|  
                         
                        
                         
 Dalmo
                      de Abreu Dallari Professor
                      universitário e autor de várias obras sobre Direitos
                      Humanos
                      
                       &nb??sp;
                      
                      
                      
                       É
                      voz corrente que a humanidade está vivendo um momento de
                      crise. A excessiva exaltação dos objetivos econômicos,
                      com a eleição dos índices de crescimento como o padrão
                      de sucesso ou fracasso dos governos, estimulou a valorização
                      excessiva da busca de bens materiais. Isso foi 
                      agravado pela  utilização dos avanços tecnológicos para estimular o
                      consumismo e apresentar maliciosamente 
                      a posse de bens materiais supérfluos como padrão
                      de sucesso individual. A conseqüência última desse
                      processo foi a implantação do materialismo e do egoísmo
                      na convivência humana, sufocando-se os valores
                      espirituais, a ética e a solidariedade.
                      
                        
                      
                       Um
                      dos sinais do desapreço pela dignidade humana era a
                      dificuldade para despertar o interesse das pessoas de modo
                      geral, inclusive dos professores e estudantes de Direito,
                      por questões relacionadas com a justiça e a ética nas
    ??                  relações sociais. Esse desinteresse, muitas vezes
                      comprovado, contrastava com o interesse por temas de ordem
                      prática, envolvendo a aplicação imediata de
                      conhecimentos técnico-jurídicos para o patrocínio de
                      direitos e interesses diretamente relacionados com as
                      atividades econômicas e financeiras. Na melhor das hipóteses,
                      havia interessados no estudo e na discussão de assuntos
                      de natureza processual, com interesse quase nulo pelos
                      temas relacionados com os direitos fundamentais da pessoa
                      humana.
                      
                        
                      
                       Muito
                      recentemente passou a ser revelada uma nova atitude, o que
                      se confirma pelo enorme interesse despertado por um ciclo
                      de  reflexões
                      sobre os problemas éticos e sociais gerados pelo
                      preconceito. Um dado muito importante, 
                      que deve ser reconhecido e ressaltado, é que a
                      reunião de pessoas em torno dessa temática 
                      representa muito mais do que um simples encontro de
                      natureza acadêmica, onde se expõem teorias e conceitos
                      abstratos, para deleite intelectual. O que se procura num
                      debate dessa natureza é 
                      o conhecimento mais preciso de situações que
                      agridem a dignidade humana, buscando-se elementos para a
                      vida, não só para o intelecto, fazendo-se uma reflexão
                      imediatamente comprometida com a ação.
                      
                        
                      
                       É
                      a partir dessas premissas que 
                      passarei a expor idéias e fatos relacionados com a
                      presença e a influência do preconceito na área jurídica,
                      especialmente nas atividades policiais e judiciárias.
                      Essa reflexão é necessária, antes de tudo, como um
                      esforço de conscientização, para que as pessoas
                      consigam perceber a presença do preconceito em atos e
                      situações que são toleradas como expressões de uma
                      normalidade ou que são, aparentemente, 
                      neutras e puramente 
                      racionais, mas que são, essencialmente,
                      preconceituosas e,  como
                      tais, discriminatórias e negadoras da igualdade de
                      direitos, implicando a ofensa da dignidade de seres
                      humanos.
                      
                        
                      
                      
 
                      
 atos
                      dos juízes e dos policiais, é necessário, antes de
                      tudo, estabelecer um conceito, esclarecer em que sentido
                      será usada a palavra preconceito. Isso é importante para
                      que fiquem claras as idéias mas também para que não
                      haja o uso inadequado da palavra e, conseqüentemente, uma
                      avaliação errada de situações, compo??rtamentos e decisões.
                      
                      
                        
                      
                       Do
                      ponto de vista de sua origem, de sua etimologia, a palavra
                      preconceito significa pré-julgamento, ou seja, ter idéia
                      firmada sobre alguma coisa que ainda não se conhece, ter
                      uma  conclusão
                      antes de qualquer análise imparcial e cuidadosa. Na prática,
                      a palavra preconceito foi consagrada como um pré-julgamento
                      negativo a respeito de uma pessoa ou de alguma coisa. Ter
                      preconceito ou ser preconceituoso significa ter uma opinião
                      negativa antes de conhecer o suficiente ou de obter os
                      elementos necessários para um julgamento imparcial.
                      
                        
                      
                       Com
                      base nesses elementos pode-se estabelecer a seguinte
                      definição: “Preconceito é a opinião, geralmente
                      negativa, que se tem a respeito de uma pessoa, de uma
                      etnia, de um grupo social, de uma cultura ou manifestação
                      cultural, de uma idéia, de uma te??oria ou de alguma coisa,
                      antes de conhecer os elementos que seriam necessários
                      para um julgamento imparcial”.
                      
                        
                      
                      Como
                      funciona o preconceito
                      
                       
                      
                       Um
                      problema grave, que merece muita atenção, é a verificação
                      dos mecanismos do preconceito. É muito raro que alguém
                      reconheça que tem posição preconceituosa em relação a
                      alguma coisa. Muitas vezes, o preconceituoso não percebe
                      que age dessa forma, pois, como adverte o professor
                      Goffredo Telles Júnior, o preconceito geralmente atua de
                      forma sutil, sinuosa, levando uma pessoa a tomar como
                      premissa, como ponto de partida, aquilo que deseja que
                      seja a conclusão.
                      
                        
                      
                       De
                      fato, existem casos em que o preconceito se afirma de modo
                      direto e radical, não deixando qualquer dúvida quanto à
                      sua presença. Foi esse o comportamento dos nazistas em
                      relação aos judeus e é esse mesmo o comportamento de
                      muita gente que expõe abertamente os seus preconceitos,
                      às vezes até com orgulho e arrogância, como se
                      estivesse afirmando uma superioridade que ninguém pode
                      por em dúvida. Essa forma de atuação do preconceito,
                      aberta e extremada, torna mais fácil a identificação da
                      ação preconceituosa e, portanto, a resistência a ela.
                      Aparentemente o indivíduo preconceituoso dessa espécie
                      é mais nocivo, especialmente por ser irredutível, mas na
                      realidade o maior risco está na atuação disfarçada,
                      sinuosa, que se esconde atrás de uma fachada de
                      neutralidade, objetividade e respeito igual por todos os
                      seres humanos. O preconceituoso disfarçado tenta enganar
                      e freqüentemente procura justificar seus atos com
                      argumentos respeitáveis. 
                      
                      
                        
                      
                       Assim,
                      por exemplo, há muitas pessoas no Brasil que detestam os
                      que trabalham pelos direitos humanos e falam em justiça
                      social. Isso porque pensam que essa pregação põe em
                      risco o patrimônio dos que desfrutam de melhor condição
                      econômica. Mas ninguém confessa que esse é o verdadeiro
                      motivo e, provavelmente, muitos anestesiam suas consciências
                      tomando como ponto de partida que os defensores dos
                      direitos humanos são realmente 
                      pessoas perigosas e nocivas, que não respeitam os
                      direitos dos outros e põem em risco a estabilidade
                      social. Embora não haja qualquer elemento concreto e
                      racional que dê apoio a essa conclusão, ela é
                      estabelecida como ponto de partida, antes de qualquer
                      informação ou análise. É o preconceito funcionando,
                      fingindo que se trata de um pensamento neutro e invocando
                      uma preocupação respeitável - a defesa da sociedade -
                      para tentar justificar uma atitude essencialmente injusta.
                      
                        
                      
                       Na
                      realidade, essas pessoas querem que os defensores
                      dos direitos humanos sejam considerados indesejáveis e
                      criam em sua mente um mecanismo?? que inverte o raciocínio
                      lógico e 
                      
                       
                      
 passam
                      a avaliar todos os fatos a partir desse desejo, que é sua
                      premissa mas que apresentam como se fosse uma conclusão,
                      tomada depois de uma reflexão isenta. Desse modo, se alguém
                      disser que é 
                      
                       injusto
                      haver tantos miseráveis no Brasil, enquanto um pequeno
                      grupo de pessoas acumula fortunas imensas, o
                      preconceituoso não avalia essa afirmação para saber se
                      ela é verdadeira ou falsa, se é justa ou injusta. Sua
                      conclusão é sua premissa e ele dirá que, porque são
                      inimigos da lei e da ordem, os defensores dos direitos
                      humanos afirmam que há muitos miseráveis e poucos ricos
                      no Brasil. Por isso, em defesa da sociedade, é justo
                      combater, perseguir e marginalizar os defensores dos
                      direitos humanos.
                      
                        
                      
                       Um
                      ponto que merece especial atenção das pessoas de boa
                      vontade é que, não raro, o preconceito age no interior
                      da mente, insinuando-se sutilmente, procurando disfarçar
                      sua verdadeira natureza, para que sua influência não
                      seja percebida. Evidentemente, o fato de alguém não
                      gostar de alguma coisa, não desejar a companhia de uma
                      pessoa determinada, recusar uma idéia, uma teoria ou um
                      padrão estético, nada disso é suficiente para que se
                      afirme que aí existe preconceito. E assim como não se
                      deve aceitar a atitude preconceituosa, desprovida de
                      racionalidade e sem o suporte moral de uma avaliação
                      cuidadosa, é indispensável, também, que se respeite a
                      liberdade de escolha de cada um. Mas é preciso que as
                      pessoas estejam atentas quanto ao risco da insinuação do
                      preconceito ou da aceitação de uma atitude
                      preconceituosa, para não serem vítimas desse “veneno
                      do espírito”.
                      
                        
                      
                       Assim,
                      por exemplo, não gostar de uma escola de pintura, de um gênero
                      musical ou mesmo de um autor ou intérprete faz parte do??s
                      atributos da liberdade humana e é direito fundamental que
                      deve ser respeitado. Mas quem 
                      exigir que as demais pessoas tenham as suas mesmas
                      preferências ou idiossincrasias, afirmando sempre que tem
                      razões objetivas para que todos o acompanhem reconhecendo
                      certas manifestações como boas e outras como más, corre
                      sério risco de estar dando acolhida ao preconceito. Do
                      mesmo modo, avaliar as pessoas e seus atos com base,
                      simplesmente, na condição social, na situação econômica,
                      nas tradições de família, na profissão, na etnia ou
                      nacionalidade, sem conhecer as circunstâncias concretas
                      de cada um, é praticar o preconceito, ignorando que faz
                      parte dos direitos fundamentais de todas as pessoas 
                      humanas o direito a um julgamento justo.
                      
                        
                      
                      Raízes
                      do preconceito
                      
                       
                   ??   
                       São
                      vários os fatores que podem dar origem ao preconceito e
                      muitas vezes este nasce da conjugação de diversos
                      fatores. Entretanto, embora muitas vezes não seja fácil
                      identificar a origem da atitude preconceituosa em
                      determinada situação concreta, é possível apontar
                      alguns dos principais geradores de preconceitos.
                      
                        
                      
                       A
                      ignorância já foi reconhecida e apontada como a
                      mais rica das sementeiras onde nascem preconceitos. Na
                      realidade, não é preciso muito esforço para percebermos
                      que o ignorante é campo fértil para o preconceito. Cada
                      um de nós, se fizer uma avaliação cuidadosa de todas as
                      atitudes de aprovação ou reprovação que já adotou,
                      provavelmente acabará reconhecendo que numa ou noutra
                      situação julgou e condenou alguma pessoa ou alguma coisa
                      sem conhecer, deixando-se influenciar por julgamentos de
                      outros. E quantas vezes, depois de termos tomado uma
                      atitude preconceituosa nos damos consciência disso,
                      especialmente quando passamos a conhecer fatos e circunstâncias
                      que nos teriam feito julgar de modo d??iferente se fossem
                      conhecidos antes.
                      
                        
                      
                       Mas
                      a presa mais fácil do preconceito é o ignorante que não
                      sabe e não quer saber, é aquele que está satisfeito com
                      a sua ignorância. É muito fácil transmitir uma idéia
                      preconceituosa para uma pessoa com essas características,
                      porque ela está completamente indefesa e, no entanto, sem
                      dar-se 
                      
                       
                      
 conta
                      de seu deslize ético, ela profere julgamentos sem nunca
                      procurar conhecer os dados daquilo que vai julgar e
                      permanece indiferente às injustiças que comete.
                      
                        
                      
                       Um
                      bom exemplo da atuação do preconceito enquanto filho da
                      ignorância é a atitude do povo brasileiro, de modo
                      geral, em relação aos índios. O povo brasileiro conhece
                      muito pouco, praticamente nada, a respeito dos grupos indígenas
                      que desde tempos imemoriais habitam o território
                      brasileiro. E apesar de inúmeras denúncias de violências
                      contra os índios, que são, provavelmente, a minoria mais
                      indefesa e, sem dúvida alguma, das mais agredidas do
                      Brasil, muitas pessoas aceitam com facilidade as mentiras
                      e distorções que aparecem na grande imprensa. Os índios
                      brasileiros são apresentados como latifundiários ricos,
                      proprietários de automóveis e aviões e, não
                      satisfeitos com os enormes privilégios de que desfrutam,
                      sempre querendo mais, ameaçando e praticando violências
                      contra brancos indefesos. E ainda é aceita a imagem do índio
                      “selvagem”, feroz e sempre cometendo as maiores
                      brutalidades, necessitado, portanto, de ser aculturado
                      rapidamente para que se torne um 
                      “civilizado” e aprender, talvez, com os
                      exemplos da civilização branca, européia e cristã que
                      produziu o nazismo ou a carnificina da Bósnia. Assim o
                      preconceito colabora para o genocídio dos índios.
                      
                        
                      
                       Outro
                      auxiliar valioso do preconceito é o que se poderá
                      denominar educação domesticadora, que consiste em
                      educar alguém, que poderá ser uma criança ou um adulto,
                      para aceitar sem reflexão ou crítica tudo aquilo que se
                      impinge como verdade e que, muitas vezes, estimula a prática
                      de atos manifestamente ofensivos aos direitos humanos
                      fundamentais e à dignidade da pessoa humana. É comum que
                      uma criança, desde a mais tenra idade, receba informações
                      preconceituosas, como verdades prontas e acabadas, 
                      e seja estimulada a agir a partir de preconceitos.
                      É o que se dá, por exemplo, com o preconceito racial,
                      que através desse processo de educação domesticadora é
                      reproduzido de geração em geração, influindo sobre o
                      comportamento de grandes segmentos da sociedade ou mesmo
                      de todo um povo.
                      
                        
                      
                       Vale
                      a pena chamar a atenção para um desses preconceitos, que
                      adquiriu extraordinária solidez graças à educação e
                      se tornou praticamente universal. Refiro-me ao julgamento
                      preconceituoso da capacidade da mulher, que atua às v??ezes
                      com muita sutileza, como através do estereótipo da frágil
                      e submissa  “rainha do lar”. Nesse caso ocorre, ainda, uma grande
                      ironia, pois a partir dessa imagem a mulher ficou, durante
                      muito tempo, confinada ao lar, sem a possibilidade de
                      exercício de uma profissão ou de aprimoramento
                      intelectual. E a ela foi confiada a educação dos filhos
                      e filhas, o que tem feito da mulher, de modo geral, uma
                      poderosa aliada do preconceito, que ela tem aceitado 
                      e transmitido aos seus descendentes. E desse modo o
                      preconceito ganha a consagração de “verdade antiga”,
                      pois suas próprias vítimas colaboram muito para sua
                      perpetuação.
                      
                        
                      
                       Precisamente
                      nessa linha é que se podem identificar muitos
                      preconceitos atuando na formação da mentalidade de
                      agentes policiais. A par da carga preconceituosa que
                      recebem na família e na convivência social 
                      recebem também o treinamento preconceituoso, a
                      “educação domesticadora”, que vai influir
                      decisivamente no modo de desempenho de suas atribuições.
                      O preconceito se torna explícito, por exemplo, no
             ??         recebimento de uma queixa, havendo diferenças se o
                      queixoso é um homem ou uma mulher, um branco ou um negro,
                      um rico ou um pobre. E o mesmo preconceito prossegue nas
                      atividades de vigilância, investigação ou repressão.
                      Essa atitude preconceituosa está presente no treinamento,
                      assim como no modo de agir dos superiores hierárquicos e
                      dos colegas mais antigos, o que, também neste caso, dá
                      ao preconceito o rótulo de “verdade antiga” , de
                      procedimento normal e por isso mesmo não sujeito a
                      discussão ou crítica.
                      
                        
                      
                       Outro
                      “veneno do espírito” que muito contribui para a fixação
                      e a reprodução de preconceitos é a intolerância,
                      que hoje é tão disseminada que tem quase a marca de
                      característica de uma época. Diversas razões de ordem
                      social, política e econômica fizeram com que as
                      sociedades do 
                      
                       
                      
 final
                      do século XX se tornassem predominantemente materialistas
                      e competitivas, fazendo da convivência social um jogo
                      impiedoso de ambições, que sepultou a solidariedade e
                      estimulou o individualismo. Nesse quadro o preconceito tem
                      passagem fácil, pois as relações entre as pessoas, 
                      
                       como
                      é bem evidente nas grandes metrópoles, está sempre
                      muito próximo de um confronto de competidores ou mesmo
                      inimigos, cujos vícios e defeitos devem ser ressaltados
                      para que fiquem em posição inferior. Em conseqüência,
                      tudo o que se possa pensar, dizer ou fazer de negativo em
                      relação a alguém está justificado, sendo dispensável
                      maior indagação.
                      
                        
                      
                       Esse
                      comportamento intolerante, que acolhe facilmente o
                      preconceito e, por sua vez, dá grande impulso à sua
                      disseminação, é muito evidente na linha seguida por
                      grande veículos de comunicação de massa, como jornais,
                      revistas, televisão e rádio. Da maneira mais leviana são
                      feitas afirmações preconceituosas, como se fo??sse a
                      transmissão de verdades cuidadosamente apuradas e isentas
                      de qualquer dúvida. Reputações pessoais adquiridas
                      através de uma vida honrada são 
                      destruídas pela manipulação de preconceitos, sem
                      a possibilidade de defesa, desde que se trate de alguém
                      que, de alguma forma, se ponha contra as idéias e convicções
                      dos proprietários ou controladores dos órgãos de
                      comunicação. Pelo mesmo motivo, movimentos sociais
                      essencialmente justos são atacados e desmoralizados
                      mediante o enfoque através de uma ótica preconceituosa.
                      E assim a intolerância, irmã gêmea da ambição
                      desprovida de barreiras éticas, usa e fortalece o
                      preconceito, contribuindo para a injustiça social.
                      
                        
                      
                       Outro
                      fator muito presente no nascimento e na duração de
                      preconceitos é o egoísmo, que também anda muito
                      próximo da intolerância e se nutre dos mesmos vícios
                      sociais há pouco assinalados. O egoísta não se preocupa
                      com a justiça de suas atitudes, de suas palavras e de seu
                      comportamento. É bom o que lhe convém e é mau o que lhe
                      causa embaraço ou prejuízo. A partir daí ele passa a
                      utilizar conclusões preconceituosas, especialmente ??em
                      situações de competição, pois para o egoísta tudo e
                      todos que prejudiquem seus interesses são maus e
                      desprovidos de qualquer virtude, não sendo, por isso,
                      merecedores de respeito. Essa avaliação, nitidamente
                      preconceituosa, inspira a apresentação e utilização do
                      preconceito como verdade e como julgamento justo.
                      
                        
                      
                       Uma
                      forma sutil de ação preconceituosa mascarada de decisão
                      amadurecida e justa é a condenação ou marginalização
                      de uma pessoa sob pretexto de se tratar de alguém de nível
                      inferior ou de reputação duvidosa. O egoísta já tem
                      posição tomada contra essa pessoa e tem todas as conclusões
                      contra ela, mesmo que nada conheça de negativo, pois o
                      que lhe importa é a eliminação do concorrente ou obstáculo
                      e ele faz isso montado no preconceito. Essa é mais uma
                      forma de criação e utilização de preconceitos, contra
                      a qual é preciso ter a atenção desperta.
                      
                        
                      
                       Finalmente,
                      outro fator que atua na vida social como gerador de
                      preconceitos é o medo. Esse fator está muito
                      presente na violência que se comete, com muita freqüência,
                      contra pessoas pobres, especialmente as de pele escura. O
                      preconceituoso tem como ponto de partida que todo negro
                      pobre é um criminoso em potencial e por esse motivo
                      muitas vezes comete violências “preventivas”, para se
                      defender de um risco imaginário. De fato, essa é uma das
                      mais freqüentes manifestações de preconceito nas
                      grandes cidades, mas ocorrem muitas outras igualmente
                      geradas pelo medo.
                      
                        
                      
                       Assim,
                      por exemplo, existem preconceitos sociais contra famílias
                      pobres ou pessoas sem instrução superior, contra
                      imigrantes nacionais ou internacionais. Pode-se, também,
                      identificar facilmente a presença e ação do preconceito
                      na definição de preferências políticas. Manipulando o
                      medo, as correntes mais conservadoras, que controlam os órgãos
                      de comunicação, difundiram o preconceito de que os
                      partidos de esquerda são inimigos da propriedade privada,
                      da família, da religião, do progresso e da paz social. E
                      pessoas facilmente influenciáveis aceitam e muitas vezes
??                      sustentam com veemência esses 
                      argumentos de forma 
                      preconceituosa, sem jamais terem refletido 
                      
                       
                      
 sobre
                      essas questões, sem terem procurado conhecer melhor o
                      assunto. Essas pessoas acolhem o preconceito e contribuem
                      para sua reprodução. 
                      
                        
                      
                       Uma
                      das mais evidentes demonstrações de que o medo é
                      gerador de preconceitos é a posição de muitos
                      brasileiros que se dizem contra os direitos humanos. Na
                      verdade, houve e há intensa manipulação, para que essa
                      atitude irracional pareça o fruto de madura e firme
                      convicção. De fato, quando se começou a falar em
                      direitos humanos no Brasil, na década de sessenta, o País
                      estava sob ditadura militar, que se instalara sob pretexto
           ??           de impedir que o comunismo fosse implantado no Brasil. Os
                      defensores dos direitos humanos passaram a denunciar
                      ilegalidades e mesmo atrocidades cometidas pelo governo ou
                      com seu apoio, contra os adversários políticos. Para
                      dificultar a defesa dos direitos humanos foi disseminada a
                      afirmação de que isso era, na realidade, defesa do
                      comunismo, contra a liberdade dos brasileiros. E muita
                      gente aceitou essa afirmação, que não passava de
                      preconceito, pois a observação dos fatos e uma reflexão
                      imparcial levaria à rejeição dessa impostura. Mas o
                      preconceito conquistou espaço.
                      
                        
                      
                       Mais
                      tarde, superada a crise político-militar, os defensores
                      dos direitos humanos, que tinham visto e apreendido muito
                      sobre a prática da tortura na prisões, passaram a
                      enfatizar a exigência de respeito aos direitos
                      fundamentais de todas as pessoas, inclusive dos suspeitos
                      ou acusados da prática de crimes. As elites econômicas,
                      incluindo muitas fortunas feitas durante o regime militar
                      e graças a ele, passaram a temer pela garantia de seu
                      patrimônio e a considerar que todos os pobres e
                      marginalizados, mesmo sem nunca terem delinqüido,
                      deveriam ser mantidos sob?? rígido controle pelas forças
                      militares, para impedir ameaças à propriedade. As violências
                      e arbitrariedades cometidas com esse objetivo foram
                      denunciadas pelos defensores dos direitos humanos, que
                      passaram, então, a ser rotulados de defensores dos
                      criminosos. Evidentemente, era, outra vez, uma afirmação
                      mentirosa, que foi difundida e alimentada para que se
                      construísse um preconceito. E outra vez houve muitos que,
                      sem atentar para a realidade e sem refletir sobre o
                      assunto, aceitaram a acusação de que a defesa de
                      direitos humanos correspondia à defesa de crimes e
                      passaram a agir em função dela, implantando-se dessa
                      forma mais um preconceito. Por isso temos no Brasil o
                      absurdo de pessoas humanas que se dizem contra os direitos
                      humanos. Evidentemente, são contra os direitos humanos
                      “dos outros” enquanto exigem a defesa dos seus. O
                      preconceito é responsável por essa atitude ilógica e
                      injusta. 
                      
                        
                      
                       Os
                      seres humanos, por sua própria natureza, não conseguem
                      viver sozinhos. Uns precisam dos outros, para satisfação
                      de suas necessidades materiais, psicológicas e
                      espirituais. Por esse motivo, a convivência é uma
                      necessidade essencial da pessoa humana, sendo necessário,
                      também, que as pessoas convivam em ambiente de respeito
                      recíproco e solidariedade, para que a vida em comum seja
                      um benefício e não uma guerra constante. 
                      
                        
                      
                       A
                      convivência humana é afetada de maneira profunda e
                      negativa pelo preconceito, que estabelece diferenças
                      graves entre as pessoas, negando direitos fundamentais e
                      gerando conflitos. Uma breve enumeração de efeitos
                      sociais do preconceito será suficiente para que se
                      percebam claramente os prejuízos que dele decorrem.
                      
                        
                      
                       -
                      o preconceito acarreta a perda do respeito pela pessoa
??                      humana. Na realidade, como a história tem mostrado
                      muitas vezes, e mostrou com grande eloqüência no século
                      XX, o preconceito faz com que certas pessoas sejam
                      estigmatizadas, sofrendo humilhações e violências, que
                      podem ser impostas com sutileza ou relativo disfarce ou
                      então de maneira escancarada, mas que, em qualquer
                      circunstância, são negações do respeito devido à
                      dignidade de todos os seres humanos.
                      
                       
                      
 -
                      o preconceito restringe a liberdade de muitas
                      pessoas, podendo afetar a decisão livre da maioria dos
                      membros de um povo. Não são raras as situações em que
                      um preconceito, sustentado pelo governo ou encampado por
                      grupos sociais influentes, adquire a condição de valor
                      social 
                      
                       relevante
                      ou sinal de modernidade e ajuste às tendências mais avançadas.
                      A partir daí as pessoas são praticamente coagidas a
                      aderirem ao preconceito e quando não aderem em sua consciência 
                      fingem a adesão em sua prática. Foi assim, por
                      exemplo, quando os nazistas impuseram a idéia de que os
                      judeus são essencialmente maus e perniciosos, foi assim,
                      no Brasil, quando os governos militares estabeleceram que
                      quem não concordasse com o governo não era patriota e
                      deveria deixar o País, é assim, também, quando
                      segmentos racistas da sociedade difundem a idéia da
                      inferioridade da raça negra, verificando-se fenômeno da
                      mesma natureza quando, através da televisão e da grande
                      imprensa se divulga com insistência que o povo considera
                      que a atual Constituição é péssima e que por causa
                      dela o Brasil não tem um bom governo. Como quase ninguém
                      tem a coragem de dizer que essas afirmações são
                      generalizações de  falsas
                      verdades, estas ganham a aparência de julgamentos
                      independentes e imparciais.
                      
                        
                      
                       A
                      maldade inata dos judeus, a falta de patriotismo dos
                      opositores, a inferioridade da raça negra, 
                      a rejeição da Constituição pelo povo, a excelência
                      do cantor promovido pela imprensa, todas essas afirmações
                      se transformam em preconceitos, qu??e, justamente por terem
                      essa natureza, deveriam ou devem ser aceitos sem reflexão
                      ou discussão, anulando-se, portanto, a liberdade de
                      julgamento das pessoas que passaram ou passam a agir como
                      se tivessem feito seu próprio julgamento da idéia
                      imposta. E as pessoas incapazes de resistir aos
                      preconceitos deixam de ser livres.
                      
                        
                      
                       -
                      o preconceito introduz a desigualdade entre os
                      seres humanos, podendo atingir 
                      toda a sociedade ou os membros de um povo
                      determinado. Em conseqüência dos preconceitos as pessoas
                      diretamente ou indiretamente atingidas por eles são
                      julgadas negativamente e colocadas em situação de
                      inferioridade social. Desse modo deixa de prevalecer o
                      reconhecimento moral da igualdade essencial de todos os
                      seres humanos e fica prejudicado o direito à igualdade,
                      que deveria ser assegurado a todas as pessoas. 
                      
                        
                      
                       -
                      o preconceito estabelece e alimenta a discriminação.
                      As pessoas atingidas pelo preconceito recebem tratamento
                      diferenciado, sofrendo proibições e marginalizações.
                      Muitas vezes essas discriminações implicam humilhações
                      ou sofrimentos morais de várias naturezas. Além disso,
                      é sabido que por causa do preconceito muitas pessoas são
                      impedidas de ter acesso a determinadas profissões ou têm
                      extremamente dificultado seu acesso numa carreira. Assim,
                      por exemplo, embora desde o ano de 1900 haja advogadas
                      formadas no Brasil até hoje não houve mulheres
                      desembargadoras na quase totalidade dos Tribunais de Justiça
                      dos Estados brasileiros e jamais se cogitou da indicação
                      de uma mulher para o Supremo Tribunal Federal. E ainda há
                      antigas instituições universitárias que nunca admitiram
                      o acesso de mulheres, como acontece, por exemplo, na
                      Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, onde
                      nunca houve mulher catedrática ou titular.
                      
                        
                      
                       -
                      o preconceito promove a injustiça. Por todos os
                      efeitos sociais já enumerados fica evidente que o
                      pre??conceito é fonte de injustiças. Antes de tudo, pelo
                      simples fato de ignorar o princípio fundamental da
                      igualdade essencial de todas as pessoas, anulando a regra
                      básica segundo a qual nenhuma pessoa vale mais do que a
                      outra e, inversamente, nenhuma pessoa vale menos do que a
                      outra. A par disso, onde atua o preconceito não importam
                      os méritos, as aptidões, o valor moral e intelectual e
                      outros dos atributos que, na vida social, influem para a
                      diferença de comportamentos e de oportunidades. O
                      preconceito cria superioridades e inferioridades que
                      independem das circunstâncias concretas e de avaliação
                      objetiva, oferecendo para alguns um caminho íngreme e
                      pedregoso, onde outros encontram caminhos suaves e amplos,
                      além de barrar totalmente a passagem para muitos. A
                      presença do preconceito expulsa a justiça.
                       O
                      preconceito na área jurídica
                      
                        
                      
                       A
                      expressão “área jurídica”, aqui utilizada,
                      refere-se aos vários setores e às diversas atividades
                      diretamente relacionados com a legislação, a doutrina
                      jurídica, a jurisprudência e a outras manifestações
    ??                  que implicam responsabilidade pela aplicação da lei e
                      garantia dos direitos. A amplitude dessa área é muito
                      grande e se alguém quiser ampliar e aprofundar o exame do
                      assunto sob essa ótica poderá encontrar muitos exemplos
                      de interferência do preconceito, nas mais diversas partes
                      do mundo. Nesta exposição o que interessa, sobretudo, é
                      chamar a atenção para a ocorrência de atitudes
                      preconceituosas em setores da organização jurídica
                      brasileira.
                      
                        
                      
                       Um
                      ponto positivo que deve ser assinalado é que a Constituição
                      brasileira de 1988 estabeleceu várias normas que visam
                      impedir a prática do preconceito. Assim, no artigo 1º,
                      onde são enumerados os fundamentos da República, está
                      expressamente referida “a dignidade da pessoa humana”,
                      sendo, portanto, inconstitucionais os atos e os
                      comportamentos que afrontem essa dignidade. No art. 5º
                      está disposto que “todos são iguais perante a lei, sem
                      distinção de qualquer natureza”, o que significa que
                      ninguém pode ter seus direitos diminuídos, por exemplo,  em razão de sua origem étnica ou pelo fato de ser mulher ou
                      homossexual, seguindo-se alguns incisos que reforçam essa
                    ??  afirmação de igualdade. O inciso I estabelece que
                      “homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações”.
                      Pelo  inciso
                      VIII “ninguém será privado de direitos por motivo de
                      crença religiosa ou de convicção filosófica ou política”,
                      o que também é importante para impedir discriminações
                      preconceituosas.
                      
                        
                      
                       Finalmente,
                      merecem especial referência dois incisos do artigo 5º
                      que dispõem sobre a punição de quem agir contra o
                      direito à igualdade jurídica de uma pessoa, praticando
                      discriminação, o que inclui, obviamente, a restrição a
                      direitos baseada em preconceito. Segundo o inciso XLI,
                      “a lei punirá qualquer discriminação atentatória dos
                      direitos e liberdades fundamentais”. Isso é
                      complementado pelo inciso XLII, onde ficou estabelecido
                      que “a prática do racismo constitui crime inafiançável
                      e imprescritível”.
                      
                        
                      
                       Esse
                      conjunto de normas permite afirmar que, em termos
                      constitucionais, não há lugar para o preconceito na
                      elaboração e aplicação das leis. Entretanto, isso não
                      quer dizer que tenham sido eliminados remanescentes
                      preconceituosos que ainda podem ser encontrados em muitas
                      leis brasileiras, como também não garante que os
                      aplicadores da lei agirão livres de preconceitos. Apesar
                      dessas ressalvas, não há como negar que a Constituição
                      adotou o melhor caminho, dando instrumentos para quem for
                      vítima de atos preconceituosos ou quiser participar das
                      lutas sociais contra o preconceito. É preciso que, à
                      medida em que forem identificados, os remanescentes de
                      inspiração preconceituosa que ainda existem na legislação
                      sejam eliminados pela ação do legislador. Mas também é
                      necessário um trabalho constante de conscientização,
                      para que a jurisprudência não seja viciada pelo
                      preconceito e para que o Ministério Público e a Polícia,
                      esta sobretudo, não se deixem levar por preconceitos e
                      atuem firmemente contra eles. Vejamos alguns casos
                      exemplares, em que o preconceito está presente, sem que
                      muitas pessoas o percebam, ou então situações em que
                      foi óbvia a motivação preconceituosa em atos de agentes
                      públicos encarregados de aplicar as leis.
                      
                        
                      
                       Começando
                      pela legislação, verifica-se que em muitos pontos
                      importantes, como no estabelecimento da capacidade jurídica
                      das pessoas ou na definição de crimes e contravenções,
                      há componentes preconceituosos. O Código Civil
                      Brasileiro, em vigor desde 1917, dispõe que algumas
                      pessoas são plenamente capazes e outras, no extremo
                      oposto, não têm capacidade para praticar qualquer ato
                      jurídico. Entre esses dois extremos estão os
                      relativamente capazes, que sofrem restrições quanto a
                      certos atos. Um dos relativamente capazes são os “pródigos”,
                      que no antigo direito português são definidos como
                      aqueles que gastam desordenadamente seu dinheiro e
                      destroem seu patrimônio. É interessante saber que o
                      autor do projeto do Código Civil, Clóvis Beviláqua, era
                      
                      
                       
 contra
                      essa restrição, que foi inserida durante a discussão do
                      projeto na Câmara de Deputados. Explica Clóvis que a
                      restrição aos direitos do pródigo vem de uma época em
                      que os bens da família eram uma ??espécie de
                      compropriedade e os herdeiros de uma pessoa eram
                      considerados seus sócios, antes mesmo que ela morresse. 
                      
                        
                      
                       Na
                      realidade, existe aí uma clara influência dos valores
                      burgueses, segundo os quais o patrimônio era sagrado,
                      sendo inaceitável que alguém gaste desordenadamente o
                      seu próprio dinheiro. Para se ter idéia do absurdo dessa
                      restrição, basta lembrar que o avarento, aquele que
                      passa fome, vive mal acomodado e comporta-se de maneira
                      ridícula, preocupado sempre em acumular mais dinheiro,
                      esse é considerado normal e não sofre qualquer restrição
                      de direitos.
                      
                        
                      
                       A
                      tragédia que foi o massacre de pobres trabalhadores
                      rurais, os sem-terra, em Eldorado de Carajás, no Estado
                      do Pará, mostra de maneira eloqüente a brutalidade e
                      imoralidade a que pode levar uma ação inspirada no
                      preconceito. Os ditos proprietários das terras em questão
                      nem mesmo eram proprietários, pois se tratava de terras
                      devolutas, pertencentes ao patrimônio do Estado, que
                      alguns ricos e poderosos donos de terras tomaram para si.
                      Mas os sem-terra são muito pobres e se movimentam à
                      procura de um lugar para fixar suas famílias e trabalhar.
                      Além da corrupção econômica presente naquele massacre,
                      é fato que na mentalidade daquela região os sem-terra,
                      exatamente por esta condição, são considerados bandidos
                      perigosos. Daí a facilidade para se aliarem latifundiários,
                      governantes, tribunais e Polícia, para a matança dos que
                      nem mesmo são vistos como seres humanos, pessoas e famílias
                      para quem não vigora o artigo 1o. da Constituição, que
                      declara a dignidade humana como um dos fundamentos da República.
                      O preconceito falou e continua falando muito alto naquela
                      região, sendo praticamente certa a impunidade dos
                      assassinos.
                      
                        
                      
                       Quero
    ??                  destacar, agora, um exemplo colhido na doutrina jurídica,
                      para que se veja que o preconceito pode estar presente de
                      maneira disfarçada, podendo-se esconder-se mesmo atrás
                      de uma fachada muito nobre. Houve nesta Faculdade um
                      excelente professor e respeitado criminalista, Basileu
                      Garcia, homem afável e de trato muito agradável, que
                      sempre condenou as violências e injustiças. Em seu livro
                      intitulado Instituições de Direito Penal (São
                      Paulo, ed. Max Limonad, 1956), são feitos comentários a
                      respeito da situação do índio na legislação penal
                      brasileira. Defendendo um tratamento mais favorável para
                      o índio, tem-se a impressão de que a posição do
                      professor Basileu Garcia tem inspiração humanista, pois
                      aparentemente ele reconhece que o índio é parte frágil
                      dentro da sociedade brasileira, sobretudo pelas diferenças
                      culturais. Entretanto, a justificativa apresentada por ele
                      para justificar a benevolência é terrível, baseando-se
                      num dado falso tornado “verdade” pela repetição
                      preconceituosa.
                      
                        
                      
                       Eis
                      o seu comentário: “Diz a Exposição de motivos
                      que o artigo 22 tem também em vista, além dos enfermos
                      mentais, os indivíduo??s de desenvolvimento mental
                      retardado ou incompleto, que não sejam propriamente
                      alienados. Assim, alcança os silvícolas. O indígena
                      pode cometer crime em conseqüência de seu incompleto ou
                      retardado desenvolvimento mental, embora não seja um
                      doente. Os delitos que venha a praticar explicam-se, freqüentemente,
                      pelo déficit de seu desenvolvimento mental,
                      reduzido como se acha ele à incapacidade de entender o
                      caráter criminoso do acontecimento ou de determinar-se de
                      conformidade com o entendimento acaso nebulosamente
                      existente” (vol. I, tomo I, pág. 330). Eis aí um
                      retrato de corpo inteiro do preconceito, oculto sob o
                      manto da generosidade e do humanismo. O índio é
                      considerado deficiente mental porque tem uma cultura
                      diferente, sendo assim ofendido em sua dignidade de pessoa
                      humana, com base num preconceito que ainda influi muito no
                      comportamento de juízes, advogados, policiais e outros
                      operadores do direito.
                      
                        
                      
                       
 Outro
                      fato, ocorrido há alguns anos em São Paulo, mostra como
                      a autoridade policial 
                      fez uma adaptação da lei através de uma
                      interpretação preconceituosa. Uma advogada negra foi
                      visitar uma colega, no prédio em que esta residia. Alí
                      chegando recebeu do porteiro a informação de que, por
                      ser negra, deveria utilizar o elevador de serviço.
                      Sentindo-se profundamente injustiçada e humilhada, essa
                      advogada foi à Delegacia de Polícia da região, onde
                      relatou o fato e pediu abertura de inquérito criminal,
                      com base na chamada Lei Afonso Arinos, que na época
                      previa a punição de quem agisse por preconceito racial.
                      Ouvidas as partes envolvidas, ficou plenamente comprovada
                      a prática de preconceito, inclusive pela confissão do
                      porteiro. O delegado escreveu, então, seu relatório
                      final, concluindo pelo arquivamento do inquérito, porque,
                      segundo ele, a lei proibia a discriminação em locais públicos
                      e aquele edifício era residencial, caracterizando-se,
                      portanto, como local privado. O fato é que tanto
                      moradores do edifício quanto o porteiro eram favoráveis
                      à discriminação e alguém, possivelmente um advogado,
                      sugeriu o argumento que, aparentemente, descaracterizava a
                      prática do preconceito.
                      
                        
                      
                      ?? Outra
                      situação muito expressiva, que se repete diariamente
                      como fato normal, é ressaltada com muita propriedade pelo
                      professor Paulo Sérgio Pinheiro, criador e diretor do Núcleo
                      de Estudos da Violência, da Universidade de São Paulo.
                      Usando um termo da moda, importado dos Estados Unidos para
                      uma ridícula simulação de superioridade social, ele
                      destaca a existência de “acusados VIP” (de very
                      important person, ou pessoa muito importante), que
                      recebem da Polícia um tratamento VIP e, quando se chega a
                      isso, o que é raro, são julgados por uma justiça VIP.
                      
                        
                      
                       Quando
                      essas pessoas se envolvem, de alguma forma, numa ocorrência
                      que pode configurar um crime, recebem dos policiais um
                      tratamento excepcional, como relata Paulo Sérgio
                      Pinheiro: “os delegados e as autoridades policiais
                      asseguram aos acusados VIPs imediata comunicação com
                      seus advogados e amigos, para que estes possam usar
                      livremente os esquemas de influência. Não importa o
                      crime cometido, a prisão preventiva é geralmente
                      evitada”. E continua, acrescentando algumas informações
                      mu??ito expressivas: “as clínicas para esgotamento
                      nervoso são uma opção mais chique. Os homicídios são
                      tratados com generosa bonomia”. E conclui com ironia :
                      “as vítimas, para a justiça VIP, são sempre
                      culpadas” (depoimento transcrito no livro  Violência,
                      Povo e Polícia, de Maria Victoria Benevides, São
                      Paulo, Brasiliense, 1983, pág. 47). Nesses casos, a
                      categoria social das pessoas é fator decisivo, pois
                      existe a idéia generalizada, evidentemente
                      preconceituosa, de que os membros das camadas sociais mais
                      elevadas não podem receber o mesmo tratamento que se dá
                      a um pobre.
                      
                        
                      
                       Algumas
                      décadas atrás, houve um governador do Estado de São
                      Paulo que decidiu desencadear intensa e rigorosa ação
                      policial, contra os hotéis chamados “de curta permanência”,
                      utilizados para encontros sexuais. O que se viu foi a prisão
                      de muitos porteiros e gerentes desses hotéis, ficando
                      resguardada a pessoa do proprietário, que era quem
                      realmente lucrava com a exploração daquele comércio.
                      Para os policiais, e mesmo para a generalidade dos
                      governantes e do povo, o dono do hotel era proprietário e
                      empresário, não podendo?? ser tratado como delinqüente. A
                      mesma coisa está ocorrendo agora no Brasil, com farta
                      publicação de informação que não deixa dúvida de que
                      muitos dos grande banqueiros brasileiros são agiotas e
                      estelionatários, além de praticarem amplamente a sonegação
                      de impostos e de enviarem, irregularmente, muito dinheiro
                      para fora do Brasil. Mas todos esses personagens, alguns
                      bem conhecidos do povo e da polícia, são “respeitáveis
                      ladrões" e por isso quem corre o risco de ir para a
                      cadeia é algum gerente ou contador, algum ingênuo colega
                      do porteiro ou gerente do hotel de curta permanência.
                      
                        
                      
                       Vem
                      muito a propósito o registro de um depoimento colhido
                      pela Professora Maria Victória Benevides no Rio de
                      Janeiro e relatado em sua obra anteriormente citada.
                      Vejamos o seu relato: “numa batida na Cidade de Deus, um
                      bairro do Rio de Janeiro, a polícia prendeu, como
                      suspeitos, 140 pessoas que não conseguiram provar,
                      naquele momento, que trabalhavam. A polícia não 
                      
                       
 encontrou
                      bandidos e todos afinal foram liberados. Mas o delegado
                      deu uma entrevista à imprensa dizendo-se muito
                      satisfeito: “pelo menos a gente fotografa e ficha
                      eles”. Você fotografa e ficha, porque quando ele
                      precisar de algum culpado está fácil, ele vai buscar. Aí
                      diz o delegado: “é claro que “eles” ficam marcados
                      definitivamente, na próxima batida, que também pode ser
                      absolutamente arbitrária, eles já serão considerados
                      pessoas com antecedentes, porque eles já tiveram numa
                      batida anterior”. Enquanto não descobre, a polícia
                      fabrica suspeitos e impunemente fornece aos jornais os
                      nomes dos acusados, porteiros de prédios, bombeiros hidráulicos,
                      pedreiros, empregadas domésticas. No dia seguinte a polícia
                      se desdiz, admite estar errada, quando suas vítimas, em
                      geral humildes trabalhadores, estão estigmatizados”
                      (ob. cit., págs. 50/51).
                      
                        
                      
                       Um
                      ponto que não pode deixar de ser ressaltado é o
                      preconceito de policiais, como também de juízes, em relação
                     ?? às camadas mais pobres da população. Isso ficou muito
                      evidente no já mencionado episódio, vergonhoso e trágico,
                      do massacre dos sem-terra em Eldorado de Carajás. Os
                      policiais não tiveram qualquer dificuldade para aceitar a
                      incumbência de matar, como ficou bem comprovado pelas
                      circunstâncias em que ocorreram as mortes, porque as vítimas
                      eram da camada inferior da sociedade e não tinham
                      reconhecida sua dignidade de seres humanos.
                      
                        
                      
                       A
                      mesma coisa poderá ser dita de outro episódio,
                      envolvendo também pobres trabalhadores rurais que lutam
                      por um pedaço de terra onde trabalhar e sobreviver. Em São
                      Paulo, na região denominada Pontal do Paranapanema, a polícia,
                      agindo como força particular de latifundiários e
                      grileiros, saiu no encalço de um dos líderes dos
                      sem-terra, José Rainha, cuja prisão, de legalidade mais
                      do que duvidosa, tinha sido decretada por um juiz. E para
                      obrigar José Rainha a aparecer, a polícia prendeu
                      arbitrariamente sua mulher, Diolinda Alves de Souza,
                      acusando-a da prática do crime de formação de
                      quadrilha. Ninguém razoavelmente informado e inteligente
                      dirá que os sem-terra têm por objetivo a prática de
                      crimes, que é uma cara??cterística essencial de uma
                      quadrilha. E, no entanto, as arbitrariedade foram
                      cometidas sem nenhuma conseqüência para os arbitrários,
                      porque policiais, juízes e grande parte da população têm
                      preconceito em relação aos sem -terra, classificados
                      como ameaças à ordem social. E o preconceito é tão
                      forte que essas pessoas não percebem que, antes de tudo,
                      os sem-terra são pessoas humanas, cuja dignidade é um
                      dos fundamentos da República.
                      
                        
                      
                       Quero
                      referir em seguida um caso registrado na jurisprudência
                      paulista, mencionado na obra A
                      figura/personagem- mulher em processos de família, de
                      Sílvia Pimentel, Beatriz di Giorgi e Flavia Piovesan (
                      Porto Alegre, Sérgio Antonio Fabris Ed., 1993). É o caso
                      de uma mulher mendiga, que vivia catando no lixo alguma
                      coisa que pudesse vender, sofrendo, como se pode bem
                      imaginar, todas as agressões inerentes à sua condição
                      de miserável. Essa mulher tinha sido casada e o marido,
                      embora não sendo um homem rico, desfrutava de situação
                      econômica bem superior à dela. Alguém teve conhecimento
                      do caso e encaminhou a pobre mulher a um serviço de
                      Assistência Judiciária, que moveu ação de alimentos
        ??              para que o marido lhe destinasse alguma coisa, tirando-a
                      daquela vida de extrema degradação. O juiz encarregado
                      de decidir o caso, ouviu 
                      as partes e testemunhas e produziu esta
                      impressionantes “pérola” de preconceito: “é
                      verdade que a agravante vive praticamente na miséria,
                      vendendo coisas que encontra no depósito de lixo, onde se
                      encontra com Severino, seu amante”. Não é preciso
                      fazer muito esforço para imaginar o Severino, tão miserável
                      quanto a mulher, dois farrapos humanos escorando-se
                      mutuamente, tentando sobreviver. E o juiz, do alto de seus
                      preconceitos, só viu aí o pecado, a transgressão, o
                      casal de amantes.
                      
                        
                      
                       E
                      o arremate do juiz não deixa dúvidas, pois mesmo
                      reconhecendo que ambos viviam no lixo, sem um mínimo de
                      resguardo à sua dignidade e mal conseguindo sobreviver,
                      concluiu com ares de solene moralismo: “mas nem por
                      isso, nem só porque ela vive na miséria, o réu é
                      obrigado a prestar-lhe alimentos, os quais são devidos
                      quando a mulher é inocente e pobre; se é pobre, essa
                      autora não é inocente, e seu procedimento irregular é
                      suficiente para obstar-lhe a proteção” (ob.?? cit., pág.
                      60). Não há dúvida de que, nesse caso, os preconceitos
                      morais do juiz produziram maior imoralidade do 
                      
                       
 que
                      o relacionamento da pobre mulher com seu único arrimo
                      Severino, pois com aquela decisão a mulher foi condenada
                      a viver em degradação, incapaz de conseguir que
                      reconhecessem sua condição de pessoa humana.
                      
                        
                      
                       A
                      reação que vem de dentro: justiça sem preconceitos
                      
                        
                      
                       Todos
                      esses casos, marcados pela presença do preconceito, podem
                      gerar a convicção de que não há o que faze??r, pois
                      aparentemente o preconceito está de tal modo arraigado
                      que será praticamente impossível sua extirpação.
                      Felizmente não é assim, pois embora com dificuldades,
                      precisando vencer barreiras antigas e consolidadas, existe
                      uma reação que se faz presente na polícia, no Ministério
                      Público e na magistratura, apontando para novos caminhos,
                      compatíveis com as exigências da dignidade humana e da
                      justiça. É importante denunciar a presença do
                      preconceito, pois muitas vezes ele atua com tanta sutileza
                      que nem sequer é percebido, o que facilita sua permanência.
                      Outras vezes, o preconceito age sem qualquer disfarce,
                      pois contando com ampla aceitação passa como se fosse a
                      normalidade desejada pelo povo. É preciso, então,
                      demonstrar a imoralidade essencial dos preconceitos, além
                      de seu caráter ilegal e injusto.
                      
                        
                      
                       Uma
                      forma eficiente de combater o preconceito é a divulgação
                      de atitudes firmes e corajosas, que produzem bons
                      argumentos e, além disso, comprovam que é possível
                      obter bons resultados práticos. Nessa linha, merece ser
                      conhecido um voto magistral do desembargador Cézar Peluso,
                      membro  do Tribuna??l de Justiça do Estado de São Paulo e um dos
                      fundadores da Associação Juízes para a Democracia. Eis
                      suas palavras: “Quando os operadores do direito, a
                      pretexto de interpretar regras jurídicas, cujas inspirações
                      políticas são de outra ordem, se aventuram a incursões
                      no terreno da moralidade social ou individual, correm
                      sempre o risco de assumir, de maneira inconsciente e
                      inadvertida, posturas ideológicas e preconceitos
                      culturais, que, próprios de sua época, por definição,
                      não resistem à crítica nem ao desenvolvimento histórico
                      da sociedade. Tal é a postura que, sem grande acuidade
                      intelectual, é possível desnudar nos fundamentos mais
                      genéricos e menos jurídicos daquela orientação que,
                      respondendo a superstições do tempo, discrimina a mulher
                      separada, com negar-lhe sob argumentos de natureza ético-sexual,
                      direito cujas raízes não estão nesse campo, mas no da
                      solidariedade ético-social”.
                      
                        
                      
                       E
                      mais adiante, considerando situação concreta em que pais
                      negam alimentos a seus filhos, pondera o desembargador
                      Peluso: “O direito a alimentos - nisto escusa insistir-
                      não foi nem é concebido como recompensa normativa a
                      determinadas virtudes morais, se??não que atende a uma exigência
                      primária de solidariedade humana, no projeto histórico
                      de convivência ética...” 
                      E arremata lembrando uma circunstância concreta:
                      “A um filho não se recusam alimentos sob pretexto de
                      ser libertino ou devasso, marginal ou samaritano. Resgatar
                      a vida é condição prévia e absoluta de qualquer outra
                      elucubração ética ou jurídica” (ob. cit., págs.
                      91/92). Na realidade, existem situações em que,
                      aparentemente, valores éticos se excluem reciprocamente e
                      isso é usado como pretexto pelos que pretendem ocultar
                      seus preconceitos sob a capa de aparente moralismo.
                      
                        
                      
                       Em
                      conclusão, o preconceito não tem justificativa moral nem
                      jurídica e é essencialmente mau e pernicioso. O
                      preconceito estabelece a desigualdade entre as pessoas,
                      sacrifica valores fundamentais, justifica agressões à
                      dignidade da pessoa humana e, por isso tudo, é expressão
                      de uma perversão moral que deve ser, incansavelmente,
                      denunciada e combatida. O preconceito agride a igualdade
                      essencial de todos os seres humanos e por isso é necessário
                      criar barreiras às suas investidas. Mas de uma coisa
                      devemos ter consciênc??ia: não basta fazer novas leis para
                      eliminar a presença e a interferência maléfica do
                      preconceito. Pode ser útil colocar nas leis a proibição
                      das ações preconceituosas e criar penalidades para quem
                      agride a dignidade humana levado por preconceito, mas,
                      acima de tudo, é preciso que no interior de nossas consciências
                      tenhamos um firme 
                      
                       
 compromisso
                      com a defesa da dignidade humana e da igualdade essencial
                      de todos os seres humanos. 
                      
                      
                        
                      
                       Um
                      professor experiente, direto, claro.
                      
                        
                      
                       Júlio
                      : Como já se tornou tradição entre nós, logo após a
                      palestra são encaminhadas perguntas aos conferencistas.
                      Enquanto as estudantes do Centro Acadêmico Onze de Agosto
                      começam a recolher essas perguntas, aproveito o tempo e
                      faço uma primeira ao Professor Dalmo Dallari.
                      Permanentemente, ele participa de cursos de educação e
                      direitos humanos. O senhor acha possível manter no Brasil
                      esses programas? 
                      
                        
                      
                       —
                      Eu acho que não só é possível como também indispensável
                      que haja sempre reflexões a respeito de direitos humanos.
                      Há uma discussão intensa, internacional mesmo, a
                      respeito da conveniência de cursos de direitos humanos,
                      porque tem gente com medo de que isso burocratize a idéia.
                      Mas na verdade o curso de direitos humanos deve ser sempre
                      uma reflexão. Não é a transmissão de esquemas prontos
                      e acabados, de conceitos rígidos, mas é uma transmissão
                      de idéias e conceitos como provocação à reflexão. Então
                      eu acho que isso é possível, sim, e até vou mais
                      adiante, é indispensável que esses cursos 
                      ??sejam abertos a absolutamente todos, que eles não
                      fiquem encerrados dentro de um currículo universitário
                      ou escolar. Que eles tenham a maior amplitude e sejam
                      oferecidos a um maior número de pessoas possível, para
                      que muita gente assuma seus compromissos com os direitos
                      humanos.
                      
                        
                      
                       P:
                      As primeiras perguntas do público... Como querer
                      democracia nos meios jurídicos se o negro continua
                      alijado, impedido de frequentar esses círculos
                      formadores, que são as melhores escolas?
                      
                        
                      
                       —
                      O negro continua ainda a ser vítima da maneira pela qual
                      ele foi inserido na sociedade brasileira. Entretanto eu
                      acho que é possível fazer um 
                      trabalho no sentido de reduzir as discriminações,
                      im??plantando o reconhecimento da dignidade essencial do
                      negro, como da dignidade essencial de todas as demais
                      pessoas. Há uma conjugação muito estreita entre o
                      preconceito racial e a condição econômica. Isto
                      realmente existe. Então se nós dermos ao negro a
                      possibilidade de obter educação básica, de ter acesso
                      às profissões, eu acredito que em algumas décadas a
                      gente poderá atenuar muito a questão do preconceito
                      racial no Brasil. P:
                      O preconceito é inerente à natureza humana, decorrente
                      de um processo inevitável na vida em sociedade?
                      
                        
                      
                       —
                      Eu estou convencido de que o preconceito é adquirido
                      através de alguma forma de educação. Ninguém nasce com
                      preconceito. O preconceito vai aparecer na pessoa através
                      do processo de educação. O processo de educação não
                      é necessariamente a educação que se recebe na escola.
                      Aliás eu acho que o preconceito chega antes disso, o
                      preconceito chega no lar, chega em casa, chega na família,
                      ele é incutido dessa maneira.?? Por isso é absolutamente
                      necessário que nós vivamos conscientemente, muito
                      alertas para não fazermos isso, não alimentarmos esta prática.
                      Aquele pormenor, aquilo que acontece em casa com a criança
                      pequena muitas vezes vai ser um conceito consolidado. Então
                      de qualquer maneira o ponto essencial a meu ver é que o
                      preconceito não nasce com a pessoa, ele é adquirido pela
                      pessoa.
                      
                        
                      
                       
                      
 P:
                      Quando se fala em preconceito, imediatamente nos remetemos
                      aos grupos fechados similares à Maçonaria, à TFP e à
                      Opus Dei. Eu gostaria de ouvir seu comentário à respeito
                      da atuação dessas organizações no judiciário
                      brasileiro.
                      
                        
                      
                       —
                      Essas organizações têm origens diversas e algumas delas
                      na sua raiz, no seu começo, tiveram a intenção de dar
                      proteção às pessoas. Então, por exemplo, imigrantes
                      que eram hostilizados tinham necessidade de apoio recíproco
                      e acabaram formando a sua confraria. Isto depois de certo
                      tempo acaba degenerando e é muito comum que degenere. Na
                      verdade há uma semelhança entre todas essas organizações.
                      Mas é neste ponto que elas acabam sendo discriminatórias,
                      elas acabam concluindo que só os membros da confraria são
                      bons ou que os membros da confraria são os melhores e então
                      nesse ponto são indesejáveis.
                      
                        
                      
                       P:
                      Que o preconceito é danoso é inegável, mas como evitá-lo?
                      
                        
                      
                       —
             ??         Primeira coisa, através da própria consciência, através
                      da permanente auto-fiscalização. É preciso estarmos
                      sempre muito atentos quando formos proferir julgamentos,
                      julgamentos sobre uma pessoa, sobre uma idéia, sobre uma
                      crença. Mas além disto acredito muito na educação
                      libertadora de Paulo Freire, a educação aberta, a crítica
                      constante, com respeito pela pessoa, pela dignidade da
                      pessoa, pela liberdade da pessoa. Acho que assim como o
                      preconceito é incutido pela educação, ele pode ser
                      eliminado pela educação.
                      
                        
                      
                       P:
                      Como você encara a idéia de adoção de uma política de
                      cotas para 
                      Universidades por um período determinado,
                      evidentemente para absorver também negros?
                      
                        
                      
                       —
                      Essa é?? uma questão que frequentemente aparece e já
                      apareceu aqui na USP. Fui contra e continuo sendo contra.
                      Eu acho que é uma forma de discriminação, que acaba
                      sendo muito mais negativa do que positiva. Então se eu
                      estabelecer, por exemplo, uma cota para negros, já fica
                      estabelecido que eu acho os negros inferiores. Eu acho que
                      eles não são capazes de concorrer, por isso eu dou uma
                      cota para eles. Isto não é bom para os negros de maneira
                      alguma. Quer dizer, o que eu tenho que fazer é dar
                      oportunidades para que 
                      todos tenham educação básica da mesma qualidade
                      e possam competir na mesma condição de igualdade. Mas não
                      criar esse tipo de favorecimento, que é essencialmente
                      discriminatório. Aliás ainda há cerca de um mês, mais
                      ou menos, eu estive nos Estados Unidos, na Universidade do
                      Texas, e aí um professor me deu a cópia, que eu trouxe
                      comigo, de uma petição que deu entrada no Judiciário,
                      em que um grupo branco está acusando a Universidade do
                      Texas de fazer discriminação, exatamente porque ela
                      criou as cotas. Diz "olha aí, está protegendo os
                      negros, está favorecendo demais os negros, eles não
                      ficam sujeitos ao mesmo rigor de ingresso que se aplica
                      aos brancos". E a Universidade está vivendo uma
                      situação complicada. Primeiro ela é acusada de não dar
                      espaço para os negros. Aí ela resolveu e criou as cotas,
                      agora ela está sendo acusada de criar as cotas, então
                 ??     está discriminando... Na verdade é um decisão
                      discriminatória. 
                      
                        
                      
                       P:
                      O senhor associou a questão do preconceito com a questão
                      da diferença, do convívio com diferentes valores e
                      diferentes culturas. No entanto, o direito por sua
                      natureza procura, à luz de certos conceitos básicos,
                      enfocar e tratar a todos sobre princípios prévios. Ele
                      é expressão de valores de uma certa cultura. Sendo
                      assim, como podem a ordem e a coação jurídica se
                      harmonizarem com as diversidades de identidades e práticas
                      culturais num momento em que tais questões se colocam
                      como nunca, seja nas relações internacionais, seja no âmbito
                      de uma mesma sociedade, e a todos resguardando as diferenças
                      de identidade e cultura?
                      
                        
                      
                       —
                      Acho que uma ordem jurídica democrática é plural, ela
    ??                  deve deixar espaços para as diferenças. Existem certos
                      valores, certos direitos que são de todos os seres
                      humanos. Eu acredito na 
                      
                       
                      
 existência
                      de direitos universais. Resguardados esses direitos é
                      indispensável que se resguarde também o direito à
                      diferença. Aliás, é interessante, existe uma declaração
                      contra o preconceito, aprovada pela UNESCO e que acentua
                      exatamente isso, o direito à diferença. Quer dizer, eu não
                      posso exigir que todos sejam iguais, não posso valorizar
                      mais um do que o outro. Eu resguardo os direitos
                      essenciais de todos e o respeito cultural, a diversidade
                      de crenças, e se isto realmente houver, se houver este
                      respeito, a convivência é perfeitamente possível, e o
                      direito deve resguardar essa diferença, deve resguardar o
                      direito à diferença. É uma exigência de uma ordem jurídica
                      democrática.
                      
                        
                      
                       P:
                      O programa "Fantástico", em uma matéria sobre
                      Vigário Geral, mostrou uma cena onde a Polícia Militar
                      aborda um homem e pede seus documentos, depois um dos
                      policiais dá um tapa no rosto desse cidadão e joga seus
                      documentos fora, no lixo. No momento seguinte a matéria
                      mostra uma quantidade de carteiras de trabalho e carteiras
                      de identidade localizadas nos lixões do Rio de Janeiro.
                      Eu pergunto: há alguma possibilidade de juridicamente
                      fazer alguma coisa para que a Policia Militar possa ser
                      responsabilizada? Como poderemos barrar todas essas
                      arbitrariedades? 
                      
                        
                      
                       —
                      Aí está implicado o problema de educação, o problema
                      de preparo, mas também um problema de governo. Aliás com
                      toda a justiça, eu queria lembrar que depois que o Dr.
                      Belisário assumiu a Secretaria da Justiça não houve
                      mais execuções violentas contra invasões de terra.
                      Imagino como é difícil para ele segurar o batalhão de
                      choque, o policial que, entre outras coisas, pressionado
                      pelo??s fazendeiros e muitas vezes apoiado pelo juiz, quer
                      ir até lá tirar à força os ocupantes. Eu mesmo estou
                      trabalhando numa situação que é extremamente grave,
                      injusta, que envolve uma decisão judicial e que com muita
                      probabilidade pode degenerar numa tragédia, numa matança.
                      Isso está acontecendo como os índios guaranis do Mato
                      Grosso do Sul. Esses índios tiveram as suas terras
                      invadidas há muito tempo, foram jogados de cá para lá,
                      e como acontece em muitas partes do Brasil, acontece no
                      Pará, no Mato Grosso, no Mato Grosso do Sul. 
                      
                        
                      
                       Não
                      é raro que o invasor de terras consiga um documento
                      dizendo que ele é proprietário. São conhecidas
                      inclusive técnicas de envelhecimento de documentos. Você
                      faz o documento e depois com tratamento com sumo do limão,
                      pondo sob o sol, daí a pouco se tem um documento 
                      de cem anos. Se fabrica um documento de "cem
                      anos" e aparece o fazendeiro dizendo "olha aqui,
                      eu ocupo essa terra há cem anos, como é que esses índios
                      estão aí?" E então um desses entrou com uma ação
                      contra os índios para que os índios sejam expulsos da
                      terra. A decisão a meu v??er é um absurdo. Aliás eu
                      queria entre parênteses dizer isto, eu não aceito mais e
                      acho que vocês também não devem aceitar essa idéia de
                      que decisão de juiz não se critica. Critica sim, precisa
                      criticar. Tem juiz fazendo coisas absurdas, injustas,
                      desumanas, que a gente não pode aceitar, e este é um dos
                      casos. Então o fazendeiro entra dizendo "olha, eu
                      que sou o proprietário, tira esses índios daí", e
                      o juiz concede uma liminar para se tirar os índios,
                      enquanto se verifica quem é que tem direito. Só que se
                      acontece isso, se eu tirar uma pessoa, um branco de uma área,
                      de uma casa, essa pessoa se ajeita no vizinho, na outra
                      cidade, no outro bairro, mas se eu tiro o índio da sua
                      terra, ele não sobrevive, quer dizer, o índio não quer
                      a terra como patrimônio econômico, é para sobrevivência,
                      é para se alimentar, para morar. É o que está
                      acontecendo. Eu já recebi hoje esta notícia, nós já
                      tivemos uma situação parecida, é uma ameaça de um suicídio
                      coletivo, de um grupo tribal, e é exatamente na área
                      onde já houve muitos suicídios. E graças a esta
                      contribuição 
                      de Sua Excelência, o magistrado, nós estamos na
                      boca de situações extremamente delicadas. É preciso
                      educar os juizes, como é preciso educar a polícia. Mas
                      é preciso também que haja governantes responsáveis, que
                      não cometam abusos, que não façam o jogo dos que
                      cometem abuso. Não acredito na possibil??idade de que do
                      dia para a noite mude isso tudo, mas volto a dizer, o que
                      está acontecendo em São Paulo é uma demonstração de
                      que muita coisa pode ser feita 
                      a prazo curto.
                      
                        
                      
                       
                      
 P:
                      O senhor acha que por se constituir em elites, os
                      magistrados em sua maioria abusam de sentenças
                      preconceituosas, mantendo dessa maneira o status quo?
                      
                        
                      
                       —
                      É, infelizmente ainda há muito preconceito na
                      magistratura, talvez até a gente devesse dizer (eu sou
             ??         professor e há muitos anos estou na Faculdade de
                      Direito), as faculdades de direito são muito responsáveis.
                      São muito responsáveis porque, por exemplo, nos currículos
                      jurídicos não há Ética, quer dizer, não se ensina Ética,
                      não há uma disciplina de Ética. Em algumas escolas,
                      especialmente da Universidade Católica, existe uma
                      disciplina de Ética. Mas em mais de noventa  por
                      cento das faculdades não existe. Além do mais, a formação
                      que se dá é uma formação positivista, puramente
                      formalista e isto acaba formando um juiz absolutamente
                      insensível aos aspectos humanos. Mas é preciso então
                      discutir, denunciar isto. Um dado muito positivo é que
                      dentro da magistratura já surgiu um grupo de juizes que
                      está trabalhando por esta mudança. Hoje já há uma
                      entidade chamada Juizes para a Democracia. É
                      exatamente isto, juizes que exigem ética, que exigem a
                      consideração dos valores sociais, e até se pode dizer,
                      juizes que exigem que a sentença seja justa. Para alguém
                      isto pode parecer surpreendente, mas não é normal que o
                      juiz se preocupe com a justiça? Mas, infelizmente, não.
                      Nós temos uma quantidade enorme de juizes que se
                      preocupam com a legalidade e não com a justiça.
                       
                      
                       
                      
                      
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