Projeto DHnet
Ponto de Cultura
Podcasts
 
 Direitos Humanos
 Desejos Humanos
 Educação EDH
 Cibercidadania
 Memória Histórica
 Arte e Cultura
 Central de Denúncias
 Banco de Dados
 MNDH Brasil
 ONGs Direitos Humanos
 ABC Militantes DH
 Rede Mercosul
 Rede Brasil DH
 Redes Estaduais
 Rede Estadual RN
 Mundo Comissões
 Brasil Nunca Mais
 Brasil Comissões
 Estados Comissões
 Comitês Verdade BR
 Comitê Verdade RN
 Rede Lusófona
 Rede Cabo Verde
 Rede Guiné-Bissau
 Rede Moçambique

  
Policiais, Juízes e Igualdade de Direitos

   

Dalmo de Abreu Dallari

Professor universitário e autor de várias obras sobre Direitos Humanos

&nb??sp;

É voz corrente que a humanidade está vivendo um momento de crise. A excessiva exaltação dos objetivos econômicos, com a eleição dos índices de crescimento como o padrão de sucesso ou fracasso dos governos, estimulou a valorização excessiva da busca de bens materiais. Isso foi  agravado pela  utilização dos avanços tecnológicos para estimular o consumismo e apresentar maliciosamente  a posse de bens materiais supérfluos como padrão de sucesso individual. A conseqüência última desse processo foi a implantação do materialismo e do egoísmo na convivência humana, sufocando-se os valores espirituais, a ética e a solidariedade.

 

Um dos sinais do desapreço pela dignidade humana era a dificuldade para despertar o interesse das pessoas de modo geral, inclusive dos professores e estudantes de Direito, por questões relacionadas com a justiça e a ética nas ?? relações sociais. Esse desinteresse, muitas vezes comprovado, contrastava com o interesse por temas de ordem prática, envolvendo a aplicação imediata de conhecimentos técnico-jurídicos para o patrocínio de direitos e interesses diretamente relacionados com as atividades econômicas e financeiras. Na melhor das hipóteses, havia interessados no estudo e na discussão de assuntos de natureza processual, com interesse quase nulo pelos temas relacionados com os direitos fundamentais da pessoa humana.

 

Muito recentemente passou a ser revelada uma nova atitude, o que se confirma pelo enorme interesse despertado por um ciclo de  reflexões sobre os problemas éticos e sociais gerados pelo preconceito. Um dado muito importante,  que deve ser reconhecido e ressaltado, é que a reunião de pessoas em torno dessa temática  representa muito mais do que um simples encontro de natureza acadêmica, onde se expõem teorias e conceitos abstratos, para deleite intelectual. O que se procura num debate dessa natureza é  o conhecimento mais preciso de situações que agridem a dignidade humana, buscando-se elementos para a vida, não só para o intelecto, fazendo-se uma reflexão imediatamente comprometida com a ação.

 

É a partir dessas premissas que  passarei a expor idéias e fatos relacionados com a presença e a influência do preconceito na área jurídica, especialmente nas atividades policiais e judiciárias. Essa reflexão é necessária, antes de tudo, como um esforço de conscientização, para que as pessoas consigam perceber a presença do preconceito em atos e situações que são toleradas como expressões de uma normalidade ou que são, aparentemente,  neutras e puramente  racionais, mas que são, essencialmente, preconceituosas e,  como tais, discriminatórias e negadoras da igualdade de direitos, implicando a ofensa da dignidade de seres humanos.

 

Começando do começo: afinal, o que é preconceito ?


Para conhecer até que ponto e de que forma o preconceito está presente na mentalidade e nos

atos dos juízes e dos policiais, é necessário, antes de tudo, estabelecer um conceito, esclarecer em que sentido será usada a palavra preconceito. Isso é importante para que fiquem claras as idéias mas também para que não haja o uso inadequado da palavra e, conseqüentemente, uma avaliação errada de situações, compo??rtamentos e decisões.

 

Do ponto de vista de sua origem, de sua etimologia, a palavra preconceito significa pré-julgamento, ou seja, ter idéia firmada sobre alguma coisa que ainda não se conhece, ter uma  conclusão antes de qualquer análise imparcial e cuidadosa. Na prática, a palavra preconceito foi consagrada como um pré-julgamento negativo a respeito de uma pessoa ou de alguma coisa. Ter preconceito ou ser preconceituoso significa ter uma opinião negativa antes de conhecer o suficiente ou de obter os elementos necessários para um julgamento imparcial.

 

Com base nesses elementos pode-se estabelecer a seguinte definição: “Preconceito é a opinião, geralmente negativa, que se tem a respeito de uma pessoa, de uma etnia, de um grupo social, de uma cultura ou manifestação cultural, de uma idéia, de uma te??oria ou de alguma coisa, antes de conhecer os elementos que seriam necessários para um julgamento imparcial”.

 

Como funciona o preconceito

 

Um problema grave, que merece muita atenção, é a verificação dos mecanismos do preconceito. É muito raro que alguém reconheça que tem posição preconceituosa em relação a alguma coisa. Muitas vezes, o preconceituoso não percebe que age dessa forma, pois, como adverte o professor Goffredo Telles Júnior, o preconceito geralmente atua de forma sutil, sinuosa, levando uma pessoa a tomar como premissa, como ponto de partida, aquilo que deseja que seja a conclusão.

 

De fato, existem casos em que o preconceito se afirma de modo direto e radical, não deixando qualquer dúvida quanto à sua presença. Foi esse o comportamento dos nazistas em relação aos judeus e é esse mesmo o comportamento de muita gente que expõe abertamente os seus preconceitos, às vezes até com orgulho e arrogância, como se estivesse afirmando uma superioridade que ninguém pode por em dúvida. Essa forma de atuação do preconceito, aberta e extremada, torna mais fácil a identificação da ação preconceituosa e, portanto, a resistência a ela. Aparentemente o indivíduo preconceituoso dessa espécie é mais nocivo, especialmente por ser irredutível, mas na realidade o maior risco está na atuação disfarçada, sinuosa, que se esconde atrás de uma fachada de neutralidade, objetividade e respeito igual por todos os seres humanos. O preconceituoso disfarçado tenta enganar e freqüentemente procura justificar seus atos com argumentos respeitáveis. 

 

Assim, por exemplo, há muitas pessoas no Brasil que detestam os que trabalham pelos direitos humanos e falam em justiça social. Isso porque pensam que essa pregação põe em risco o patrimônio dos que desfrutam de melhor condição econômica. Mas ninguém confessa que esse é o verdadeiro motivo e, provavelmente, muitos anestesiam suas consciências tomando como ponto de partida que os defensores dos direitos humanos são realmente  pessoas perigosas e nocivas, que não respeitam os direitos dos outros e põem em risco a estabilidade social. Embora não haja qualquer elemento concreto e racional que dê apoio a essa conclusão, ela é estabelecida como ponto de partida, antes de qualquer informação ou análise. É o preconceito funcionando, fingindo que se trata de um pensamento neutro e invocando uma preocupação respeitável - a defesa da sociedade - para tentar justificar uma atitude essencialmente injusta.

 

Na realidade, essas pessoas querem que os defensores dos direitos humanos sejam considerados indesejáveis e criam em sua mente um mecanismo?? que inverte o raciocínio lógico e


passam a avaliar todos os fatos a partir desse desejo, que é sua premissa mas que apresentam como se fosse uma conclusão, tomada depois de uma reflexão isenta. Desse modo, se alguém disser que é

injusto haver tantos miseráveis no Brasil, enquanto um pequeno grupo de pessoas acumula fortunas imensas, o preconceituoso não avalia essa afirmação para saber se ela é verdadeira ou falsa, se é justa ou injusta. Sua conclusão é sua premissa e ele dirá que, porque são inimigos da lei e da ordem, os defensores dos direitos humanos afirmam que há muitos miseráveis e poucos ricos no Brasil. Por isso, em defesa da sociedade, é justo combater, perseguir e marginalizar os defensores dos direitos humanos.

 

Um ponto que merece especial atenção das pessoas de boa vontade é que, não raro, o preconceito age no interior da mente, insinuando-se sutilmente, procurando disfarçar sua verdadeira natureza, para que sua influência não seja percebida. Evidentemente, o fato de alguém não gostar de alguma coisa, não desejar a companhia de uma pessoa determinada, recusar uma idéia, uma teoria ou um padrão estético, nada disso é suficiente para que se afirme que aí existe preconceito. E assim como não se deve aceitar a atitude preconceituosa, desprovida de racionalidade e sem o suporte moral de uma avaliação cuidadosa, é indispensável, também, que se respeite a liberdade de escolha de cada um. Mas é preciso que as pessoas estejam atentas quanto ao risco da insinuação do preconceito ou da aceitação de uma atitude preconceituosa, para não serem vítimas desse “veneno do espírito”.

 

Assim, por exemplo, não gostar de uma escola de pintura, de um gênero musical ou mesmo de um autor ou intérprete faz parte do??s atributos da liberdade humana e é direito fundamental que deve ser respeitado. Mas quem  exigir que as demais pessoas tenham as suas mesmas preferências ou idiossincrasias, afirmando sempre que tem razões objetivas para que todos o acompanhem reconhecendo certas manifestações como boas e outras como más, corre sério risco de estar dando acolhida ao preconceito. Do mesmo modo, avaliar as pessoas e seus atos com base, simplesmente, na condição social, na situação econômica, nas tradições de família, na profissão, na etnia ou nacionalidade, sem conhecer as circunstâncias concretas de cada um, é praticar o preconceito, ignorando que faz parte dos direitos fundamentais de todas as pessoas  humanas o direito a um julgamento justo.

 

Raízes do preconceito

  ??

São vários os fatores que podem dar origem ao preconceito e muitas vezes este nasce da conjugação de diversos fatores. Entretanto, embora muitas vezes não seja fácil identificar a origem da atitude preconceituosa em determinada situação concreta, é possível apontar alguns dos principais geradores de preconceitos.

 

A ignorância já foi reconhecida e apontada como a mais rica das sementeiras onde nascem preconceitos. Na realidade, não é preciso muito esforço para percebermos que o ignorante é campo fértil para o preconceito. Cada um de nós, se fizer uma avaliação cuidadosa de todas as atitudes de aprovação ou reprovação que já adotou, provavelmente acabará reconhecendo que numa ou noutra situação julgou e condenou alguma pessoa ou alguma coisa sem conhecer, deixando-se influenciar por julgamentos de outros. E quantas vezes, depois de termos tomado uma atitude preconceituosa nos damos consciência disso, especialmente quando passamos a conhecer fatos e circunstâncias que nos teriam feito julgar de modo d??iferente se fossem conhecidos antes.

 

Mas a presa mais fácil do preconceito é o ignorante que não sabe e não quer saber, é aquele que está satisfeito com a sua ignorância. É muito fácil transmitir uma idéia preconceituosa para uma pessoa com essas características, porque ela está completamente indefesa e, no entanto, sem dar-se


conta de seu deslize ético, ela profere julgamentos sem nunca procurar conhecer os dados daquilo que vai julgar e permanece indiferente às injustiças que comete.

 

Um bom exemplo da atuação do preconceito enquanto filho da ignorância é a atitude do povo brasileiro, de modo geral, em relação aos índios. O povo brasileiro conhece muito pouco, praticamente nada, a respeito dos grupos indígenas que desde tempos imemoriais habitam o território brasileiro. E apesar de inúmeras denúncias de violências contra os índios, que são, provavelmente, a minoria mais indefesa e, sem dúvida alguma, das mais agredidas do Brasil, muitas pessoas aceitam com facilidade as mentiras e distorções que aparecem na grande imprensa. Os índios brasileiros são apresentados como latifundiários ricos, proprietários de automóveis e aviões e, não satisfeitos com os enormes privilégios de que desfrutam, sempre querendo mais, ameaçando e praticando violências contra brancos indefesos. E ainda é aceita a imagem do índio “selvagem”, feroz e sempre cometendo as maiores brutalidades, necessitado, portanto, de ser aculturado rapidamente para que se torne um  “civilizado” e aprender, talvez, com os exemplos da civilização branca, européia e cristã que produziu o nazismo ou a carnificina da Bósnia. Assim o preconceito colabora para o genocídio dos índios.

 

Outro auxiliar valioso do preconceito é o que se poderá denominar educação domesticadora, que consiste em educar alguém, que poderá ser uma criança ou um adulto, para aceitar sem reflexão ou crítica tudo aquilo que se impinge como verdade e que, muitas vezes, estimula a prática de atos manifestamente ofensivos aos direitos humanos fundamentais e à dignidade da pessoa humana. É comum que uma criança, desde a mais tenra idade, receba informações preconceituosas, como verdades prontas e acabadas,  e seja estimulada a agir a partir de preconceitos. É o que se dá, por exemplo, com o preconceito racial, que através desse processo de educação domesticadora é reproduzido de geração em geração, influindo sobre o comportamento de grandes segmentos da sociedade ou mesmo de todo um povo.

 

Vale a pena chamar a atenção para um desses preconceitos, que adquiriu extraordinária solidez graças à educação e se tornou praticamente universal. Refiro-me ao julgamento preconceituoso da capacidade da mulher, que atua às v??ezes com muita sutileza, como através do estereótipo da frágil e submissa  “rainha do lar”. Nesse caso ocorre, ainda, uma grande ironia, pois a partir dessa imagem a mulher ficou, durante muito tempo, confinada ao lar, sem a possibilidade de exercício de uma profissão ou de aprimoramento intelectual. E a ela foi confiada a educação dos filhos e filhas, o que tem feito da mulher, de modo geral, uma poderosa aliada do preconceito, que ela tem aceitado  e transmitido aos seus descendentes. E desse modo o preconceito ganha a consagração de “verdade antiga”, pois suas próprias vítimas colaboram muito para sua perpetuação.

 

Precisamente nessa linha é que se podem identificar muitos preconceitos atuando na formação da mentalidade de agentes policiais. A par da carga preconceituosa que recebem na família e na convivência social  recebem também o treinamento preconceituoso, a “educação domesticadora”, que vai influir decisivamente no modo de desempenho de suas atribuições. O preconceito se torna explícito, por exemplo, no ?? recebimento de uma queixa, havendo diferenças se o queixoso é um homem ou uma mulher, um branco ou um negro, um rico ou um pobre. E o mesmo preconceito prossegue nas atividades de vigilância, investigação ou repressão. Essa atitude preconceituosa está presente no treinamento, assim como no modo de agir dos superiores hierárquicos e dos colegas mais antigos, o que, também neste caso, dá ao preconceito o rótulo de “verdade antiga” , de procedimento normal e por isso mesmo não sujeito a discussão ou crítica.

 

Outro “veneno do espírito” que muito contribui para a fixação e a reprodução de preconceitos é a intolerância, que hoje é tão disseminada que tem quase a marca de característica de uma época. Diversas razões de ordem social, política e econômica fizeram com que as sociedades do


final do século XX se tornassem predominantemente materialistas e competitivas, fazendo da convivência social um jogo impiedoso de ambições, que sepultou a solidariedade e estimulou o individualismo. Nesse quadro o preconceito tem passagem fácil, pois as relações entre as pessoas,

como é bem evidente nas grandes metrópoles, está sempre muito próximo de um confronto de competidores ou mesmo inimigos, cujos vícios e defeitos devem ser ressaltados para que fiquem em posição inferior. Em conseqüência, tudo o que se possa pensar, dizer ou fazer de negativo em relação a alguém está justificado, sendo dispensável maior indagação.

 

Esse comportamento intolerante, que acolhe facilmente o preconceito e, por sua vez, dá grande impulso à sua disseminação, é muito evidente na linha seguida por grande veículos de comunicação de massa, como jornais, revistas, televisão e rádio. Da maneira mais leviana são feitas afirmações preconceituosas, como se fo??sse a transmissão de verdades cuidadosamente apuradas e isentas de qualquer dúvida. Reputações pessoais adquiridas através de uma vida honrada são  destruídas pela manipulação de preconceitos, sem a possibilidade de defesa, desde que se trate de alguém que, de alguma forma, se ponha contra as idéias e convicções dos proprietários ou controladores dos órgãos de comunicação. Pelo mesmo motivo, movimentos sociais essencialmente justos são atacados e desmoralizados mediante o enfoque através de uma ótica preconceituosa. E assim a intolerância, irmã gêmea da ambição desprovida de barreiras éticas, usa e fortalece o preconceito, contribuindo para a injustiça social.

 

Outro fator muito presente no nascimento e na duração de preconceitos é o egoísmo, que também anda muito próximo da intolerância e se nutre dos mesmos vícios sociais há pouco assinalados. O egoísta não se preocupa com a justiça de suas atitudes, de suas palavras e de seu comportamento. É bom o que lhe convém e é mau o que lhe causa embaraço ou prejuízo. A partir daí ele passa a utilizar conclusões preconceituosas, especialmente ??em situações de competição, pois para o egoísta tudo e todos que prejudiquem seus interesses são maus e desprovidos de qualquer virtude, não sendo, por isso, merecedores de respeito. Essa avaliação, nitidamente preconceituosa, inspira a apresentação e utilização do preconceito como verdade e como julgamento justo.

 

Uma forma sutil de ação preconceituosa mascarada de decisão amadurecida e justa é a condenação ou marginalização de uma pessoa sob pretexto de se tratar de alguém de nível inferior ou de reputação duvidosa. O egoísta já tem posição tomada contra essa pessoa e tem todas as conclusões contra ela, mesmo que nada conheça de negativo, pois o que lhe importa é a eliminação do concorrente ou obstáculo e ele faz isso montado no preconceito. Essa é mais uma forma de criação e utilização de preconceitos, contra a qual é preciso ter a atenção desperta.

 

Finalmente, outro fator que atua na vida social como gerador de preconceitos é o medo. Esse fator está muito presente na violência que se comete, com muita freqüência, contra pessoas pobres, especialmente as de pele escura. O preconceituoso tem como ponto de partida que todo negro pobre é um criminoso em potencial e por esse motivo muitas vezes comete violências “preventivas”, para se defender de um risco imaginário. De fato, essa é uma das mais freqüentes manifestações de preconceito nas grandes cidades, mas ocorrem muitas outras igualmente geradas pelo medo.

 

Assim, por exemplo, existem preconceitos sociais contra famílias pobres ou pessoas sem instrução superior, contra imigrantes nacionais ou internacionais. Pode-se, também, identificar facilmente a presença e ação do preconceito na definição de preferências políticas. Manipulando o medo, as correntes mais conservadoras, que controlam os órgãos de comunicação, difundiram o preconceito de que os partidos de esquerda são inimigos da propriedade privada, da família, da religião, do progresso e da paz social. E pessoas facilmente influenciáveis aceitam e muitas vezes ?? sustentam com veemência esses  argumentos de forma  preconceituosa, sem jamais terem refletido


sobre essas questões, sem terem procurado conhecer melhor o assunto. Essas pessoas acolhem o preconceito e contribuem para sua reprodução.

 

Uma das mais evidentes demonstrações de que o medo é gerador de preconceitos é a posição de muitos brasileiros que se dizem contra os direitos humanos. Na verdade, houve e há intensa manipulação, para que essa atitude irracional pareça o fruto de madura e firme convicção. De fato, quando se começou a falar em direitos humanos no Brasil, na década de sessenta, o País estava sob ditadura militar, que se instalara sob pretexto ?? de impedir que o comunismo fosse implantado no Brasil. Os defensores dos direitos humanos passaram a denunciar ilegalidades e mesmo atrocidades cometidas pelo governo ou com seu apoio, contra os adversários políticos. Para dificultar a defesa dos direitos humanos foi disseminada a afirmação de que isso era, na realidade, defesa do comunismo, contra a liberdade dos brasileiros. E muita gente aceitou essa afirmação, que não passava de preconceito, pois a observação dos fatos e uma reflexão imparcial levaria à rejeição dessa impostura. Mas o preconceito conquistou espaço.

 

Mais tarde, superada a crise político-militar, os defensores dos direitos humanos, que tinham visto e apreendido muito sobre a prática da tortura na prisões, passaram a enfatizar a exigência de respeito aos direitos fundamentais de todas as pessoas, inclusive dos suspeitos ou acusados da prática de crimes. As elites econômicas, incluindo muitas fortunas feitas durante o regime militar e graças a ele, passaram a temer pela garantia de seu patrimônio e a considerar que todos os pobres e marginalizados, mesmo sem nunca terem delinqüido, deveriam ser mantidos sob?? rígido controle pelas forças militares, para impedir ameaças à propriedade. As violências e arbitrariedades cometidas com esse objetivo foram denunciadas pelos defensores dos direitos humanos, que passaram, então, a ser rotulados de defensores dos criminosos. Evidentemente, era, outra vez, uma afirmação mentirosa, que foi difundida e alimentada para que se construísse um preconceito. E outra vez houve muitos que, sem atentar para a realidade e sem refletir sobre o assunto, aceitaram a acusação de que a defesa de direitos humanos correspondia à defesa de crimes e passaram a agir em função dela, implantando-se dessa forma mais um preconceito. Por isso temos no Brasil o absurdo de pessoas humanas que se dizem contra os direitos humanos. Evidentemente, são contra os direitos humanos “dos outros” enquanto exigem a defesa dos seus. O preconceito é responsável por essa atitude ilógica e injusta.

Efeitos sociais do preconceito

 

Os seres humanos, por sua própria natureza, não conseguem viver sozinhos. Uns precisam dos outros, para satisfação de suas necessidades materiais, psicológicas e espirituais. Por esse motivo, a convivência é uma necessidade essencial da pessoa humana, sendo necessário, também, que as pessoas convivam em ambiente de respeito recíproco e solidariedade, para que a vida em comum seja um benefício e não uma guerra constante.

 

A convivência humana é afetada de maneira profunda e negativa pelo preconceito, que estabelece diferenças graves entre as pessoas, negando direitos fundamentais e gerando conflitos. Uma breve enumeração de efeitos sociais do preconceito será suficiente para que se percebam claramente os prejuízos que dele decorrem.

 

- o preconceito acarreta a perda do respeito pela pessoa ?? humana. Na realidade, como a história tem mostrado muitas vezes, e mostrou com grande eloqüência no século XX, o preconceito faz com que certas pessoas sejam estigmatizadas, sofrendo humilhações e violências, que podem ser impostas com sutileza ou relativo disfarce ou então de maneira escancarada, mas que, em qualquer circunstância, são negações do respeito devido à dignidade de todos os seres humanos.


- o preconceito restringe a liberdade de muitas pessoas, podendo afetar a decisão livre da maioria dos membros de um povo. Não são raras as situações em que um preconceito, sustentado pelo governo ou encampado por grupos sociais influentes, adquire a condição de valor social

relevante ou sinal de modernidade e ajuste às tendências mais avançadas. A partir daí as pessoas são praticamente coagidas a aderirem ao preconceito e quando não aderem em sua consciência  fingem a adesão em sua prática. Foi assim, por exemplo, quando os nazistas impuseram a idéia de que os judeus são essencialmente maus e perniciosos, foi assim, no Brasil, quando os governos militares estabeleceram que quem não concordasse com o governo não era patriota e deveria deixar o País, é assim, também, quando segmentos racistas da sociedade difundem a idéia da inferioridade da raça negra, verificando-se fenômeno da mesma natureza quando, através da televisão e da grande imprensa se divulga com insistência que o povo considera que a atual Constituição é péssima e que por causa dela o Brasil não tem um bom governo. Como quase ninguém tem a coragem de dizer que essas afirmações são generalizações de  falsas verdades, estas ganham a aparência de julgamentos independentes e imparciais.

 

A maldade inata dos judeus, a falta de patriotismo dos opositores, a inferioridade da raça negra,  a rejeição da Constituição pelo povo, a excelência do cantor promovido pela imprensa, todas essas afirmações se transformam em preconceitos, qu??e, justamente por terem essa natureza, deveriam ou devem ser aceitos sem reflexão ou discussão, anulando-se, portanto, a liberdade de julgamento das pessoas que passaram ou passam a agir como se tivessem feito seu próprio julgamento da idéia imposta. E as pessoas incapazes de resistir aos preconceitos deixam de ser livres.

 

- o preconceito introduz a desigualdade entre os seres humanos, podendo atingir  toda a sociedade ou os membros de um povo determinado. Em conseqüência dos preconceitos as pessoas diretamente ou indiretamente atingidas por eles são julgadas negativamente e colocadas em situação de inferioridade social. Desse modo deixa de prevalecer o reconhecimento moral da igualdade essencial de todos os seres humanos e fica prejudicado o direito à igualdade, que deveria ser assegurado a todas as pessoas.

 

- o preconceito estabelece e alimenta a discriminação. As pessoas atingidas pelo preconceito recebem tratamento diferenciado, sofrendo proibições e marginalizações. Muitas vezes essas discriminações implicam humilhações ou sofrimentos morais de várias naturezas. Além disso, é sabido que por causa do preconceito muitas pessoas são impedidas de ter acesso a determinadas profissões ou têm extremamente dificultado seu acesso numa carreira. Assim, por exemplo, embora desde o ano de 1900 haja advogadas formadas no Brasil até hoje não houve mulheres desembargadoras na quase totalidade dos Tribunais de Justiça dos Estados brasileiros e jamais se cogitou da indicação de uma mulher para o Supremo Tribunal Federal. E ainda há antigas instituições universitárias que nunca admitiram o acesso de mulheres, como acontece, por exemplo, na Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, onde nunca houve mulher catedrática ou titular.

 

- o preconceito promove a injustiça. Por todos os efeitos sociais já enumerados fica evidente que o pre??conceito é fonte de injustiças. Antes de tudo, pelo simples fato de ignorar o princípio fundamental da igualdade essencial de todas as pessoas, anulando a regra básica segundo a qual nenhuma pessoa vale mais do que a outra e, inversamente, nenhuma pessoa vale menos do que a outra. A par disso, onde atua o preconceito não importam os méritos, as aptidões, o valor moral e intelectual e outros dos atributos que, na vida social, influem para a diferença de comportamentos e de oportunidades. O preconceito cria superioridades e inferioridades que independem das circunstâncias concretas e de avaliação objetiva, oferecendo para alguns um caminho íngreme e pedregoso, onde outros encontram caminhos suaves e amplos, além de barrar totalmente a passagem para muitos. A presença do preconceito expulsa a justiça.

O preconceito na área jurídica

 

A expressão “área jurídica”, aqui utilizada, refere-se aos vários setores e às diversas atividades diretamente relacionados com a legislação, a doutrina jurídica, a jurisprudência e a outras manifestações ?? que implicam responsabilidade pela aplicação da lei e garantia dos direitos. A amplitude dessa área é muito grande e se alguém quiser ampliar e aprofundar o exame do assunto sob essa ótica poderá encontrar muitos exemplos de interferência do preconceito, nas mais diversas partes do mundo. Nesta exposição o que interessa, sobretudo, é chamar a atenção para a ocorrência de atitudes preconceituosas em setores da organização jurídica brasileira.

 

Um ponto positivo que deve ser assinalado é que a Constituição brasileira de 1988 estabeleceu várias normas que visam impedir a prática do preconceito. Assim, no artigo 1º, onde são enumerados os fundamentos da República, está expressamente referida “a dignidade da pessoa humana”, sendo, portanto, inconstitucionais os atos e os comportamentos que afrontem essa dignidade. No art. 5º está disposto que “todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza”, o que significa que ninguém pode ter seus direitos diminuídos, por exemplo,  em razão de sua origem étnica ou pelo fato de ser mulher ou homossexual, seguindo-se alguns incisos que reforçam essa ?? afirmação de igualdade. O inciso I estabelece que “homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações”. Pelo  inciso VIII “ninguém será privado de direitos por motivo de crença religiosa ou de convicção filosófica ou política”, o que também é importante para impedir discriminações preconceituosas.

 

Finalmente, merecem especial referência dois incisos do artigo 5º que dispõem sobre a punição de quem agir contra o direito à igualdade jurídica de uma pessoa, praticando discriminação, o que inclui, obviamente, a restrição a direitos baseada em preconceito. Segundo o inciso XLI, “a lei punirá qualquer discriminação atentatória dos direitos e liberdades fundamentais”. Isso é complementado pelo inciso XLII, onde ficou estabelecido que “a prática do racismo constitui crime inafiançável e imprescritível”.

 

Esse conjunto de normas permite afirmar que, em termos constitucionais, não há lugar para o preconceito na elaboração e aplicação das leis. Entretanto, isso não quer dizer que tenham sido eliminados remanescentes preconceituosos que ainda podem ser encontrados em muitas leis brasileiras, como também não garante que os aplicadores da lei agirão livres de preconceitos. Apesar dessas ressalvas, não há como negar que a Constituição adotou o melhor caminho, dando instrumentos para quem for vítima de atos preconceituosos ou quiser participar das lutas sociais contra o preconceito. É preciso que, à medida em que forem identificados, os remanescentes de inspiração preconceituosa que ainda existem na legislação sejam eliminados pela ação do legislador. Mas também é necessário um trabalho constante de conscientização, para que a jurisprudência não seja viciada pelo preconceito e para que o Ministério Público e a Polícia, esta sobretudo, não se deixem levar por preconceitos e atuem firmemente contra eles. Vejamos alguns casos exemplares, em que o preconceito está presente, sem que muitas pessoas o percebam, ou então situações em que foi óbvia a motivação preconceituosa em atos de agentes públicos encarregados de aplicar as leis.

 

Começando pela legislação, verifica-se que em muitos pontos importantes, como no estabelecimento da capacidade jurídica das pessoas ou na definição de crimes e contravenções, há componentes preconceituosos. O Código Civil Brasileiro, em vigor desde 1917, dispõe que algumas pessoas são plenamente capazes e outras, no extremo oposto, não têm capacidade para praticar qualquer ato jurídico. Entre esses dois extremos estão os relativamente capazes, que sofrem restrições quanto a certos atos. Um dos relativamente capazes são os “pródigos”, que no antigo direito português são definidos como aqueles que gastam desordenadamente seu dinheiro e destroem seu patrimônio. É interessante saber que o autor do projeto do Código Civil, Clóvis Beviláqua, era


contra essa restrição, que foi inserida durante a discussão do projeto na Câmara de Deputados. Explica Clóvis que a restrição aos direitos do pródigo vem de uma época em que os bens da família eram uma ??espécie de compropriedade e os herdeiros de uma pessoa eram considerados seus sócios, antes mesmo que ela morresse.

 

Na realidade, existe aí uma clara influência dos valores burgueses, segundo os quais o patrimônio era sagrado, sendo inaceitável que alguém gaste desordenadamente o seu próprio dinheiro. Para se ter idéia do absurdo dessa restrição, basta lembrar que o avarento, aquele que passa fome, vive mal acomodado e comporta-se de maneira ridícula, preocupado sempre em acumular mais dinheiro, esse é considerado normal e não sofre qualquer restrição de direitos.

Agentes legais do preconceito

 

A tragédia que foi o massacre de pobres trabalhadores rurais, os sem-terra, em Eldorado de Carajás, no Estado do Pará, mostra de maneira eloqüente a brutalidade e imoralidade a que pode levar uma ação inspirada no preconceito. Os ditos proprietários das terras em questão nem mesmo eram proprietários, pois se tratava de terras devolutas, pertencentes ao patrimônio do Estado, que alguns ricos e poderosos donos de terras tomaram para si. Mas os sem-terra são muito pobres e se movimentam à procura de um lugar para fixar suas famílias e trabalhar. Além da corrupção econômica presente naquele massacre, é fato que na mentalidade daquela região os sem-terra, exatamente por esta condição, são considerados bandidos perigosos. Daí a facilidade para se aliarem latifundiários, governantes, tribunais e Polícia, para a matança dos que nem mesmo são vistos como seres humanos, pessoas e famílias para quem não vigora o artigo 1o. da Constituição, que declara a dignidade humana como um dos fundamentos da República. O preconceito falou e continua falando muito alto naquela região, sendo praticamente certa a impunidade dos assassinos.

 

Quero ?? destacar, agora, um exemplo colhido na doutrina jurídica, para que se veja que o preconceito pode estar presente de maneira disfarçada, podendo-se esconder-se mesmo atrás de uma fachada muito nobre. Houve nesta Faculdade um excelente professor e respeitado criminalista, Basileu Garcia, homem afável e de trato muito agradável, que sempre condenou as violências e injustiças. Em seu livro intitulado Instituições de Direito Penal (São Paulo, ed. Max Limonad, 1956), são feitos comentários a respeito da situação do índio na legislação penal brasileira. Defendendo um tratamento mais favorável para o índio, tem-se a impressão de que a posição do professor Basileu Garcia tem inspiração humanista, pois aparentemente ele reconhece que o índio é parte frágil dentro da sociedade brasileira, sobretudo pelas diferenças culturais. Entretanto, a justificativa apresentada por ele para justificar a benevolência é terrível, baseando-se num dado falso tornado “verdade” pela repetição preconceituosa.

 

Eis o seu comentário: “Diz a Exposição de motivos que o artigo 22 tem também em vista, além dos enfermos mentais, os indivíduo??s de desenvolvimento mental retardado ou incompleto, que não sejam propriamente alienados. Assim, alcança os silvícolas. O indígena pode cometer crime em conseqüência de seu incompleto ou retardado desenvolvimento mental, embora não seja um doente. Os delitos que venha a praticar explicam-se, freqüentemente, pelo déficit de seu desenvolvimento mental, reduzido como se acha ele à incapacidade de entender o caráter criminoso do acontecimento ou de determinar-se de conformidade com o entendimento acaso nebulosamente existente” (vol. I, tomo I, pág. 330). Eis aí um retrato de corpo inteiro do preconceito, oculto sob o manto da generosidade e do humanismo. O índio é considerado deficiente mental porque tem uma cultura diferente, sendo assim ofendido em sua dignidade de pessoa humana, com base num preconceito que ainda influi muito no comportamento de juízes, advogados, policiais e outros operadores do direito.

 


Outro fato, ocorrido há alguns anos em São Paulo, mostra como a autoridade policial  fez uma adaptação da lei através de uma interpretação preconceituosa. Uma advogada negra foi visitar uma colega, no prédio em que esta residia. Alí chegando recebeu do porteiro a informação de que, por ser negra, deveria utilizar o elevador de serviço. Sentindo-se profundamente injustiçada e humilhada, essa advogada foi à Delegacia de Polícia da região, onde relatou o fato e pediu abertura de inquérito criminal, com base na chamada Lei Afonso Arinos, que na época previa a punição de quem agisse por preconceito racial. Ouvidas as partes envolvidas, ficou plenamente comprovada a prática de preconceito, inclusive pela confissão do porteiro. O delegado escreveu, então, seu relatório final, concluindo pelo arquivamento do inquérito, porque, segundo ele, a lei proibia a discriminação em locais públicos e aquele edifício era residencial, caracterizando-se, portanto, como local privado. O fato é que tanto moradores do edifício quanto o porteiro eram favoráveis à discriminação e alguém, possivelmente um advogado, sugeriu o argumento que, aparentemente, descaracterizava a prática do preconceito.

 

??

Outra situação muito expressiva, que se repete diariamente como fato normal, é ressaltada com muita propriedade pelo professor Paulo Sérgio Pinheiro, criador e diretor do Núcleo de Estudos da Violência, da Universidade de São Paulo. Usando um termo da moda, importado dos Estados Unidos para uma ridícula simulação de superioridade social, ele destaca a existência de “acusados VIP” (de very important person, ou pessoa muito importante), que recebem da Polícia um tratamento VIP e, quando se chega a isso, o que é raro, são julgados por uma justiça VIP.

 

Quando essas pessoas se envolvem, de alguma forma, numa ocorrência que pode configurar um crime, recebem dos policiais um tratamento excepcional, como relata Paulo Sérgio Pinheiro: “os delegados e as autoridades policiais asseguram aos acusados VIPs imediata comunicação com seus advogados e amigos, para que estes possam usar livremente os esquemas de influência. Não importa o crime cometido, a prisão preventiva é geralmente evitada”. E continua, acrescentando algumas informações mu??ito expressivas: “as clínicas para esgotamento nervoso são uma opção mais chique. Os homicídios são tratados com generosa bonomia”. E conclui com ironia : “as vítimas, para a justiça VIP, são sempre culpadas” (depoimento transcrito no livro  Violência, Povo e Polícia, de Maria Victoria Benevides, São Paulo, Brasiliense, 1983, pág. 47). Nesses casos, a categoria social das pessoas é fator decisivo, pois existe a idéia generalizada, evidentemente preconceituosa, de que os membros das camadas sociais mais elevadas não podem receber o mesmo tratamento que se dá a um pobre.

 

Algumas décadas atrás, houve um governador do Estado de São Paulo que decidiu desencadear intensa e rigorosa ação policial, contra os hotéis chamados “de curta permanência”, utilizados para encontros sexuais. O que se viu foi a prisão de muitos porteiros e gerentes desses hotéis, ficando resguardada a pessoa do proprietário, que era quem realmente lucrava com a exploração daquele comércio. Para os policiais, e mesmo para a generalidade dos governantes e do povo, o dono do hotel era proprietário e empresário, não podendo?? ser tratado como delinqüente. A mesma coisa está ocorrendo agora no Brasil, com farta publicação de informação que não deixa dúvida de que muitos dos grande banqueiros brasileiros são agiotas e estelionatários, além de praticarem amplamente a sonegação de impostos e de enviarem, irregularmente, muito dinheiro para fora do Brasil. Mas todos esses personagens, alguns bem conhecidos do povo e da polícia, são “respeitáveis ladrões" e por isso quem corre o risco de ir para a cadeia é algum gerente ou contador, algum ingênuo colega do porteiro ou gerente do hotel de curta permanência.

 

Vem muito a propósito o registro de um depoimento colhido pela Professora Maria Victória Benevides no Rio de Janeiro e relatado em sua obra anteriormente citada. Vejamos o seu relato: “numa batida na Cidade de Deus, um bairro do Rio de Janeiro, a polícia prendeu, como suspeitos, 140 pessoas que não conseguiram provar, naquele momento, que trabalhavam. A polícia não


encontrou bandidos e todos afinal foram liberados. Mas o delegado deu uma entrevista à imprensa dizendo-se muito satisfeito: “pelo menos a gente fotografa e ficha eles”. Você fotografa e ficha, porque quando ele precisar de algum culpado está fácil, ele vai buscar. Aí diz o delegado: “é claro que “eles” ficam marcados definitivamente, na próxima batida, que também pode ser absolutamente arbitrária, eles já serão considerados pessoas com antecedentes, porque eles já tiveram numa batida anterior”. Enquanto não descobre, a polícia fabrica suspeitos e impunemente fornece aos jornais os nomes dos acusados, porteiros de prédios, bombeiros hidráulicos, pedreiros, empregadas domésticas. No dia seguinte a polícia se desdiz, admite estar errada, quando suas vítimas, em geral humildes trabalhadores, estão estigmatizados” (ob. cit., págs. 50/51).

 

Um ponto que não pode deixar de ser ressaltado é o preconceito de policiais, como também de juízes, em relação ?? às camadas mais pobres da população. Isso ficou muito evidente no já mencionado episódio, vergonhoso e trágico, do massacre dos sem-terra em Eldorado de Carajás. Os policiais não tiveram qualquer dificuldade para aceitar a incumbência de matar, como ficou bem comprovado pelas circunstâncias em que ocorreram as mortes, porque as vítimas eram da camada inferior da sociedade e não tinham reconhecida sua dignidade de seres humanos.

 

A mesma coisa poderá ser dita de outro episódio, envolvendo também pobres trabalhadores rurais que lutam por um pedaço de terra onde trabalhar e sobreviver. Em São Paulo, na região denominada Pontal do Paranapanema, a polícia, agindo como força particular de latifundiários e grileiros, saiu no encalço de um dos líderes dos sem-terra, José Rainha, cuja prisão, de legalidade mais do que duvidosa, tinha sido decretada por um juiz. E para obrigar José Rainha a aparecer, a polícia prendeu arbitrariamente sua mulher, Diolinda Alves de Souza, acusando-a da prática do crime de formação de quadrilha. Ninguém razoavelmente informado e inteligente dirá que os sem-terra têm por objetivo a prática de crimes, que é uma cara??cterística essencial de uma quadrilha. E, no entanto, as arbitrariedade foram cometidas sem nenhuma conseqüência para os arbitrários, porque policiais, juízes e grande parte da população têm preconceito em relação aos sem -terra, classificados como ameaças à ordem social. E o preconceito é tão forte que essas pessoas não percebem que, antes de tudo, os sem-terra são pessoas humanas, cuja dignidade é um dos fundamentos da República.

 

Quero referir em seguida um caso registrado na jurisprudência paulista, mencionado na obra A figura/personagem- mulher em processos de família, de Sílvia Pimentel, Beatriz di Giorgi e Flavia Piovesan ( Porto Alegre, Sérgio Antonio Fabris Ed., 1993). É o caso de uma mulher mendiga, que vivia catando no lixo alguma coisa que pudesse vender, sofrendo, como se pode bem imaginar, todas as agressões inerentes à sua condição de miserável. Essa mulher tinha sido casada e o marido, embora não sendo um homem rico, desfrutava de situação econômica bem superior à dela. Alguém teve conhecimento do caso e encaminhou a pobre mulher a um serviço de Assistência Judiciária, que moveu ação de alimentos ?? para que o marido lhe destinasse alguma coisa, tirando-a daquela vida de extrema degradação. O juiz encarregado de decidir o caso, ouviu  as partes e testemunhas e produziu esta impressionantes “pérola” de preconceito: “é verdade que a agravante vive praticamente na miséria, vendendo coisas que encontra no depósito de lixo, onde se encontra com Severino, seu amante”. Não é preciso fazer muito esforço para imaginar o Severino, tão miserável quanto a mulher, dois farrapos humanos escorando-se mutuamente, tentando sobreviver. E o juiz, do alto de seus preconceitos, só viu aí o pecado, a transgressão, o casal de amantes.

 

E o arremate do juiz não deixa dúvidas, pois mesmo reconhecendo que ambos viviam no lixo, sem um mínimo de resguardo à sua dignidade e mal conseguindo sobreviver, concluiu com ares de solene moralismo: “mas nem por isso, nem só porque ela vive na miséria, o réu é obrigado a prestar-lhe alimentos, os quais são devidos quando a mulher é inocente e pobre; se é pobre, essa autora não é inocente, e seu procedimento irregular é suficiente para obstar-lhe a proteção” (ob.?? cit., pág. 60). Não há dúvida de que, nesse caso, os preconceitos morais do juiz produziram maior imoralidade do


que o relacionamento da pobre mulher com seu único arrimo Severino, pois com aquela decisão a mulher foi condenada a viver em degradação, incapaz de conseguir que reconhecessem sua condição de pessoa humana.

 

A reação que vem de dentro: justiça sem preconceitos

 

Todos esses casos, marcados pela presença do preconceito, podem gerar a convicção de que não há o que faze??r, pois aparentemente o preconceito está de tal modo arraigado que será praticamente impossível sua extirpação. Felizmente não é assim, pois embora com dificuldades, precisando vencer barreiras antigas e consolidadas, existe uma reação que se faz presente na polícia, no Ministério Público e na magistratura, apontando para novos caminhos, compatíveis com as exigências da dignidade humana e da justiça. É importante denunciar a presença do preconceito, pois muitas vezes ele atua com tanta sutileza que nem sequer é percebido, o que facilita sua permanência. Outras vezes, o preconceito age sem qualquer disfarce, pois contando com ampla aceitação passa como se fosse a normalidade desejada pelo povo. É preciso, então, demonstrar a imoralidade essencial dos preconceitos, além de seu caráter ilegal e injusto.

 

Uma forma eficiente de combater o preconceito é a divulgação de atitudes firmes e corajosas, que produzem bons argumentos e, além disso, comprovam que é possível obter bons resultados práticos. Nessa linha, merece ser conhecido um voto magistral do desembargador Cézar Peluso, membro  do Tribuna??l de Justiça do Estado de São Paulo e um dos fundadores da Associação Juízes para a Democracia. Eis suas palavras: “Quando os operadores do direito, a pretexto de interpretar regras jurídicas, cujas inspirações políticas são de outra ordem, se aventuram a incursões no terreno da moralidade social ou individual, correm sempre o risco de assumir, de maneira inconsciente e inadvertida, posturas ideológicas e preconceitos culturais, que, próprios de sua época, por definição, não resistem à crítica nem ao desenvolvimento histórico da sociedade. Tal é a postura que, sem grande acuidade intelectual, é possível desnudar nos fundamentos mais genéricos e menos jurídicos daquela orientação que, respondendo a superstições do tempo, discrimina a mulher separada, com negar-lhe sob argumentos de natureza ético-sexual, direito cujas raízes não estão nesse campo, mas no da solidariedade ético-social”.

 

E mais adiante, considerando situação concreta em que pais negam alimentos a seus filhos, pondera o desembargador Peluso: “O direito a alimentos - nisto escusa insistir- não foi nem é concebido como recompensa normativa a determinadas virtudes morais, se??não que atende a uma exigência primária de solidariedade humana, no projeto histórico de convivência ética...”  E arremata lembrando uma circunstância concreta: “A um filho não se recusam alimentos sob pretexto de ser libertino ou devasso, marginal ou samaritano. Resgatar a vida é condição prévia e absoluta de qualquer outra elucubração ética ou jurídica” (ob. cit., págs. 91/92). Na realidade, existem situações em que, aparentemente, valores éticos se excluem reciprocamente e isso é usado como pretexto pelos que pretendem ocultar seus preconceitos sob a capa de aparente moralismo.

 

Em conclusão, o preconceito não tem justificativa moral nem jurídica e é essencialmente mau e pernicioso. O preconceito estabelece a desigualdade entre as pessoas, sacrifica valores fundamentais, justifica agressões à dignidade da pessoa humana e, por isso tudo, é expressão de uma perversão moral que deve ser, incansavelmente, denunciada e combatida. O preconceito agride a igualdade essencial de todos os seres humanos e por isso é necessário criar barreiras às suas investidas. Mas de uma coisa devemos ter consciênc??ia: não basta fazer novas leis para eliminar a presença e a interferência maléfica do preconceito. Pode ser útil colocar nas leis a proibição das ações preconceituosas e criar penalidades para quem agride a dignidade humana levado por preconceito, mas, acima de tudo, é preciso que no interior de nossas consciências tenhamos um firme


compromisso com a defesa da dignidade humana e da igualdade essencial de todos os seres humanos. 

 

Um professor experiente, direto, claro.

 

Júlio : Como já se tornou tradição entre nós, logo após a palestra são encaminhadas perguntas aos conferencistas. Enquanto as estudantes do Centro Acadêmico Onze de Agosto começam a recolher essas perguntas, aproveito o tempo e faço uma primeira ao Professor Dalmo Dallari. Permanentemente, ele participa de cursos de educação e direitos humanos. O senhor acha possível manter no Brasil esses programas?

 

Eu acho que não só é possível como também indispensável que haja sempre reflexões a respeito de direitos humanos. Há uma discussão intensa, internacional mesmo, a respeito da conveniência de cursos de direitos humanos, porque tem gente com medo de que isso burocratize a idéia. Mas na verdade o curso de direitos humanos deve ser sempre uma reflexão. Não é a transmissão de esquemas prontos e acabados, de conceitos rígidos, mas é uma transmissão de idéias e conceitos como provocação à reflexão. Então eu acho que isso é possível, sim, e até vou mais adiante, é indispensável que esses cursos  ??sejam abertos a absolutamente todos, que eles não fiquem encerrados dentro de um currículo universitário ou escolar. Que eles tenham a maior amplitude e sejam oferecidos a um maior número de pessoas possível, para que muita gente assuma seus compromissos com os direitos humanos.

 

P: As primeiras perguntas do público... Como querer democracia nos meios jurídicos se o negro continua alijado, impedido de frequentar esses círculos formadores, que são as melhores escolas?

 

O negro continua ainda a ser vítima da maneira pela qual ele foi inserido na sociedade brasileira. Entretanto eu acho que é possível fazer um  trabalho no sentido de reduzir as discriminações, im??plantando o reconhecimento da dignidade essencial do negro, como da dignidade essencial de todas as demais pessoas. Há uma conjugação muito estreita entre o preconceito racial e a condição econômica. Isto realmente existe. Então se nós dermos ao negro a possibilidade de obter educação básica, de ter acesso às profissões, eu acredito que em algumas décadas a gente poderá atenuar muito a questão do preconceito racial no Brasil.

P: O preconceito é inerente à natureza humana, decorrente de um processo inevitável na vida em sociedade?

 

Eu estou convencido de que o preconceito é adquirido através de alguma forma de educação. Ninguém nasce com preconceito. O preconceito vai aparecer na pessoa através do processo de educação. O processo de educação não é necessariamente a educação que se recebe na escola. Aliás eu acho que o preconceito chega antes disso, o preconceito chega no lar, chega em casa, chega na família, ele é incutido dessa maneira.?? Por isso é absolutamente necessário que nós vivamos conscientemente, muito alertas para não fazermos isso, não alimentarmos esta prática. Aquele pormenor, aquilo que acontece em casa com a criança pequena muitas vezes vai ser um conceito consolidado. Então de qualquer maneira o ponto essencial a meu ver é que o preconceito não nasce com a pessoa, ele é adquirido pela pessoa.

 


P: Quando se fala em preconceito, imediatamente nos remetemos aos grupos fechados similares à Maçonaria, à TFP e à Opus Dei. Eu gostaria de ouvir seu comentário à respeito da atuação dessas organizações no judiciário brasileiro.

 

Essas organizações têm origens diversas e algumas delas na sua raiz, no seu começo, tiveram a intenção de dar proteção às pessoas. Então, por exemplo, imigrantes que eram hostilizados tinham necessidade de apoio recíproco e acabaram formando a sua confraria. Isto depois de certo tempo acaba degenerando e é muito comum que degenere. Na verdade há uma semelhança entre todas essas organizações. Mas é neste ponto que elas acabam sendo discriminatórias, elas acabam concluindo que só os membros da confraria são bons ou que os membros da confraria são os melhores e então nesse ponto são indesejáveis.

 

P: Que o preconceito é danoso é inegável, mas como evitá-lo?

 

?? Primeira coisa, através da própria consciência, através da permanente auto-fiscalização. É preciso estarmos sempre muito atentos quando formos proferir julgamentos, julgamentos sobre uma pessoa, sobre uma idéia, sobre uma crença. Mas além disto acredito muito na educação libertadora de Paulo Freire, a educação aberta, a crítica constante, com respeito pela pessoa, pela dignidade da pessoa, pela liberdade da pessoa. Acho que assim como o preconceito é incutido pela educação, ele pode ser eliminado pela educação.

 

P: Como você encara a idéia de adoção de uma política de cotas para  Universidades por um período determinado, evidentemente para absorver também negros?

 

Essa é?? uma questão que frequentemente aparece e já apareceu aqui na USP. Fui contra e continuo sendo contra. Eu acho que é uma forma de discriminação, que acaba sendo muito mais negativa do que positiva. Então se eu estabelecer, por exemplo, uma cota para negros, já fica estabelecido que eu acho os negros inferiores. Eu acho que eles não são capazes de concorrer, por isso eu dou uma cota para eles. Isto não é bom para os negros de maneira alguma. Quer dizer, o que eu tenho que fazer é dar oportunidades para que  todos tenham educação básica da mesma qualidade e possam competir na mesma condição de igualdade. Mas não criar esse tipo de favorecimento, que é essencialmente discriminatório. Aliás ainda há cerca de um mês, mais ou menos, eu estive nos Estados Unidos, na Universidade do Texas, e aí um professor me deu a cópia, que eu trouxe comigo, de uma petição que deu entrada no Judiciário, em que um grupo branco está acusando a Universidade do Texas de fazer discriminação, exatamente porque ela criou as cotas. Diz "olha aí, está protegendo os negros, está favorecendo demais os negros, eles não ficam sujeitos ao mesmo rigor de ingresso que se aplica aos brancos". E a Universidade está vivendo uma situação complicada. Primeiro ela é acusada de não dar espaço para os negros. Aí ela resolveu e criou as cotas, agora ela está sendo acusada de criar as cotas, então ?? está discriminando... Na verdade é um decisão discriminatória.

 

P: O senhor associou a questão do preconceito com a questão da diferença, do convívio com diferentes valores e diferentes culturas. No entanto, o direito por sua natureza procura, à luz de certos conceitos básicos, enfocar e tratar a todos sobre princípios prévios. Ele é expressão de valores de uma certa cultura. Sendo assim, como podem a ordem e a coação jurídica se harmonizarem com as diversidades de identidades e práticas culturais num momento em que tais questões se colocam como nunca, seja nas relações internacionais, seja no âmbito de uma mesma sociedade, e a todos resguardando as diferenças de identidade e cultura?

 

Acho que uma ordem jurídica democrática é plural, ela ?? deve deixar espaços para as diferenças. Existem certos valores, certos direitos que são de todos os seres humanos. Eu acredito na


existência de direitos universais. Resguardados esses direitos é indispensável que se resguarde também o direito à diferença. Aliás, é interessante, existe uma declaração contra o preconceito, aprovada pela UNESCO e que acentua exatamente isso, o direito à diferença. Quer dizer, eu não posso exigir que todos sejam iguais, não posso valorizar mais um do que o outro. Eu resguardo os direitos essenciais de todos e o respeito cultural, a diversidade de crenças, e se isto realmente houver, se houver este respeito, a convivência é perfeitamente possível, e o direito deve resguardar essa diferença, deve resguardar o direito à diferença. É uma exigência de uma ordem jurídica democrática.

 

P: O programa "Fantástico", em uma matéria sobre Vigário Geral, mostrou uma cena onde a Polícia Militar aborda um homem e pede seus documentos, depois um dos policiais dá um tapa no rosto desse cidadão e joga seus documentos fora, no lixo. No momento seguinte a matéria mostra uma quantidade de carteiras de trabalho e carteiras de identidade localizadas nos lixões do Rio de Janeiro. Eu pergunto: há alguma possibilidade de juridicamente fazer alguma coisa para que a Policia Militar possa ser responsabilizada? Como poderemos barrar todas essas arbitrariedades?

 

Aí está implicado o problema de educação, o problema de preparo, mas também um problema de governo. Aliás com toda a justiça, eu queria lembrar que depois que o Dr. Belisário assumiu a Secretaria da Justiça não houve mais execuções violentas contra invasões de terra. Imagino como é difícil para ele segurar o batalhão de choque, o policial que, entre outras coisas, pressionado pelo??s fazendeiros e muitas vezes apoiado pelo juiz, quer ir até lá tirar à força os ocupantes. Eu mesmo estou trabalhando numa situação que é extremamente grave, injusta, que envolve uma decisão judicial e que com muita probabilidade pode degenerar numa tragédia, numa matança. Isso está acontecendo como os índios guaranis do Mato Grosso do Sul. Esses índios tiveram as suas terras invadidas há muito tempo, foram jogados de cá para lá, e como acontece em muitas partes do Brasil, acontece no Pará, no Mato Grosso, no Mato Grosso do Sul.

 

Não é raro que o invasor de terras consiga um documento dizendo que ele é proprietário. São conhecidas inclusive técnicas de envelhecimento de documentos. Você faz o documento e depois com tratamento com sumo do limão, pondo sob o sol, daí a pouco se tem um documento  de cem anos. Se fabrica um documento de "cem anos" e aparece o fazendeiro dizendo "olha aqui, eu ocupo essa terra há cem anos, como é que esses índios estão aí?" E então um desses entrou com uma ação contra os índios para que os índios sejam expulsos da terra. A decisão a meu v??er é um absurdo. Aliás eu queria entre parênteses dizer isto, eu não aceito mais e acho que vocês também não devem aceitar essa idéia de que decisão de juiz não se critica. Critica sim, precisa criticar. Tem juiz fazendo coisas absurdas, injustas, desumanas, que a gente não pode aceitar, e este é um dos casos. Então o fazendeiro entra dizendo "olha, eu que sou o proprietário, tira esses índios daí", e o juiz concede uma liminar para se tirar os índios, enquanto se verifica quem é que tem direito. Só que se acontece isso, se eu tirar uma pessoa, um branco de uma área, de uma casa, essa pessoa se ajeita no vizinho, na outra cidade, no outro bairro, mas se eu tiro o índio da sua terra, ele não sobrevive, quer dizer, o índio não quer a terra como patrimônio econômico, é para sobrevivência, é para se alimentar, para morar. É o que está acontecendo. Eu já recebi hoje esta notícia, nós já tivemos uma situação parecida, é uma ameaça de um suicídio coletivo, de um grupo tribal, e é exatamente na área onde já houve muitos suicídios. E graças a esta contribuição  de Sua Excelência, o magistrado, nós estamos na boca de situações extremamente delicadas. É preciso educar os juizes, como é preciso educar a polícia. Mas é preciso também que haja governantes responsáveis, que não cometam abusos, que não façam o jogo dos que cometem abuso. Não acredito na possibil??idade de que do dia para a noite mude isso tudo, mas volto a dizer, o que está acontecendo em São Paulo é uma demonstração de que muita coisa pode ser feita  a prazo curto.

 


P: O senhor acha que por se constituir em elites, os magistrados em sua maioria abusam de sentenças preconceituosas, mantendo dessa maneira o status quo?

 

É, infelizmente ainda há muito preconceito na magistratura, talvez até a gente devesse dizer (eu sou ?? professor e há muitos anos estou na Faculdade de Direito), as faculdades de direito são muito responsáveis. São muito responsáveis porque, por exemplo, nos currículos jurídicos não há Ética, quer dizer, não se ensina Ética, não há uma disciplina de Ética. Em algumas escolas, especialmente da Universidade Católica, existe uma disciplina de Ética. Mas em mais de noventa  por cento das faculdades não existe. Além do mais, a formação que se dá é uma formação positivista, puramente formalista e isto acaba formando um juiz absolutamente insensível aos aspectos humanos. Mas é preciso então discutir, denunciar isto. Um dado muito positivo é que dentro da magistratura já surgiu um grupo de juizes que está trabalhando por esta mudança. Hoje já há uma entidade chamada Juizes para a Democracia. É exatamente isto, juizes que exigem ética, que exigem a consideração dos valores sociais, e até se pode dizer, juizes que exigem que a sentença seja justa. Para alguém isto pode parecer surpreendente, mas não é normal que o juiz se preocupe com a justiça? Mas, infelizmente, não. Nós temos uma quantidade enorme de juizes que se preocupam com a legalidade e não com a justiça.  

??

Desde 1995 © www.dhnet.org.br Copyleft - Telefones: 055 84 3211.5428 e 9977.8702 WhatsApp
Skype:direitoshumanos Email: enviardados@gmail.com Facebook: DHnetDh
Busca DHnet Google
Notícias de Direitos Humanos
Loja DHnet
DHnet 18 anos - 1995-2013
Linha do Tempo
Sistemas Internacionais de Direitos Humanos
Sistema Nacional de Direitos Humanos
Sistemas Estaduais de Direitos Humanos
Sistemas Municipais de Direitos Humanos
História dos Direitos Humanos no Brasil - Projeto DHnet
MNDH
Militantes Brasileiros de Direitos Humanos
Projeto Brasil Nunca Mais
Direito a Memória e a Verdade
Banco de Dados  Base de Dados Direitos Humanos
Tecido Cultural Ponto de Cultura Rio Grande do Norte
1935 Multimídia Memória Histórica Potiguar