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A Igualdade faz toda Diferença

 

Rosiska Darcy de Oliveira

Presidente do Conselho Nacional dos Direitos da Mulher

 

Eu imagino que a minha escolha para participar dessa mesa essa noite se deva exatamente ao fato de que  há muitos anos eu venho tentando, dentro e fora do Brasil, democratizar, eu já não diria somente, as sociedades as quais me dirijo, mas democratizar o pensamento, o pensamento que pensa essas sociedades. Porque eu creio que o fim do século XX, nos confrontou com uma obviedade, que, paradoxalmente, é umas das grandes revoluções desse século: a descoberta de que existem dois sexos, e não apenas um. Essa obviedade, eu creio, vai marcar a história do século XX. E nós aqui nessa mesa, nós, mulheres que estão aqui nessa mesa, creio podermos nos orgulhar, de termos sido, numa medida humilde, na medida de nossas forças, protagonistas dessa descoberta.

 

Eu talvez nunca tenha tido tão nitidamente a sensação do quanto essa obviedade era importante, para restabelecer um princípio civilizatório, quanto na Conferência de Direitos Humanos que teve lugar em Viena, da qual nós mulheres saímos entusiasmadas, festejando, comemorando o fato que tivesse sido incluído nas declarações de Viena a frase de que os direitos das mulheres eram direitos humanos. Nós festejamos isso, e isso aconteceu no último decênio desse milênio. É inacreditável que nós tenhamos chegado a esse ponto. Mas foi necessário talvez afirmar essa obviedade, porque essa conferência marcou, creio eu, a entrada das mulheres na humanidade visível. Até então uma imensa invisibilidade pesava e, creio pesa ainda, sobre a a metade da humanidade. Portanto não é de pouca envergadura o que nós estamos abordando aqui hoje. É uma das dimensões de um fenômeno mais amplo, o preconceito contra as mulheres, na medida que preconceito nós encontramos sempre lá onde alguém, indivíduo ou coletivo, se enfrenta com alguém que ele designa como outro e este outro, para que seja outro, é um outro porque cumpre uma função muito específica, que é justamente a  de constituir a identidade daquele que o designa como outro, ou seja, ele passa ser o outro, o depositário de tudo aquilo que o torno inferior, que o torna pior, que o torna diferente e que portanto engrandece aquele que o designa, que passa a ser melhor, que passa a ser mais qualificado, que passa a ser a referência. Eu creio que na história das mulheres essa maneira de ser a outra sempre, a outra dos homens, esteve presente exatamente sobre esta forma. As mulheres foram sempre o inverso ou avesso. O feminino foi o avesso do masculino, sem definição própria, apenas definido pela negativa.

 

Creio que é muito recente que nós tenhamos concluído que o feminino não era o avesso do masculino, que o feminino era o feminino, e que as mulheres eram as mulheres e que se definiu por si mesmas, em referência a si mesmas, a sua própria existência, a sua própria história, o seu próprio corpo, a sua própria cultura. Isso é novo. Isso é muito novo. Porque mesmo nas lutas pelas igualdades, que marcaram o fim do século XIX sobretudo, e eu diria o século XX, até os anos 70, essa definição de igualdade se dava face a um padrão de referência e esse padrão de referência era o masculino. As  mulheres se estariam tornando iguais aos homens, na medida em que com eles se mimetizassem, na medida em que assumissem  o feminino como defeito, como falta, como ausência, com algo a ser escondido e tentassem, o tanto quanto possível, falar o masculino sem sotaque. Eu creio que nós todas tentamos isso. Algumas até conseguiram, falar sem sotaque. Mas isso não deixou, de certa maneira, de ser uma língua estrangeira.


Penso que a travessia das mulheres nos territórios do masculino, nos territórios do poder e do saber, essa  travessia foi certamente e  pelo menos numa certa medida, uma experiência do exílio, e nada revela melhor a identidade do que o exílio. É na situação de exílio que nós nos vimos refletidos no outro, no espelho distorcido, onde aparecem as diferenças, onde aparecem os encaixes que  não se ajustam. E talvez seja justamente esse exílio onde viveram as mulheres no mundo dos homens, que foi dando progressivamente a elas, na medida em que elas experimentavam e habitavam os territórios dos masculino, foi dando a elas o sentimento de que a igualdade que elas buscavam ou que elas descreviam e aceitavam como tal, essa igualdade mimética era na verdade uma resposta ambígua, ao que eu costumo chamar um “double bind”, ou seja, uma mensagem contraditória.

 

Dizia-se ao longo desse século, eu diria até os anos 70, 80, dizia-se às mulheres, “seja mulher e seja homem ao mesmo tempo”. E essa mensagem, esse “double bind”, a esse “double bind” as mulheres  responderam num primeiro momento pela ambiguidade. E a resposta ambígua foi a tentativa de fazer coexistir em si todos os papéis, todas as funções sociais, sempre fazendo de conta que o feminino não existia, ou pelo menos não iria atrapalhar. Eu penso que foi preciso que uma geração inteira fizesse o percurso completo dessa vida e dessa ambiguidade, para que tornasse claro para essa geração que havia um equívoco de base. A negociação da entrada das mulheres no mundo dos homens tinha-se feito respeitando o preconceito e de certa maneira reproduzindo o preconceito, ou seja, tentando através do mimetismo, através do esconder desse defeito, que era o feminino, sua história, seu corpo, sua vida, sua cultura, tentar não abordar a verdadeira discussão que iria marcar o fim desse século, que é a existência de dois sexos, portadores de experiências, de história, de corpos diferentes. E eu penso que se tanta resistência houve por parte das mulheres a enfrentar esse preconceito no seu âmago, foi certamente porque - com justa razão - tentamos nós, mulheres, refutar todo um pensamento conservador, reacionário, da biologia do fim do século XIX, que fazia da diferença sexual o argumento da hierarquia, de uma hierarquia que inferiorizava as mulheres. Portanto a refutação disso foi um estágio necessário, um momento necessário, na quebra  do preconceito. Ora, hoje nós vivemos outros tempos. Hoje eu creio que uma mulher tenha possibilidade de admitir a realidade do seu corpo, não como um defeito, não como algo que lhe atrapalha, mas como  algo a que ela  tem direito e que se trata não de adaptar-se ela a um mundo que não vê as mulheres, que desconhece as mulheres, para quem esse sexo não existe, mas muito mais  de propor ao pensamento e à comunidade internacional, e a organização social mundial, e local, o grande desafio, que é, que será, construir uma sociedade em que as mulheres existam como mulheres, com suas características, com suas demandas, com suas necessidades, com sua história.

 

A integração das mulheres na humanidade visível, repito, é sem dúvida nenhuma o grande desafio do nosso tempo. Por isso mesmo, eu penso e costumo dizer, o século XXI começou em Pequim. A Conferência de Pequim foi um “turning point”, um momento em que a comunidade internacional, como um todo, reconheceu a presença das mulheres no mundo, reconheceu essa inversão epistêmica, em que não se trata  mais de pensar um mundo, em que as mulheres vão se adaptar, mas adaptar o mundo à existência das mulheres. É uma mudança conceitual importante que cristalizou-se fundamentalmente na Conferência de Pequim e que é a grande resposta política ao preconceito. É a grande resposta política que não fala mais da igualdade como uma conversão (que é o ideal de todo o preconceito, converter o inferior às sua convicções ou a sua maneira de ser, à sua vida), não fala mais nessa conversão, mas fala de uma necessidade de uma negociação democrática. Por isso, no Conselho Nacional nós dizemos: não existe, não poderá  existir democracia, nem no Brasil, nem em lugar nenhum do mundo, sem a presença respeitada, ativa, reconhecida de dois sexos.

 

É por isso que eu intitulei essa conferência, essas pequenas palavras que não são uma conferência:  na democracia, “a igualdade faz toda a diferença”. Muito obrigado.


De Conversa em Conversa...

 

P: Você poderia falar sobre o sistema de cotas para as mulheres, que parece ter sido uma das propostas da Conferência de Pequim? Esse sistema não está sendo muito criticado atualmente?

 

Rosiska: Eu queria esclarecer que o sistema de cotas não foi exatamente uma proposta da Conferência de Pequim. Ele  é uma coisa já muito antiga e sobretudo é uma experiência americana, quer dizer a sociedade americana lançou isso, a política americana já havia lançado a  política de cotas.

 

A política de cotas, em duas palavras, é a garantia de um espaço dentro de partidos políticos, para que as mulheres possam ser  candidatas.  Isso se impôs, porque a prática mostrava que as mulheres nunca chegavam a ser escolhidas como candidatas, quer dizer, havia um gargalo que impedia que elas fossem escolhidas como candidatas. Dito isso, eu creio que a política de cotas, se é uma necessidade hoje, eu não creio que possa ser formulada a não ser em termos provisórios. Reconhecendo a necessidade neste momento de passar por esse gargalo que o preconceito cria, creio que não há porque, por exemplo, falar em vinte por cento. Não vejo porque colocar esse teto de vidro. Por que não cinquenta? Por que não sessenta? Por que não setenta? Não vejo a necessidade de nos colocarmos dentro de determinados limites, devemos sim exigir um mínimo, mas esse mínimo provisoriamente.

 

Creio que eu teria formulado a proposta das cotas de uma maneira diferente. Creio que eu teria formulado como uma obrigatoriedade de que nas chapas partidárias houvesse um mínimo de vinte por cento de mulheres ou de homens. Não sei se me entendem. Eu acho que isso muda tudo e acho sobretudo que isso quebra uma acusação, que vem sendo feita, muito injusta aliás, de que essa política teria um conteúdo anticonstitucional, porque estaria favorecendo as mulheres. Não vou nem entrar muito em detalhes sobre isso, porque isso é um absurdo,  quer dizer, é uma leitura equivocada, no limite desonesta de que foi o espírito do legislador que colocou na constituição a igualdade entre homens e mulheres. Quer dizer, quando se fala em igualdade, fala-se exatamente em promover uma igualdade não inexistente. Nada exclui - e não se deve pensar que isso venha a excluir - que um dia haja uma apresentação de candidaturas, tão importantes numericamente de mulheres quanto de homens ou até majoritárias.

 

P: Como avançar com os direitos da mulher, em regiões onde as culturas e crenças locais são extremamente desiguais, por exemplo, os países islâmicos, ortodoxos em geral. Deverão essas mudanças serem conquistadas internamente, ou através de pressões internacionais?

 

Rosiska: Essa é uma pergunta bem complicada, até porque ela tem estado no centro de um debate que ultrapassa até a questão das mulheres.

 

Nosso tempo, nossos últimos cinquenta anos, descobriram justamente a diferença cultural e  foi talvez um reconhecimento muito importante, na medida que muitos países tinham sofrido uma  opressão colonial, que tinha de certa maneira quebrado a alma desses países, que tinha imposto valores que  lhes eram estrangeiros, que tinham sido violentos, que tinham tentado destruir culturas. Portanto, dos anos 50 para cá, houve toda uma tendência com o processo de descolonização, sobretudo da África, da África Negra, e dos países do Norte da África, muçulmanos.

 


Houve toda uma tendência a respeitar a diferença cultural e a abdicar do que se pensou ser, naquele momento se chamou assim, uma espécie de imperialismo do Ocidente que tentava generalizar os seus princípios. Foi muito recentemente, e não por acaso, em torno da questão das mulheres, que essa questão se tornou complexa, ela não era tão simples como se pensava. E eu acho que é um exemplo muito importante para se dar sobre esse debate, ninguém ignora que no mundo muçulmano a ablação clitoridiana é uma prática cultural desses países. Então na Conferência de Viena, quando se discutia essa questão, particularmente, nós tínhamos um bloco do Ocidente que dizia: “isso é lesão corporal grave, isso é castração, isso é uma violência inaceitável, uma monstruosidade contra as mulheres”. E nós tínhamos os países muçulmanos que diziam: “isto é a nossa cultura, e assim deve ser respeitada”. Esse debate confundia a cabeça de muita gente. Eu confesso que não a minha, certamente não.

 

Eu creio que o valor que nós damos ao conceito de direitos humanos é - indiscutivelmente - a sua universalidade. Quer dizer, os direito humanos ou são universais, ou não são. E daí deduz-se que os direitos das mulheres são direitos humanos. Não há no meu entender que tomar como traço cultural respeitável um fato, ou um conjunto de fatos, ou um conjunto de normas, que torna uma parcela da população escrava, submissa, passível de ser ferida, passível de ser mutilada. Não, isso não é respeitável em nenhum tipo de cultura, Nem no Ocidente, nem nos países islâmicos, e para isso existe uma comunidade internacional, que se define como uma comunidade defensora de direitos humanos. Nesse sentido, para mim, essa questão está clara. O tratamento dado às mulheres nos países islâmicos, ou para não falar apenas dos países islâmicos, o tratamento dado às mulheres na Iugoslávia, na Bósnia, onde pela primeira vez se usou o estupro como arma de guerra... Havia estupro em outros países, em outros momentos de guerra,  mas não como arma de guerra, arma no sentido literal do termo, onde nunca as mulheres foram tão invisíveis, porque o conceito que presidiu ao estupro em massa na Bósnia, foi a idéia, de que a criança que nascia daquela mulher era apenas da religião do pai, a mulher era uma passagem, nela não existia nada, ela não existia, ela era um receptáculo. Esse tipo de aberração, esse tipo de monstruosidade, não tem senão que ser denunciada com o mesmo ímpeto, a mesma não-negociação com que nós temos, ao longo do tempo, denunciado a tortura, onde quer que ela se encontre, o assassinato, o crime, onde quer que eles se encontrem.

 

Hoje eu tenho a idéia muito clara de que essas mulheres que estão debaixo de leis que as negam, que as sacrificam, que as ferem, essas mulheres precisam de socorro e precisam de socorro internacional, assim como todos aqueles que estão nas masmorras, torturados e presos. Nesse sentido, eu não respeito cultura nenhuma, que em nome dos seus direitos culturais esteja condenando um ser humano, no caso um ser humano mulher,  a um tipo de violência que elas não merecem e que não devem aceitar.

 

P: Num país machista como o nosso, qual é a sua análise sobre as mulheres negras, pobres e marginalizadas?

 

Rosiska: É muito difícil  medir-se o sofrimento humano. E eu acho que é sempre muito difícil colocar-se na  pele do outro, quer dizer, colocar-se na vida e na experiência do outro. Eu não sou uma mulher negra. Eu tenho pudor de me exprimir sobre isso, fazendo um julgamento do que isso possa representar. Eu posso falar de fora. Estou falando de fora, da observação, da vida, e eu creio que certamente dentro do quadro do racismo, que é presente e perfeitamente tocável na  nossa sociedade. A mim me parece claro que o racismo que se abate sobre as mulheres negras é o mais perverso e sempre foi.

 

Existe um antropólogo brasileiro, o professor Darcy Ribeiro, que usa uma expressão que sempre me impressionou muito, em que ele diz que a sociedade brasileira queimou os negros como carvão, queimou, usou como o carvão. E moveu-se com essa força de trabalho negra, que destruiu,


que queimou, justamente como o carvão. Eu diria que a isto se acrescentaria o fato que no caso das mulheres negras, ao longo da história brasileira, além de moer como carvão, ainda a isso se acrescentou o dado da prostituição. Quer dizer, a sociedade branca, a sociedade canavieira por exemplo, a elite canavieira prostituiu as mulheres negras. E isso eu acho imperdoável. Isso é imperdoável. E isso deixou sequelas na fotografia da mulata nua que aparece nos folhetos de turismo, chamando para o turismo sexual no Brasil, hoje. Então hoje reproduz-se o mesmo princípio de degradação, o mesmo princípio de humilhação, que vem do tempo colonial e que se projeta para o século XXI, através fundamentalmente desse drama moderno que a sociedade brasileira está vivendo, e para a qual eu chamo a atenção de todos aqui, porque eu considero uma coisa gravíssima a prostituição juvenil, através fundamentalmente do turismo sexual.  O grosso das meninas que são recrutadas para satisfazer esse imaginário branco, europeu ou norte-americano, são meninas de origem negra. Eu creio que a esse dado veio se acrescentar a dramaticidade da questão racial no Brasil, que toca a todos, homens e mulheres. Mas acho muito particularmente, por esse lado, sobretudo o que toca as mulheres negras.

 

Nós temos no Conselho Nacional uma representação de mulheres negras, e eu tenho insistido, e tenho tido uma resposta muito presente sempre, desse grupos que estão representados lá, no sentido de que nós possamos desenvolver políticas, que sejam políticas que tenham a ver, que mostrem claramente como a sociedade brasileira vem tratando sobretudo essas meninas, essas jovens, porque isso talvez seja ainda o mais dramático, porque são meninas, são meninas que estão entrando na vida, que estão entrando na vida de uma maneira indefesa e que estão reproduzindo o fenômeno da escravidão de maneira velada, mas estão reproduzindo esse fenômeno. Então eu tenho, enquanto presidente do Conselho Nacional dos Direitos da Mulher, uma preocupação fundamental, hoje, com a questão da prostituição, da prostituição juvenil, e dentro dela, como as meninas - e fundamentalmente as meninas negras - estão sendo arrastadas para isso. Eu não posso me conformar com a idéia de que o destino da juventude pobre e da juventude negra brasileira vá ser a prostituição. Eu não posso me conformar com isso e nenhum de nós pode e nem deve se conformar com isso.

 

Eu estou falando aqui com um público próximo dos direitos humanos. Eu chamo a atenção para este fato, porque ele hoje é provavelmente, se não o mais grave, um dos mais graves da história presente brasileira. É preciso ter os olhos abertos para isso, é preciso combater. No Dia da Criança o Presidente convocou todos os ministros das áreas afetas a esta questão, convocou-me a mim também, e foram discutidas políticas combativas de enfrentamento dessa questão, que é gravíssima, ampla e difícil de lidar. E nesse caso eu acho que não há muita dúvida, que as mais atingidas são, sem dúvida nenhuma, as jovens, as adolescentes negras, ou de origem negra. Então políticas nesse sentido são políticas absolutamente fundamentais de defesa dessa população.

 

Imortais presentes

 

As escritoras Nélida Piñon e Lygia Fagundes Telles, componentes da Academia Brasileira de Letras, também estiveram presentes à mesa dos trabalhos, na noite em que o tema tratado foi "Preconceito e Mulher".

 

Júlio Lerner: Lygia, você estudou aqui na Faculdade de Direito do Largo São Francisco ... Eu gostaria que você contasse ao público quais os preconceitos mais frequentes que - como estudante - você teve de enfrentar nesta escola.

 

Lygia: Parece até que eu vou falar agora da Idade da Pedra lascada, tão grande é a distância que me separa dos meus tempos de juventude deste tempo. Havia, sim, tantos preconceitos fora e


dentro desta Faculdade, éramos na nossa turma apenas cinco ou seis moças e quase trezentos rapazes… As mocinhas inconscientemente andavam até meio curvadas (disfarçar o busto?) e desconfiadas, verdadeiramente intimidadas porque alguns rapazes já tinham nos feito, de forma franca ou velada, a tal pergunta: "– Mas o que vocês vieram fazer aqui?". Da minha parte, respondi que queria estudar Direito. E o gracejo irônico: "– Vocês querem é casar com a gente, hem?" E eu disse, "casar também, porque não?…"  Queria lembrar agora que a clássica pergunta, "o que vocês vieram fazer aqui?"  me faz pensar no próprio Freud que perguntou um dia com alguma ponta de irritação: "– Mas o que querem, afinal, as mulheres?".  Desnecessário dizer que esse clima me fazia tão insegura que agora parece até uma brincadeira trazê-lo nesta noite, tantas décadas depois: afinal, falar nisso numa escola completamente invadida pelo chamado segundo sexo…

Minha mãe ficou muito preocupada quando eu resolvi prestar os vestibulares: "– Mas o que você vai fazer numa Faculdade de Direito? Será que esses estudos não vão prejudicar a sua vida? E os seus pretendentes, filha?!" Na realidade, a minha mãe queria apenas me ver casada, destinação única para uma jovem se realizar no futuro. E havia outra saída a não ser o casamento? Respondi que tivesse um pouco de paciência, eu estudaria e me casaria em seguida, "eu caso depois, mãe".  Ela ficou pensativa. Duas vezes ela própria já tinha sido contrariada na sua vocação, quis ser uma cantora lírica, tinha uma bela voz. Quis em seguida ser uma pianista, estudou piano com professores importantes da época. Foi também contrariada, a solução foi se casar e ficar mulher-goiabada e digo isso sem a menor ironia, é claro, criei essa expressão mulher-goiabada porque ela fazia a melhor goiabada do mundo… Mas então ela pensou e disse, "– Se esse burraldo do seu primo está na Faculdade e vai se formar, por quê não você?!"  Eu tinha um primo que estudava aqui e que ela costumava tomar como exemplo, era uma mulher inteligente e bem-humorada. Voltou ao piano, tocava seus Noturnos de Chopin: "– Quer saber de uma coisa? Amanhã mesmo você vai se inscrever, amanhã nós vamos cuidar disso".  "Nós" era ela própria, de um certo modo, estava agora se realizando em mim. E é bom lembrar que um preconceito tão agudo existiu sem máscara até há pouco tempo! As mulheres recusadas, esnobadas, omitidas. Tendo que dissimular, que disfarçar, eu mesma não me fiz de sonsa tantas vezes, não disfarcei para me defender?…

 

Queria lembrar agora um ponto bastante importante, creio que a mulher ficou mais perceptiva do que o homem porque simplesmente tinha que se defender e nessa auto-defesa a percepção se aguça, se desenvolve assim como no arrombador de cofre que chega a limar as pontas dos dedos para, de olhos fechados, achar os seus números, desvendar o código… Durante séculos a mulher ficou reduzida a um bicho-de-sombra, encolhida, calada. Penso hoje que se a mulher é mais perceptiva, mais vidente do que o homem não é por virtude mas por necessidade em face das circunstâncias tão adversas. Assim ela foi ficando mais maliciosa, mais desconfiada. E mais fantasiosa, na sombra ela estimulou essa fantasia, a mulher é mais fantasiosa do que o homem.

 

Então esse meu ofício que é o ofício de escrever, considerado também um ofício essencialmente masculino… Lembro agora que na minha família, por exemplo, algumas mulheres tiveram as tais inclinações literárias, escreviam poesias e poderiam mesmo ter sido - por que não? - verdadeiras poetisas, me lembro que certa vez meu avô gracejou referindo-se à minha tia-avó que estava sempre arredia, devaneando, "deve estar escrevendo suas caraminholas!" Caraminholas… A solução era passar para aqueles cadernões de capa preta onde estava registrado o preço da cebola e da batata, os pensamentos poéticos, os sonhos em prosa e verso. Então o começo, hem Nélida, teria sido simplesmente esse, as mulheres começaram a enveredar para a carreira literária nesse estilo confessional, subjetivo. Intimista. Daí a moda dos diários, anotações do dia-a-dia que se encompridavam com as inspirações feitas com tinta roxa, a cor da paixão. Mas isso só cabível em moça solteira, diário era próprio de virgens, porque diário em gaveta de mulher casada, segundo um antepassado, só ia dar em bandalheira… Sim, o longo e difícil caminho percorrido pela mulher até chegar a este momento que Rosiska há pouco lembrou tão lindamente. O difícil, o áspero caminho


de libertação. E ainda relativo reconhecimento. E confesso agora que gostaria de ser jovem aqui neste tempo de libertação através do trabalho, atenuando as desigualdades maiores através do estudo, da cultura.

 

A mulher agarrando as suas rédeas e dizendo, "eu estou aqui". Assim, se Freud voltasse a fazer aquela pergunta perplexa, "– mas o que querem essas mulheres?", da minha parte eu poderia então responder, "– quero apenas entrar para a escola que escolhi e escrever meus contos, só isso". Então aqui estamos nesta noite saudando as jovens estudantes - as novas gerações e dizendo como disse a Rosiska, somos agora visíveis. Visíveis não para narcisismos ou dissimulações, visíveis não para as agressões competitivas ou digressões demagógicas. Estamos, sim, Rosiska e Nélida - estamos visíveis para nos dizer. Antes eram os homens que nos definiam, só eles diziam quem nós éramos. Agora temos voz própria.

 

Júlio Lerner: O que você pensa sobre o politicamente correto nas relações entre os sexos?

 

Nélida: Eu acho que a emergência de certas questões ocorre por força de uma carência, de uma necessidade. Se de repente, quando apareceu, eu me lembro em 1960, o chamado Movimento de Liberação da mulher, é porque evidentemente a sociedade reclamava que o movimento deveria acontecer, assim como os movimentos “Black Power”, da década de 60, o movimento dos "gays", todos movimentos libertatórios. Se há excessos, se há interpretações dúbias nem sempre bem formuladas, mas há urgência, as necessidades ali estão. Portanto se algum grupo reivindica porque necessita é porque ele foi posto à margem. Então o politicamente correto surgiu dos abusos, da necessidade de corrigir  frases, de tentar exatamente combater ou reduzir as margens dos preconceitos. A idéia era essa. O politicamente dizer, adestrar a sua linguagem, o seu comportamento, no sentido de que você se comportasse de uma forma plausível, agradável, em meio aos seres humanos, para não ferir, não magoar e não criar questões dramáticas.

 

 Eu acho que os movimentos, ou pelo menos uma etapa do movimento se exaure quando comete excessos. Há exageros... Por exemplo, para lhes dar um modesto exemplo, eu me lembro que no ano passado eu... eu sempre passo de janeiro à maio na Universidade de Miami, o semestre americano, graças a Deus, é muito rápido, é muito curto, três meses e meio... eu percebi quando passava pelos corredores, para ir para meu escritório, eu vi as portas todas abertas. Eu pensei, engraçado, os professores americanos deixam as portas abertas, para que todo mundo saiba que estão trabalhando, eu interpretei desse modo, ingenuamente. No ano passado, eu soube por um querido amigo meu, um grande escritor peruano que é o Mário Vargas Llosa, a propósito de que ele estava dando aula na Georgetown, em Washington, e ele perguntou: “voce deixa a porta aberta?”. “Como porta aberta, eu recebo os alunos, eu fecho a porta, é uma questão de boa educação, a meu juízo.” Ele disse assim: “Não faça isso. Não faça porque é perigoso. Voce nunca sabe com quem voce está lidando”. Aqui o bom tom seria, a pessoa passar, voce fechar a porta, porque talvez o aluno queira lhe falar e não quer ser ouvido... Uma porta  aberta intimida o aluno, né?. “Mas não faça isso, porque nos Estados Unidos, de repente um aluno pode inventar alguma coisa, que resulte num desastre para sua vida profissional, uma ação, ou podem dizer que voce usou de intenções não muito adequadas. Então, chega num ponto tão terrível, que ninguém toca no aluno, ninguém pode tocar no aluno, porque isso pode implicar, tocar fisicamente, um gesto delicado, carinhoso, porque isso pode ser mal interpretado. Eu sinceramente, eu com meus alunos, eu sou muito carinhosa. Então o politicamente correto se impedir injustiças pode ser útil, mas evidentemente eu me dou conta de que hoje o politicamente correto é excedente, é exagerado, e que muitas vezes não está mais defendendo os direito humanos, está inibindo o fluxo afetivo das pessoas, as gentilezas. Um homem não toma elevador, de modo geral, nos Estados Unidos, quando houver uma mulher sozinha, porque ele tem medo que essa mulher - de repente - pule do elevador aos gritos: “esse homem me atacou”. 


Isso pode custar cem mil dólares numa ação, e voce vai trabalhar o resto da vida para pagar aquela cidadã.

 

São fatos até histriônicos, ridículos, mas que não invalidam enfim o que pode haver de bom no politicamente correto... Ao mesmo tempo, chama a atenção para o ridículo humano... É que nós realmente, estamos inscritos nessa categoria de seres precários, venais muitas vezes, e que precisam cuidar da sua ética, para aprimorá-la. Não é isso, nesse sentido?...

 

Rosiska (aparteando): E eu acho que a principal manifestação ainda hoje do preconceito contra as mulheres seja a condescendência, uma certa condescendência, ou a idéia de que  uma mulher para ser alguma coisa tem de ser absolutamente genial. Sem nenhuma crítica à Academia Brasileira de Letras, mas os homens dizem "estão aqui as três melhores mulheres do Brasil", e eu creio que são mesmo, mas os outros tantos que estão lá, são os melhores homens do Brasil? Não sei... Não tenho certeza disso... Não sei...

 

Sem desmerecer ninguém que está lá dentro, não é .... Eu costumo dizer que eu só vou acreditar na igualdade, na verdadeira igualdade entre homens e mulheres, quando eu vir mulheres muito incompetentes em postos muitos importantes. Antes disso, eu não acredito. Fazendo aqui um grande elogio à Nélida Piñon, a Ligia e a Raquel de Queiroz... Como era possível que elas não estivessem lá? Inconcebível. São os três grandes nomes da literatura brasileira, os três maiores da literatura brasileira escrita por mulheres. É claro que elas tem que estar lá. Agora em outros lugares do poder, do saber, eu não vejo essas maravilhas espalhadas por aí.  Mas as mulheres tem que ser maravilhosas para chegarem lá. Há uma condescendência em relação às mulheres de talento que eu acho que é a forma mais perversa do preconceito. Porque tentam fazer delas um álibi, dizendo: “Vocês estão aí porque vocês são formidáveis, todas. Vocês são formidáveis”. Agora os outros que estão em outros lugares, são formidáveis? Eu não vejo isso. Esse era o ponto que eu queria dizer...

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