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Repressão, Imaginação e Preconceito:
 O Caso Argentino

       

Santiago Kovadloff

Professor, ensaísta, poeta e tradutor argentino.

 

1982: As Mãos do Medo

 

A notícia se espalhou: batiam à porta inesperadamente. Anunciavam-se com autoritarismo enxuto. Apresentando-se em grupos de quatro ou cinco enquanto seus caminhões esperavam na rua, diziam procurar literatura proibida. Tinham ordem de revisar as bibliotecas das casas, os armários, os porões. Quando encontravam obras proibidas ou proibíveis seqüestravam-nas. E junto com as obras, seus leitores. Não queriam ouvir explicações nem desculpas. Os livros achados eram prova suficiente do delito.

 

O temor se apoderou de todos. Era preciso destruir sem hesitações tudo quanto pudesse servir de pretexto à violência. Enganava-se a maioria que presumia estar salva por não guardar nas suas prateleiras materiais de expressa orientação marxista. Igualmente perigosos, segundo tudo o evidenciava,  eram - simplesmente pela sua linhagem - os estudos sociológicos, os tratados de filosofia política, as monografias histórico-econômicas sobre o incerto desenvolvimento continental, os documentos eclesiásticos que impugnavam a injustiça social ou as inclemências do totalitarismo e as obras políticas de qualquer orientação partidária que denunciassem a vigência de critérios colonialistas nas relações impostas pelas potências ocidentais às nações submetidas da América Latina.

 

Qualquer variante contida nesse leque temático era suficiente para qualquer pessoa ficar exposta à prisão imediata. Não havia, portanto, tempo a perder: era imprescindível varrer as prateleiras de riscos eventuais.

 

O medo cumpriu sua tarefa. Rapidamente o desespero  deslocou a prudência e o último indício de sensatez se evaporou sob a coerção duma rígida autocensura. Com o coração carregado de angústia se iniciou então o penoso ritual da vergonha. No meio da noite ou à luz do dia, desmanchamos nossas bibliotecas. Sem nos olharmos de frente, de costas para nossos filhos, fizemos pedaços dezenas de ensaios, romances, biografias, contos e poemas onde pudesse assomar o menor indício de consciência social ou inquietação política. Aos nossos pés, como cinzas de um tempo melhor, iam-se acumulando as que um dia tinham sido páginas queridas, parágrafos que sublinhamos com fervor, conceitos e imagens que tinham contribuído à nossa formação, ao desdobramento de nossa sensibilidade, ao fortalecimento de nossa inteligência e do nosso amor à liberdade na luta contra o preconceito. Nada nos detinha. O eco de qualquer passo na madrugada era o eco de seus passos. O silêncio mais denso ocultava a ameaça mais angustiante e o horror da opressão se respirava sem esforço e sem pausa. Os que tinham sido livros já não eram  senão pedaços de papel. E esses pedaços de papel se transformaram em lixo, e o lixo literário ardeu nas chamas de nossos jardins, nos depósitos de nossos incineradores, dentro dos nossos banheiros, quando não foram sepultados na terra, longe de nossos lares.


Uma penosa cumplicidade cresceu entre nós: nos irmanava a humilhação de termos queimado nossos livros. Não hesitávamos porém em nos auto-justificar. Que podíamos ter feito senão fazer o que fizemos?  Os anos 70 se esgotavam  num mar de barbárie, de terror e de incertezas. A vida de um homem voltava, como em tempos remotos, a não valer quase nada; e a de um leitor suspeito, simplesmente nada. Era inútil se arriscar a morrer pela preservação dos livros que amávamos e asfixiante viver num país que aconselhava queimá-los. Mas desse país também formava parte outra dimensão de nós, já que não só éramos os destruidores de seus livros; éramos, também, as testemunhas do que acontecia e do que fazíamos, e em relação ao futuro éramos a memória possível das grandes lições democráticas aprendidas nas páginas que tinham ardido. Por isso não hesitamos: o cenário devia estar preparado para quando eles chegassem. Não devia haver um único indício que delatasse vocação republicana, admiração pelo estado de direito, paixão pelo estudo crítico de nossa realidade, consciência da repressão.

 

O mais insignificante desses indícios seria, aos olhos de nossos inquisidores, sinal de desobediência. Esses olhos não deviam se confrontar com nada que os irritasse. Deviam deslizar através dos títulos de nossas bibliotecas com a secreta complacência de quem se sabe obedecido e verifica a radicalidade da sujeição obtida. Inclusive as prateleiras demasiado cheias  podiam resultar suspeitosas. Já não importava o que contivessem. O risco consistia, simplesmente, em que as vissem lotadas de livros. Não faltou, por isso, quem reduzisse rápida e indiscriminadamente seu patrimônio bibliográfico, seguindo neste caso, um critério primordialmente, quantitativo. Nenhum sintoma - foi a conclusão - resultaria mais revelador da boa saúde cívica exigida pela circunstâncias do que uma biblioteca esvaziada.

 

Não faltou porém quem  resistisse ao padecimento passivo dessa investida irracional que forçava ao extermínio dos livros. E preferiu ocultá-los a destruí-los. Pensou que certos danos morais são irreversíveis. Os volumes queimados bem poderiam, num futuro, se repor. Mas os homens que os queimavam, poderiam se repor?  Para muitos que pensaram que não, o perigo que ameaçava era, portanto, duplo: se não ocultavam sua paixão pelo pensamento, corriam o risco  de desaparecer para sempre, arbitrariamente identificados com os porta-vozes do terrorismo de esquerda graças a essa trágica premissa da lógica do preconceito totalitário, segundo a qual o niilismo antiocidental e o amor ao conhecimento são sinônimos. Por outro lado, se destruiam seus livros convertiam-se perante si próprios não só em cúmplices da sem-razão mas em bárbaros a quem a consciência da própria vileza não perdoaria jamais. Optaram, então, por  partir com seus livros para outros sítios: longe de suas casas, longe de suas cidades, longe de suas províncias, longe de seu país. Porque também se emigrou para continuar lendo autêntica literatura. Essa literatura que concebe a história como estímulo à criação constante, como tarefa sempre incumprida que nos impõe a necessidade de uma vigília crítica indeclinável para evitar que a lei - sem a qual não podemos viver - se transforme no dogma que não nos deixa viver. Essa literatura, em síntese, assentada na convicção de que sem cultura pode haver demografia mas não cidadania.

 

Nasceram  desta feita autênticas bibliotecas subterrâneas. Elas preservaram das chamas obras que hoje demonstram a versatilidade e a riqueza dos interesses intelectuais dos argentinos, tanto como a já passada solidez de uma indústria editorial que foi paradigmática na América Latina e cujos títulos, por outro lado, fariam sorrir qualquer desprevenido se soubesse que por tê-los incorporados  numa prateleira poderia ter ido para a cadeia, ou à sala de torturas.

 

A curiosidade de muitos freqüentadores de livrarias não resiste hoje à emoção quando, em alguma mesa de saldos, esbarra inesperadamente com um volume familiar. As mãos o tomam, acariciam sua lombada; os olhos percebem o leve verniz amarelado que enobrece as margens de suas páginas e então,  num susssurro doloroso, cada um desses leitores se diz: "Eu queimei um exemplar desse livro".


Hoje sabemos tão bem como então, naqueles dias ainda não longínquos, centenas de nós fomos cúmplices daqueles que desencadearam essa onda de barbárie. Não quisemos contribuir ao extermínio de nossa geração nos arriscando a morrer pelos nossos livros e tenho certeza que fizemos bem. Mas já é hora de verificar se somos capazes de viver em consonância com os ideais democráticos que esses livros queimados nos ajudaram a forjar. O amadurecimento desses ideais exige uma radical autocrítica de todos nós. Não creio que possamos lhes render melhor homenagem póstuma. Nem que haja  maneira mais adequada de evitar aos nossos filhos que amanhã suas próprias crianças devam se levantar à noite para destroçar, com as mãos do medo, os símbolos mais belos da liberdade espiritual.

 

 

1983: A Pele da Aflição

(Início do Governo de Raul Alfonsin)

 

Um ciclo de cultura autoritária pareceria que  está se  esgotando no país. Seus traços são bem conhecidos. Estão definidos pela razão que dá a força e não pela força que dá a razão.

 

Para reinar como deseja, sua palavra exige silêncio e submissão. Não suporta a polêmica. É incapaz de conceber sua proposta como uma possibilidade entre outras.  Ser apenas uma alternativa a desespera e humilha. Impaciente e sedenta de rigidez e verticalidade, reinvindica para si os títulos apostólicos da verdade absoluta.

 

É soberba, depreciativa, autosuficiente e arbitrária, e quando já conquistou o cetro não hesita em aplicar a repressão onde não a querem ouvir, nem em recorrer ao assassinato quando intui sua segurança comprometida por aqueles que teimam em negá-la.

 

A cultura autoritária povoou os cárceres e esvaziou as escolas. Multiplicou os cemitérios e exterminou os centros de trabalho. Encorajou o êxodo, semeou a fome e espalhou o desespero e o ceticismo. Soube transformar o amor em ódio e a fé em ressentimento.

 

Como um eco terrível e prolongado, a voz da cultura autoritária se difundiu pelas ruas da cidade deserta. Extasiada com a eficácia de seus recursos dissuasórios, demorou-se contemplando a deserção da inteligência nas casas de altos estudos e percorreu, de chicote na mão enluvada, as prateleiras vazias das bibliotecas.

 

Satisfeita, a cultura autoritária avaliou pormenorizadamente as seqüelas da censura na opinião dos mais ousados; a espessura das formas do medo que sepultaram a vontade crítica; a densidade da descrença, o envilecimento de fábricas e campos; o deserto que cobria palmo a palmo o solo do país.

 

Sob suas solas  agonizavam numa mesma lama o criminoso, o operário, o ladrão, o estudante e o poeta. A cultura autoritária não hesitou em defini-los como diferentes expressões de uma mesma imundície.  Múltiplas cabeças de uma só e hábil hidra: a do comunismo internacional.

 

Sim, a cultura autoritária tem a razão que dá a força. Mas a força, mais cedo ou mais tarde,  morde com ferocidade a sua própria cauda e sangra pela ferida inesperada e, no dizer do romancista, o patriarca então se consome na agonia de seu próprio outono.

 

A cultura autoritária contempla hoje espantada o estilhaçar da sua própria imagem; cheira, perturbada, sua putrefação  e não sabe que explicação lhe dar. Sua arrogância lhe impediu crer que


suas contradições a devorariam, no entanto a devoram. Sua cegueira a levou a presumir que era o eixo da nacionalidade e descobriu, ao contrário, que é o vértice de sua esterilidade mais pronunciada. Como Dorian Gray no momento derradeiro, reconheceu no retrato as marcas profundas de seu próprio envilecimento, quis negar o que via, investiu contra sua imagem de punhal na mão e acabou por afundá-lo no seu próprio coração.

 

Filha de sua pobreza, a cultura autoritária esconde agora os farrapos de sua retórica com mãos que denunciam sua miséria, e cada um dos gestos com que tenta ocultar suas vergonhas não consegue senão ressaltá-las.

 

Mais um ciclo de cultura autoritária pareceria estar se esgotando no país. Mas aqueles que não a promovemos nem a apoiamos, temos as roupas roídas pela sujeira da convivência a que ela nos forçou. Temos respirado o ar fétido que expulsa dos seus pulmões. Temos bebido a água suja dos seus arroios. Não soubemos, não pudemos impedir que tanta imbecilidade e tanta mentira contaminassem nossa melhor vontade cívica e hoje começamos a emergir do inferno doentes de desânimo, abatidos pela desorientação, com o olhar desorbitado dos loucos, dos torturados, dos famintos, dos solitários e dos miseráveis sobreviventes.

 Com que mãos construiremos a cultura da liberdade?  No solo de que convicções  assentarão com firmeza nossos pés para erguer as paredes da casa em que deveríamos viver?

 

Tremem as nossas mãos de desconfiança. Medimos cada palavra. As janelas, dizem, começarão a se abrir. Mas ainda suspeitamos que há fuzis por trás de cada janela. Será que a besta mudou de máscara? Que novas tragédias  anuncia a apressada transformação do cenário?

 

E os mortos? Onde estão os mortos? Será que vamos continuar ouvindo mijar sobre seus túmulos? Quantos são os nomes dos homens truncados que hoje só são uma sombra na boca de uns poucos?

 

As velhas vozes da selvageria mudam a entonação, suavizam seu timbre, se afinam, pedem esquecimento. O esquecimento não se obtém com a aprovação de um decreto. Uma cultura sadia não pode esquecer senão quando, previamente, recuperou seus  traumas com toda consciência, para digerir, madura e vagarosamente, seus duros efeitos.

 

Se não há lúcida superação da dor, esta dor acaba envenenando tudo. Não podemos refundar a nação de costas à sua ruína. É preciso olhar de frente as pedras queimadas, os nomes calcinados, os rostos da vileza, a saga atroz do terror e da tirania.

 

Ou não haverá castigo? Ou os barões se retirarão para seus feudos apenas para restaurar o gume de suas espadas antes de nova investida ? Continuará  sendo  o país bastião de cafajestes e demagogos? Mulher da vida do melhor pagador?  Troço de carne disputada pelos colmilhos famintos da matilha?

 

Quem se animará , nesta terra,  a conjugar o verbo pensar? Quem a propor e não a ordenar? Quem a ouvir e ceder a palavra em vez de amordaçar e vociferar seu solilóquio? Ainda haverá sítio para a cultura da liberdade?

 

Os dedos sensuais do poder percorrem de leve os rostos de seus novos cortejadores. Ainda não se detêm em nenhum. Vão e vêm; brincam com eles. Iludem, sugerem, insinuam mas ainda não se definem e enlouquecem de desejo a  todos aqueles que se agrupam ávidos perante a promessa de suas carícias.


Há um homem, porém, que não está na fila de anelantes. Perdeu um emprego, um amigo no exílio, um filho na guerra. Há também uma mulher que perdeu tudo isso e não está, porém, nessa fila de anelantes. E há uma moça e um moço  que também perderam quase tanto como isso e que também não estão nessa fila de anelantes.

 

São argentinos. Têm a pele chagada pela amargura. Quem falar com eles sem tê-lo em conta, não merece senão desprezo. Eles são a semente de uma cultura possível. A raiz da liberdade necessária. São as entranhas do país enganado e humilhado pelo autoritarismo.

 

Marcou-os o desespero mas estão vivos. Marcou-os a sujeição mas estão vivos. Viram suas faculdades transformadas  em campos de extermínio intelectual. Viram seus lugares de trabalho transformados em salas de tortura econômica. Aprenderam, como a toupeira, a se mexer sem luz durante longo tempo mas com o fervor e a eficiência que nasce da boa memória e dos melhores ideais. Privados de voz e direito são  - apesar de tudo isso e por tudo isso - o país. A  Argentina eventual da cultura em liberdade.

 

1996: A ditadura e o presente

 

Não é possível ainda olhar para trás para falarmos do Processo - isto é, da última ditadura militar argentina que semeou 30 mil mortos.  Ainda é muito cedo para estarmos certos de que o Processo faz parte exclusivamente de nosso passado. Na medida em que a passagem para a vida democrática é lenta e hesitante, não podemos saber o que vai acontecer. Qual  o poder de involução que encerra o presente argentino.

 

Na orientação seguida por estes treze anos de vida constitucional iniciados em 1983 com o Governo de Raul Alfonsin, nada aconselha acreditar que estejam firmes, entre nós, as bases do projeto democrático. O conceito de estabilidade se utiliza com frequência para falar de economia, não de Lei. É que ainda não findou na Argentina a transição total do Estado autoritário para a Sociedade solidária. Poderia ser de outro modo? Poderíamos estar já, após treze anos, plenamente instalados na margem democrática?  É claro que não, tendo em conta nossa história. Mas a transparência da orientação seguida em direção a essa margem democrática, poderia ser já muito mais evidente, e não o é. Daí que, num sentido essencial, o Processo, sua visão das coisas, sua compreensão do país, o preconceito profundo que ele representa, não tenha ficado  para trás. E na medida em que não ficou para trás, ao relembrar os vinte anos passados desde  24 de março de 1976, devemos olhar o que vai acontecendo e não só o que já aconteceu. Porque no que acontece sobrevive boa parte do que aconteceu.

 

Hoje na Argentina já não há mais desaparecidos. Mas há desempregados. A figura do desempregado, do homem para o qual não há lugar na sociedade produtiva, substituiu a figura do desaparecido, o homem para o qual não há lugar na sociedade jurídica. Um e outro são produto de uma exigência de organização. Organização nacional, num caso, organização econômica, no outro. Mas organização, às vezes, é também sinônimo de desprezo pela vida. De  desconhecimento arrogante do valor sagrado da vida.

 

Em aspectos fundamentais não conseguimos ainda deixar de ser uma democracia de superfície, frívola, irresponsável. Uma democracia que não sente ainda visceralmente a necessidade de combater a subestimação do homem. E somos, por isso, uma democracia que está mais perto da simulação do que da autenticidade.

 


Como nos anos da ditadura, segue-se acreditando hoje, lá  onde  o poder é administrado, que a argentinidade é atributo de poucos, que no país sobra gente.  Que a cultura não é uma prioridade mas uma maquiagem.  Tal como então acontecia, entreter e distrair importam hoje mais do que educar, e o intercâmbio de idéias se vê sepultado sob a guerra de consignas,  da retórica do triunfalismo e da difamação do adversário.

 

A nossa é uma democracia em que os homens que governam importam mais  do que as instituições que representam. Uma democracia na qual os homens governados importam menos como seres humanos que como cifras de estatística.

 

Uma democracia mercantilizada não faz outra coisa do que pôr preço às suas convicções. Privando-as de substância ética, enfraquece seu sentido mais e mais, até fazer delas só noções funcionais, puramente operativas. Mas nem tudo se compra.  Nem tudo se vende.  Nem tudo se soma, nem tudo se esquece.

 

A ditadura impôs a convicção de que o futuro do país não exige idéias mas obediência servil. Ainda não chegamos a entender nem de longe até que ponto essa convicção continua alicerçada entre nós.  Uma sociedade civilizada não é uma sociedade obediente. É uma sociedade responsável. De homens que têm um profundo sentido da dignidade de seus próximos.

 

Os vinte anos passados desde aquele sombrio 24 de março de 1976 em que os militares assaltaram o poder constitucional, não falam apenas de um passado concluído.  Eles assinalam em direção a um presente intensamente problemático. Que o país já não seja um quartel não significa que seja uma nação. Uma nação é, antes de mais nada, o fruto de uma grande consciência ética e autocrítica; de um conceito de cultura que embora não esteja livre de preconceitos, luta contra os preconceitos que fazem parte de sua realidade. Uma nação é fruto de uma consciência aberta e engajada com a tarefa primordial de capitalizar o sofrimento padecido. O sofrimento não fica para trás quando é ignorado e arquivado, mas quando é tomado em conta para empreender a convivência  de outro modo que aquele que impôs o terror. A arte, a ciência, a filosofia são e podem ser sempre manifestações desse outro modo de conceber a convivência na qual o preconceito é matéria de denúncia e não só de obediência.

 

Se queremos que a mentalidade da ditadura seja sepultada e superada, haverá que transformar as condições sociais e culturais que a tornaram possível.  Haverá que dignificar tudo o que o Processo subestimou e ignorou. E isso quer dizer justiça independente, respeito, educação geral, direitos humanos.

 

Lembremos tudo o que passou desde um presente que nos mostra que o desprezo ainda subsiste. Não lembremos para evocar; lembremos para reconhecer melhor o que nos acontece. Saibamos  ver naquilo que nos acontece a triste herança do que nos aconteceu.

 

Sem valores espirituais não superaremos nunca a dissociação entre ética e eficácia que hoje afoga a nação. Sem esses valores espirituais, não superaremos nunca o temor de que o passado volte a ser o futuro.

 

Desfecho para um tempo de dilemas

 

Coube-nos presenciar e protagonizar, neste fim de século, um fenômeno de radicalidade inesperada: a queda do marxismo como prática política na Europa de Leste.  Trata-se, com efeito, de


um autêntico acontecimento histórico.  O fim do marxismo como modelo sócio-econômico e político e as consequências planetárias desse desmoronamento permitem reconhecê-lo como um exemplo de indubitável contemporaneidade.

 

A crise que hoje envolve o marxismo de modo tão fundamental atinge, naquilo que nos importa, a viabilidade da concepção da história como processo que responde a leis iniludíveis, de férrea direção e consequências que não podem ser contidas.  A agonia de marxismo, parece-me, não é senão a agonia da idéia da história como fatalidade; como demonstração de um mandato cujo acatamento redunda, necessariamente, na instauração da ditadura do proletariado e o fim da luta de classes. O messianismo político de intenção sistemática e científica vive assim, no século XX  e com a queda do marxismo europeu, a última de suas derrotas conhecidas.

 

Em íntima relação com essa derrota se põe em questão a concepção materialista dialética dos processos sociais.  A dialética, cuja eficácia relativa na interpretação de tais processos seria absurdo desconhecer, não  parece concitar já o consenso necessário para que nela se siga vendo um modelo paradigmático de pensamento.

 

Vinculado à crise do marxismo como prática política e enunciado teórico, se encontra o fato de que, com a dissolução do mundo comunista europeu, se impõe reconsiderar a questão do outro, quer dizer, o problema da alteridade. Tradicionalmente, este problema, em política, está associado ao da identidade do adversário e do inimigo. Até onde se dirigirá, após a dissolução do conflito desatado no  Golfo Pérsico, a necessidade de continuar concebendo o mundo não ocidental como um mundo hostil ao Ocidente, tal como até agora ocorria com a Europa de Leste?

 

 Fala-se muito em nossos dias do fim das ideologias. Insiste-se por toda parte  que as ideologias morreram.  Creio que convém que sejamos cautelosos.  A ideologia é um critério de compreensão, uma modalidade interpretativa assente  em valores tidos como axiomáticos.  Que seus conteúdos mudem não implica que a necessidade de sua existência tenha desaparecido.  Interpretar a realidade ideologicamente significa entender que se dispõe de uma perspectiva para a concepção dos fatos e das teorias cuja pressuposta consistência induz a vê-la como superior, em aparência, a qualquer outra.  É mais do que razoável considerar que não se pode deixar de pensar e de atuar segundo uma escala de valores e interesses.  Mas, ainda assim, é mais do que razoável também afirmar que a necessidade de que esses valores e interesses revistam uma hegemonia universal constitui uma arbitrariedade e um perigo.

Nosso tempo não só vive a crise cultural desta luta entre quem predica o fim das ideologias e quem considera que essa prédica é uma prova essencial de sua sobrevivência.  Nosso tempo vive também uma profunda crise resultante do que eu chamaria a reversão fundamental de uma situação muitas vezes milenária. Durante centenas de milhares de anos, o ser humano lutou energicamente para se garantir um lugar na natureza.  Hoje deve lutar com igual intensidade para que a natureza encontre, em seu mundo tecnológico, um lugar de subsistência, um espaço de preservação.  A contaminação ambiental nascida da instrumentação cega do poder tecnológico induziu, mesmo assim, a compreender melhor o alto grau de interdependência existente entre o homem e o que, supostamente, não é ele mesmo: neste caso, a natureza. Isso contribuiu, também,  para que em amplos setores de nossas sociedades se acrescente o interesse concedido à evidência de que nem toda lei pode ser transgredida impunemente pelo afã de domínio, pela sede de poder. O homem não só é produtor de leis.  É, também, produto de uma legalidade que o transcende: a que faz dele um ser mortal e, por sua vez, somente viável no âmbito de uma interdependência  profunda, não apenas com seus semelhantes mas, também, com quem não o é, quer dizer com todos aqueles e ainda com tudo aquilo que conforma o horizonte do que, sem ser ele mesmo, tem a ver com ele.

 


Até há muito pouco tempo, a Terra esteve ameaçada abertamente pela possibilidade de uma hecatombe nuclear.  Seria ingênuo presumir que o caráter velado que começa a tomar agora essa possibilidade implica que o risco  desapareceu.  Mas é razoável pensar que a distensão Leste-Oeste, nascida da vertiginosa dissolução do marxismo tradicionalmente entendido, contribuirá a deslocar nossa atenção para novas perguntas.

 

Um dilema não menos relevante que os anteriores é, na atualidade, o do conhecimento. A Idade Média viveu um período - o feudal - no qual a fragmentação territorial contrastava com a unidade infundida ao saber pela hegemonia do pensamento teológico cristão.  No nosso tempo, a fragmentação territorial foi amplamente superada. Tende-se, dia a dia, para uma maior interdependência planetária. Mas, em compensação, o saber se fragmentou. E é  aqui onde pode se reconhecer a vigência do preconceito em relação à cultura. Subdividido em incontáveis especialidades, o conhecimento pareceria ter perdido, neste século, a consciência de sua essencial unidade, já que a unidade propriamente dita a perdeu faz muito. Como faremos para recuperar essa consciência sem recair no verticalismo imposto pelas disciplinas que se querem  "superiores"?

 

As nações da América Latina ingressam no último segmento do século XX enfrentadas a um dilema central: próximas do século XXI, seus problemas básicos continuam sendo os do século XIX. Entendo que as democracias latino-americanas do presente vêem ameaçadas sua real representatividade e sua solidez efetiva pelo fantasma da dissociação entre a vigência de uma vida constitucional sem fraturas e a postergação sine die da justiça social.  A contundência do fracasso marxista na Europa prova que essa justiça social não se atinge necessariamente prescindindo do desenvolvimento democrático. A crise que implica o subdesenvolvimento em que nos encontramos imersos na América Latina não é menos rotunda que aquele fracasso e evidencia que o progresso indispensável não será consequência direta da exclusiva prossecução sem sobressaltos da vida constitucional.  Não é suficiente a vontade popular para instaurar a democracia.  Sem consciência da interdependência solidária não há autêntica consciência pessoal. E sem consciência pessoal autêntica não há responsabilidade cívica em termos democráticos.

 

Queria, finalmente, me referir ao que considero um dos deveres primordiais do intelectual num  âmbito sócio-histórico como o latino-americano.  Creio que uma das doenças espirituais de que continua padecendo a vida política continental é o autoritarismo, a arraigada intolerância ao debate, a repugnância e o horror perante o valor relativo que possam revestir nossas convicções e, em consequência a necessidade de conceber toda instância alternativa à nossa como uma hostilidade, um perigo, uma ameaça mortal.

 

Entendo  que quando um intelectual assume o compromisso da militância partidária num  contexto como o latino-americano, deveria se consagrar a fundo e antes de mais nada a combater o autoritarismo vigente em suas próprias filas, isto é, tudo o que nelas  compromete os alicerces da democracia.  Se, pelo contrário, privilegia o poder criador de suas idéias para demonstrar que ao adversário não lhe assiste a mais mínima parcela de razão nem o menor segmento de direito, fará da inteligência e da sensibilidade instrumentos ao serviço da arbitrariedade do poder, e não da verdade.

 

Sei perfeitamente que entre poder e verdade não há nem haverá nunca relações pacíficas.  Mas, precisamente por isso, cabe empenhar-se em impedir que quem homologa sua voracidade de poder ao amor pela verdade seja o único em tomar a palavra.  Não se trata, em nosso caso, de conseguir que a política se transforme num discurso e numa uma prática sem impurezas. Trata-se de que essas impurezas não sejam esquecidas nem dissimuladas pela falta de escrúpulos ou pelo cinismo que desembocam na  impunidade.

 


Em português bastante claro, por supuesto

 

Julio Lerner: Como é que você chegou a dominar tão bem o português, tendo nascido, se criado e vivido, praticamente toda a sua vida, ou parte significativa dela, em Buenos Aires?

 

Bem, aqui na primeira fileira está o responsável do meu português, que é meu pai. Ele foi transferido pela empresa onde ele trabalhava para cá, para São Paulo, quando eu tinha quatorze anos, eu e meu irmão, que também está aqui. Os dois chegamos de Buenos Aires, ele com treze anos e eu com quatorze. No terceiro dia eu queria ir embora. Tinha muitas saudades de tudo. E o português era um problema muito sério porque a gente falava muito mal, muito mal, a gente sequer falava portunhol, falava espanhol mesmo. Agora, teve uma chance excelente para nós, eu jogava muito bem futebol, era um bom goleiro, e jogando futebol a gente não precisa falar muito, né? Eu consegui que meus companheiros de aula no ginásio me aceitassem como goleiro, porque o meu português era um desastre total, então... comecei a jogar futebol, e pouco a pouco comecei a aprender o português. Pouco, realmente aos poucos. E o fato é que agora eu tenho até sobrinhos brasileiros. Mas o português é para mim não outra língua, é uma das maneiras em que me aconteceu a experiência do crescimento e do desenvolvimento da  minha sensibilidade e da minha vida, da minha cultura, me formei aqui, fiz parte do ginásio e o colégio aqui.

 

Julio: Você estudou em que colégio?

 

No Dante Aleghieri, no Colégio Dante Aleghieri. Depois quando eu fui embora para a Argentina, para fazer a faculdade, aí começou a saudade do português, e comecei a traduzir, para matar a saudade. E assim foi, como eu comecei o meu trabalho de difusão da literatura e do pensamento brasileiro. E agora estou aqui e estou lá, nos dois países e nas duas línguas, sem dúvida nenhuma. Eu acho que língua estrangeira é aquela na qual não aconteceu nada a gente. Quando a gente cresceu numa língua, ela não é mais estrangeira, ela é indispensável para se auto-reconhecer.

 

Julio: Você traduziu para o espanhol algumas obra dificílimas, entre elas o "Morte e Vida Severina", do João Cabral de Mello Neto. Agora o que é muito difícil imaginar é como você consegue verter para o espanhol um João Guimarães Rosa. Como é que você consegue? Isso é, num certo sentido, um "milagre".

 

É um "milagre" que com uma grande dose de responsabilidade pode ser feito, né? Realmente, o que aconteceu foi que eu queria traduzir Tutaméia. Eu me ofereci para uma editora argentina para traduzir Tutaméia e pedi três anos para fazer a tradução. O editor pensou que eu estava louco. "Como é que você vai levar três anos para traduzir o livro, no mínimo, né?" Porque o problema fundamental na tradução é a música de uma língua e de uma linguagem. É como uma partitura, interpretar a melodia de uma linguagem é fundamental, então eu estudei muito essa linguagem, ouvia o tempo todo Guimarães Rosa. Fazia gravação. Escutava o tempo todo. E quando o ritmo da sua língua começou a ser para mim um pouco mais familiar, aí então eu comecei o meu trabalho de tradução, mas levou quatro anos e meio, e não três. Agora para quem ama uma língua, a tradução é uma experiência literária tão importante quanto a criação dos próprios textos. Não existe diferença nenhuma, entre o fato de traduzir uma obra, isto é, de interpretá-la, porque o trabalho de tradução é um trabalho de interpretação, da mesma maneira que a gente fala: “você ouviu a quinta sinfonia de Beethoven, interpretada por quem?” Depende de quem interpreta. Pois então o trabalho do tradutor, é de ouvidor.

 

Julio: Começam a chegar as perguntas do público... Argentina, 30.000 desaparecidos. Brasil aproximadamente 400. É possível falar algo sobre isso?


É possível, sim. É possível, sinteticamente, é possível... O conceito de Estado na Argentina, é um conceito sempre fraco. Nós passamos da ausência do Estado à criação de um Estado paternalista na época de Péron, e agora à dissolução do Estado em favor da privatização. O nosso Estado atualmente não tem responsabilidade protagônica na produção da democracia. Ele tem responsabilidade na administração econômica da privatização. Temos uma democracia privatizadora. Em consequência, essa irresponsabilidade profunda do Estado, que passou da inexistência ao paternalismo, e do paternalismo à divisão  intensa das estruturas que dão identidade institucional à república, num país onde a justiça não existe institucionalmente, que está submetido, a justiça está submetida ao legislativo e ao poder executivo. É um país que tem um profundo sentido da impunidade perante a lei. A impunidade é um conceito muito importante. Um conceito segundo o qual o outro não existe. Vou explicar isso brevemente.

 

O governo militar argentino afirmava que os desaparecidos eram auto-excluídos, eram um pessoal que tinha se banido da sociedade e não tinha sido eliminado pelo Estado. E o raciocínio tem a sua lógica, embora rejeitada por nós, ela deve ser ouvida, e  é simples. É assim: o que é um subversivo? É um homem que existe à margem da lei, isto é, ele sai do campo da identidade cívica, ele se exclui da identidade cívica. Na medida em que ele passa a ser um subversivo, então a eliminação de um subversivo é a eliminação de alguém que já era ninguém. É uma redundância. Eliminar um subversivo não é eliminar alguém, é eliminar ninguém. Então o desaparecido, para muitas das autoridades do processo, foram aqueles homens que se auto-excluiam e depois desapareciam, sumiam. Mas sumiam a partir de uma decisão ontológica, que era se colocar à margem da lei. Qual lei?... Isto aqui não se discute. Eu acredito que embora possamos estabelecer relações de parentesco entre os nossos países, a diferença de quantidade entre 30.000 e 300 ou 400 desaparecidos, no sentido formal, tem que ser acrescentada  essa diferença, essa diferença tem que ser vista à meia luz. É um fato fundamental na história da Argentina, onde a justiça não existe, na verdade, como elemento "fundacional" da democracia. O meu país julgou aos chefes militares do processo, provou a sua responsabilidade e a sua culpa, e os deixou em liberdade. A lei não pode se cumprir. Quer dizer sob o ponto de vista dos fatos, a inexistência da lei no nosso país sempre esteve muito marcada, sempre foi um fato muito constante, e foi substituída pela autoridade do setor. No meu país as Forças Armadas se definiram, no tempo do processo, como a reserva moral da nação. E essa mentalidade, acredito, tem a ver com a história hispano-americana, que não sei se o Brasil teve, onde as Forças Armadas, embora tenham tido o papel que tiveram na ditadura, não chegaram a ser programaticamente sanguinárias, como foram na Argentina, porque no nosso espírito hispano-americano o banho de sangue é purificador.

 

P: Gostaria que o Senhor comentasse a postura assumida perante a ditadura argentina por dois dos mais conhecidos escritores de seu país: Ernesto Sábato e Jorge Luís Borges?

 

Foram posturas bem diferentes. Sábato foi desde o começo, e antes ainda do processo militar, um homem politicamente muito comprometido. Ele lutou contra o peronismo, Borges padeceu o peronismo. São coisas diferentes. Borges padece o peronismo, Sábato luta contra o peronismo. Além do mais, Borges sempre teve uma atitude muito tímida perante a ditadura, no começo ele até se mostrou simpatizante dela e depois se arrependeu, mas não se pode dizer de Borges que tenha sido um homem a favor da ditadura. Não foi não. Borges foi um homem  que teve uma posição de reclusão, procedente até em muitos aspectos, mas foi um homem que manifestou, por exemplo, na Guerra das Malvinas, da Argentina com a Grã-Bretanha, uma posição bem corajosa, bem clara. Mas civicamente falando, a posição de Ernesto Sábato não tem comparação. Ele é para muitos de nós a representação mesmo da responsabilidade de um intelectual, para o qual a imaginação criadora é um instrumento anti-totalitário. Eu gostaria de dizer duas coisa a propósito disto. Há uma incompatibilidade básica entre a linguagem da arte e a linguagem da ditadura. A ditadura tem uma preocupação central que é ser literal, ela não quer significar outra coisa com o que


diz, ela atribui à sua linguagem uma literalidade total. Quando ela diz, por exemplo, que representa o cerne nacional, ela quer dizer isso. Isso aí não é um símbolo, não é metáfora. Isso aí é o cerne nacional. Mata-se em nome do cerne nacional. Reprime-se em nome do cerne nacional. A arte é essencialmente metafórica e democrática, porque a arte e a imaginação, a ciência, meu Deus, a ciência, a filosofia, são essencialmente democráticas, porque na medida em que elas empregam uma linguagem simbólica e metafórica, elas estão afirmando que queiram dizer alguma coisa, aspiram dizer uma coisa. A arte exprime por aproximação, o pensamento totalitário exprime por monopólio de sentido. Ele monopoliza o sentido, a arte sugere, o pensamento científico é sugestivo, ele não diz o que as coisas são, ele sugere que poderiam ser de certa maneira. Agora, há então incompatibilidade essencial entre a vigência de uma ditadura e o desenvolvimento do pensamento científico criador, sob o ponto de vista das instituições do país. Mas quando a ditadura se apossa de um país, a arte, o pensamento e a criação, eles vivem na clandestinidade, eles vão alimentando uma exigência de um espírito crítico que se desenvolve no que eu chamei, no seu momento, as catacumbas da cultura. Sábato representou isto.

 

P: Duas perguntas levantando praticamente o mesmo assunto. Seria de extrema pertinência que você elucidasse melhor as conclusões que colhe do refluir das experiências marxistas do Leste Europeu. Outra: o senhor disse que a queda do Marxismo no Leste Europeu reflete o processo dialético da história. Qual o modelo de sociedade será o seu sucessor? O processo de globalização seria uma resposta?

 

Há uma diferença muito interessante para a polêmica, que aliás eu acho que deveria ser aprofundada, que é a seguinte: tem quem pensa que a queda do sistema comunista é a queda do marxismo como teoria, e tem os que pensam que não, que o que caiu foi uma maneira de interpretá-la. Essa posição tem os seus perigos, vejam vocês: se o platonismo não é o pensamento do Platão, se o pensamento de Platão não é o platonismo, se o sistema é outra coisa que aquilo que é levado à prática, evidentemente ele tem porvir. Se a realidade conceitual de uma teoria está sempre fora da experiência da prática dessa teoria, então ela não é marxista, se é marxista ela foi atingida pela sua crise. De qualquer maneira, eu, pelo menos, eu penso que o pensamento de Marx de jeito nenhum se esgota nessa experiência, como o pensamento de ninguém se esgota numa experiência. Ele pode ser infinitamente reinterpretado, revalorizado, estudado. Mas isto fala das possibilidades que a teoria oferece à interpretação. A experiência histórica é reconhecida como marxista, enquanto ela se apresenta como marxista, quando ela cai, ela tem de deixar de ser marxista? Não sei. Enquanto o futuro de um mundo onde não existe o comunismo, bem, o futuro onde não existe o comunismo é esse capitalismo que estamos vendo aí, a solidariedade do mercado. A inexistência do valor pessoal, a intranscedência da pessoa não é um produto do comunismo, é o produto de um capitalismo muito bem desenvolvido, isto é, desenvolvido segundo os seus próprios fins, segundo os alvos que ele quer atingir. Então, nós estamos numa sociedade onde a intranscedência da pessoa não pode aparecer no primeiro plano do sistema, ela tem que aparecer relacionada com o inimigo. E quem é o inimigo? É preciso encontrá-lo. O inimigo é o mundo muçulmano, o Irã, o Fundamentalismo, ele não é inimigo? Claro que também ele é, do capitalismo sem dúvida nenhuma, do Ocidente também em muitos aspectos, mas o fundamental é a figura do inimigo que é preciso dela sempre à mão, porque com ela a nossa pureza ideológica pode ser melhor defendida. Essa luta contra o comunismo não foi ganha pelos direitos humanos, essa luta contra o comunismo fez mal ao comunismo, destruiu o comunismo, mas não favoreceu no sentido absoluto a democracia. O único ponto que eu quero sublinhar, em relação às democracias, que me parece extraordinariamente importante, é que as democracias são sistemas cientes da sua contradição, na medida em que elas podem ser espaço de debate e enfrentamento, mas até um certo ponto, até o ponto em que o sistema o permite. De qualquer maneira, não podemos cair no maniqueísmo de acreditar que o reverso de um mal é um bem , o reverso do mal, também é o mal, também é o bem, e o desafio, para mim, mais importante que temos pela frente é aceitar a complexidade de uma realidade que não vai a caminho da sua purificação


definitiva, mas a caminho da criação de  contradições hoje inéditas, hoje imprevisíveis. Isso não quer dizer abolição do problemático, progresso quer dizer criação de novos problemas.

 

P: Haveria alguma relação entre a colonização hispânica e a portuguesa?  Com a fragilidade democrática reinante em nosso continente, qual seria?

 

Veja, relacionamentos devem haver. Tem que haver. Acredito que há relacionamentos. O que não devemos fazer é cair numa colocação mecanicista, segundo a qual, se nós somos filhos de portugueses e espanhóis, então nossos países fatalmente  hão de ser decadentes. Porque então deveríamos pensar que os Estados Unidos, por serem descendentes de ingleses, conseguiram ser um império eficaz. Não é por isso que conseguiram. Na história de nossos países latino-americanos, a dificuldade para a transição à vida democrática viu-se também impelida pelo fato de que nós tentamos fazer uma transição muito retórica das estruturas coloniais às estruturas republicanas. Essa passagem foi feita com uma grande velocidade, com uma grande irresponsabilidade e estamos também a pagar os preços próprios desta contradição nascida da velocidade com que os processos foram feitos, e do sentido retórico com que foram feitos. Mas não é culpando o passado que nós vamos encontrar as razões dos nossos conflitos. Mas pensando um pouco mais qual concepção do passado e do presente nós temos, que elaboração temos feito da nossa história, como é que colocamos a questão do passado na reflexão do pensamento vivo do presente me parece que há relação, mas não há uma relação mecânica. Nós  somos o que fizeram de nós. Somos o que fizemos com aquilo que fizeram de nós.

 

Julio: Você poderia, por gentileza, dizer novemente essa última frase?

 

Eu acredito que nós não somos o que fizeram de nós, somos o que nós fazemos com o que fizeram de nós. Tenha certeza de que é o destino que damos ao nosso condicionamento o que define uma cultura. É o que a gente faz com aquilo que fizeram da gente. Eu não posso culpar meu pai e minha mãe de meus problemas. Sim, eu posso ver como eu trabalhei os problemas criados pela convivência. Senão, há um conceito de inocência muito infantil e muito pouco interessante, segundo o qual - se tivessem me deixado - eu teria sido livre.

 

P: Avalie as conseqüências do modelo néoliberal na Argentina.

 

Vamos ser um pouco sintéticos. Eu disse na minha palestra uma coisa na qual eu acredito profundamente. Esse modelo néoliberal tem criado uma sociedade mais eficaz e menos ética. É uma consequência muito importante do conceito de democracia ao qual nós tivemos acesso com a queda da ditadura. A democracia se estruturou como um sistema ordenado, com um poder executivo que absorveu os outros dois, o judiciário e o legislativo, e que tem feito da população do país a expressão de um dilema que a ditadura não quis resolver, senão através da repressão, e que foi colocado pela democracia, primeiramente, como um problema insolúvel, por Raul Alfonsim, porque  Alfonsim não queria eliminar toda essa população de gente que trabalhava para o Estado, e que trabalhava num estado profundamente improdutivo, porque o Estado argentino, prévio a essa reforma iniciada agora pelo novo presidente, esse Estado argentino, é inútil, infrutífero, estéril. Pois então, acredito que o modelo triunfou também na Argentina, não só na Argentina, mas a característica fundamental desse modelo é a prescindibilidade da noção de pessoa. O conceito de pessoa é que cai com a instalação desse modelo, e qual é o núcleo, o âmago desse conceito de pessoa? Pessoa sou eu e meu próximo, pessoa não sou eu. No meu relacionamento com o outro constituo uma pessoa. Eu sou meus vínculos, eu não sou eu sozinho, eu sou meus vínculos. Agora como o conceito de Estado na Argentina não depende da noção de vinculação, senão de negociação, evidente que o próximo passa a ser não o que ele representa como pessoa, mas sim o que ele representa como capital. De maneira exclusiva, isto é, dessa maneira e mais nada. Aí então é que o


modelo néoliberal na Argentina, em certo sentido, continua trabalhando sob uma noção da pessoa como desaparecida, só que agora a justiça legitima essa noção. É possível organizar o país, se se produz a dissociação entre ética e eficácia, isto é, se os resultados nada tem a ver com o problema do bem e do mal, da pessoa e do próximo.

 

P: Na Argentina existe algo parecido com a imagem de homem cordial, que existe no Brasil?  Quais as consequências disso no imaginário do país?

 

Hoje, no almoço com o Belisário, com o Dalmo, o Julio e a Margarida Genevois, surgiu um esteriótipo que foi lembrado, que é o seguinte: no imaginário argentino, o argentino homem é uma pessoa que acredita que ninguém gosta dele... Já o brasileiro é aquele que acha que todo mundo gosta dele! E essa idéia exprime um pouco a existência de outros estereótipos que são interessantes, segundo os quais podemos ver a identidade nacional. Para mim o âmago do estereótipo argentino é o autoritarismo. É um povo que tem uma paixão pela violência muito forte, muito forte, nós estivemos a ponto de "ganhar" uma guerra da Inglaterra, mas não sei o que aconteceu, mas estamos aí, né?... O grau de veracidade que teve o fato de um enfrentamento militar com a Inglaterra como favorável à Argentina foi unânime. Essa guerra ganhamos, já tínhamos ganho uma, no século dezenove, agora íamos ganhar mais outra... Teve um problema no meio com a OTAN, mais isso é secundário... Essa tendência à violência, essa tendência à onipotência, uma espécie de onipotência muito grande, tem suas nuances, tem seus pontos fracos, e tem seus encantos também. Evidentemente ninguém vive num país em que só existe a violência e ninguém se sente representativo apenas da violência no país onde vive. O meu país é um país com pessoas imensamente fraternais, cordiais, simpáticas e com grande consciência dos dilemas da Argentina, em termos de solidariedade, como qualquer país. Nós também temos gente assim.

 

P: O Senhor poderia explicar melhor porque ainda não existe democracia na Argentina e  também no Brasil, e explicar também melhor a comparação dos desaparecidos com os atuais desempregados?

 

A idéia é de uma certa continuidade. Como é que, por exemplo, a Argentina ingressa na democracia, porque fracassa o modelo militar. O modelo militar não fracassa pela força cívica que o enfrenta, fracassa devorado pelas suas próprias contradições. Foi a guerra com a Inglaterra que acabou com a possibilidade de um governo militar. Ele se enfraqueceu, esse governo, e cedeu, ofereceu o poder à civilidade, em certas condições. A nossa democracia não foi conquistada com consciência cívica ainda, porque as nossas instituições representativas não tem autonomia crítica para o exercício das suas funções, elas estão submetidas ao poder executivo de uma maneira profundamente autoritária. Então a transição à vida democrática não foi realizada em função das instituições, mas sim em função dos partidos e dos homens, das negociações e não das instituições, e isso afetou profundamente a nossa democracia, que ela é simulada. Em relação entre o ponto de convergência entre desaparecidos e desempregados é o seguinte, o desaparecido não tem identidade jurídica, ele não é ninguém perante a lei. Não existe essa figura. Na medida em que o indulto foi legitimado pelos governos civis, a figura do desaparecido não tem existência jurídica, não há ninguém que o seja. O desempregado não existe também para o sistema, ele não é produzido pela democracia. A democracia não tem a coragem de aceitar as contradições que ela gera, dizendo bem, aqui estamos com um estado que vai delegar as suas responsabilidades em instituições privadas, e o produto do desmantelamento de um estado sem consistência e sem produtividade, necessariamente, é o desemprego. Não é que estamos expulsando pessoas de um emprego produtivo, estamos expulsando pessoas de instituições que são fantasmas. Agora, até aí, até podemos aceitar as coisas, a dissolução de um estado improdutivo gera desemprego. Mas o desempregado, ele é ou não é produto da nação, ele é ou não é parte da realidade? O que quer dizer que ele não tenha futuro, o que quer dizer que ele de imediato vai ser a vítima, sempre a vítima., Quem é o desempregado? Não


é o homem que tem poder, é o homem que não representa nada. Ele não tem onde exprimir o seu protesto, ele vai sair à rua e é reprimido, como de fato é reprimido, na Argentina pelo menos. Agora ele não pode ser incorporado pelo sistema, porque o sistema vai se estruturar com menos gente do que existe. Todo o dilema do meu país foi sempre o seguinte: vamos organizar o sistema para trinta milhões de pessoas, ou vamos prescindir de dez milhões? Buenos Aires tem nove, a província de Buenos Aires tem doze, depois tem o resto. Então, o problema fundamental é que há uma desaparição, um aniquilamento, uma destruição do direito do homem, que tem que desaparecer com o estado obsoleto, o estado que não presta, não só ele desaparece, com ele o empregado também, a pessoa, a pessoa desaparece como realidade. Então nesse sentido é uma continuação cultural, no conceito, justamente, preconceito, segundo o qual onde não está o poder, não há realidade.

 

P: O que você acha do fato de suas obras serem traduzidas para várias línguas, menos o português? Diversos intelectuais brasileiros sofrem o mesmo problema. O que você acha desse pequeno intercâmbio cultural Brasil - Argentina?

 

Eu acho fundamental esse intercâmbio. Eu acho importantíssimo e pessoalmente comovente. Agora o fato de eu não ter sido traduzido para o português exprime por uma parte a consciência crítica dos editores. Da outra parte, que eu ainda não tive sorte, mas eu vou ter. Eu vou ter.

 

Aproveito para agradecer ao secretário Belisário dos Santos Junior. E a Júlio Lerner e Margarida Genevois, organizadores desse simpósio tão atual, pelo convite que me fizeram. Agradeço também a todos pela atenção. Muito obrigado.

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