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                       Rosiska
                      Darcy de Oliveira Presidente
                      do Conselho Nacional dos Direitos da Mulher
                      
                        
                      
                      
                      
                       Eu
                      imagino que a minha escolha para participar dessa mesa
                      essa noite se deva exatamente ao fato de que 
                      há muitos anos eu venho tentando, dentro e fora do
                      Brasil, democratizar, eu já não diria somente, as
                      sociedades as quais me dirijo, mas democratizar o
                      pensamento, o pensamento que pensa essas sociedades.
                      Porque eu creio que o fim do século XX, nos confrontou
                      com uma obviedade, que, paradoxalmente, é umas das
                      grandes revoluções desse século: a descoberta de que
                      existem dois sexos, e não apenas um. Essa obviedade, eu
                      creio, vai marcar a história do século XX. E nós aqui
                      nessa mesa, nós, mulheres que estão aqui nessa mesa,
                      creio podermos nos orgulhar, de termos sido, numa medida
                      humilde, na medida de nossas forças, protagonistas dessa
                      descoberta. 
                      
                        
                      
                       Eu
                      talvez nunca tenha tido tão nitidamente a sensação do
                      quanto essa obviedade era importante, para restabelecer um
                      princípio civilizatório, quanto na Conferência de
                      Direitos Humanos que teve lugar em Viena, da qual nós
                      mulheres saímos entusiasmadas, festejando, comemorando o
                      fato que tivesse sido incluído nas declarações de Viena
                      a frase de que os direitos das mulheres eram direitos
                      humanos. Nós festejamos isso, e isso aconteceu no último
                      decênio desse milênio. É inacreditável que nós
                      tenhamos chegado a esse ponto. Mas foi necessário talvez
                      afirmar essa obviedade, porque essa conferência marcou,
                      creio eu, a entrada das mulheres na humanidade visível.
                      Até então uma imensa invisibilidade pesava e, creio pesa
                      ainda, sobre a a metade da humanidade. Portanto não é de
                      pouca envergadura o que nós estamos abordando aqui hoje.
                      É uma das dimensões de um fenômeno mais amplo, o
                      preconceito contra as mulheres, na medida que preconceito
                      nós encontramos sempre lá onde alguém, indivíduo ou
                      coletivo, se enfrenta com alguém que ele designa como
                      outro e este outro, para que seja outro, é um outro
                      porque cumpre uma função muito específica, que é
                      justamente a  de
                      constituir a identidade daquele que o designa como outro,
                      ou seja, ele passa ser o outro, o depositário de tudo
                      aquilo que o torno inferior, que o torna pior, que o torna
                      diferente e que portanto engrandece aquele que o designa,
                      que passa a ser melhor, que passa a ser mais qualificado,
                      que passa a ser a referência. Eu creio que na história
                      das mulheres essa maneira de ser a outra sempre, a outra
                      dos homens, esteve presente exatamente sobre esta forma.
                      As mulheres foram sempre o inverso ou avesso. O feminino
                      foi o avesso do masculino, sem definição própria,
                      apenas definido pela negativa.
                      
                        
                      
                       Creio
                      que é muito recente que nós tenhamos concluído que o
                      feminino não era o avesso do masculino, que o feminino
                      era o feminino, e que as mulheres eram as mulheres e que
                      se definiu por si mesmas, em referência a si mesmas, a
                      sua própria existência, a sua própria história, o seu
                      próprio corpo, a sua própria cultura. Isso é novo. Isso
                      é muito novo. Porque mesmo nas lutas pelas igualdades,
                      que marcaram o fim do século XIX sobretudo, e eu diria o
                      século XX, até os anos 70, essa definição de igualdade
                      se dava face a um padrão de referência e esse padrão de
                      referência era o masculino. As 
                      mulheres se estariam tornando iguais aos homens, na
                      medida em que com eles se mimetizassem, na medida em que
                      assumissem  o
                      feminino como defeito, como falta, como ausência, com
                      algo a ser escondido e tentassem, o tanto quanto
                      possível, falar o masculino sem sotaque. Eu creio que
                      nós todas tentamos isso. Algumas até conseguiram, falar
                      sem sotaque. Mas isso não deixou, de certa maneira, de
                      ser uma língua estrangeira.
                      
                       
 Penso
                      que a travessia das mulheres nos territórios do
                      masculino, nos territórios do poder e do saber, essa 
                      travessia foi certamente e 
                      pelo menos numa certa medida, uma experiência do
                      exílio, e nada revela melhor a identidade do que o
                      exílio. É na situação de exílio que nós nos vimos
                      refletidos no outro, no espelho distorcido, onde aparecem
                      as diferenças, onde aparecem os encaixes que 
                      não se ajustam. E talvez seja justamente esse
                      exílio onde viveram as mulheres no mundo dos homens, que
                      foi dando progressivamente a elas, na medida em que elas
                      experimentavam e habitavam os territórios dos masculino,
                      foi dando a elas o sentimento de que a igualdade que elas
                      buscavam ou que elas descreviam e aceitavam como tal, essa
                      igualdade mimética era na verdade uma resposta ambígua,
                      ao que eu costumo chamar um “double bind”, ou seja,
                      uma mensagem contraditória.
                      
                        
                      
                       Dizia-se
                      ao longo desse século, eu diria até os anos 70, 80,
                      dizia-se às mulheres, “seja mulher e seja homem ao
                      mesmo tempo”. E essa mensagem, esse “double bind”, a
                      esse “double bind” as mulheres 
                      responderam num primeiro momento pela ambiguidade.
                      E a resposta ambígua foi a tentativa de fazer coexistir
                      em si todos os papéis, todas as funções sociais, sempre
                      fazendo de conta que o feminino não existia, ou pelo
                      menos não iria atrapalhar. Eu penso que foi preciso que
                      uma geração inteira fizesse o percurso completo dessa
                      vida e dessa ambiguidade, para que tornasse claro para
                      essa geração que havia um equívoco de base. A
                      negociação da entrada das mulheres no mundo dos homens
                      tinha-se feito respeitando o preconceito e de certa
                      maneira reproduzindo o preconceito, ou seja, tentando
                      através do mimetismo, através do esconder desse defeito,
                      que era o feminino, sua história, seu corpo, sua vida,
                      sua cultura, tentar não abordar a verdadeira discussão
                      que iria marcar o fim desse século, que é a existência
                      de dois sexos, portadores de experiências, de história,
                      de corpos diferentes. E eu penso que se tanta resistência
                      houve por parte das mulheres a enfrentar esse preconceito
                      no seu âmago, foi certamente porque - com justa razão -
                      tentamos nós, mulheres, refutar todo um pensamento
                      conservador, reacionário, da biologia do fim do século
                      XIX, que fazia da diferença sexual o argumento da
                      hierarquia, de uma hierarquia que inferiorizava as
                      mulheres. Portanto a refutação disso foi um estágio
                      necessário, um momento necessário, na quebra 
                      do preconceito. Ora, hoje nós vivemos outros
                      tempos. Hoje eu creio que uma mulher tenha possibilidade
                      de admitir a realidade do seu corpo, não como um defeito,
                      não como algo que lhe atrapalha, mas como 
                      algo a que ela 
                      tem direito e que se trata não de adaptar-se ela a
                      um mundo que não vê as mulheres, que desconhece as
                      mulheres, para quem esse sexo não existe, mas muito mais 
                      de propor ao pensamento e à comunidade
                      internacional, e a organização social mundial, e local,
                      o grande desafio, que é, que será, construir uma
                      sociedade em que as mulheres existam como mulheres, com
                      suas características, com suas demandas, com suas
                      necessidades, com sua história. 
                      
                        
                      
                       A
                      integração das mulheres na humanidade visível, repito,
                      é sem dúvida nenhuma o grande desafio do nosso tempo.
                      Por isso mesmo, eu penso e costumo dizer, o século XXI
                      começou em Pequim. A Conferência de Pequim foi um
                      “turning point”, um momento em que a comunidade
                      internacional, como um todo, reconheceu a presença das
                      mulheres no mundo, reconheceu essa inversão epistêmica,
                      em que não se trata 
                      mais de pensar um mundo, em que as mulheres vão se
                      adaptar, mas adaptar o mundo à existência das mulheres.
                      É uma mudança conceitual importante que cristalizou-se
                      fundamentalmente na Conferência de Pequim e que é a
                      grande resposta política ao preconceito. É a grande
                      resposta política que não fala mais da igualdade como
                      uma conversão (que é o ideal de todo o preconceito,
                      converter o inferior às sua convicções ou a sua maneira
                      de ser, à sua vida), não fala mais nessa conversão, mas
                      fala de uma necessidade de uma negociação democrática.
                      Por isso, no Conselho Nacional nós dizemos: não existe,
                      não poderá  existir
                      democracia, nem no Brasil, nem em lugar nenhum do mundo,
                      sem a presença respeitada, ativa, reconhecida de dois
                      sexos.
                      
                        
                      
                       É
                      por isso que eu intitulei essa conferência, essas
                      pequenas palavras que não são uma conferência: 
                      na democracia, “a igualdade faz toda a
                      diferença”. Muito obrigado.
                      
                       
 De
                      Conversa em Conversa...
                      
                        
                      
                       P:
                      Você poderia falar sobre o sistema de cotas para as
                      mulheres, que parece ter sido uma das propostas da
                      Conferência de Pequim? Esse sistema não está sendo
                      muito criticado atualmente?
                      
                        
                      
                       Rosiska:
                      Eu queria esclarecer que o sistema de cotas não foi
                      exatamente uma proposta da Conferência de Pequim. Ele 
                      é uma coisa já muito antiga e sobretudo é uma
                      experiência americana, quer dizer a sociedade americana
                      lançou isso, a política americana já havia lançado a 
                      política de cotas. 
                      
                        
                      
                       A
                      política de cotas, em duas palavras, é a garantia de um
                      espaço dentro de partidos políticos, para que as
                      mulheres possam ser  candidatas. 
                      Isso se impôs, porque a prática mostrava que as
                      mulheres nunca chegavam a ser escolhidas como candidatas,
                      quer dizer, havia um gargalo que impedia que elas fossem
                      escolhidas como candidatas. Dito isso, eu creio que a
                      política de cotas, se é uma necessidade hoje, eu não
                      creio que possa ser formulada a não ser em termos
                      provisórios. Reconhecendo a necessidade neste momento de
                      passar por esse gargalo que o preconceito cria, creio que
                      não há porque, por exemplo, falar em vinte por cento.
                      Não vejo porque colocar esse teto de vidro. Por que não
                      cinquenta? Por que não sessenta? Por que não setenta?
                      Não vejo a necessidade de nos colocarmos dentro de
                      determinados limites, devemos sim exigir um mínimo, mas
                      esse mínimo provisoriamente.
                      
                        
                      
                       Creio
                      que eu teria formulado a proposta das cotas de uma maneira
                      diferente. Creio que eu teria formulado como uma
                      obrigatoriedade de que nas chapas partidárias houvesse um
                      mínimo de vinte por cento de mulheres ou de homens. Não
                      sei se me entendem. Eu acho que isso muda tudo e acho
                      sobretudo que isso quebra uma acusação, que vem sendo
                      feita, muito injusta aliás, de que essa política teria
                      um conteúdo anticonstitucional, porque estaria
                      favorecendo as mulheres. Não vou nem entrar muito em
                      detalhes sobre isso, porque isso é um absurdo, 
                      quer dizer, é uma leitura equivocada, no limite
                      desonesta de que foi o espírito do legislador que colocou
                      na constituição a igualdade entre homens e mulheres.
                      Quer dizer, quando se fala em igualdade, fala-se
                      exatamente em promover uma igualdade não inexistente.
                      Nada exclui - e não se deve pensar que isso venha a
                      excluir - que um dia haja uma apresentação de
                      candidaturas, tão importantes numericamente de mulheres
                      quanto de homens ou até majoritárias.
                      
                        
                      
                       P:
                      Como avançar com os direitos da mulher, em regiões
                      onde as culturas e crenças locais são extremamente
                      desiguais, por exemplo, os países islâmicos, ortodoxos
                      em geral. Deverão essas mudanças serem conquistadas
                      internamente, ou através de pressões internacionais?
                      
                        
                      
                       Rosiska:
                      Essa é uma pergunta bem complicada, até porque ela tem
                      estado no centro de um debate que ultrapassa até a
                      questão das mulheres.
                      
                        
                      
                       Nosso
                      tempo, nossos últimos cinquenta anos, descobriram
                      justamente a diferença cultural e 
                      foi talvez um reconhecimento muito importante, na
                      medida que muitos países tinham sofrido uma 
                      opressão colonial, que tinha de certa maneira
                      quebrado a alma desses países, que tinha imposto valores
                      que  lhes eram
                      estrangeiros, que tinham sido violentos, que tinham
                      tentado destruir culturas. Portanto, dos anos 50 para cá,
                      houve toda uma tendência com o processo de
                      descolonização, sobretudo da África, da África Negra,
                      e dos países do Norte da África, muçulmanos.
                      
                        
                      
                       
 Houve
                      toda uma tendência a respeitar a diferença cultural e a
                      abdicar do que se pensou ser, naquele momento se chamou
                      assim, uma espécie de imperialismo do Ocidente que
                      tentava generalizar os seus princípios. Foi muito
                      recentemente, e não por acaso, em torno da questão das
                      mulheres, que essa questão se tornou complexa, ela não
                      era tão simples como se pensava. E eu acho que é um
                      exemplo muito importante para se dar sobre esse debate,
                      ninguém ignora que no mundo muçulmano a ablação
                      clitoridiana é uma prática cultural desses países.
                      Então na Conferência de Viena, quando se discutia essa
                      questão, particularmente, nós tínhamos um bloco do
                      Ocidente que dizia: “isso é lesão corporal grave, isso
                      é castração, isso é uma violência inaceitável, uma
                      monstruosidade contra as mulheres”. E nós tínhamos os
                      países muçulmanos que diziam: “isto é a nossa
                      cultura, e assim deve ser respeitada”. Esse debate
                      confundia a cabeça de muita gente. Eu confesso que não a
                      minha, certamente não.
                      
                        
                      
                       Eu
                      creio que o valor que nós damos ao conceito de direitos
                      humanos é - indiscutivelmente - a sua universalidade.
                      Quer dizer, os direito humanos ou são universais, ou não
                      são. E daí deduz-se que os direitos das mulheres são
                      direitos humanos. Não há no meu entender que
                      tomar como traço cultural respeitável um fato, ou um
                      conjunto de fatos, ou um conjunto de normas, que torna uma
                      parcela da população escrava, submissa, passível de ser
                      ferida, passível de ser mutilada. Não, isso não é
                      respeitável em nenhum tipo de cultura, Nem no Ocidente,
                      nem nos países islâmicos, e para isso existe uma
                      comunidade internacional, que se define como uma
                      comunidade defensora de direitos humanos. Nesse sentido,
                      para mim, essa questão está clara. O tratamento dado às
                      mulheres nos países islâmicos, ou para não falar apenas
                      dos países islâmicos, o tratamento dado às mulheres na
                      Iugoslávia, na Bósnia, onde pela primeira vez se usou o
                      estupro como arma de guerra... Havia estupro em outros
                      países, em outros momentos de guerra, 
                      mas não como arma de guerra, arma no sentido
                      literal do termo, onde nunca as mulheres foram tão
                      invisíveis, porque o conceito que presidiu ao estupro em
                      massa na Bósnia, foi a idéia, de que a criança que
                      nascia daquela mulher era apenas da religião do pai, a
                      mulher era uma passagem, nela não existia nada, ela não
                      existia, ela era um receptáculo. Esse tipo de
                      aberração, esse tipo de monstruosidade, não tem senão
                      que ser denunciada com o mesmo ímpeto, a mesma
                      não-negociação com que nós temos, ao longo do tempo,
                      denunciado a tortura, onde quer que ela se encontre, o
                      assassinato, o crime, onde quer que eles se encontrem.
                      
                        
                      
                       Hoje
                      eu tenho a idéia muito clara de que essas mulheres que
                      estão debaixo de leis que as negam, que as sacrificam,
                      que as ferem, essas mulheres precisam de socorro e
                      precisam de socorro internacional, assim como todos
                      aqueles que estão nas masmorras, torturados e presos.
                      Nesse sentido, eu não respeito cultura nenhuma, que em
                      nome dos seus direitos culturais esteja condenando um ser
                      humano, no caso um ser humano mulher, 
                      a um tipo de violência que elas não merecem e que
                      não devem aceitar. 
                      
                        
                      
                       P:
                      Num país machista como o nosso, qual é a sua análise
                      sobre as mulheres negras, pobres e marginalizadas?
                      
                        
                      
                       Rosiska:
                      É muito difícil  medir-se
                      o sofrimento humano. E eu acho que é sempre muito
                      difícil colocar-se na 
                      pele do outro, quer dizer, colocar-se na vida e na
                      experiência do outro. Eu não sou uma mulher negra. Eu
                      tenho pudor de me exprimir sobre isso, fazendo um
                      julgamento do que isso possa representar. Eu posso falar
                      de fora. Estou falando de fora, da observação, da vida,
                      e eu creio que certamente dentro do quadro do racismo, que
                      é presente e perfeitamente tocável na 
                      nossa sociedade. A mim me parece claro que o
                      racismo que se abate sobre as mulheres negras é o mais
                      perverso e sempre foi.
                      
                        
                      
                       Existe
                      um antropólogo brasileiro, o professor Darcy Ribeiro, que
                      usa uma expressão que sempre me impressionou muito, em
                      que ele diz que a sociedade brasileira queimou os negros
                      como carvão, queimou, usou como o carvão. E moveu-se com
                      essa força de trabalho negra, que destruiu, 
                      
                       
 que
                      queimou, justamente como o carvão. Eu diria que a isto se
                      acrescentaria o fato que no caso das mulheres negras, ao
                      longo da história brasileira, além de moer como carvão,
                      ainda a isso se acrescentou o dado da prostituição. Quer
                      dizer, a sociedade branca, a sociedade canavieira por
                      exemplo, a elite canavieira prostituiu as mulheres negras.
                      E isso eu acho imperdoável. Isso é imperdoável. E isso
                      deixou sequelas na fotografia da mulata nua que aparece
                      nos folhetos de turismo, chamando para o turismo sexual no
                      Brasil, hoje. Então hoje reproduz-se o mesmo princípio
                      de degradação, o mesmo princípio de humilhação, que
                      vem do tempo colonial e que se projeta para o século XXI,
                      através fundamentalmente desse drama moderno que a
                      sociedade brasileira está vivendo, e para a qual eu chamo
                      a atenção de todos aqui, porque eu considero uma coisa
                      gravíssima a prostituição juvenil, através
                      fundamentalmente do turismo sexual. 
                      O grosso das meninas que são recrutadas para
                      satisfazer esse imaginário branco, europeu ou
                      norte-americano, são meninas de origem negra. Eu creio
                      que a esse dado veio se acrescentar a dramaticidade da
                      questão racial no Brasil, que toca a todos, homens e
                      mulheres. Mas acho muito particularmente, por esse lado,
                      sobretudo o que toca as mulheres negras.
                      
                        
                      
                       Nós
                      temos no Conselho Nacional uma representação de mulheres
                      negras, e eu tenho insistido, e tenho tido uma resposta
                      muito presente sempre, desse grupos que estão
                      representados lá, no sentido de que nós possamos
                      desenvolver políticas, que sejam políticas que tenham a
                      ver, que mostrem claramente como a sociedade brasileira
                      vem tratando sobretudo essas meninas, essas jovens, porque
                      isso talvez seja ainda o mais dramático, porque são
                      meninas, são meninas que estão entrando na vida, que
                      estão entrando na vida de uma maneira indefesa e que
                      estão reproduzindo o fenômeno da escravidão de maneira
                      velada, mas estão reproduzindo esse fenômeno. Então eu
                      tenho, enquanto presidente do Conselho Nacional dos
                      Direitos da Mulher, uma preocupação fundamental, hoje,
                      com a questão da prostituição, da prostituição
                      juvenil, e dentro dela, como as meninas - e
                      fundamentalmente as meninas negras - estão sendo
                      arrastadas para isso. Eu não posso me conformar com a
                      idéia de que o destino da juventude pobre e da juventude
                      negra brasileira vá ser a prostituição. Eu não posso
                      me conformar com isso e nenhum de nós pode e nem deve se
                      conformar com isso.
                      
                        
                      
                       Eu
                      estou falando aqui com um público próximo dos direitos
                      humanos. Eu chamo a atenção para este fato, porque ele
                      hoje é provavelmente, se não o mais grave, um dos mais
                      graves da história presente brasileira. É preciso ter os
                      olhos abertos para isso, é preciso combater. No Dia da
                      Criança o Presidente convocou todos os ministros das
                      áreas afetas a esta questão, convocou-me a mim também,
                      e foram discutidas políticas combativas de enfrentamento
                      dessa questão, que é gravíssima, ampla e difícil de
                      lidar. E nesse caso eu acho que não há muita dúvida,
                      que as mais atingidas são, sem dúvida nenhuma, as
                      jovens, as adolescentes negras, ou de origem negra. Então
                      políticas nesse sentido são políticas absolutamente
                      fundamentais de defesa dessa população.
                      
                        
                      
                       Imortais
                      presentes 
                      
                       As
                      escritoras Nélida Piñon e Lygia Fagundes Telles,
                      componentes da Academia Brasileira de Letras, também
                      estiveram presentes à mesa dos trabalhos, na noite em que
                      o tema tratado foi "Preconceito e Mulher".
                      
                        
                      
                       Júlio
                      Lerner: Lygia, você estudou aqui na Faculdade de
                      Direito do Largo São Francisco ... Eu gostaria que você
                      contasse ao público quais os preconceitos mais frequentes
                      que - como estudante - você teve de enfrentar nesta
                      escola.
                      
                        
                      
                       Lygia:
                      Parece até que eu vou falar agora da Idade da Pedra
                      lascada, tão grande é a distância que me separa dos
                      meus tempos de juventude deste tempo. Havia, sim, tantos
                      preconceitos fora e 
                      
                       
 dentro
                      desta Faculdade, éramos na nossa turma apenas cinco ou
                      seis moças e quase trezentos rapazes… As mocinhas
                      inconscientemente andavam até meio curvadas (disfarçar o
                      busto?) e desconfiadas, verdadeiramente intimidadas porque
                      alguns rapazes já tinham nos feito, de forma franca ou
                      velada, a tal pergunta: "– Mas o que vocês vieram
                      fazer aqui?". Da minha parte, respondi que queria
                      estudar Direito. E o gracejo irônico: "– Vocês
                      querem é casar com a gente, hem?" E eu disse,
                      "casar também, porque não?…" 
                      Queria lembrar agora que a clássica pergunta,
                      "o que vocês vieram fazer aqui?"  me faz pensar no próprio Freud que perguntou um dia com
                      alguma ponta de irritação: "– Mas o que querem,
                      afinal, as mulheres?". 
                      Desnecessário dizer que esse clima me fazia tão
                      insegura que agora parece até uma brincadeira trazê-lo
                      nesta noite, tantas décadas depois: afinal, falar nisso
                      numa escola completamente invadida pelo chamado segundo
                      sexo… Minha
                      mãe ficou muito preocupada quando eu resolvi prestar os
                      vestibulares: "– Mas o que você vai fazer numa
                      Faculdade de Direito? Será que esses estudos não vão
                      prejudicar a sua vida? E os seus pretendentes,
                      filha?!" Na realidade, a minha mãe queria apenas me
                      ver casada, destinação única para uma jovem se realizar
                      no futuro. E havia outra saída a não ser o casamento?
                      Respondi que tivesse um pouco de paciência, eu estudaria
                      e me casaria em seguida, "eu caso depois, mãe". 
                      Ela ficou pensativa. Duas vezes ela própria já
                      tinha sido contrariada na sua vocação, quis ser uma
                      cantora lírica, tinha uma bela voz. Quis em seguida ser
                      uma pianista, estudou piano com professores importantes da
                      época. Foi também contrariada, a solução foi se casar
                      e ficar mulher-goiabada e digo isso sem a menor
                      ironia, é claro, criei essa expressão mulher-goiabada
                      porque ela fazia a melhor goiabada do mundo… Mas então
                      ela pensou e disse, "– Se esse burraldo do seu
                      primo está na Faculdade e vai se formar, por quê não
                      você?!" 
                      Eu tinha um primo que estudava aqui e que ela
                      costumava tomar como exemplo, era uma mulher inteligente e
                      bem-humorada. Voltou ao piano, tocava seus Noturnos de
                      Chopin: "– Quer saber de uma coisa? Amanhã mesmo
                      você vai se inscrever, amanhã nós vamos cuidar
                      disso". 
                      "Nós" era ela própria, de um
                      certo modo, estava agora se realizando em mim. E é bom
                      lembrar que um preconceito tão agudo existiu sem máscara
                      até há pouco tempo! As mulheres recusadas, esnobadas,
                      omitidas. Tendo que dissimular, que disfarçar, eu mesma
                      não me fiz de sonsa tantas vezes, não disfarcei para me
                      defender?…
                      
                        
                      
                       Queria
                      lembrar agora um ponto bastante importante, creio que a
                      mulher ficou mais perceptiva do que o homem porque
                      simplesmente tinha que se defender e nessa auto-defesa a
                      percepção se aguça, se desenvolve assim como no
                      arrombador de cofre que chega a limar as pontas dos dedos
                      para, de olhos fechados, achar os seus números, desvendar
                      o código… Durante séculos a mulher ficou reduzida a um
                      bicho-de-sombra, encolhida, calada. Penso hoje que se a
                      mulher é mais perceptiva, mais vidente do que o homem
                      não é por virtude mas por necessidade em face das
                      circunstâncias tão adversas. Assim ela foi ficando mais
                      maliciosa, mais desconfiada. E mais fantasiosa, na sombra
                      ela estimulou essa fantasia, a mulher é mais fantasiosa
                      do que o homem.
                      
                        
                      
                       Então
                      esse meu ofício que é o ofício de escrever, considerado
                      também um ofício essencialmente masculino… Lembro
                      agora que na minha família, por exemplo, algumas mulheres
                      tiveram as tais inclinações literárias, escreviam
                      poesias e poderiam mesmo ter sido - por que não? -
                      verdadeiras poetisas, me lembro que certa vez meu avô
                      gracejou referindo-se à minha tia-avó que estava sempre
                      arredia, devaneando, "deve estar escrevendo suas
                      caraminholas!" Caraminholas… A solução era passar
                      para aqueles cadernões de capa preta onde estava
                      registrado o preço da cebola e da batata, os pensamentos
                      poéticos, os sonhos em prosa e verso. Então o começo,
                      hem Nélida, teria sido simplesmente esse, as mulheres
                      começaram a enveredar para a carreira literária nesse
                      estilo confessional, subjetivo. Intimista. Daí a moda dos
                      diários, anotações do dia-a-dia que se
                      encompridavam com as inspirações feitas com tinta roxa,
                      a cor da paixão. Mas isso só cabível em moça solteira,
                      diário era próprio de virgens, porque diário em gaveta
                      de mulher casada, segundo um antepassado, só ia dar em
                      bandalheira… Sim, o longo e difícil caminho percorrido
                      pela mulher até chegar a este momento que Rosiska há
                      pouco lembrou tão lindamente. O difícil, o áspero
                      caminho 
                      
                       
 de
                      libertação. E ainda relativo reconhecimento. E confesso
                      agora que gostaria de ser jovem aqui neste tempo de
                      libertação através do trabalho, atenuando as
                      desigualdades maiores através do estudo, da cultura.
                      
                        
                      
                       A
                      mulher agarrando as suas rédeas e dizendo, "eu estou
                      aqui". Assim, se Freud voltasse a fazer aquela
                      pergunta perplexa, "– mas o que querem essas
                      mulheres?", da minha parte eu poderia então
                      responder, "– quero apenas entrar para a escola que
                      escolhi e escrever meus contos, só isso". Então
                      aqui estamos nesta noite saudando as jovens estudantes -
                      as novas gerações e dizendo como disse a Rosiska, somos
                      agora visíveis. Visíveis não para narcisismos ou
                      dissimulações, visíveis não para as agressões
                      competitivas ou digressões demagógicas. Estamos, sim,
                      Rosiska e Nélida - estamos visíveis para nos dizer.
                      Antes eram os homens que nos definiam, só eles diziam
                      quem nós éramos. Agora temos voz própria.
                      
                        
                      
                       Júlio
                      Lerner: O que você pensa sobre o politicamente correto
                      nas relações entre os sexos?
                      
                        
                      
                       Nélida:
                      Eu acho que a emergência de certas questões ocorre por
                      força de uma carência, de uma necessidade. Se de
                      repente, quando apareceu, eu me lembro em 1960, o chamado
                      Movimento de Liberação da mulher, é porque
                      evidentemente a sociedade reclamava que o movimento
                      deveria acontecer, assim como os movimentos “Black Power”,
                      da década de 60, o movimento dos "gays", todos
                      movimentos libertatórios. Se há excessos, se há
                      interpretações dúbias nem sempre bem formuladas, mas
                      há urgência, as necessidades ali estão. Portanto se
                      algum grupo reivindica porque necessita é porque ele foi
                      posto à margem. Então o politicamente correto surgiu dos
                      abusos, da necessidade de corrigir 
                      frases, de tentar exatamente combater ou reduzir as
                      margens dos preconceitos. A idéia era essa. O
                      politicamente dizer, adestrar a sua linguagem, o seu
                      comportamento, no sentido de que você se comportasse de
                      uma forma plausível, agradável, em meio aos seres
                      humanos, para não ferir, não magoar e não criar
                      questões dramáticas.
                      
                        
                      
                        Eu
                      acho que os movimentos, ou pelo menos uma etapa do
                      movimento se exaure quando comete excessos. Há
                      exageros... Por exemplo, para lhes dar um modesto exemplo,
                      eu me lembro que no ano passado eu... eu sempre passo de
                      janeiro à maio na Universidade de Miami, o semestre
                      americano, graças a Deus, é muito rápido, é muito
                      curto, três meses e meio... eu percebi quando passava
                      pelos corredores, para ir para meu escritório, eu vi as
                      portas todas abertas. Eu pensei, engraçado, os
                      professores americanos deixam as portas abertas, para que
                      todo mundo saiba que estão trabalhando, eu interpretei
                      desse modo, ingenuamente. No ano passado, eu soube por um
                      querido amigo meu, um grande escritor peruano que é o
                      Mário Vargas Llosa, a propósito de que ele estava dando
                      aula na Georgetown, em Washington, e ele perguntou:
                      “voce deixa a porta aberta?”. “Como porta aberta, eu
                      recebo os alunos, eu fecho a porta, é uma questão de boa
                      educação, a meu juízo.” Ele disse assim: “Não
                      faça isso. Não faça porque é perigoso. Voce nunca sabe
                      com quem voce está lidando”. Aqui o bom tom seria, a
                      pessoa passar, voce fechar a porta, porque talvez o aluno
                      queira lhe falar e não quer ser ouvido... Uma porta 
                      aberta intimida o aluno, né?. “Mas não faça
                      isso, porque nos Estados Unidos, de repente um aluno pode
                      inventar alguma coisa, que resulte num desastre para sua
                      vida profissional, uma ação, ou podem dizer que voce
                      usou de intenções não muito adequadas. Então, chega
                      num ponto tão terrível, que ninguém toca no aluno,
                      ninguém pode tocar no aluno, porque isso pode implicar,
                      tocar fisicamente, um gesto delicado, carinhoso, porque
                      isso pode ser mal interpretado. Eu sinceramente, eu com
                      meus alunos, eu sou muito carinhosa. Então o
                      politicamente correto se impedir injustiças pode ser
                      útil, mas evidentemente eu me dou conta de que hoje o
                      politicamente correto é excedente, é exagerado, e que
                      muitas vezes não está mais defendendo os direito
                      humanos, está inibindo o fluxo afetivo das pessoas, as
                      gentilezas. Um homem não toma elevador, de modo geral,
                      nos Estados Unidos, quando houver uma mulher sozinha,
                      porque ele tem medo que essa mulher - de repente - pule do
                      elevador aos gritos: “esse homem me atacou”. 
                      
                      
                       
 Isso
                      pode custar cem mil dólares numa ação, e voce vai
                      trabalhar o resto da vida para pagar aquela cidadã. 
                      
                        
                      
                       São
                      fatos até histriônicos, ridículos, mas que não
                      invalidam enfim o que pode haver de bom no politicamente
                      correto... Ao mesmo tempo, chama a atenção para o
                      ridículo humano... É que nós realmente, estamos
                      inscritos nessa categoria de seres precários, venais
                      muitas vezes, e que precisam cuidar da sua ética, para
                      aprimorá-la. Não é isso, nesse sentido?...
                      
                        
                      
                       Rosiska
                      (aparteando): E eu acho que a principal manifestação
                      ainda hoje do preconceito contra as mulheres seja a
                      condescendência, uma certa condescendência, ou a idéia
                      de que 
                      uma mulher para ser alguma coisa tem de ser
                      absolutamente genial. Sem nenhuma crítica à Academia
                      Brasileira de Letras, mas os homens dizem "estão
                      aqui as três melhores mulheres do Brasil", e eu
                      creio que são mesmo, mas os outros tantos que estão lá,
                      são os melhores homens do Brasil? Não sei... Não tenho
                      certeza disso... Não sei... 
                      
                        
                      
                       Sem
                      desmerecer ninguém que está lá dentro, não é .... Eu
                      costumo dizer que eu só vou acreditar na igualdade, na
                      verdadeira igualdade entre homens e mulheres, quando eu
                      vir mulheres muito incompetentes em postos muitos
                      importantes. Antes disso, eu não acredito. Fazendo aqui
                      um grande elogio à Nélida Piñon, a Ligia e a Raquel de
                      Queiroz... Como era possível que elas não estivessem
                      lá? Inconcebível. São os três grandes nomes da
                      literatura brasileira, os três maiores da literatura
                      brasileira escrita por mulheres. É claro que elas tem que
                      estar lá. Agora em outros lugares do poder, do saber, eu
                      não vejo essas maravilhas espalhadas por aí. 
                      Mas as mulheres tem que ser maravilhosas para
                      chegarem lá. Há uma condescendência em relação às
                      mulheres de talento que eu acho que é a forma mais
                      perversa do preconceito. Porque tentam fazer delas um
                      álibi, dizendo: “Vocês estão aí porque vocês são
                      formidáveis, todas. Vocês são formidáveis”. Agora os
                      outros que estão em outros lugares, são formidáveis? Eu
                      não vejo isso. Esse era o ponto que eu queria dizer...
                      
                      
                      
                      
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