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 Marilena
                        Chaui Professora
                        Universitária e autora de livros de filosofia
                         
                        
                        
                        
                         Sartre
                        disse, certa vez, que não conhecia coisa mais triste do
                        que os provérbios. De fato, os provérbios constituem a
                        chamada cultura popular ou o senso-comum de uma
                        sociedade, por meio dos quais ela exprime, de maneira
                        extremamente sintética, suas opiniões sobre a vida, o
                        mundo, os seres humanos, as divindades, o bem e o mal, o
                        justo e o injusto, a verdade e a ilusão. E, essas opiniões
                        são pessimistas, ou melhor, moralistas:
                         
                        
                         . condenam a ambiçãoQuem tudo quer, tudo perde
 Mais vale um pássaro na mão do que dois voando
 
 . condenam o individualismo
 Uma andorinha não faz verão
 A união faz a força
 
 . desconfiam dos outros
 Dize-me com quem andas e te direi quem és
 
 . elogiam a paciência
 Água mole em pedra dura, tanto bate até que fura
 Devagar se vai ao longe
 
 . condenam a imprevidência
 Quem semeia ventos colhe tempestades
 Em casa de ferreiro, espeto de pau
 
 . elogiam a moderação
 Nem tanto ao mar nem tanto à terra
 
 . desconfiam das aparências
 Nem tudo o que reluz é ouro
 
 . desconfiam da linguagem
 Quem conta um conto dez conta
 Falar é prata, calar é ouro
 Em boca fechada não entra mosca
 
 . condenam a preguiça
 Deus ajuda a quem cedo madruga
 Ajuda-te e o céu te ajudará
 
 Os provérbios
                        exprimem o senso-comum social e são preconceitos
                        cristalizados sob a forma de prudência ou de virtude
                        moral.
                         
                        
                         O que é o
                        senso-comum? Um conjunto de crenças, valores, saberes e
                        atitudes que julgamos naturais porque, transmitidos de
                        geração a geração, sem questionamentos, nos dizem
                        como são e o que valem as coisas e os seres humanos,
                        como devemos avaliá-los e julgá-los. O senso-comum é
                        a realidade como transparência: nele tudo está
                        explicado e em seu devido lugar.
                         
                        
                         As características
                        mais marcantes do senso-comum podem ser resumidas às
                        seguintes:
                         
                        
                         1.
                        subjetivismo: exprime sentimentos e opiniões
                        individuais e de grupos, variando com as condições em
                        que vivem, mas tomadas como se fossem universais, isto
                        é, verdadeiras em todos os tempos e lugares
                         
                        
                         2.
                        ajuizador: coisas, pessoas, situações são
                        imediatamente avaliados e julgados em conformidade com o
                        modo que cada um as percebe ou como o grupo ou a classe
                        social as percebe
                         
                        
                         3. heterogêneo:
                        diferencia coisas, fatos e pessoas por percebê-los como
                        diversos entre si (por exemplo, julgamos diferente um
                        corpo que cai e uma pluma que flutua no ar), mas sem
                        indagar se são realmente diferentes ou se é apenas a
                        aparência que os diferencia
                         
                        
                         4.
                        individualizador: isto é, cada coisa, fato ou pessoa
                        aparece como algo isolado e autônomo, como se não
                        tivesse história, passado, um contexto no qual faz
                        sentido; por isso, cada juízo do senso-comum é sempre
                        um absoluto: “é isto”, “é assim”
                         
                        
                         5.
                        generalizador: como conseqüência da maneira como
                        separa e junta coisas, fatos, pessoas, tende a reunir
                        numa só idéia ou numa única opinião coisas, pessoas
                        e fatos julgados semelhantes, sem indagar se a semelhança
                        não seria aparente. Assim, diferencia sem indagar sobre
                        a diferença e reúne sem indagar sobre a semelhança
                         
                        
                         6.
                        causalista: para organizar o que separou ou o que
                        reuniu, tende a estabelecer relações de causa e efeito
                        entre as coisas, as pessoas ou os fatos  - aqui, os provérbios são a melhor expressão, pois neles
                        aparece justamente a noção de causalidade: onde há
                        fumaça há fogo, quem tudo quer tudo perde, dize-me com
                        quem andas e te direi quem és, quem sai na chuva é
                        para se molhar.
                         
                        
                         O
                        senso-comum é a crença jamais questionada de que a
                        realidade existe tal como é: as cores, os sons, os
                        sabores existem tais como os percebemos, o tempo passa e
                        pode ser medido por relógios e calendários, o espaço
                        é feito de lugares (alto, baixo, perto, longe, frente,
                        atrás) e pode ser percorrido e medido em distâncias, a
                        família é uma realidade natural criada pela Natureza
                        para a sobrevivência da espécie, a raça é uma
                        realidade natural produzida pela diferença de climas e
                        de alimentação, fazendo com que haja raças superiores
                        e inferiores, a mulher é um ser sensível, intuitivo e
                        frágil, destinado à maternidade e à casa, o homem é
                        um ser racional, forte, destinado ao trabalho e à vida
                        pública, o trabalho honesto é uma virtude, mas a
                        preguiça e o roubo são imorais e crimes, os ricos são
                        imorais e infelizes, mas os pobres são virtuosos e
                        felizes com o pouco que lhes foi dado ( quem tudo
                        quer tudo perde), os instruídos são competentes e
                        devem dirigir os demais no trabalho e na política, os não-instruídos
                        são incompetentes e devem ser dirigidos, só é pobre
                        quem quer, pois há trabalho honesto para todo mundo,
                        mas os ricos são espertalhões e sem vergonha, por isso
                        dize-me com quem andas e te direi quem és.  Quando
                        o senso-comum se cristaliza como modo de pensar e de
                        sentir de uma sociedade, forma o sistema dos
                        preconceitos.
                         
                        
 Preconceito,
                        como a palavra indica, é uma idéia anterior à formação
                        de um conceito. O preconceito é a idéia preconcebida,
                        anterior portanto, ao trabalho de concepção ou
                        conceitualização realizado pelo pensamento. As quatro
                        marcas mais significativas do preconceito são:
                         
                        
                         1. não se
                        surpreende nem se admira com a regularidade, a constância
                        e a repetição das coisas, nem, ao contrário, com a
                        diferença e singularidade delas; admira-se apenas com
                        aquilo que é julgado único, extraordinário, novo e
                        que, imediatamente, é inserido no quadro de idéias e
                        juízos preconcebidos, encarregados de dar sentido ao
                        nunca visto, nunca dito ou nunca pensado. O preconceito
                        exige que tudo seja familiar, próximo, compreensível
                        imediatamente e transparente, isto é, inteiramente
                        penetrado por nossas opiniões, e indubitável. Não
                        tolera o complexo, o opaco, o ainda não compreendido
                         
                        
                         2. exprime
                        sentimentos de medo, angústia, insegurança diante do
                        desconhecido e o conjura (ou esconjura) transformando
                        tais sentimentos em idéias certas sobre as coisas, os
                        fatos e as pessoas, criando os estereótipos, isto é,
                        modelos gerais de coisas, fatos e pessoas por meio dos
                        quais julga tudo quanto ainda não havia visto
                         
                        
                         3. propenso
                        a admirar o que não compreende, mas aterrorizando-se
                        com isso, e, portanto, propenso a reduzir o desconhecido
                        ao já conhecido e indubitável, o preconceito é o obstáculo
                        maior ao conhecimento e à transformação. Ignorante, o
                        preconceito é conservador. Não existe nada mais
                        conservador do que o preconceito de ser moderno, como
                        veremos mais adiante.
                         
                        
                         4. o
                        preconceito é intrinsecamente contraditório: ama o
                        velho e deseja o novo, confia nas aparências mas teme
                        que tudo o que reluz não seja ouro, elogia a
                        honestidade mas inveja a riqueza, teme a sexualidade mas
                        deseja a pornografia, afirma a igualdade entre os
                        humanos mas é racista e sexista, desconfia das artes
                        mas não cessa de consumi-las, desconfia da política
                        mas não cessa de repeti-la.
                         
                        
                         Porque o
                        preconceito julga-se senhor de uma realidade
                        transparente que, na verdade é opaca e 
                        oculta medos e angústias, dúvidas e incertezas,
                        a filosofia sempre lançou-se contra ele, considerando-o
                        o obstáculo maior a todo pensamento e a toda ação ética
                        e política. Assim, Platão combateu as sombras da opinião
                        que obscurecem a luz das idéias verdadeiras; Cícero e
                        Descartes afirmaram que nascemos com a luz natural da
                        razão que logo é quase apagada pelas amas de leite,
                        pelos preceptores, professores e pelos livros; Kant
                        dissera que o lema da Ilustração ou do Iluminismo
                        deveria ser : “ousa saber!”, a vitória da razão
                        esclarecida contra a ignorância dos preconceitos. De
                        modo geral, os filósofos sempre consideraram as paixões
                        a causa principal dos preconceitos, mas foi o filósofo
                        Espinosa quem melhor determinou essa causa e descreveu
                        seus efeitos. 
                         
                        
                         Espinosa
                        localizou a origem dos preconceitos em duas paixões: o
                        medo e a esperança 
                        - medo de que males ocorram e bens não aconteçam,
                        esperança de que males não ocorram e bens aconteçam.
                        Por que o medo e a esperança? Por que, de todas as
                        nossas paixões, são essas duas as que mais
                        profundamente exprimem nosso sentimento de desamparo
                        diante do tempo e do mundo, nossa impossibilidade de
                        controlar o curso dos acontecimentos e de dominar fatos
                        e pessoas. A angústia diante do imprevisível e do
                        inesperado, escreve Espinosa, leva os homens a
                        desconfiar da razão e a confiar na superstição: começam
                        acreditando em presságios e horóscopos, inventam
                        deuses cuja vontade caprichosa rege arbitrariamente o
                        curso do mundo, passam a adorar um único Deus que
                        julgam ser legislador e bom monarca do universo,
                        imaginam que os governantes são os representantes dessa
                        divindade e se submetem ao poder e à vontade dos
                        dominantes porque acreditam ser esta a vontade do deus
                        que, vendo-os submissos e obedientes aos poderes da
                        terra escolhidos por ele, beneficiará aos homens,
                        diminuindo-lhes o medo e alimentado-lhes a esperança, 
                        se não nesta
                        vida, pelo menos na outra. Dessa maneira, Espinosa
                        articula preconceito e dominação sócio-política. Os
                        homens aceitam servir para serem servidos. E combaterão
                        até à morte na defesa das opiniões dos dominantes,
                        passando ao ferro e ao fogo todos os que ousarem
                        contradizê-las em nome de um conhecimento racional
                        verdadeiro. Eles o fazem porque as opiniões dos
                        dominantes formam um sistema explicativo para o mundo e
                        as ações, livrando-os dos medos e dando-lhes esperanças
                        de recompensas para o bons e castigos para os maus.
                        Assim, o preconceito, que se origina em cada um de nós
                        sob a forma de paixões, cristaliza-se em senso-comum
                        social e em prática política. O preconceito é, pois,
                        uma das armas mais potentes para o exercício da dominação,
                        pois o dominado a deseja interiormente e não sabe viver
                        sem ela porque ela se tornou a forma da segurança num
                        mundo, enfim, tornado transparente. Tudo em seu devido
                        lugar, com o devido respeito.
                         
                        
                         A esse
                        movimento de passagem do preconceito a senso-comum
                        social e dominação política, Marx deu o nome de
                        ideologia, indo buscar sua causa mais abaixo das paixões
                        do medo e da esperança, nas formas assumidas pelas
                        condições materiais de existência dos humanos, isto
                        é, na divisão social do trabalho e na divisão social
                        das classes. A ideologia é a maneira como os interesses
                        dos dominantes organiza a realidade de maneira a tornar
                        naturais e aceitáveis naturalmente a exploração econômica
                        e a dominação política. Justamente porque a ideologia
                        é o ponto de vista dos dominantes para a sociedade
                        inteira, é que o preconceito só pode ser contraditório,
                        como dissemos anteriormente. De fato, as pessoas vivem
                        em suas classes sociais e estas, pelo seu modo de se
                        relacionar com a realidade social, determinam idéias,
                        opiniões, sentimentos específicos dessa classe; como,
                        porém, as idéias, opiniões e sentimentos dominantes
                        da sociedade são os de sua classe dominante,
                        transmitidos por meio da educação e dos meios de
                        informação e comunicação, é evidente que todos
                        aceitam o ponto de vista dominante, entrando em contradição
                        com as idéias e valores de sua própria classe social 
                        -- a pluralidade de preconceitos das diferentes
                        classes sociais é substituida por um único
                        preconceito, isto é, por uma única ideologia, a da
                        classe dominante.
                         
                        
                         Eu
                        gostaria, agora, de exemplificar o modo de operação do
                        preconceito-ideologia tomando suas opiniões fortemente
                        presentes na sociedade brasileira contemporânea: a idéia
                        que nossa sociedade não é violenta e a idéia 
                        que estamos, finalmente, nos tornando modernos.
                         
                        
                         A violência
                        do preconceito da não-violência
                         
                        
                         Um dos
                        preconceitos mais arraigados em nossa sociedade é o de
                        que “o povo brasileiro é pacífico e não-violento
                        por natureza”, preconceito cuja origem é antiquíssima,
                        datando da época da descoberta da América, quando os
                        descobridores julgaram haver encontrado o Paraíso
                        Terrestre e descreveram as novas terras como primavera
                        eterna e habitadas por homens e mulheres em estado de
                        inocência. É dessa “Visão do Paraíso” que provém
                        a imagem do Brasil como “país abençoado por Deus”
                        e do povo brasileiro como cordial, generoso, pacífico,
                        sem preconceitos de classe, raça e credo.
                         
                        
                         Diante
                        dessa imagem, como encarar a violência real existente
                        no país? Exatamente não a encarando, mas absorvendo-a
                        no preconceito da não-violência. Para isso, existem
                        tres mecanismos diretos e tres procedimentos indiretos.
                         
                        
                         Mecanismos
                        diretos:
                         
                        
                         1.
                        mecanismo da exclusão: afirma-se que a nação
                        brasileira é não-violenta e que os brasileiros não são
                        violentos, portanto, se houver violência, é praticada
                        por gente que não faz parte da nação, mesmo que
                        nascida e registrada no Brasil. Em outras palavras, o
                        preconceito produz a divisão entre “nós,
                        brasileiros” e “eles, os violentos”, excluindo
                        esses últimos, de direito, da nação pacífica;
                         
 2.
                        mecanismo da distinção entre o essencial e o
                        acidental: por essência ou por natureza o povo
                        brasileiro é não-violento, portanto, a violência é
                        algo acidental, ou como se diz muito exatamente, é
                        “um surto”, “uma onda”, “uma epidemia”. A
                        violência é um acontecimento episódico na superfície
                        do social que não afeta sua essência não-violenta;
                         
                        
                         3.
                        mecanismo das máscaras: como o preconceito da não-violência
                        opera com a separação entre o “nós” e o
                        “eles”, cada um do “nós” pode, acidentalmente,
                        estar entre “eles”. Como toda violência está
                        referida e reduzida a um aspecto episódico visível, e
                        nunca às estruturas invisíveis da sociedade
                        brasileira, todas essas manifestações episódicas são
                        consideradas homogêneas, isto é, são generalizadas
                        pelo preconceito, de maneira que são considerados
                        iguais ou de mesmo sentido o quebra-quebra de tres e ônibus
                        e um linchamento; o medo dos operários de serem mortos
                        nas ruas e o executivo da multinacional que cerca a casa
                        com fios elétricos, guardas, cães e aparelhos eletrônicos;
                        a dissolução de uma passeata com gás lacrimogêneo e
                        motoqueiros fazendo “cavalo de pau” numa avenida;
                        levas de flagelados pela seca buscando alimento nas
                        cidades e bandos de justiceiros pagos para eliminar
                        supostos bandidos; a prostituição e escravização de
                        meninas  e a
                        ação policial exterminando crianças de rua 
                        - em todos esses casos, “nós, não
                        violentos” usamos a violência para combater “eles,
                        os violentos”, mas o fazemos porque a violência é
                        passageira. Além dessa primeira máscara, existem
                        outras mais sutis: o paternalismo branco que mascara a
                        discriminação racial, o elogio da fragilidade feminina
                        para mascarar o machismo, a afirmação da caráter 
                        natural e sagrado da família para mascarar
                        torturas de crianças, estupros das filhas, surras nas
                        esposas, violência física e psíquica contra os
                        membros da família tidos como “desviantes” sexuais.
                        E, finalmente, aquelas máscaras são o preconceito em
                        seu estado puro: a favelada, mãe irresponsável que
                        gera a criança de rua naturalmente delinqüente e
                        perversa; a menina estuprada porque só há estupro se
                        houver desejo dele; o migrante nordestino que só serve
                        para destruir a ordem, beleza e limpeza das cidades; o
                        sindicalista, que antes era o subversivo e hoje o
                        corporatista; o desempregado que não é senão um
                        preguiçoso. Enfim, todas formas estruturais de violência
                        são mascaradas pela atribuição da culpa à vítima.
                         
                        
                         A esse
                        procedimentos, vem acrescentar os mecanismos indiretos
                        de reforço ao preconceito da não-violência:
                         
                        
                         1.
                        mecanismo jurídico: a violência fica circunscrita ao
                        crime e a um tipo fundamental de crime, aquele contra a
                        propriedade: roubo, latrocínio e homicídio entendido
                        como crime contra propriedade da vida. De modo geral, a
                        violência fica circunscrita às formas mais visíveis
                        da delinqüência, como é o caso do tráfico de drogas.
                        Mas porque se refere primordialmente ao ataque à
                        propriedade privada, as ocupações de terra pelos
                        sem-terra recebe o nome de invasão e é tratada pelas
                        “forças da ordem”. Assim, o mecanismo jurídico
                        localiza a violência em duas personagens: o bandido e o
                        pobre. Por esse motivo, toda política de Direitos
                        Humanos no Brasil é vista como defesa do bandido contra
                        a vítima e do delinqüente pobre contra as pessoas
                        honestas. 2.
                        mecanismo informativo: a violência é tratada como episódio
                        de massa e recebe o nome de “chacina” e
                        “massacre” porque o número de envolvidos é grande
                        e o de mortos e feridos também. O mecanismo informativo
                        localiza a violência como episódio sangrento na superfície
                        do social e o atribui a abusos de autoridade por parte
                        das “forças da ordem”, sem que nunca se examine a
                        estrutura social que trouxe à tona, sob a forma do episódio
                        sangrento, as causas sociais invisíveis que o explicam.
                         
                        
                         3.
                        mecanismo sociológico: a violência é explicada como
                        um caso de anomia social (anomia, palavra grega que
                        significa perda do poder da norma e da lei, ausência de
                        norma social respeitada por todos). O sociólogo afirma
                        que a sociedade é um conjunto harmônico de ações e
                        funções integradas pelas normas e regras (que governam
                        os costumes) e pelas leis (que arbitram valores éticos e políticos).
                        A anomia é vista como um momento acidental no qual as
                        antigas normas e leis perdem a força integradora e
                        deixam vir à tona os conflitos sociais e políticos, as
                        contradições econômicas e políticas. Esses conflitos
                        e essas contradições não são considerados
                        constitutivos do próprio social, mas uma anomalia que
                        se expressa como violência passageira, até que novas
                        normas e leis cumpram a função integradora e
                        harmonizadora. Dessa maneira, o preconceito da não-violência,
                        falando a linguagem da sociologia, diz que a violência
                        é o momento de relação entre o arcaico e o moderno,
                        cujo conflito será superado por 
                        “as reformas” que modernizem os costumes
                        sociais e políticos.
                         
                        
                         O
                        preconceito do moderno
                         
                        
                         Vimos que
                        uma das marcas do preconceito é a generalização e
                        homogeneização de coisas, fatos, acontecimentos e
                        pessoas diferentes, por vezes opostos e contraditórios.
                        Vimos também que é próprio do preconceito
                        “amarrar” as contradições, as aparências e o
                        invisível, em sínteses imediatamente compreensíveis,
                        como é o caso dos provérbios. Mas esse tipo de síntese
                        também pode ser feita por palavras, que, como dizem os
                        franceses, são “palavras valises”, isto é, servem
                        para dizer tudo porque não dizem absolutamente nada. É
                        o caso do uso, atualmente corrente no Brasil, da palavra
                        mágica “Moderno”, empregada no lugar de uma série
                        imensa de problemas e questões que não são discutidos
                        porque se dá por estabelecido que a mera menção da
                        palavra “moderno” as explica e determina a maneira
                        de solucioná-los. Essa palavra, cujo uso é antigo, mas
                        cujo significado político apareceu no século XVIII, na
                        luta da Revolução Burguesa contra o Antigo Regime, é,
                        hoje, no Brasil, empregada para reunir coisas que pouco
                        tem em comum, senão o fato de serem ditas
                        “modernas”: aviltamento de salários, privatização
                        de serviços públicos, enfraquecimento do movimento
                        sindical, eliminação de direitos sociais mínimos
                        tidos como privilégios, justificar a eliminação dos
                        chamados encargos sociais para diminuir o desemprego
                        atribuindo a eles a culpa pelo desemprego.
                         
                        
                          No
                        entanto, sob essa aparente miscelânea, a palavra
                        “moderno” esconde o sentido principal no qual reside
                        verdadeiramente o preconceito, qual seja, a crença
                        quase religiosa na justiça e racionalidade do mercado
                        capitalista. Em outras palavras, a idéia liberal, velha
                        de 200 anos, de que a cidadania se define pela liberdade
                        de mercado e não pelos direitos sociais e políticos.
                        Esse preconceito, que, afinal,  data do século XVIII, explica porque, em nome da
                        modernidade, entregam-se recursos estatais a banqueiros
                        corruptos e falidos e aos latifundiários e usineiros,
                        ao mesmo tempo em que a violência contra os sem-terra
                        pode ser qualificada de conflito entre o arcaico e o
                        moderno, o arcaico, evidentemente, sendo a reforma agrária,
                        e o moderno os banqueiros, 
                        latifundiários e usineiros. Ou seja, a
                        modernidade política é pensada como afastamento dos
                        conflitos distributivos do campo político, mas, no caso
                        brasileiro, como inclusão, neste campo, do retorno ao
                        capital daquilo que não foi realmente produzido pelo
                        capital. Assim, o que impressiona, na versão brasileira
                        do preconceito do moderno é a maneira como justifica o
                        apoio às práticas mais retrógradas e violentas de
                        nossa sociedade. Como se vê, o preconceito do moderno não
                        é senão a forma mais nova do conservadorismo. Ou, como
                        dissera Lampedusa em “O Leopardo”, é preciso mudar
                        para que tudo fique como está.
                         
                        
                         Percepção
                        Aguda
                         
                        
                        
                         P:
                        Qual deveria ser o papel das chamadas pessoas
                        esclarecidas no combate ao moralismo do senso comum?
                         
                        
 Eu
                        acho que há vários caminhos. Eu acho que há um
                        caminho como esse, que é o da multiplicação. Simpósios
                        como esse tem a função de serem multiplicadores, quer
                        dizer, a expectativa é que cada um que participa possa
                        multiplicar aquilo de que ele participa. Então essa é
                        uma via. 
                         
                        
                         Outra
                        é a atuação no interior dos movimentos sociais. Uma
                        outra é a atuação no interior dos partidos políticos.
                        Tem que se agir lá dentro. Mas a via que evidentemente
                        eu considero prioritária é a educação. Tem que mexer
                        na escola. É lá que você tem que mexer. Então você
                        tem que mexer na formação dos professores de primeiro,
                        segundo e terceiro grau. Você tem que mexer na produção
                        do material didático, e você tem que mexer na relação
                        dos alunos e das famílias com uma educação
                        efetivamente voltada para a cidadania e para a
                        liberdade. Eu acho que se não se mexer no sistema
                        educacional brasileiro, você vai rodar, rodar, rodar em
                        círculos. Esse sistema educacional tem que estar
                        diretamente vinculado, em função das condições
                        atuais, à uma mexida muito grande nas telecomunicações.
                        Você tem que operar nos dois campos: tem que operar com
                        a telecomunicação e com o sistema educacional. E a
                        forma ideal será quando você puder fazer isso, operar
                        de modo articulado, através da escola e através das
                        telecomunicações. 
                        
                          
                        
                         Para
                        você atingir um país, da proporção como é o nosso,
                        uma sociedade numerosa como a nossa, e com os problemas
                        que ela tem, você tem que atuar na base, portanto você
                        tem que atuar na escola e você tem que atuar na maneira
                        como a informação circula e a comunicação se
                        realiza, e portanto no sistema de telecomunicações.
                        Sem uma mudança nas leis da telecomunicação, sem uma
                        mudança na forma de fazer televisão e rádio no
                        Brasil, e sem na outra ponta, uma reforma da educação
                        para valer, você não mexe em nenhum preconceito.
                        Nenhum, nenhum, nenhum...
                        
                          
                        
                         P:
                        O que legitima o privilégio daqueles que ficam em
                        prisão especial, simplesmente por possuir um diploma
                        universitário? Esta é uma espécie de preconceito?
                        
                          
                        
                         Isso
                        é não uma espécie, é preconceito em estado puro e
                        está ligado aqui ao que na minha exposição eu chamei
                        a discriminação entre os instruídos e os não-instruídos,
                        porque é exatamente uma discriminação de classe. No
                        Brasil é uma discriminação de classe, na medida em
                        que a escolaridade no Brasil é privilégio de classe.
                        Então é evidente que a idéia da prisão especial para
                        os diplomados é uma aberração, em qualquer parte do
                        universo, menos aqui. Por que que aqui é natural?
                        Porque aqui todo mundo é doutor, aqui é a terra do
                        “Você sabe com quem você está falando?”. Então
                        se é normal eu dizer" você sabe com quem está
                        falando?", é claro que se eu for presa, eu vou
                        para uma cela especial, eu sou doutora, economicamente,
                        academicamente, eu tenho todos, mas todos os requisitos
                        para não ser tratada como uma pessoa comum. 
                        
                          
                        
                         Eu
                        tenho um amigo norte-americano que diz o seguinte:
                        “quando você está numa briga para valer nos Estados
                        Unidos, eu pergunto para o outro: "quem você pensa
                        que você é?" Ou seja, nós somos iguais, nós
                        somos cidadãos, temos os mesmos direitos, portanto você
                        está fazendo isso que você está falando, portanto
                        quem você pensa que você é? E nós não, nós somos
                        “você sabe quem eu sou?” Quer dizer, é uma coisa
                        autoritária, discriminadora e é interessante.
                        Interessante porque nos lugares onde você devia ter
                        alguns direitos garantidos por percepção da diferença,
                        lá você não tem. Por exemplo, lugar para gestante no
                        ônibus, no metrô, lugar para os idosos, todas as
                        formas de garantir aos deficientes físicos o acesso à
                        qualquer lugar, e a gente nem percebe. Nem percebe o
                        jeito que as escadas são, do jeito que os elevadores são,
                        do jeito que as guias das calçadas são, e do jeito que
                        é o degrau do ônibus. Não há deficiente físico no
                        Brasil que possa ser uma pessoa válida, quando os
                        deficientes físicos são válidos no mundo inteiro. E a
                        gente nem percebe. Então do mesmo modo que não há
                        nenhuma garantia de direito ao deficiente físico, há o
                        privilégio para o prisioneiro universitário. 
                        
                          
                        
                         
 Eu
                        costumo dizer que uma das dificuldades maiores para que
                        um dia se institua uma democracia no Brasil está no
                        fato de que a divisão social no Brasil passa por um
                        lugar que é anterior a formulação mesma da idéia de
                        direito ou de direitos. Você tem num extremo a carência
                        e no outro extremo o privilégio. A marca da carência
                        é que ela é sempre específica. Eu tenho carência de
                        escola, o outro tem carência de condução, outro tem
                        carência de hospital, outro tem outras carências. É
                        quase impossível transformar uma carência num
                        interesse comum, generalizá-la num interesse comum, e
                        é impossível fazer do privilégio um interesse comum.
                        Ora o que é um direito? Um direito é algo que tem
                        alcance universal. Se eu não universalizo alguma coisa,
                        ela não é um direito. Ora no Brasil nós não
                        atingimos o estágio ainda nem de generalizar carências
                        para que elas sejam interesse comuns, que elas possam
                        depois se universalizar em direitos. E também não
                        quebramos os privilégios, para revelá-los como privilégios
                        e portanto destruí-los como tais. 
                        
                          
                        
                         Se
                        a democracia é a cidadania definida por direitos, não
                        há democracia no país, porque o que você tem é de um
                        lado a carência, e do outro lado o privilégio, aí está
                        a esfera dos direitos que não conseguem se constituir.
                        Não é uma brincadeira de mau gosto esse ataque aos
                        poucos direitos sociais que o estado brasileiro
                        garantia? De um estado que nunca chegou a ser um estado
                        do bem-estar social, porque para ser um estado do
                        bem-estar social teria sido preciso existência de
                        garantia de direitos. Então eu diria que o caso do
                        universitário com prisão especial equivale ao caso do
                        deficiente físico sem nenhuma possibilidade de realizar
                        os seus direitos, por exemplo. São os dois
                        contrapontos, a ausência de direitos e a presença de
                        privilégios. Esse é o país da não-violência?
                        
                          
                        
                         P:
                        Se o tema é preconceito, então eu quero saber qual
                        o motivo que determina o racismo? Por que existe tanto
                        preconceito racial?
                        
                          
                        
                         No
                        caso do Brasil o racismo é uma ideologia nascida no século
                        dezenove. É a partir do século dezenove que é
                        elaborada com pretensões científicas a noção de raça.
                        Essa elaboração está ligada à consolidação do Império
                        Britânico. É na hora que o Império Britânico tem que
                        justificar ideologicamente o seu exercício imperialista
                        que essa teoria é elaborada. Ela coincide com o
                        instante também, em que você tem a abolição da
                        escravatura nos Estados Unidos, e logo depois, em outras
                        partes das Américas que significa, no caso específico,
                        a entrada dos negros no mercado capitalista de trabalho.
                        Então seja do lado da justificativa do Império Britânico,
                        para ter o domínio sobre os hindus, sobre os africanos,
                        sobre os asiáticos, enfim, todo o Império Britânico,
                        a justificativa do Império é dada por seu caráter
                        "civilizatório", na medida que a raça branca
                        ocidental é superior às outras, e vai civilizá-las. E
                        no caso das Américas, a ideologia racista,
                        cientificamente elaborada, está ligada à maneira de
                        impedir à entrada dos negros no mercado de trabalho e o
                        uso de mão-de-obra exclusivamente branca. 
                        
                          
                        
                         No
                        caso do Brasil está ligada à todo processo de imigração.
                        Então, você não tem a origem do preconceito, sem
                        condições sociais e condições materiais determinando
                        a origem dele. O que as condições fazem é que elas se
                        apresentam para os sujeitos sociais, sob a forma de
                        sentimentos, sob a forma de paixões, de medos, de
                        inseguranças, sob a forma de dominação e isto é que
                        é elaborado para que haja uma explicação e uma
                        justificativa. Então a explicação é o preconceito, e
                        a justificativa é a ideologia. Você nunca tem um
                        preconceito sem causa, e a causa, via de regra, é uma
                        causa econômica e social, ou uma causa social e política
                        
                          
                        
                         P:
                        Estereótipo não é preconceito, ele é conhecido,
                        sabido, manipulado. Então o preconceito é montado em
                        cima de uma conhecida e bem conhecida pseudo-verdade.
                        Então é um conceito, e não um pré-conceito. Está
                        certo ou errado?
                        
                          
                        
                         Olha,
                        não é um conceito. Não é um conceito pelo seguinte:
                        um conceito é uma elaboração teórica, racional, a
                        partir de um conjunto de perguntas, eu vou dizer algumas
                        delas, um certo 
                        
                         
 conjunto
                        de perguntas, e o estabelecimento de um conjunto de critérios
                        para avaliar a racionalidade, a coerência, a verdade da
                        resposta encontrada à pergunta, e essa resposta é que
                        é o conceito. Deixa eu dar um bom exemplo. Vamos pegar
                        um exemplo simplérrimo, para não avançar muito na
                        nossa hora. Eu vejo o Sol, menor do que a Terra, e eu
                        vejo o Sol todos os dias fazer um movimento de leste
                        para oeste. Dessa visão, eu elaboro um sistema, um
                        sistema explicativo do mundo chamado Sistema Geocêntrico.
                        Qual é o meu critério? O meu critério é o critério
                        da minha percepção. Na minha percepção a Terra está
                        imóvel, o Sol se move e como eu vejo que ele faz um
                        arco no céu, eu deduzo que ele faz um movimento
                        circular. Vejo também toda noite, constelações,
                        estrelas, astros, fazendo movimentos e eu digo: estão
                        todos, cada um num círculo, fazendo movimento circular
                        em torno da Terra imóvel. Isso se cristaliza, isso se
                        torna o senso comum social. Se você perguntar qual 
                        é a comprovação que você tem de que o sistema
                        é geocêntrico, eu tenho três constatações: eu vejo
                        que estamos imóveis, eu vejo que o Sol se move e eu
                        vejo que o movimento é um semicírculo, portanto a
                        totalidade do movimento é circular. Aí aparecem Copérnico,
                        Keppler, Galileu e começam a fazer perguntas. A
                        primeira pergunta é se o movimento que o Sol realiza não
                        poderia ser um movimento aparente, e aí eles vão
                        estabelecer uma série de critérios para fazer essa
                        afirmação. Depois eles fazem um estudo das variações
                        das estações do ano: "olha é muito possível que
                        a Terra gire em torno de um eixo, que ela esteja
                        levemente inclinada". Cálculos matemáticos aqui,
                        cálculos matemáticos lá, estudo da velocidade da luz,
                        estudo do movimento uniformemente variado, estudo disso,
                        estudo daquilo, cálculos, modelos. Depois vem o Keppler,
                        ele diz: "olha, não, é evidente, a Terra se move
                        em torno do Sol, o qual também se move, os outros
                        planetas se movem, isto não tem uma forma circular, por
                        tais e tais cálculos matemáticos, e por tais e tais e
                        tais razões, têm uma forma elíptica". Para
                        resumir a brincadeira: o sistema geocêntrico é um
                        sistema inteirinho baseado na percepção direta que nós
                        temos das coisas. O 
                        Sistema Héliocêntrico não é baseado
                        praticamente em nenhuma observação empírica, quase
                        nenhuma. Ele é baseado em cálculos matemáticos, equações,
                        que depois orientam o modo como a experiência vai ser
                        feita. Então a diferença entre preconceito e o
                        conceito é:  o
                        preconceito é aquilo que se forma como conclusão da
                        experiência direta e imediata que nós temos das
                        coisas, o conceito é a idéia que se forma, a partir do
                        momento em que nós questionamos as coisas, em que nós
                        estabelecemos critérios para fazer perguntas, critérios
                        para fazer as respostas, formas de conferir as respostas
                        que foram oferecidas. O preconceito é portanto algo que
                        não inclui o trabalho do pensamento. O pensamento
                        simplesmente organiza, reúne, sintetiza os dados
                        imediatos da experiência. O conceito é um trabalho
                        intelectual, é um trabalho de pensamento. Ele é um
                        trabalho que visa chegar à uma verdade. O preconceito
                        parte da idéia de que ele é verdadeiro. Aqui é o
                        contrário, é porque se procura a verdade, é necessário
                        todo um caminho de interrogações, e de critérios de
                        pensamento, para chegar a um conceito. Então não são
                        a mesma coisa.
                        
                          
                        
                         P:
                        Gostaria que a Senhora abordasse o tema da tortura
                        nas delegacias aos presos comuns, isto sob a conivência
                        de autoridades e da sociedade, em prol da manutenção
                        da ordem, sob dois aspectos: a do torturado e a do
                        torturador.
                        
                          
                        
                         Olha,
                        eu faço parte da comissão Teotônio Vivela, que nasceu
                        justamente na luta contra a tortura nas prisões, nos
                        asilos, nos manicômios. A manutenção da tortura dos
                        presos comuns está ligada de um lado, à falta, à
                        inexistência de uma política efetiva de direitos
                        humanos, que se consagre não apenas em leis, mas que se
                        consagre em punições pela transgressão das leis. Você
                        não chega nunca lá. Você não consegue instrumentos
                        que sejam compreensíveis para o transgressor da punição
                        que ele tem que receber. Como portanto não há nenhum
                        instrumento legal, e há uma ideologia social, e toda a
                        montagem feita pela mídia em torno do bandido, as
                        torturas aos presos comuns não tem como serem evitadas.
                        Você denuncia aqui, mudam-se as pessoas ali e se
                        resolve o problema, tudo aquilo foi deslocado para outro
                        lugar, e sobretudo porque, há uma conivência da
                        sociedade com isso. 
                        
                          
                        
                         
 A
                        sociedade acha que tem que haver a tortura, ela
                        concorda, há um senso comum social à favor disso, e
                        que é alimentado não só pela ideologia da defesa da vítima
                        contra o bandido, mas peloo banho sistemático do
                        fascismo do enlatado norte-americano. Toda a série
                        Charles Bronson, toda a série Rambo, toda a série Van
                        Dame, todas essas séries da justiça com as próprias mãos.
                        São séries de afirmação do valor nenhum dos
                        direitos, do valor nenhum da lei, do desastre que é o
                        processo judiciário, lá e aqui. E a idéia de que você
                        tem que resolver sozinho é o policial que tortura quem
                        está resolvendo para mim. Está resolvendo, porque
                        precisa levar em conta o seguinte: é obvio que no nível
                        individual, cada um de nós tem o direito à vingança,
                        não ponha a menor dúvida que cada um de nós, como
                        indivíduo, tem o direito à vingança. 
                        
                          
                        
                         Só
                        que cada um de nós como indivíduo não pode exercer a
                        vingança. É para isso que se criou o Estado, é para
                        isso que se criaram as leis, então em vez de nós
                        querermos que essa vingança seja individualmente
                        realizada, por nós ou para nós, nós temos que lutar
                        pela mudança do Judiciário no Brasil, pela mudança de
                        todas as coisas relativas à justiça. E em vez dessa
                        luta, como a tortura do preso comum, por exemplo, como o
                        caso do linchamento, como o caso do justiceiro, como o
                        caso da morte das crianças pelas costas, com tudo isso
                        que é o nosso cotidiano, aparece como solução
                        imediata a resposta direta a um desejo natural e normal
                        de vingança, que cada um de nós tem. Então as
                        verdadeiras questões nunca são discutidas. Então a
                        tortura ao preso comum se insere nesse campo mais amplo,
                        de coisas não discutidas.
                        
                          
                        
                         P:
                        A Senhora expôs nas entrelinhas que existe o estado
                        de violência latente no seio da sociedade brasileira. O
                        que, na sua opinião, poderia ser feito, em linhas
                        gerais, para reverter esta dramática situação, no
                        sentido de restabelecer e resgatar os princípios
                        fundamentais da humanidade?
                        
                          
                        
                         Eu
                        queria deixar claro que eu não falei de violência
                        latente, o que eu estou tentando dizer, é uma violência
                        presente. Presente. Deixa eu dar alguns exemplos do que
                        eu estou chamando de violência, que talvez não tenha
                        ficado muito claro. Eu considero uma violência, nos prédios
                        que tem elevador, ter um elevador chamado social e um
                        elevador chamado de serviço. Isso é uma violência.
                        Isso é uma discriminação de classe. E em geral, o
                        elevador de serviços é para os negros também. Eu
                        considero isso uma violência. Eu considero o fato do
                        motorista, parar em cima da faixa de pedestre, um ato de
                        violência, e que ele atravessa a faixa no farol
                        vermelho, um ato de violência. O modo como os
                        motoristas de ônibus brecam é um ato de violência.
                        Então não tem violência latente no Brasil. A violência
                        está saltando em cada poro de cada ação cotidiana de
                        cada um de nós. O que há é o preconceito da não-violência,
                        que nos faz considerar que tudo isso é natural, é
                        normal e que isso não é violência. Que a violência
                        é a chacina. Que violência é a chacina e o massacre
                        de massa. É aí que a gente coloca a violência. É o
                        tráfico de drogas e morte em larga escala.
                        "Morreram menos de vinte, não é violência".
                        Precisa ter no mínimo vinte mortos e de preferência
                        alguns pelas costas. Estou chamando de violência,
                        dizer-se com a maior simplicidade de espírito: “um
                        preto muito bom, porque ele tem alma branca”, “uma
                        mulher formidável, doce, frágil, generosa, ai, tão
                        feminina”. Mas dá uns tabefes em quem diz que você
                        é tão “feminina”, porque isso que está sendo dito
                        é de um machismo, de um sexismo absolutamente
                        gigantesco, porque está dizendo que você é incapaz de
                        pensar. Se você é sensitiva, e intuitiva porque você
                        não raciocina, você sente e não pensa. É uma bruta
                        discriminação, é um bruta preconceito, é uma violência
                        enorme que é feita às mulheres, todo dia. 
                        Todo dia, Então eu queria deixar claro que eu não
                        falei em violência latente, eu estoe dizendo que a
                        sociedade brasileira é uma das sociedades mais
                        violentas que eu conheço. Esse é o primeiro ponto.
                        Agora, por causa disso, foi que a minha ênfase foi na
                        direção da luta por direitos. E de considerar de uma
                        lado, a dramaticidade dessa luta, porque lutar por
                        direitos pressupõe que carências e privilégios já
                        foram superados, que você está na fase de interesses
                        comuns, que tem que ser transformados em direitos
                        universais. Mas nós não chegamos nem nos interesses
                        comuns... É preciso fugir, como o diabo foge da cruz,
                        da definição da cidadania pela liberdade como competição
                        
                         
                        
 no
                        mercado. Então, se você não definir a cidadania pelos
                        direitos sociais e não investir nos direitos sociais,
                        eu acho que a gente deixa a sociedade brasileira como o
                        Conde de Lampeduza disse que era para ficar. Muda, muda,
                        muda, para ficar como está. 
                        
                          
                        
                         Eu
                        diria que o investimento maior, por um lado, como quebra
                        dos preconceitos, em educação e telecomunicações. E
                        do outro, como ação política, a luta pela cidadania,
                        sob a forma dos direitos sociais. Obrigado
                         
                        
                        
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