênua, ou é pretensiosa, a postura dos que se imaginam livres de preconceitos. Entender os mecanismos pelos quais preconceitos e não-preconceitos se misturam é uma tarefa árdua mas indispensável aos que procuram um mundo mais fraterno e de mais respeito entre os homens. Antes de tudo, temos de assumir que existimos em meio às “coisas disparatadas” que Euclides da Cunha identificou dentro de sua própria obra-prima. Essas “coisas disparatadas” fazem parte da rotina de cada um de nós.

 

*   *   *

 

Quando se vai definir o que seja preconceito, diz-se que preconceito é um pré-julgamento. Mas isso é pouco. Os pré-julgamentos são inevitáveis — ainda que suas conseqüências não sejam necessariamente drásticas. Todo mundo, de um jeito ou de outro, acaba pré-julgando e, com base nisso, orienta um pouco de sua conduta individual. É triste: um pré-julgamento pode ser limitante, mesmo sem ferir outra pessoa, pode impedir a expansão cultural e existencial de cada um. É triste mas é assim. Tem gente que nunca vai comer pratos orientais porque se recusa a prová-los. Resolveu assim e ninguém tem nada a ver com isso. Tem gente que não ouve música de um ou de outro gênero porque sequer admite a possibilidade de conhecê-los. Tem gente não quer saber de filme alemão. Ou brasileiro.

 

O que mais importa aqui, no entanto, não é esse pré-julgamento para consumo individual — é a conseqüência do preconceito no campo dos direitos. Em função de preconceitos, muitas vezes, pessoas são excluídas, humilhadas, prejudicadas. Em função do preconceito, muitos vêem cassada a sua possibilidade de felicidade. Nesses termos, é preciso tratar do preconceito como algo associado ao poder — o preconceito nos importa à medida que produz efeitos na vida prática e impõe sofrimentos às suas vítimas.

 

Devemos observar também como os preconceitos são a um tempo causa e conseqüência de realidades perversas. Muitos imaginam que mentes preconceituosas fabricam situações injustas. Outros acreditam que a sociedade de classes é quem gera todos os preconceitos. O fato é que as duas alternativas são verdadeiras. Os negros da África do Sul, para ficarmos num dos exemplos mais recorrentes, não tinham os mesmos direitos dos brancos (e, em certa medida, não os têm até hoje). Isso era (ou é) resultado de preconceito e também era (ou é) origem de mais preconceito. Nessa matéria, não basta mudar a situação concreta. Também não basta mudar as mentalidades. É preciso atuar nas duas frentes.

 

São muitos os meandros, as sutilezas, os fios delicados, quase imperceptíveis, que atam essas duas frentes uma à outra. É muito comum que o preconceito de cor, ou de classe, não se manifeste como tal, mas se expresse, quando não se esconde por completo, como um preconceito cultural. Até o início deste século era bastante generalizada a recusa da sociedade branca à musicalidade da cultura negra. Era o tempo do “madame não gosta que ninguém sambe”[1]. Hoje, não é difícil perceber que, no fundamento daquela recusa, havia um preconceito de cor e de classe. Um preconceito que, bem adiante, ia dar na recusa de democratizar a sociedade. A mesma “madame” que andava “dizendo que o samba é vexame” não queria saber de “mistura de raça, mistura de cor”.
Por isso, descaracterizava a produção da cultura negra: “o samba brasileiro, democrata, é música barata sem nenhum valor”. Atualmente, quase como antítese (como negação da “madame” implicante cantada com afinada ironia por João Gilberto), a “música de preto”, no dizer de Djavan, entrou definitivamente na moda. Paul Simon gravou com o Olodum, Caetano Veloso proclamou “eu sou neguinha” e o grupo Raça Negra é o grande fenômeno de vendas de discos em 1996. Podemos identificar aí um desejo mais difundido de democracia, inclusive de uma democracia racial. Mas a pergunta que temos que fazer aqui é: será mesmo? Será que isso nos garante que estamos na direção do final do preconceito?

 

A nova abertura do mercado cultural para as produções de antigas minorias políticas, de povos antes oprimidos, de etnias antes desprezadas, ganhou até um rótulo. No campo musical, vivemos hoje um tempo em que se fala em música do gênero étnico. Mas o que significa dizer que uma determinada sonoridade pertence ao gênero étnico? As respostas são bem variadas. Recentemente, folheando um livro francês sobre história da música, em que os compositores são classificados segundo estilos e escolas, vi que Villa-Lobos mereceu um destaque de algumas linhas por seu “valor étnico”[2]. Ora, argumentaria o leitor, mas se Villa-Lobos é étnico, todo mundo é étnico. Temos aí um gênero que pode ser “qualquer nota”.

 

Para fugir da conclusão “qualquer nota”, talvez devêssemos achar um outro caminho para chegar a uma definição. Poderíamos tentar definir, por eliminatória, o que são sonoridades “não-étnicas”. Novamente, porém, corremos o risco de bater no vazio pois, ainda que indireta e remotamente, qualquer som se refere à cultura de alguma etnia, ou de algumas delas. Sim: direta ou indiretamente, qualquer obra humana é étnica. Até Villa-Lobos.

 

Resta-nos então apenas um recurso. Voltando os olhos para os critérios com que são dispostos os discos nas lojas, encontramos um conceito mais aceito: étnico é um tipo de música mais puro, ainda não contaminado pela civilização, um tipo que conserva suas características originais ancestrais.

 

Indo além, é possível supor que étnico seja um termo adotado de forma generalizada a partir das preocupações e da vigilância do movimento conhecido como “politicamente correto”. O termo étnico, nessa perspectiva, pode ser entendido como uma tentativa de superar outros termos, como “primitivo” ou “selvagem”, hoje tidos como depreciativos. Mais ou menos como o termo “afro-americano” substituiu “black”. Assim, o termo étnico não apenas procura revogar uma abordagem antes preconceituosa, que menosprezava expressões culturais de etnias e povos da periferia do capitalismo, como representa um esforço para transformar em mercadoria cultural o que teria sido excluído pelo modelo social globalizado.

 

Claro que, entre a existência e a não existência dos discos étnicos nas prateleiras de lojas de todos os continentes, a existência é moralmente preferível à inexistência. Garante-se, ao menos, o direito de visibilidade (ou audibilidade) às culturas minoritárias. Mas, como o objetivo aqui é problematizar, é útil verificar em que bases o gênero étnico se apóia.

 

Uma hipótese que não deve ser descartada é a de que, sendo um eufemismo, ele seja um mecanismo para aliviar o peso da consciência daqueles que usufruem da riqueza. Comprando o étnico, os consumidores estão sustentando, mesmo que marginalmente, produções culturais que o modelo econômico (quase) matou.

 


Vejamos o que acontece com a entrega do Oscar, todo ano. Ali não são premiados os produtores, os atores, os diretores, mas os valores que eles defenderam com seus filmes: as vítimas da guerra, as vítimas do racismo, das agressões sexuais, os explorados, os deficientes físicos, os aidéticos. Na premiação do Oscar, um ritual e uma celebração que unificam a indústria do entretenimento da América e, por extensão, do mundo inteiro, podemos entender ou, no mínimo, vislumbrar um pouco do mecanismo da má consciência que alimenta o próprio mercado cultural. Aplaudindo e premiando a tragédia dos injustiçados, os astros e os administradores da indústria do entretenimento se sentem aliviados.



[1]  “Pra que discutir com madame?”, de Janet de Almeida e Haroldo Barbosa.

[2]  Émile Vuillermoz, Histoire de la musique, Librairie Arthème Fayard, Paris, 1973.

Assim há de se dar com os consumidores. Mas, se trata mesmo de má consciência, devemos então presumir que ela não se empenha em corrigir as barbaridades: a ela basta bater palmas para o sofrimento de suas vítimas, ou talvez comprar um disco de suas culturas minoritárias, étnicas, que isso serviria para aplacar-lhe a culpa. Aparentemente, o gênero “étnico” desponta como reação ao preconceito contra sonoridades “primitivas” ou “selvagens” e, por decorrência, busca atenuar, pelo mercado cultural, os efeitos nefastos da exclusão social e da pobreza econômica que se encontram, com enorme freqüência, nas localidades produtoras das sonoridades étnicas.

 

O problema é que, se isso é verdade, as próprias leis de mercado (que produzem a valorização mercantil do étnico) nos põe diante de uma outra ordem de preconceito, um preconceito reciclado, moderno. Trata-se de um preconceito que reduz uma identidade cultural a um tipo qualquer de exotismo, uma beleza em estado bruto, em estado virginal — mas política e economicamente indefesa. Esta beleza, por não ter meios próprios para se defender e se preservar, por não representar uma cultura soberana, chega ao mercado precisando de proteção e compreensão, carente de caridade — ela só pode sobreviver da indulgência dos mais ricos. Ao ser vista assim, essa beleza foi envolvida por um novo tipo de preconceito. Trata-se de um preconceito que reduz o outro a um estereótipo e, logo, torna-o de mais fácil consumo. Esse preconceito que se apresenta como a negação do velho preconceito, ou esse preconceito disfarçado pelo manto do politicamente correto, consome o diferente como quem consome o exótico porque o exótico é inofensivo, inócuo, superficial, decorativo, bonitinho mas impotente. Com isso, a vítima desse preconceito não encontra no mundo seu lugar de sujeito. Tem que se contentar com o seu lugar de objeto. Objeto de consumo. Ou, pior ainda, objeto desnaturado de consumo. Objeto desinfectado, esterilizado, pasteurizado e plastificado para o consumo.

 

Outra vez, dentro do que aparece como um não-preconceito, temos uma nova forma de preconceito. A “música de preto” não é mais rechaçada como antigamente, mas aplaudida pela “madame”. As conseqüências do velho preconceito, no entanto, que são a exclusão, a injustiça, a ausência de direitos iguais, não necessariamente estão revogadas. Ao contrário, muitas vezes são reforçadas pelo novo preconceito e pela mercantilização do gênero étnico: étnico, afinal, é aquilo que não foi tocado pela civilização e assim deve permanecer, intocado, sob pena de perder o fetiche que lhe dá o valor de troca.

 

*   *   *

 

Na base desse novo preconceito (um preconceito cínico que consome e aplaude o oprimido sem resgatá-lo da opressão) está o funcionamento de um mercado obstinado por traficar intimidades, prazeres e caprichos. Seduzida pela esfera privada, a sociedade de consumo esvazia o debate das soluções políticas próprias da esfera pública. Richard Sennet, em O declínio do homem público, identifica a falência dos espaços públicos, da esfera pública e do domínio público no mundo contemporâneo. Segundo ele, estaríamos hoje fascinados pelos processos intimistas, e só podemos ter uma visão e uma compreensão da esfera pública a partir de modelos dados pela psicologia, pela desenfreada busca do “eu” (uma busca necessariamente egocêntrica). Sennet afirma que “vemos a


sociedade como uma coisa significativa somente quando a convertemos num grande sistema psíquico”. É assim que, no nosso tempo, os debates políticos são permeados e até formatados pelos códigos da publicidade, que personalizam, sentimentalizam e dramatizam todos os temas públicos. Quer dizer: os temas públicos são tratados como assuntos da intimidade feito os namoros, as intrigas pessoais e as fofocas.

 

Nesse contexto, o mercado cultural cuida da absorção sentimental —fútil — das realidades alheias como se fossem elas meros bens descartáveis, retratos num álbum de figurinhas ou acessórios de decoração da sala de estar. É por isso que ele, mercado cultural, apresenta-se como um exercício inconseqüente: transforma até mesmo a miséria alheia num bem de consumo (em fotos caríssimas, filmes de gigantesca bilheteria, documentários laureados) mas nada reverte de substantivo para sanar a miséria original. O consumidor do Primeiro Mundo, nos países desenvolvidos, vê-se convidado a contemplar com certo encantamento a produção rítmica de povos esquecidos e excluídos. Isso lhe dá uma doce sensação de indignação, um gozo humanitário, um prazer existencial. Mas dessa contemplação não resulta uma alteração das injustiças. Diz Richard Sennet: “A crença nas relações humanas diretas em escala intimista nos seduz e nos desvia da conversão de nossa compreensão das realidades do poder em guias para nosso próprio comportamento político. O resultado disso é que as forças de dominação ou a iniqüidade permanecem inatacadas”.[1]

 

Assim, o que vemos hoje é o consumo do exótico, do único, daquele que está ameaçado de extinção e que, portanto, adquire valor (de mercado) cultural. A mercadoria étnica parece portar algum resquício de aura sagrada, vindo intacta de um estágio anterior à era da reprodutibilidade técnica da obra de arte. Temos assistido à distribuição em escala planetária de mercadorias culturais étnicas, primitivas, intocadas no melhor estilo “pegue antes que acabe”. O vendedor promete: diretamente da barbárie para você. E você compra.

 

*   *   *

 

Se a loja de discos promete “diretamente da barbárie para você”, nas agências de turismo mais “modernas” o vendedor promete levar você diretamente para a barbárie. Desenvolve-se no turismo um novo fetiche: ver de perto, ver in loco, olhar e consumir com os olhos, os ouvidos, o olfato, o tato, o paladar e o sexo o primitivo, o “étnico”, o produto genuíno da barbárie que viceja nos subúrbios da civilização. Recentemente, ficamos sabendo no Brasil da empresa que faz citytour nas favelas cariocas[2]. Sim, há um lado positivo na iniciativa. Há gente interessada em conhecer como moram, quem são, como vivem os favelados — e isso é bom. Melhor conhecê-los que ignorá-los. Mas, novamente, há o que problematizar nesse ecoturismo que passeia por paisagens humanas.

 

Nós, que já sabemos da violência que o preconceito de classe produz contra os necessitados — os recusados no mundo do conforto, da cidadania e mesmo no mundo do consumo —, agora somos apresentados, de novo, a um outro preconceito invertido. É o caso de perguntarmos aos visitantes o que é que eles achariam de ônibus lotados de favelados visitando seus condomínios em Paris, em Hamburgo, em Amsterdã, em Londres. Será que eles abririam a esses viajantes os seus espaços privativos? Como é que eles reagiriam ao ver turistas de terras longínquas olhando com olhos cobiçosos as suas filhas, verificando suas salas, fotografando suas roupas a secar, comentando em línguas incompreensíveis o vai-e-vem pelas portas de suas casas?

 


São perguntas que talvez pareçam forçadas, mas devem ser consideradas. A favela é um espaço compartilhado de moradia: a casa, o domínio particular de cada um ali não começa da porta para dentro, pois às vezes nem porta existe direito. Na favela, o domínio da privacidade se confunde com o espaço coletivo em reentrâncias, em limites permeáveis, porosos, onde o que é íntimo atinge o que é público e o que é público abriga o que é pessoal de um modo improvisado, singular, mutante. Os turistas que adentram as favelas em cima de jipes estão passeando dentro da intimidade de cada um habitantes. É mesmo provável que pressintam isso, que saibam disso, mas se julgam no direito de fazê-lo. Com sua consciência antenada para as desigualdades sociais, ficam à vontade para observar de perto a miséria alheia, embora não permitissem intromissões iguais em suas próprias vidas.

 

Eis aí uma outra face do preconceito produzido pela má consciência do mercado. Talvez os turistas e as empresas desse tipo de turismo nem se dêem conta de que a exposição das intimidades nas favelas não é uma opção, não é uma realidade voluntária, mas é uma condenação social que vitima gerações inteiras sem que lhes tenha sido dada alguma escolha. Eles sobrevivem daquela forma porque aquela forma de sobreviver é a única que lhes restou — e não os dignifica fazer deles atração turística. Quem consome o favelado como atração, por mais que as intenções sejam boas, está reforçando o preconceito que exclui o favelado. Quem consome o favelado como atração turística, e se delicia em seu city tour pelas ruelas da miséria, está reforçando a violência que o atinge.

 

*   *   *

 

O público adquire os bens (culturais, turísticos e vários outros) e, junto com os bens, consome os preconceitos que eles carregam. Esses preconceitos, que nunca se apresentam como preconceitos (preferencialmente, apresentam-se como a negação de qualquer preconceito), penetram a existência de quem consome acabando por lhe dar, a ela própria, existência do consumidor, uma significação mais coerente com a ordem que está posta no mundo. Consumindo, o indivíduo se situa. Num tempo em que a esfera e os espaços públicos estão enquadrados pelos meios de comunicação e pela linguagem publicitária, o homem se contextualiza pelo consumo.

 

Com a indústria cultural refeita em indústria do entretenimento, a linguagem publicitária, amplificada meios de comunicação e seus desdobramentos tecnológicos, globalizou-se. No mesmo movimento, globalizou seus valores próprios, mundializou-os, dando o contexto em que a sociedade de consumo está posta. Como veremos, as relações de consumo, mediadas pelos valores da linguagem publicitária, proporcionam ao homem, em grande medida, o seu sentimento de estar no mundo — e mesmo o seu sentimento de cidadania. Já no início da década de 60, Habermas detectava: “A cultura integracionista preparada e difundida pelos meios de comunicação de massa, embora pretenda ser apolítica, representa ela mesma uma ideologia política.”[3] Agora, na era da globalização, podemos dizer que a categoria de cidadão foi englobada pela categoria de consumidor, o que nos leva a uma potencialização jamais vista dos preconceitos próprios do consumo.

 

Em Consumidores e Cidadãos, Nestor García Canclini, é preciso ao afirmar: “Homens e mulheres percebem que muitas das perguntas próprias dos cidadãos — a que lugar pertenço e que direitos isso me dá, como posso me informar, quem representa meus interesses — recebem suas respostas mais através do consumo privado de bens e dos meios de comunicação de massa do que das regras abstratas da democracia ou pela participação coletiva em espaços públicos.”[4] De fato, como veremos a seguir, em inúmeros aspectos o consumo como conceito e como prática expandiu-


se demais e deixou de ser um dos direitos próprio da cidadania. Em conseqüência, foi a cidadania que se tornou um dos vários atributos do consumidor. É exercendo a sua condição de consumidor que o homem se reconhece cidadão.

 

Todos os dias, em comícios de políticos, em programas de rádio e televisão, em artigos de jornais e revistas e em conversas informais, todos os dias alguém reclama do poder público invocando a sua condição de contribuinte. Por pagar impostos, homens e mulheres se sentem cidadãos e, como cidadãos que são contribuintes, cobram ruidosamente providências dos governantes. (A verdade, como sabemos, é que nem cobram tanto assim. Mas fazem lá sua encenação cívica.) Ninguém aqui pretende contestar o direito de reclamar que tem o contribuinte. Não se vai recusar a ele o direito de exigir, de cobrar, de contestar as providências da administração pública. Ao contrário, o contribuinte até que poderia exercer com mais eficácia e mais método esse direito. O que se perde de vista, no entanto, é que o imposto de renda é também (ou deveria ser principalmente) um mecanismo de distribuição de renda. Perde-se de vista que o contribuinte paga não porque ele, contribuinte, tem prerrogativas: ele paga porque aqueles que se encontram abaixo da linha de pobreza, que não ganham o suficiente para recolher impostos, têm direitos sociais a ser satisfeitos. Ele está pagando não a sua própria cidadania, mas a do outro — o outro que ele despreza.

 

É preciso dizer, aliás, que o direito de fiscalizar o que se faz com a arrecadação fiscal não é exclusivo de quem é contribuinte, mas pertence ao cidadão (mesmo daquele cidadão que não paga um centavo de imposto). Infelizmente, a noção de que cidadãos também são os que não pagam imposto e que devem receber benefícios sociais é algo que contraria o senso comum da nossa época. Segundo esse senso comum que eleva o conceito de contribuinte acima do conceito de cidadão, a cidadania é uma mercadoria que se compra do Estado. E dentro desse senso comum mora um preconceito (uma variante do preconceito de classe). Muitas vezes, quando alguém vocifera algo como “o contribuinte exige” está excluindo aqueles que não são contribuintes do direito de exigir. Como se a sociedade fosse um condomínio. Quem não paga está fora.

 

Mas não é somente aí que podemos flagrar a cidadania sendo vista como mercadoria, como um incremento a mais na vida do consumidor. É comum em quase toda a propaganda anti-socialista da segunda metade deste século: ela sempre ignorou o esforço dos modelos e ideais socialistas pelo atendimento dos direitos sociais, direitos próprios da cidadania, e sempre criticou neles a ausência dos paraísos consumistas das grifes, dos brinquedos eletrônicos, da televisão comercial e do entretenimento. Segundo essa ideologia, fazer parte dos paraísos do consumo seria mais importante que garantir os direitos sociais. Os próprios regimes socialistas, por outro lado, ao negligenciar os direitos políticos dos cidadãos, atrofiaram a noção de cidadania: conceberam o homem como um ser que apenas “consome” a satisfação de seus direitos sociais diversos (saúde, escola, habitação, emprego etc), mas que não tem o direito fundamental de interferir politicamente nos rumos da sociedade. Sob muitos pontos de vista, veremos que a cidadania plena tem sido postergada, adiada, desprezada.

 

Não surpreende que, em nosso tempo, até mesmo as propostas políticas passaram a se apresentar como mercadorias. O discurso político, à direita e à esquerda, passou a ser totalmente organizado segundo as regras da linguagem publicitária. A argumentação política não é racional, não busca convencer o cidadão com argumentos lógicos, próprios dos debates públicos, mas o que vemos é a tentativa (muitas vezes bem sucedida) de seduzir o consumidor com abordagens próprias da vida privada. O consumidor-eleitor é assediado pela propaganda política individualmente (e não coletivamente), ele é seduzido, convidado a comprar com seu voto, isto é, com seus direitos (votos e direitos, nessa perspectiva, equivalem-se, são moedas), aquela determinada proposta, aquele postulante a um cargo eletivo. Votando naquele candidato, ele se sentirá alguém menos arcaico, ou


mais avançado, ou mais vitorioso. (Da mesma forma, quando é abordado por propagandas de refrigerantes, cigarros ou automóveis, o consumidor recebe aqueles bens como benefícios que poderão lhe melhorar o status individual, seja diante dos filhos, seja diante da mulher (ou das mulheres), ou diante de si mesmo.)

 

A política, os direitos e a própria cidadania, transformadas em mercadorias dentro da linguagem publicitária, não são mais a política, os direitos ou a cidadania, mas são versões mercadológicas da política, dos direitos e da cidadania. Essas versões mercadológicas, a exemplo que qualquer outra mercadoria, vendem-se a partir do desejo do consumidor de se tornar melhor que os outros. O consumo toma impulso pela competitividade que a sociedade de consumo estimula entre os indivíduos. Assim como a mensagem política tenta garantir que votar em tal candidato significa ser mais bonito, mais moderno (quem vota no outro candidato é menos bonito, menos moderno), um refrigerante se anuncia a partir da diminuição daquele que não o consome. E assim por diante: uma marca de cigarro é vendida zombando do homem que não fuma aquele cigarro e que, por isso, não consegue seduzir as mulheres; um automóvel se promove à medida que humilha quem anda de carro velho. É essa ordem extensa de fomentos para a competição que organiza a sociedade de consumo — e, a cada dia mais, é ela quem organiza a significação da vida humana. É sintomático que, quando alguém se descreve, quando alguém busca traduzir em palavras sua própria identidade, descreve normalmente as mercadorias de sua preferência. Nas palavras de Canclini, “consumir é tornar mais inteligível um mundo onde o sólido se evapora.”[5]

 

Há muito tempo já deixamos para trás a cultura do ser. Agora, o que vai se formando é uma cultura um grau acima da tão denunciada cultura do ter. Forma-se a cultura do ter o que o outro não tem. Os bens de consumo retiram seu valor de um sentimento de exclusividade: é o cartão de crédito que dá uma identidade especial, sobretudo quando no hotel de Nova York já não pedem o passaporte, mas aquele cartão superespecial; o automóvel é tanto melhor quanto menos mortais possam comprá-lo; a roupa tem uma grife exclusiva. É bom pensar no que significa a palavra “exclusiva”: ela significa exclusão, significa excluir o outro. Na raiz mesma do ato de consumir, dentro desse modelo, há um desejo de excluir o outro.

 

Há, portanto, na lógica da competitividade encorajada (e forjada) pela socidade de consumo, uma visão preconceituosa do outro. Se o desejo de consumir é comum a todos (os homens se identificam entre si à medida que consomem), o exercício do consumo existe para diferenciar os homens uns dos outros dentro da competição individualista e narcisista. O que interessa é ser melhor que o outro. O outro precisa ser necessariamente pior do que eu. Pois se o consumo dá sentido, e um sentido ritualizado, às vidas de todos, é por meio dele que o indivíduo se sente pertencente a um círculo de privilegiados. Nem que sejam os privilegiados por algumas migalhas: um carnê do baú, uma sandália, o retrato de um ídolo afixado do lado de dentro da porta do guarda-roupa.

 

O estímulo a tanta competitividade pode ser fatal. Em nossos dias, o desejo de possuir grifes (de tênis, jeans ou bonés) tem sido a motivação de assaltos e de latrocínios. Jovens que se vêem expulsos do paraíso do consumo, segregados daquela “cidadania” que pode ser comprada pelo consumo, insurgem-se de forma violenta contra os privilegiados. Tomam à força o que o mercado não lhes permite adquirir dentro da lei. Depois do assalto, desfilam realizados, passeando com um par de tênis americano (made in Taiwan). A mesma publicidade que reforça a visão preconceituosa dos que podem consumir contra os que não podem, acentua também a humilhação (ou o ódio) dos que não podem comprar em relação aos que esbanjam dinheiro. É por isso que, num artigo recente, o escritor uruguaio Eduardo Galeano aponta a publicidade nos meios de comunicação, e na TV de modo especial, como uma dos principais causas da violência nas grandes cidades. Ele também


observa que todo o discurso da televisão é perpassado pela visão preconceituosa do outro. O paraíso do consumo é a única perspectiva de salvação:

 

“Automóveis imbatíveis, sabonetes prodigiosos, perfumes excitantes, analgésicos mágicos: através da telinha, o mercado hipnotiza o público consumidor. Mas, às vezes, entre anúncios e anúncios, a televisão cola imagens de fome e de guerra. Esse horrores, essas fatalidades, vêm do ‘outro’ mundo, onde o inferno acontece, e não fazem mais do que destacar o caráter paradisíaco das ofertas da sociedade de consumo. Com freqüência essas imagens vêm da África. A fome africana se exibe como uma catástrofe ‘natural’, e nas guerras africanas não se enfrentam etnias, povos ou religiões, mas ‘tribos’, e não são mais que ‘coisas de negros’.” [6]

 

Os preconceitos traficados pela sociedade de consumo traduzem uma visão de mundo que, se não for recebida criticamente, converte-se na visão de mundo dos próprios consumidores. Ai dos negros africanos, ai dos pobres, ai dos que não podem comprar: eles jamais serão vistos como cidadãos, jamais serão vistos como seres humanos iguais aos seres humanos que usufruem das delícias do consumo.

 

*   *   *

 

Na opinião de Roger Garaudy, o mercado virou uma religião. Ou melhor: ele fala em “monoteísmo do mercado”[7]. É uma idéia a ser levada a sério. Pois se consumir dá sentido ritual a um mundo desencontrado, e se consumir é uma (ou a) via de acesso à cidadania e torna compreensível a cada um o seu estar no mundo, e se não se pensa em outra coisa, estamos mesmo diante de algo bem parecido com uma religião. Tanto assim que podemos sentir os valores dessa religião intermediando (e mediando) as nossas próprias relações pessoais mais próximas. Elas são também relações consumistas. Basta observar. O relacionamento íntimo entre duas ou mais pessoas já não mais é mediado pelo sagrado das religiões convencionais; não é mediado por um código moral ou ético (pois esses valores andam confusos, embaralhados); ele é mediado pela cultura que foi organizada segundo a linguagem da publicidade e os meios de comunicação. O modo de beijar, de conversar, de se apresentar, de sorrir, de amar são disciplinados segundo essa cultura. Somos os consumidores uns dos outros. Somos os consumidores de nós mesmos. Nós nos desejamos e nos repelimos segundo os parâmetros (preconceituosos) que absorvemos através de nossos desejos (realizados ou não) pelos bens de consumo.

 

É então que nós nos consumimos — e nos consumimos — como vitrines recíprocas uns dos outros. O problema é que as relações de consumo nunca podem nos saciar plenamente e é assim que, esgotada a curiosidade, as relações humanas tendem a se dissipar. Podemos usar aqui as palavras de Richard Sennet: “Quando duas pessoas já não têm revelações a fazer, e a troca comercial chegou ao fim, quase sempre o relacionamento se acaba. Esgota-se porque ‘não há mais nada a dizer’, cada um acaba aceitando o outro ‘como um fato dado’. O tédio é a conseqüência lógica da intimidade nessa relação de troca.”[8] Eu não descarto a perspectiva espiritualista adotada por Garaudy porque há, sim, um vazio dentro de cada homem que o consumo é incapaz de preencher. Há um tédio que o consumo produz e não consegue matar.

 


Como eu disse no início, não há como superar o mundo profundamente preconceituoso em que existimos a não ser pela perspectiva dos direitos humanos e da cidadania. É preciso que saibamos pôr a noção de cidadania acima da noção de consumidor, invertendo o que tem sido natural nessa nova ordem globalizada. Mas talvez eu devesse acrescentar que é preciso também deixar de odiar os outros homens, ou seja, deixar de odiar as diferenças. O que se põe para todos é a necessidade de reeducação, e daí o grande valor deste seminário. Para finalizar a minha participação aqui eu gostaria de tomar emprestadas as palavras de Renato da Silva Queiroz, em seu livro Não vi e não gostei o fenômeno do preconceito, dedicado a essa causa essencial da reeducação: “Da mesma forma que aprendemos a atribuir valores negativos às diferenças, podemos se educados para perceber que a variabilidade humana não constitui uma monstruosidade, mas sim a expressão da nossa própria natureza.”[9]

 

Eu penso de novo no exemplo de Euclides da Cunha. As idéias e os modelos teóricos aos quais ele se aferrava eram, sabemos hoje, modelos racistas. Mas o que o movia não era o impulso de excluir o outro e sim de respeitá-lo em sua diferença. O que o moveu foi o  amor pela humanidade. Parece patético dizer isso a essa altura dos tempos, mas o que faz falta neste mundo é um pouco de amor. Penso nisso, experimento uma certeza profunda, que no entanto logo se desfaz. Até o amor a linguagem publicitária absorveu e deteriorou. Hoje o “amor” é um tempero que se adiciona dentro da panela de sopa numa propaganda de televisão. O marido olha para a patroa e ela diz que pôs “amor” na comida dele. E todos nós achamos uma graça danada.

 

Aldeia Global?...

 

P: Daqui a três semanas será que os jornais ainda estarão falando dos sem-terra, ou estarão esperando a notícia de um novo massacre? Os assassinatos no campo não ocorrem o ano todo?

 

Esse é o ponto que eu acho importante. Sábado passado escrevi exatamente sobre isso. De que forma os meios de comunicação, ao não noticiarem a realidade do campo, contribuem para que as situações violentas ocorram ainda mais, porque não há uma preocupação generalizada sobre isso no país. Isso é produto de um preconceito. O que acontece? Na hora de elaborar o telejornal, são trinta e quatro milhões de lares com televisão no Brasil, o jornal de maior circulação tem em média um milhão, que já é uma grande coisa, mas na hora de elaborar um telejornal, a discussão é a discussão do espetáculo, para ficar um produto que atraia a atenção e mexa com o desejo do telespectador, porque o telejornal é um produto de entretenimento também, e sem-terra é feio, é sujo, fala mal, não é romântico, não tem "sex appeal", é um problema. É um problema, por isso, no telejornal. O massacre entrou porque ele tinha imagens espetaculares, acho que todos vocês viram, e o espetáculo no telejornal se confunde com o massacre dos turistas gregos no Egito. As imagens chocantes fazem o telejornal e garantem que o telespectador não vai desligar, não vai mudar o canal, porque aquilo é impressionante. Todos os dias o telejornal tem que ter coisa impressionante. Esse é o problema. Então eu duvido que isso seja assunto importante ao longo do ano, embora essas situações continuem acontecendo. Aquilo é novidade, aquilo vai ser um espetáculo, aquilo vai proporcionar um choque nunca antes experimentado pelos telespectadores? Se a resposta é negativa, é mais difícil que aquilo entre.

 

Isso tem conexão com essa lógica do grande espetáculo, com essa lógica do consumo que nos chega como espetáculo, com a lógica da linguagem publicitaria, enfim  a função é menos


informar e mais emocionar. O que eu quero acreditar é que o escândalo foi muito grande, foi uma coisa horrorosa. Então é muito possível que os dirigentes do país estejam tentando tomar uma providência e que a situação não seja tão ruim como era antes. Mas o lamentável é que foi necessário que vinte pessoas morressem para que isso merecesse atenção do telejornalismo. Existe uma postura preconceituosa em relação a quem é feio, sujo, quem não sabe falar direito na hora de elaborar o telejornal. A gente precisa prestar atenção nisto.

 

P: Por qual razão quando se fala em preconceito muitas vezes o negro é mencionado e não se cita o caso dos nordestinos?

 

Toda a temática dos "Sertões" que a gente estava falando aqui trata disso. Os Sertões é um  livro que descreve o abandono. O Euclides considera que o abandono em que ficou o nordestino durante tanto tempo propiciou o aparecimento dessa subcategoria, que ele chama uma subcategoria étnica, que fez, que produziu o sertanejo, que é antes de tudo o forte. E ele fala muito do nordestino. Hoje nós temos o problema de que o abandono continua, é claro que eu não compartilho das idéias racistas que existem no livro, mas o abandono continua, e continua mais intenso nas grandes cidades, porque hoje nós vemos a todo momento a rejeição aos nordestinos nas grandes cidades. Eu acho que pelo menos hoje, aqui, nós tocamos um pouco nesse assunto, pelo menos um pouco. O problema da rejeição ao nordestino é um problema candente hoje na nossa democracia e nas grandes cidades, não tem dúvida.

 

P: Como reverter a situação propícia ao preconceito?

 

A situação não é própria do nosso país, mas ela tem muito a ver com a globalização e a maneira como a globalização chega excluindo, chega dizimando culturas, chega dizimando o diferente, porque ela precisa de canais próprios e canais universais. Essa resposta binária do Você Decide é a própria linguagem dos computadores da Internet, e não é por acaso que essa linguagem binária é a linguagem dos computadores, então para escapar disso e para procurar refletir criticamente sobre isso, e mais ou menos se proteger contra os horrores que isso tem produzido, eu acho importante sair de cena, fazer um exercício que não tem nada a ver com a sociedade de consumo e com a linguagem dos meios de comunicação de massa, e procurar disseminar, procurar difundir o espírito crítico. Por isso eu queria cumprimentar muito, e acho muito, muito importante isso que está acontecendo aqui, talvez seja essa a atividade mais importante daqueles que hoje se preocupam com os direitos humanos,  discutir com as pessoas, demonstrar, fazer com que elas olhem criticamente as coisas.  O que eu queria dizer é viva, que legal, parabéns, acho que é por aí que e gente vai conseguir alguma coisa, muito obrigado pelo convite, espero ter contribuído com alguma coisa aí. É isso.

 

Belisário: Duas palavras que entendo pertinentes neste momento final dos debates. A primeira diz respeito ao valor solidariedade que, entendemos todos, deve informar uma nova ética. Essa nova dimensão da solidariedade, antes que alternativa jurídica, se impõe como uma nova opção ético-política. É uma luta contra o individualismo, contra o "jeitinho", contra a "lei de Gerson". É uma luta que não perde de vista a utopia, mas inicia no presente uma ação transformadora. É um processo educativo individual e coletivo. No entanto, é preciso dizer uma coisa e viver de acordo com o que se diz. Um levantamento feito em Pernambuco, por entidades de direitos humanos, mostra que das cinqüenta histórias infantis, que contamos às nossas crianças, quarenta e nove apontam saídas individuais e apenas uma apresenta saída coletiva. Aí há uma pista reveladora para reflexão sobre a nossa coerência do dia a dia.

 

Em segundo lugar, aproveitando as recomendações de livros e filmes muito bem lançados pelos conferencistas, arrisco uma sugestão. É o filme "The thin blue line", a estreita linha azul, literalmente, numa referência à identificação da viatura da polícia americana. Está à disposição nas locadoras de vídeo. Morto um oficial de polícia, a polícia americana, movida por preconceito, "escolheu" o suspeito entre as pessoas que estavam próximas. O filme conta a história do processo e da condenação à morte sofrido por um migrante hispânico, notória vítima de discriminação. Anos depois, em atividade da Anistia Internacional, encontrei seu diretor. Ele me disse algo lapidar sobre o sistema judiciário americano: "Nos Estados Unidos, quando não há pena de morte requerida, a Justiça decide se o réu é culpado. Quando o caso envolve a pena de morte, decide-se se o réu deve ou não morrer...".

 

Com mais esta pista de reflexão sobre a questão do preconceito, agradeço a presença de todos convidando-os para a próxima sessão deste evento.

 



[1]  Richard Sennet, O declínio do homem público: as tiranias da intimidade, Companhia das Letras, 1995, página 414.

[2]  Folha de S. Paulo, 24 de março de 1996, reportagem de Mauricio Stycer. Um grupo de franceses da empresa CNT visita a favela conduzido pela empresa Jeep Tour.

[3]  Jürgen Habermas, em Mudança estrutural na esfera pública, Editora Tempo Brasileiro, 1984, página 251.

[4] Néstor García Canclini, Consumidores e Cidadãos, conflitos multiculturais da globalização, Editora da UFRJ, 1995, página 30.

[5] Canclini, página 59.

[6] Artigo “A escola do crime”, de Eduardo Galeano, na revista Chasqui (Revista Latinoamericana de Comunicación), Quito, Equador, número 53, de março de 1996, página 56.

 

[7] Roger Garaudy, Rumo a uma guerra santa?, Jorge Zahar editor, Rio de Janeiro, 1995, página 159.

[8] Sennet, página 23.

[9] Renato da Silva Queiroz, Não vi e não gostei o fenômeno do preconceito, Editora Moderna, 1996, página 101.

 

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