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 Santiago Kovadloff
                        
                         Professor,
                        ensaísta, poeta e tradutor argentino.
                        
                        
                        
                          
                        
                         1982:
                        As Mãos do Medo
                        
                        
                        
                          
                        
                         A
                        notícia se espalhou: batiam à porta inesperadamente.
                        Anunciavam-se com autoritarismo enxuto. Apresentando-se
                        em grupos de quatro ou cinco enquanto seus caminhões
                        esperavam na rua, diziam procurar literatura proibida.
                        Tinham ordem de revisar as bibliotecas das casas, os armários,
                        os porões. Quando encontravam obras proibidas ou proibíveis
                        seqüestravam-nas. E junto com as obras, seus leitores.
                        Não queriam ouvir explicações nem desculpas. Os
                        livros achados eram prova suficiente do delito. 
                        
                          
                        
                         O
                        temor se apoderou de todos. Era preciso destruir sem
                        hesitações tudo quanto pudesse servir de pretexto à
                        violência. Enganava-se a maioria que presumia estar
                        salva por não guardar nas suas prateleiras materiais de
                        expressa orientação marxista. Igualmente perigosos,
                        segundo tudo o evidenciava, 
                        eram - simplesmente pela sua linhagem - os
                        estudos sociológicos, os tratados de filosofia política,
                        as monografias histórico-econômicas sobre o incerto
                        desenvolvimento continental, os documentos eclesiásticos
                        que impugnavam a injustiça social ou as inclemências
                        do totalitarismo e as obras políticas de qualquer
                        orientação partidária que denunciassem a vigência de
                        critérios colonialistas nas relações impostas pelas
                        potências ocidentais às nações submetidas da América
                        Latina.
                        
                          
                        
                         Qualquer
                        variante contida nesse leque temático era suficiente
                        para qualquer pessoa ficar exposta à prisão imediata.
                        Não havia, portanto, tempo a perder: era imprescindível
                        varrer as prateleiras de riscos eventuais.
                        
                          
                        
                         O
                        medo cumpriu sua tarefa. Rapidamente o desespero 
                        deslocou a prudência e o último indício
                        de sensatez se evaporou sob a coerção duma rígida
                        autocensura. Com o coração carregado de angústia se
                        iniciou então o penoso ritual da vergonha. No meio da
                        noite ou à luz do dia, desmanchamos nossas bibliotecas.
                        Sem nos olharmos de frente, de costas para nossos
                        filhos, fizemos pedaços dezenas de ensaios, romances,
                        biografias, contos e poemas onde pudesse assomar o menor
                        indício de consciência social ou inquietação política.
                        Aos nossos pés, como cinzas de um tempo melhor, iam-se
                        acumulando as que um dia tinham sido páginas queridas,
                        parágrafos que sublinhamos com fervor, conceitos e
                        imagens que tinham contribuído à nossa formação, ao
                        desdobramento de nossa sensibilidade, ao fortalecimento
                        de nossa inteligência e do nosso amor à liberdade na
                        luta contra o preconceito. Nada nos detinha. O eco de
                        qualquer passo na madrugada era o eco de seus passos. O
                        silêncio mais denso ocultava a ameaça mais angustiante
                        e o horror da opressão se respirava sem esforço e sem
                        pausa. Os que tinham sido livros já não eram 
                        senão pedaços de papel. E esses pedaços de
                        papel se transformaram em lixo, e o lixo literário
                        ardeu nas chamas de nossos jardins, nos depósitos de
                        nossos incineradores, dentro dos nossos
                        banheiros, quando não foram sepultados na terra, longe
                        de nossos lares.
                        
                         
 Uma
                        penosa cumplicidade cresceu entre nós: nos irmanava a
                        humilhação de termos queimado nossos livros. Não
                        hesitávamos porém em nos auto-justificar. Que
                        podíamos ter feito senão fazer o que fizemos? 
                        Os anos 70 se esgotavam 
                        num mar de barbárie, de terror e de
                        incertezas. A vida de um homem voltava, como em tempos
                        remotos, a não valer quase nada; e a de um leitor
                        suspeito, simplesmente nada. Era inútil se arriscar a
                        morrer pela preservação dos livros que amávamos e
                        asfixiante viver num país que aconselhava queimá-los.
                        Mas desse país também formava parte outra dimensão de
                        nós, já que não só éramos os destruidores de seus
                        livros; éramos, também, as testemunhas do que
                        acontecia e do que fazíamos, e em relação ao futuro
                        éramos a memória possível das grandes lições democráticas
                        aprendidas nas páginas que tinham ardido. Por isso não
                        hesitamos: o cenário devia estar preparado para quando
                        eles chegassem. Não devia haver um único indício que
                        delatasse vocação republicana, admiração pelo estado
                        de direito, paixão pelo estudo crítico de nossa
                        realidade, consciência da repressão.
                        
                          
                        
                         O
                        mais insignificante desses indícios seria, aos olhos de
                        nossos inquisidores, sinal de desobediência. Esses
                        olhos não deviam se confrontar com nada que os
                        irritasse. Deviam deslizar através dos títulos de
                        nossas bibliotecas com a secreta complacência de quem
                        se sabe obedecido e verifica a radicalidade
                        da sujeição obtida. Inclusive as prateleiras demasiado
                        cheias  podiam
                        resultar suspeitosas. Já não importava o que
                        contivessem. O risco consistia, simplesmente, em que as
                        vissem lotadas de livros. Não faltou, por isso, quem
                        reduzisse rápida e indiscriminadamente seu patrimônio
                        bibliográfico, seguindo neste caso, um critério
                        primordialmente, quantitativo. Nenhum sintoma - foi a
                        conclusão - resultaria mais revelador da boa saúde cívica
                        exigida pela circunstâncias do que uma biblioteca
                        esvaziada.
                        
                          
                        
                         Não
                        faltou porém quem  resistisse ao padecimento passivo dessa investida irracional
                        que forçava ao extermínio dos livros. E preferiu ocultá-los
                        a destruí-los. Pensou que certos danos morais são
                        irreversíveis. Os volumes queimados bem
                        poderiam, num futuro, se repor. Mas os homens que os
                        queimavam, poderiam se repor? 
                        Para muitos que pensaram que não, o perigo que
                        ameaçava era, portanto, duplo: se não ocultavam sua
                        paixão pelo pensamento, corriam o risco 
                        de desaparecer para sempre, arbitrariamente
                        identificados com os porta-vozes do
                        terrorismo de esquerda graças a essa trágica premissa
                        da lógica do preconceito totalitário, segundo a qual o
                        niilismo antiocidental e o amor ao conhecimento são sinônimos.
                        Por outro lado, se destruiam seus livros
                        convertiam-se perante si próprios não só em cúmplices
                        da sem-razão mas em bárbaros a quem a consciência da
                        própria vileza não perdoaria jamais. Optaram, então,
                        por  partir
                        com seus livros para outros sítios: longe de suas
                        casas, longe de suas cidades, longe de suas províncias,
                        longe de seu país. Porque também se emigrou para
                        continuar lendo autêntica literatura. Essa literatura
                        que concebe a história como estímulo à criação
                        constante, como tarefa sempre incumprida que nos impõe
                        a necessidade de uma vigília crítica indeclinável
                        para evitar que a lei - sem a qual não podemos viver -
                        se transforme no dogma que não nos deixa viver. Essa
                        literatura, em síntese, assentada na convicção de que
                        sem cultura pode haver demografia mas não cidadania.
                        
                          
                        
                         Nasceram 
                        desta feita autênticas bibliotecas
                        subterrâneas. Elas preservaram das chamas obras
                        que hoje demonstram a versatilidade e a riqueza dos
                        interesses intelectuais dos argentinos, tanto como a já
                        passada solidez de uma indústria editorial que
                        foi paradigmática na América Latina e cujos títulos,
                        por outro lado, fariam sorrir qualquer desprevenido se
                        soubesse que por tê-los incorporados 
                        numa prateleira poderia ter ido para a cadeia, ou
                        à sala de torturas.
                        
                          
                        
                         A
                        curiosidade de muitos freqüentadores de livrarias não
                        resiste hoje à emoção quando, em alguma mesa de
                        saldos, esbarra inesperadamente com um volume familiar.
                        As mãos o tomam, acariciam sua lombada; os olhos
                        percebem o leve verniz amarelado que enobrece as margens
                        de suas páginas e então, 
                        num susssurro doloroso, cada um desses leitores
                        se diz: "Eu queimei um exemplar desse livro".
                        
                         
 Hoje
                        sabemos tão bem como então, naqueles dias ainda não
                        longínquos, centenas de nós fomos cúmplices
                        daqueles que desencadearam essa onda de barbárie. Não
                        quisemos contribuir ao extermínio de nossa geração
                        nos arriscando a morrer pelos nossos livros e tenho
                        certeza que fizemos bem. Mas já é hora de verificar se
                        somos capazes de viver em consonância com os ideais
                        democráticos que esses livros queimados nos ajudaram a
                        forjar. O amadurecimento desses ideais exige uma
                        radical autocrítica de todos nós. Não creio que
                        possamos lhes render melhor homenagem póstuma. Nem que
                        haja  maneira
                        mais adequada de evitar aos nossos filhos que amanhã
                        suas próprias crianças devam se levantar à noite para
                        destroçar, com as mãos do medo, os símbolos mais
                        belos da liberdade espiritual.
                        
                          
                        
                          
                        
                         1983:
                        A Pele da Aflição
                        
                        
                        
                         (Início
                        do Governo de Raul Alfonsin)
                        
                          
                        
                         Um
                        ciclo de cultura autoritária pareceria que 
                        está se  esgotando
                        no país. Seus traços são bem conhecidos. Estão
                        definidos pela razão que dá a força e não pela força
                        que dá a razão.
                        
                          
                        
                         Para
                        reinar como deseja, sua palavra exige silêncio e
                        submissão. Não suporta a polêmica. É incapaz de
                        conceber sua proposta como uma possibilidade entre
                        outras.  Ser
                        apenas uma alternativa a desespera e humilha. Impaciente
                        e sedenta de rigidez e verticalidade, reinvindica para
                        si os títulos apostólicos da verdade absoluta.
                        
                          
                        
                         É
                        soberba, depreciativa, autosuficiente e arbitrária, e
                        quando já conquistou o cetro não hesita em aplicar a
                        repressão onde não a querem ouvir, nem em recorrer ao
                        assassinato quando intui sua segurança comprometida por
                        aqueles que teimam em negá-la.
                        
                          
                        
                         A
                        cultura autoritária povoou os cárceres e esvaziou as
                        escolas. Multiplicou os cemitérios e exterminou os
                        centros de trabalho. Encorajou o êxodo, semeou a fome e
                        espalhou o desespero e o ceticismo. Soube transformar o
                        amor em ódio e a fé em ressentimento.
                        
                          
                        
                         Como
                        um eco terrível e prolongado, a voz da cultura autoritária
                        se difundiu pelas ruas da cidade deserta. Extasiada com
                        a eficácia de seus recursos dissuasórios, demorou-se
                        contemplando a deserção da inteligência nas casas
                        de altos estudos e percorreu, de chicote na mão
                        enluvada, as prateleiras vazias das bibliotecas.
                        
                          
                        
                         Satisfeita,
                        a cultura autoritária avaliou pormenorizadamente as seqüelas
                        da censura na opinião dos mais ousados; a espessura das
                        formas do medo que sepultaram a vontade crítica; a
                        densidade da descrença, o envilecimento de fábricas e
                        campos; o deserto que cobria palmo a palmo o solo do país.
                        
                        
                          
                        
                         Sob
                        suas solas  agonizavam
                        numa mesma lama o criminoso, o operário, o ladrão, o
                        estudante e o poeta. A cultura autoritária não hesitou
                        em defini-los como diferentes expressões de uma mesma
                        imundície.  Múltiplas
                        cabeças de uma só e hábil hidra: a do comunismo
                        internacional.
                        
                          
                        
                         Sim,
                        a cultura autoritária tem a razão que dá a força.
                        Mas a força, mais cedo ou mais tarde, 
                        morde com ferocidade a sua própria cauda e
                        sangra pela ferida inesperada e, no dizer do romancista,
                        o patriarca então se consome na agonia de seu próprio
                        outono. 
                        
                          
                        
                         A
                        cultura autoritária contempla hoje espantada o estilhaçar
                        da sua própria imagem; cheira, perturbada, sua putrefação 
                        e não sabe que explicação lhe dar. Sua arrogância
                        lhe impediu crer que 
                        
                         
 suas
                        contradições a devorariam, no entanto a devoram. Sua
                        cegueira a levou a presumir que era o eixo da
                        nacionalidade e descobriu, ao contrário, que é o vértice
                        de sua esterilidade mais pronunciada. Como Dorian Gray
                        no momento derradeiro, reconheceu no retrato as marcas
                        profundas de seu próprio envilecimento, quis negar o
                        que via, investiu contra sua imagem de punhal na mão e
                        acabou por afundá-lo no seu próprio coração.
                        
                          
                        
                         Filha
                        de sua pobreza, a cultura autoritária esconde agora os
                        farrapos de sua retórica com mãos que denunciam sua
                        miséria, e cada um dos gestos com que tenta ocultar
                        suas vergonhas não consegue senão ressaltá-las.
                        
                          
                        
                         Mais
                        um ciclo de cultura autoritária pareceria estar se
                        esgotando no país. Mas aqueles que não a promovemos
                        nem a apoiamos, temos as roupas roídas pela sujeira da
                        convivência a que ela nos forçou. Temos respirado o ar
                        fétido que expulsa dos seus pulmões. Temos bebido a água
                        suja dos seus arroios. Não soubemos, não pudemos
                        impedir que tanta imbecilidade e tanta mentira
                        contaminassem nossa melhor vontade cívica e hoje começamos
                        a emergir do inferno doentes de desânimo, abatidos pela
                        desorientação, com o olhar desorbitado dos loucos, dos
                        torturados, dos famintos, dos solitários e dos miseráveis
                        sobreviventes.
                          Com
                        que mãos construiremos a cultura da liberdade? 
                        No solo de que convicções 
                        assentarão com firmeza nossos pés para erguer
                        as paredes da casa em que deveríamos viver?
                        
                          
                        
                         Tremem
                        as nossas mãos de desconfiança. Medimos cada palavra.
                        As janelas, dizem, começarão a se abrir. Mas ainda
                        suspeitamos que há fuzis por trás de cada janela. Será
                        que a besta mudou de máscara? Que novas tragédias 
                        anuncia a apressada transformação do cenário?
                        
                          
                        
                         E
                        os mortos? Onde estão os mortos? Será que vamos
                        continuar ouvindo mijar sobre seus túmulos? Quantos são
                        os nomes dos homens truncados que hoje só são uma
                        sombra na boca de uns poucos?
                        
                          
                        
                         As
                        velhas vozes da selvageria mudam a entonação, suavizam
                        seu timbre, se afinam, pedem esquecimento. O
                        esquecimento não se obtém com a aprovação de um
                        decreto. Uma cultura sadia não pode esquecer senão
                        quando, previamente, recuperou seus 
                        traumas com toda consciência, para digerir,
                        madura e vagarosamente, seus duros efeitos.
                        
                          
                        
                         Se
                        não há lúcida superação da dor, esta dor acaba
                        envenenando tudo. Não podemos refundar a nação de
                        costas à sua ruína. É preciso olhar de frente as
                        pedras queimadas, os nomes calcinados, os rostos da
                        vileza, a saga atroz do terror e da tirania.
                        
                          
                        
                         Ou
                        não haverá castigo? Ou os barões se retirarão para
                        seus feudos apenas para restaurar o gume de suas
                        espadas antes de nova investida ? Continuará 
                        sendo 
                        o país bastião de cafajestes e demagogos?
                        Mulher da vida do melhor pagador? 
                        Troço de carne disputada pelos colmilhos
                        famintos da matilha?
                        
                          
                        
                         Quem
                        se animará , nesta terra, 
                        a conjugar o verbo pensar? Quem a propor e não a
                        ordenar? Quem a ouvir e ceder a palavra em vez de amordaçar
                        e vociferar seu solilóquio? Ainda haverá sítio para a
                        cultura da liberdade?
                        
                          
                        
                         Os
                        dedos sensuais do poder percorrem de leve os rostos de
                        seus novos cortejadores. Ainda não se detêm em nenhum.
                        Vão e vêm; brincam com eles. Iludem, sugerem, insinuam
                        mas ainda não se definem e enlouquecem de desejo a 
                        todos aqueles que se agrupam ávidos perante a
                        promessa de suas carícias.
                        
                         
 Há
                        um homem, porém, que não está na fila de anelantes.
                        Perdeu um emprego, um amigo no exílio, um filho na
                        guerra. Há também uma mulher que perdeu tudo isso e não
                        está, porém, nessa fila de anelantes. E há uma moça
                        e um moço 
                        que também perderam quase tanto como isso e que
                        também não estão nessa fila de anelantes.
                        
                          
                        
                         São
                        argentinos. Têm a pele chagada pela amargura. Quem
                        falar com eles sem tê-lo em conta, não merece senão
                        desprezo. Eles são a semente de uma cultura possível.
                        A raiz da liberdade necessária. São as entranhas do país
                        enganado e humilhado pelo autoritarismo.
                        
                          
                        
                         Marcou-os
                        o desespero mas estão vivos. Marcou-os a sujeição mas
                        estão vivos. Viram suas faculdades transformadas 
                        em campos de extermínio intelectual. Viram seus
                        lugares de trabalho transformados em salas de tortura
                        econômica. Aprenderam, como a toupeira, a se mexer sem
                        luz durante longo tempo mas com o fervor e a eficiência
                        que nasce da boa memória e dos melhores ideais.
                        Privados de voz e direito são 
                        - apesar de tudo isso e por tudo isso - o país.
                        A 
                        Argentina eventual da cultura em liberdade.
                        
                          
                        
                         1996:
                        A ditadura e o presente
                        
                          
                        
                         Não
                        é possível ainda olhar para trás para falarmos do Processo
                        - isto é, da última ditadura militar argentina que
                        semeou 30 mil mortos. 
                        Ainda é muito cedo para estarmos certos de
                        que o Processo faz parte exclusivamente de nosso
                        passado. Na medida em que a passagem para a vida democrática
                        é lenta e hesitante, não podemos saber o que vai
                        acontecer. Qual 
                        o poder de involução que encerra o presente
                        argentino.
                        
                          
                        
                         Na
                        orientação seguida por estes treze anos de vida
                        constitucional iniciados em 1983 com o Governo de Raul
                        Alfonsin, nada aconselha acreditar que estejam firmes,
                        entre nós, as bases do projeto democrático. O conceito
                        de estabilidade se utiliza com frequência para
                        falar de economia, não de Lei. É que ainda não findou
                        na Argentina a transição total do Estado autoritário
                        para a Sociedade solidária. Poderia ser de outro modo?
                        Poderíamos estar já, após treze anos, plenamente
                        instalados na margem democrática? 
                        É claro que não, tendo em conta nossa história.
                        Mas a transparência da orientação seguida em direção
                        a essa margem democrática, poderia ser já muito mais
                        evidente, e não o é. Daí que, num sentido essencial,
                        o Processo, sua visão das coisas, sua compreensão
                        do país, o preconceito profundo que ele representa, não
                        tenha ficado 
                        para trás. E na medida em que não ficou para trás,
                        ao relembrar os vinte anos passados desde 
                        24 de março de 1976, devemos olhar o que vai
                        acontecendo e não só o que já aconteceu. Porque no
                        que acontece sobrevive boa parte do que aconteceu.
                        
                          
                        
                         Hoje
                        na Argentina já não há mais desaparecidos. Mas há
                        desempregados. A figura do desempregado, do homem para o
                        qual não há lugar na sociedade produtiva, substituiu a
                        figura do desaparecido, o homem para o qual não há
                        lugar na sociedade jurídica. Um e outro são produto de
                        uma exigência de organização. Organização nacional,
                        num caso, organização econômica, no outro. Mas organização,
                        às vezes, é também sinônimo de desprezo pela vida.
                        De 
                        desconhecimento arrogante do valor sagrado da
                        vida.
                        
                          
                        
                         Em
                        aspectos fundamentais não conseguimos ainda deixar de
                        ser uma democracia de superfície, frívola, irresponsável.
                        Uma democracia que não sente ainda visceralmente a
                        necessidade de combater a subestimação do homem. E
                        somos, por isso, uma democracia que está mais perto da
                        simulação do que da autenticidade.
                        
                          
                        
                         
 Como
                        nos anos da ditadura, segue-se acreditando hoje, lá 
                        onde 
                        o poder é administrado, que a argentinidade é
                        atributo de poucos, que no país sobra gente. 
                        Que a cultura não é uma prioridade mas uma
                        maquiagem. 
                        Tal como então acontecia, entreter e distrair
                        importam hoje mais do que educar, e o intercâmbio de idéias
                        se vê sepultado sob a guerra de consignas, 
                        da retórica do triunfalismo e da difamação do
                        adversário.
                        
                          
                        
                         A
                        nossa é uma democracia em que os homens que governam
                        importam mais 
                        do que as instituições que representam. Uma
                        democracia na qual os homens governados importam menos
                        como seres humanos que como cifras de estatística.
                        
                          
                        
                         Uma
                        democracia mercantilizada não faz outra coisa do que pôr
                        preço às suas convicções. Privando-as de substância
                        ética, enfraquece seu sentido mais e mais, até fazer
                        delas só noções funcionais, puramente operativas. Mas
                        nem tudo se compra. 
                        Nem tudo se vende. 
                        Nem tudo se soma, nem tudo se esquece.
                        
                          
                        
                         A
                        ditadura impôs a convicção de que o futuro do país não
                        exige idéias mas obediência servil. Ainda não
                        chegamos a entender nem de longe até que ponto essa
                        convicção continua alicerçada entre nós. 
                        Uma sociedade civilizada não é uma sociedade
                        obediente. É uma sociedade responsável. De homens que
                        têm um profundo sentido da dignidade de seus próximos.
                        
                          
                        
                         Os
                        vinte anos passados desde aquele sombrio 24 de março de
                        1976 em que os militares assaltaram o poder
                        constitucional, não falam apenas de um passado concluído. 
                        Eles assinalam em direção a um presente
                        intensamente problemático. Que o país já não
                        seja um quartel não significa que seja uma nação. Uma
                        nação é, antes de mais nada, o fruto de uma grande
                        consciência ética e autocrítica; de um conceito de
                        cultura que embora não esteja livre de preconceitos,
                        luta contra os preconceitos que fazem parte de sua
                        realidade. Uma nação é fruto de uma consciência
                        aberta e engajada com a tarefa primordial de capitalizar
                        o sofrimento padecido. O sofrimento não fica para trás
                        quando é ignorado e arquivado, mas quando é tomado em
                        conta para empreender a convivência 
                        de outro modo que aquele que impôs o terror. A
                        arte, a ciência, a filosofia são e podem ser sempre
                        manifestações desse outro modo de conceber a convivência
                        na qual o preconceito é matéria de denúncia e não só
                        de obediência.
                        
                          
                        
                         Se
                        queremos que a mentalidade da ditadura seja sepultada e
                        superada, haverá que transformar as condições sociais
                        e culturais que a tornaram possível. 
                        Haverá que dignificar tudo o que o Processo
                        subestimou e ignorou. E isso quer dizer justiça
                        independente, respeito, educação geral, direitos
                        humanos.
                        
                          
                        
                         Lembremos
                        tudo o que passou desde um presente que nos mostra que o
                        desprezo ainda subsiste. Não lembremos para evocar;
                        lembremos para reconhecer melhor o que nos acontece.
                        Saibamos 
                        ver naquilo que nos acontece a triste herança do
                        que nos aconteceu.
                        
                          
                        
                         Sem
                        valores espirituais não superaremos nunca a dissociação
                        entre ética e eficácia que hoje afoga a nação. Sem
                        esses valores espirituais, não superaremos nunca o
                        temor de que o passado volte a ser o futuro.
                        
                          
                        
                         Desfecho
                        para um tempo de dilemas
                        
                          
                        
                         Coube-nos
                        presenciar e protagonizar, neste fim de século, um fenômeno
                        de radicalidade inesperada: a queda do marxismo como prática
                        política na Europa de Leste. 
                        Trata-se, com efeito, de 
                        
                         
 um
                        autêntico acontecimento histórico. 
                        O fim do marxismo como modelo sócio-econômico e
                        político e as consequências planetárias desse
                        desmoronamento permitem reconhecê-lo como um exemplo de
                        indubitável contemporaneidade.
                        
                          
                        
                         A
                        crise que hoje envolve o marxismo de modo tão
                        fundamental atinge, naquilo que nos importa, a
                        viabilidade da concepção da história como processo
                        que responde a leis iniludíveis, de férrea direção e
                        consequências que não podem ser contidas. 
                        A agonia de marxismo, parece-me, não é senão a
                        agonia da idéia da história como fatalidade; como
                        demonstração de um mandato cujo acatamento redunda,
                        necessariamente, na instauração da ditadura do
                        proletariado e o fim da luta de classes. O messianismo
                        político de intenção sistemática e científica vive
                        assim, no século XX 
                        e com a queda do marxismo europeu, a última de
                        suas derrotas conhecidas.
                        
                          
                        
                         Em
                        íntima relação com essa derrota se põe em questão a
                        concepção materialista dialética dos processos
                        sociais. 
                        A dialética, cuja eficácia relativa na
                        interpretação de tais processos seria absurdo
                        desconhecer, não 
                        parece concitar já o consenso necessário para
                        que nela se siga vendo um modelo paradigmático de
                        pensamento.
                        
                          
                        
                         Vinculado
                        à crise do marxismo como prática política e enunciado
                        teórico, se encontra o fato de que, com a dissolução
                        do mundo comunista europeu, se impõe reconsiderar a
                        questão do outro, quer dizer, o problema da alteridade.
                        Tradicionalmente, este problema, em política, está
                        associado ao da identidade do adversário e do inimigo.
                        Até onde se dirigirá, após a dissolução do conflito
                        desatado no 
                        Golfo Pérsico, a necessidade de continuar
                        concebendo o mundo não ocidental como um mundo hostil
                        ao Ocidente, tal como até agora ocorria com a Europa de
                        Leste?
                        
                          
                        
                          Fala-se
                        muito em nossos dias do fim das ideologias.
                        Insiste-se por toda parte 
                        que as ideologias morreram. 
                        Creio que convém que sejamos cautelosos. 
                        A ideologia é um critério de compreensão, uma
                        modalidade interpretativa assente 
                        em valores tidos como axiomáticos. 
                        Que seus conteúdos mudem não implica que a
                        necessidade de sua existência tenha desaparecido. 
                        Interpretar a realidade ideologicamente significa
                        entender que se dispõe de uma perspectiva para a concepção
                        dos fatos e das teorias cuja pressuposta consistência
                        induz a vê-la como superior, em aparência, a qualquer
                        outra. 
                        É mais do que razoável considerar que não se
                        pode deixar de pensar e de atuar segundo uma escala de
                        valores e interesses. 
                        Mas, ainda assim, é mais do que razoável também
                        afirmar que a necessidade de que esses valores e
                        interesses revistam uma hegemonia universal constitui
                        uma arbitrariedade e um perigo.
                        
                         Nosso
                        tempo não só vive a crise cultural desta luta entre
                        quem predica o fim das ideologias e quem considera que
                        essa prédica é uma prova essencial de sua sobrevivência. 
                        Nosso tempo vive também uma profunda crise
                        resultante do que eu chamaria a reversão fundamental de
                        uma situação muitas vezes milenária. Durante centenas
                        de milhares de anos, o ser humano lutou energicamente
                        para se garantir um lugar na natureza.  Hoje deve lutar com igual intensidade para que a natureza
                        encontre, em seu mundo tecnológico, um lugar de subsistência,
                        um espaço de preservação. 
                        A contaminação ambiental nascida da instrumentação
                        cega do poder tecnológico induziu, mesmo assim, a
                        compreender melhor o alto grau de interdependência
                        existente entre o homem e o que, supostamente, não é
                        ele mesmo: neste caso, a natureza. Isso contribuiu, também, 
                        para que em amplos setores de nossas sociedades
                        se acrescente o interesse concedido à evidência de que
                        nem toda lei pode ser transgredida impunemente pelo afã
                        de domínio, pela sede de poder. O homem não só é
                        produtor de leis.  É,
                        também, produto de uma legalidade que o transcende: a
                        que faz dele um ser mortal e, por sua vez, somente viável
                        no âmbito de uma interdependência 
                        profunda, não apenas com seus semelhantes mas,
                        também, com quem não o é, quer dizer com todos
                        aqueles e ainda com tudo aquilo que conforma o horizonte
                        do que, sem ser ele mesmo, tem a ver com ele.
                        
                          
                        
                         
 Até
                        há muito pouco tempo, a Terra esteve ameaçada
                        abertamente pela possibilidade de uma hecatombe nuclear. 
                        Seria ingênuo presumir que o caráter velado que
                        começa a tomar agora essa possibilidade implica que o
                        risco  desapareceu. 
                        Mas é razoável pensar que a distensão
                        Leste-Oeste, nascida da vertiginosa dissolução do
                        marxismo tradicionalmente entendido, contribuirá a
                        deslocar nossa atenção para novas perguntas.
                        
                          
                        
                         Um
                        dilema não menos relevante que os anteriores é, na
                        atualidade, o do conhecimento. A Idade Média viveu um
                        período - o feudal - no qual a fragmentação
                        territorial contrastava com a unidade infundida ao saber
                        pela hegemonia do pensamento teológico cristão. 
                        No nosso tempo, a fragmentação territorial foi
                        amplamente superada. Tende-se, dia a dia, para uma
                        maior interdependência planetária. Mas, em compensação,
                        o saber se fragmentou. E é 
                        aqui onde pode se reconhecer a vigência do
                        preconceito em relação à cultura. Subdividido em
                        incontáveis especialidades, o conhecimento pareceria
                        ter perdido, neste século, a consciência de sua
                        essencial unidade, já que a unidade propriamente dita a
                        perdeu faz muito. Como faremos para recuperar essa
                        consciência sem recair no verticalismo imposto pelas
                        disciplinas que se querem  "superiores"?
                        
                          
                        
                         As
                        nações da América Latina ingressam no último
                        segmento do século XX enfrentadas a um dilema central:
                        próximas do século XXI, seus problemas básicos
                        continuam sendo os do século XIX. Entendo que as
                        democracias latino-americanas do presente vêem ameaçadas
                        sua real representatividade e sua solidez efetiva pelo
                        fantasma da dissociação entre a vigência de uma vida
                        constitucional sem fraturas e a postergação sine
                        die da justiça social. 
                        A contundência do fracasso marxista na Europa
                        prova que essa justiça social não se atinge
                        necessariamente prescindindo do desenvolvimento democrático.
                        A crise que implica o subdesenvolvimento em que nos
                        encontramos imersos na América Latina não é menos
                        rotunda que aquele fracasso e evidencia que o progresso
                        indispensável não será consequência direta da
                        exclusiva prossecução sem sobressaltos da vida
                        constitucional.  Não
                        é suficiente a vontade popular para instaurar a
                        democracia.  Sem
                        consciência da interdependência solidária não há
                        autêntica consciência pessoal. E sem consciência
                        pessoal autêntica não há responsabilidade cívica em
                        termos democráticos.
                        
                          
                        
                         Queria,
                        finalmente, me referir ao que considero um dos deveres
                        primordiais do intelectual num 
                        âmbito sócio-histórico como o
                        latino-americano.  Creio
                        que uma das doenças espirituais de que continua
                        padecendo a vida política continental é o
                        autoritarismo, a arraigada intolerância ao debate, a
                        repugnância e o horror perante o valor relativo que
                        possam revestir nossas convicções e, em consequência
                        a necessidade de conceber toda instância alternativa à
                        nossa como uma hostilidade, um perigo, uma ameaça
                        mortal.
                        
                          
                        
                         Entendo 
                        que quando um intelectual assume o compromisso da
                        militância partidária num 
                        contexto como o latino-americano, deveria se
                        consagrar a fundo e antes de mais nada a combater o
                        autoritarismo vigente em suas próprias filas, isto é,
                        tudo o que nelas  compromete
                        os alicerces da democracia. 
                        Se, pelo contrário, privilegia o poder criador
                        de suas idéias para demonstrar que ao adversário não
                        lhe assiste a mais mínima parcela de razão nem o menor
                        segmento de direito, fará da inteligência e da
                        sensibilidade instrumentos ao serviço da arbitrariedade
                        do poder, e não da verdade.
                        
                          
                        
                         Sei
                        perfeitamente que entre poder e verdade não há nem
                        haverá nunca relações pacíficas. 
                        Mas, precisamente por isso, cabe empenhar-se em
                        impedir que quem homologa sua voracidade de poder ao
                        amor pela verdade seja o único em tomar a palavra. 
                        Não se trata, em nosso caso, de conseguir que a
                        política se transforme num discurso e numa uma prática
                        sem impurezas. Trata-se de que essas impurezas não
                        sejam esquecidas nem dissimuladas pela falta de escrúpulos
                        ou pelo cinismo que desembocam na 
                        impunidade.
                        
                          
                        
                         
 Em
                        português bastante claro, por supuesto
                        
                          
                        
                         Julio
                        Lerner: Como é que você chegou a dominar tão bem o
                        português, tendo nascido, se criado e vivido,
                        praticamente toda a sua vida, ou parte significativa
                        dela, em Buenos Aires?
                        
                          
                        
                         Bem,
                        aqui na primeira fileira está o responsável do meu
                        português, que é meu pai. Ele foi transferido pela
                        empresa onde ele trabalhava para cá, para São Paulo,
                        quando eu tinha quatorze anos, eu e meu irmão, que também
                        está aqui. Os dois chegamos de Buenos Aires, ele com
                        treze anos e eu com quatorze. No terceiro dia eu queria
                        ir embora. Tinha muitas saudades de tudo. E o português
                        era um problema muito sério porque a gente falava muito
                        mal, muito mal, a gente sequer falava portunhol, falava
                        espanhol mesmo. Agora, teve uma chance excelente para nós,
                        eu jogava muito bem futebol, era um bom goleiro, e
                        jogando futebol a gente não precisa falar muito, né?
                        Eu consegui que meus companheiros de aula no ginásio me
                        aceitassem como goleiro, porque o meu português era um
                        desastre total, então... comecei a jogar futebol, e
                        pouco a pouco comecei a aprender o português. Pouco,
                        realmente aos poucos. E o fato é que agora eu tenho até
                        sobrinhos brasileiros. Mas o português é para mim não
                        outra língua, é uma das maneiras em que me aconteceu a
                        experiência do crescimento e do desenvolvimento da 
                        minha sensibilidade e da minha vida, da minha
                        cultura, me formei aqui, fiz parte do ginásio e o colégio
                        aqui.
                        
                          
                        
                         Julio:
                        Você estudou em que colégio?
                        
                          
                        
                         No
                        Dante Aleghieri, no Colégio Dante Aleghieri. Depois
                        quando eu fui embora para a Argentina, para fazer a
                        faculdade, aí começou a saudade do português, e
                        comecei a traduzir, para matar a saudade. E assim foi,
                        como eu comecei o meu trabalho de difusão da literatura
                        e do pensamento brasileiro. E agora estou aqui e estou lá,
                        nos dois países e nas duas línguas, sem dúvida
                        nenhuma. Eu acho que língua estrangeira é aquela na
                        qual não aconteceu nada a gente. Quando a gente cresceu
                        numa língua, ela não é mais estrangeira, ela é
                        indispensável para se auto-reconhecer. 
                        
                          
                        
                         Julio:
                        Você traduziu para o espanhol algumas obra dificílimas,
                        entre elas o "Morte e Vida Severina", do João
                        Cabral de Mello Neto. Agora o que é muito difícil
                        imaginar é como você consegue verter para o espanhol
                        um João Guimarães Rosa. Como é que você consegue?
                        Isso é, num certo sentido, um "milagre".
                        
                          
                        
                         É
                        um "milagre" que com uma grande dose de
                        responsabilidade pode ser feito, né? Realmente, o que
                        aconteceu foi que eu queria traduzir Tutaméia. Eu me
                        ofereci para uma editora argentina para traduzir Tutaméia
                        e pedi três anos para fazer a tradução. O editor
                        pensou que eu estava louco. "Como é que você vai
                        levar três anos para traduzir o livro, no mínimo, né?"
                        Porque o problema fundamental na tradução é a música
                        de uma língua e de uma linguagem. É como uma
                        partitura, interpretar a melodia de uma linguagem é
                        fundamental, então eu estudei muito essa linguagem,
                        ouvia o tempo todo Guimarães Rosa. Fazia gravação.
                        Escutava o tempo todo. E quando o ritmo da sua língua
                        começou a ser para mim um pouco mais familiar, aí então
                        eu comecei o meu trabalho de tradução, mas levou
                        quatro anos e meio, e não três. Agora para quem ama
                        uma língua, a tradução é uma experiência literária
                        tão importante quanto a criação dos próprios textos.
                        Não existe diferença nenhuma, entre o fato de traduzir
                        uma obra, isto é, de interpretá-la, porque o trabalho
                        de tradução é um trabalho de interpretação, da
                        mesma maneira que a gente fala: “você ouviu a quinta
                        sinfonia de Beethoven, interpretada por quem?” Depende
                        de quem interpreta. Pois então o trabalho do tradutor,
                        é de ouvidor. 
                        
                          
                        
                         Julio:
                        Começam a chegar as perguntas do público...
                        Argentina, 30.000 desaparecidos. Brasil aproximadamente
                        400. É possível falar algo sobre isso?
                        
                         
 É
                        possível, sim. É possível, sinteticamente, é possível...
                        O conceito de Estado na Argentina, é um conceito sempre
                        fraco. Nós passamos da ausência do Estado à criação
                        de um Estado paternalista na época de Péron, e agora
                        à dissolução do Estado em favor da privatização. O
                        nosso Estado atualmente não tem responsabilidade protagônica
                        na produção da democracia. Ele tem responsabilidade na
                        administração econômica da privatização. Temos uma
                        democracia privatizadora. Em consequência, essa
                        irresponsabilidade profunda do Estado, que passou da
                        inexistência ao paternalismo, e do paternalismo à
                        divisão  intensa
                        das estruturas que dão identidade institucional à república,
                        num país onde a justiça não existe
                        institucionalmente, que está submetido, a justiça está
                        submetida ao legislativo e ao poder executivo. É um país
                        que tem um profundo sentido da impunidade perante a lei.
                        A impunidade é um conceito muito importante. Um
                        conceito segundo o qual o outro não existe. Vou
                        explicar isso brevemente. 
                        
                          
                        
                         O
                        governo militar argentino afirmava que os desaparecidos
                        eram auto-excluídos, eram um pessoal que tinha se
                        banido da sociedade e não tinha sido eliminado pelo
                        Estado. E o raciocínio tem a sua lógica, embora
                        rejeitada por nós, ela deve ser ouvida, e 
                        é simples. É assim: o que é um subversivo? É
                        um homem que existe à margem da lei, isto é, ele sai
                        do campo da identidade cívica, ele se exclui da
                        identidade cívica. Na medida em que ele passa a ser um
                        subversivo, então a eliminação de um subversivo é a
                        eliminação de alguém que já era ninguém. É uma
                        redundância. Eliminar um subversivo não é eliminar
                        alguém, é eliminar ninguém. Então o desaparecido,
                        para muitas das autoridades do processo, foram aqueles
                        homens que se auto-excluiam e depois desapareciam,
                        sumiam. Mas sumiam a partir de uma decisão ontológica,
                        que era se colocar à margem da lei. Qual lei?... Isto
                        aqui não se discute. Eu acredito que embora possamos
                        estabelecer relações de parentesco entre os nossos países,
                        a diferença de quantidade entre 30.000 e 300 ou 400
                        desaparecidos, no sentido formal, tem que ser
                        acrescentada  essa
                        diferença, essa diferença tem que ser vista à meia
                        luz. É um fato fundamental na história da Argentina,
                        onde a justiça não existe, na verdade, como elemento
                        "fundacional" da democracia. O meu país
                        julgou aos chefes militares do processo, provou a sua
                        responsabilidade e a sua culpa, e os deixou em
                        liberdade. A lei não pode se cumprir. Quer dizer sob o
                        ponto de vista dos fatos, a inexistência da lei no
                        nosso país sempre esteve muito marcada, sempre foi um
                        fato muito constante, e foi substituída pela autoridade
                        do setor. No meu país as Forças Armadas se definiram,
                        no tempo do processo, como a reserva moral da nação. E
                        essa mentalidade, acredito, tem a ver com a história
                        hispano-americana, que não sei se o Brasil teve, onde
                        as Forças Armadas, embora tenham tido o papel que
                        tiveram na ditadura, não chegaram a ser
                        programaticamente sanguinárias, como foram na
                        Argentina, porque no nosso espírito hispano-americano o
                        banho de sangue é purificador.
                        
                          
                        
                         P:
                        Gostaria que o Senhor comentasse a postura assumida
                        perante a ditadura argentina por dois dos mais
                        conhecidos escritores de seu país: Ernesto Sábato e
                        Jorge Luís Borges?
                        
                          
                        
                         Foram
                        posturas bem diferentes. Sábato foi desde o começo, e
                        antes ainda do processo militar, um homem politicamente
                        muito comprometido. Ele lutou contra o peronismo, Borges
                        padeceu o peronismo. São coisas diferentes. Borges
                        padece o peronismo, Sábato luta contra o peronismo. Além
                        do mais, Borges sempre teve uma atitude muito tímida
                        perante a ditadura, no começo ele até se mostrou
                        simpatizante dela e depois se arrependeu, mas não se
                        pode dizer de Borges que tenha sido um homem a favor da
                        ditadura. Não foi não. Borges foi um homem  que teve uma posição de reclusão, procedente até em
                        muitos aspectos, mas foi um homem que manifestou, por
                        exemplo, na Guerra das Malvinas, da Argentina com a Grã-Bretanha,
                        uma posição bem corajosa, bem clara. Mas civicamente
                        falando, a posição de Ernesto Sábato não tem comparação.
                        Ele é para muitos de nós a representação mesmo da
                        responsabilidade de um intelectual, para o qual a
                        imaginação criadora é um instrumento anti-totalitário.
                        Eu gostaria de dizer duas coisa a propósito disto. Há
                        uma incompatibilidade básica entre a linguagem da arte
                        e a linguagem da ditadura. A ditadura tem uma preocupação
                        central que é ser literal, ela não quer significar
                        outra coisa com o que 
                        
                         
 diz,
                        ela atribui à sua linguagem uma literalidade total.
                        Quando ela diz, por exemplo, que representa o cerne
                        nacional, ela quer dizer isso. Isso aí não é um símbolo,
                        não é metáfora. Isso aí é o cerne nacional. Mata-se
                        em nome do cerne nacional. Reprime-se em nome do cerne
                        nacional. A arte é essencialmente metafórica e democrática,
                        porque a arte e a imaginação, a ciência, meu Deus, a
                        ciência, a filosofia, são essencialmente democráticas,
                        porque na medida em que elas empregam uma linguagem simbólica
                        e metafórica, elas estão afirmando que queiram dizer
                        alguma coisa, aspiram dizer uma coisa. A arte exprime
                        por aproximação, o pensamento totalitário exprime por
                        monopólio de sentido. Ele monopoliza o sentido, a arte
                        sugere, o pensamento científico é sugestivo, ele não
                        diz o que as coisas são, ele sugere que poderiam ser de
                        certa maneira. Agora, há então incompatibilidade
                        essencial entre a vigência de uma ditadura e o
                        desenvolvimento do pensamento científico criador, sob o
                        ponto de vista das instituições do país. Mas quando a
                        ditadura se apossa de um país, a arte, o pensamento e a
                        criação, eles vivem na clandestinidade, eles vão
                        alimentando uma exigência de um espírito crítico que
                        se desenvolve no que eu chamei, no seu momento, as
                        catacumbas da cultura. Sábato representou isto.
                        
                          
                        
                         P:
                        Duas perguntas levantando praticamente o mesmo
                        assunto. Seria de extrema pertinência que você
                        elucidasse melhor as conclusões que colhe do refluir
                        das experiências marxistas do Leste Europeu. Outra: o
                        senhor disse que a queda do Marxismo no Leste Europeu
                        reflete o processo dialético da história. Qual o
                        modelo de sociedade será o seu sucessor? O processo de
                        globalização seria uma resposta?
                        
                          
                        
                         Há
                        uma diferença muito interessante para a polêmica, que
                        aliás eu acho que deveria ser aprofundada, que é a
                        seguinte: tem quem pensa que a queda do sistema
                        comunista é a queda do marxismo como teoria, e tem os
                        que pensam que não, que o que caiu foi uma maneira de
                        interpretá-la. Essa posição tem os seus perigos,
                        vejam vocês: se o platonismo não é o pensamento do
                        Platão, se o pensamento de Platão não é o
                        platonismo, se o sistema é outra coisa que aquilo que
                        é levado à prática, evidentemente ele tem porvir. Se
                        a realidade conceitual de uma teoria está sempre fora
                        da experiência da prática dessa teoria, então ela não
                        é marxista, se é marxista ela foi atingida pela sua
                        crise. De qualquer maneira, eu, pelo menos, eu penso que
                        o pensamento de Marx de jeito nenhum se esgota nessa
                        experiência, como o pensamento de ninguém se esgota
                        numa experiência. Ele pode ser infinitamente
                        reinterpretado, revalorizado, estudado. Mas isto fala
                        das possibilidades que a teoria oferece à interpretação.
                        A experiência histórica é reconhecida como marxista,
                        enquanto ela se apresenta como marxista, quando ela cai,
                        ela tem de deixar de ser marxista? Não sei. Enquanto o
                        futuro de um mundo onde não existe o comunismo, bem, o
                        futuro onde não existe o comunismo é esse capitalismo
                        que estamos vendo aí, a solidariedade do mercado. A
                        inexistência do valor pessoal, a intranscedência da
                        pessoa não é um produto do comunismo, é o produto de
                        um capitalismo muito bem desenvolvido, isto é,
                        desenvolvido segundo os seus próprios fins, segundo os
                        alvos que ele quer atingir. Então, nós estamos numa
                        sociedade onde a intranscedência da pessoa não pode
                        aparecer no primeiro plano do sistema, ela tem que
                        aparecer relacionada com o inimigo. E quem é o inimigo?
                        É preciso encontrá-lo. O inimigo é o mundo muçulmano,
                        o Irã, o Fundamentalismo, ele não é inimigo? Claro
                        que também ele é, do capitalismo sem dúvida nenhuma,
                        do Ocidente também em muitos aspectos, mas o
                        fundamental é a figura do inimigo que é preciso dela
                        sempre à mão, porque com ela a nossa pureza ideológica
                        pode ser melhor defendida. Essa luta contra o comunismo
                        não foi ganha pelos direitos humanos, essa luta contra
                        o comunismo fez mal ao comunismo, destruiu o comunismo,
                        mas não favoreceu no sentido absoluto a democracia. O
                        único ponto que eu quero sublinhar, em relação às
                        democracias, que me parece extraordinariamente
                        importante, é que as democracias são sistemas cientes
                        da sua contradição, na medida em que elas podem ser
                        espaço de debate e enfrentamento, mas até um certo
                        ponto, até o ponto em que o sistema o permite. De
                        qualquer maneira, não podemos cair no maniqueísmo de
                        acreditar que o reverso de um mal é um bem , o reverso
                        do mal, também é o mal, também é o bem, e o desafio,
                        para mim, mais importante que temos pela frente é
                        aceitar a complexidade de uma realidade que não vai a
                        caminho da sua purificação 
                        
                         
 definitiva,
                        mas a caminho da criação de 
                        contradições hoje inéditas, hoje imprevisíveis.
                        Isso não quer dizer abolição do problemático,
                        progresso quer dizer criação de novos problemas.
                        
                          
                        
                         P:
                        Haveria alguma relação entre a colonização hispânica
                        e a portuguesa?  Com
                        a fragilidade democrática reinante em nosso continente,
                        qual seria?
                        
                          
                        
                         Veja,
                        relacionamentos devem haver. Tem que haver. Acredito que
                        há relacionamentos. O que não devemos fazer é cair
                        numa colocação mecanicista, segundo a qual, se nós
                        somos filhos de portugueses e espanhóis, então nossos
                        países fatalmente 
                        hão de ser decadentes. Porque então deveríamos
                        pensar que os Estados Unidos, por serem descendentes de
                        ingleses, conseguiram ser um império eficaz. Não é
                        por isso que conseguiram. Na história de nossos países
                        latino-americanos, a dificuldade para a transição à
                        vida democrática viu-se também impelida pelo fato de
                        que nós tentamos fazer uma transição muito retórica
                        das estruturas coloniais às estruturas republicanas.
                        Essa passagem foi feita com uma grande velocidade, com
                        uma grande irresponsabilidade e estamos também a pagar
                        os preços próprios desta contradição nascida da
                        velocidade com que os processos foram feitos, e do
                        sentido retórico com que foram feitos. Mas não é
                        culpando o passado que nós vamos encontrar as razões
                        dos nossos conflitos. Mas pensando um pouco mais qual
                        concepção do passado e do presente nós temos, que
                        elaboração temos feito da nossa história, como é que
                        colocamos a questão do passado na reflexão do
                        pensamento vivo do presente me parece que há relação,
                        mas não há uma relação mecânica. Nós 
                        somos o que fizeram de nós. Somos o que fizemos
                        com aquilo que fizeram de nós. 
                        
                          
                        
                         Julio:
                        Você poderia, por gentileza, dizer novemente essa última
                        frase?
                        
                          
                        
                         Eu
                        acredito que nós não somos o que fizeram de nós,
                        somos o que nós fazemos com o que fizeram de nós.
                        Tenha certeza de que é o destino que damos ao nosso
                        condicionamento o que define uma cultura. É o que a
                        gente faz com aquilo que fizeram da gente. Eu não posso
                        culpar meu pai e minha mãe de meus problemas. Sim, eu
                        posso ver como eu trabalhei os problemas criados pela
                        convivência. Senão, há um conceito de inocência
                        muito infantil e muito pouco interessante, segundo o
                        qual - se tivessem me deixado - eu teria sido livre.
                        
                          
                        
                         P:
                        Avalie as conseqüências do modelo néoliberal na
                        Argentina.
                        
                          
                        
                         Vamos
                        ser um pouco sintéticos. Eu disse na minha palestra uma
                        coisa na qual eu acredito profundamente. Esse modelo néoliberal
                        tem criado uma sociedade mais eficaz e menos ética. É
                        uma consequência muito importante do conceito de
                        democracia ao qual nós tivemos acesso com a queda da
                        ditadura. A democracia se estruturou como um sistema
                        ordenado, com um poder executivo que absorveu os outros
                        dois, o judiciário e o legislativo, e que tem feito da
                        população do país a expressão de um dilema que a
                        ditadura não quis resolver, senão através da repressão,
                        e que foi colocado pela democracia, primeiramente, como
                        um problema insolúvel, por Raul Alfonsim, porque 
                        Alfonsim não queria eliminar toda essa população
                        de gente que trabalhava para o Estado, e que trabalhava
                        num estado profundamente improdutivo, porque o Estado
                        argentino, prévio a essa reforma iniciada agora pelo
                        novo presidente, esse Estado argentino, é inútil,
                        infrutífero, estéril. Pois então, acredito que o
                        modelo triunfou também na Argentina, não só na
                        Argentina, mas a característica fundamental desse
                        modelo é a prescindibilidade da noção de pessoa. O
                        conceito de pessoa é que cai com a instalação desse
                        modelo, e qual é o núcleo, o âmago desse conceito de
                        pessoa? Pessoa sou eu e meu próximo, pessoa não sou
                        eu. No meu relacionamento com o outro constituo uma
                        pessoa. Eu sou meus vínculos, eu não sou eu sozinho,
                        eu sou meus vínculos. Agora como o conceito de Estado
                        na Argentina não depende da noção de vinculação,
                        senão de negociação, evidente que o próximo passa a
                        ser não o que ele representa como pessoa, mas sim o que
                        ele representa como capital. De maneira exclusiva, isto
                        é, dessa maneira e mais nada. Aí então é que o 
                        
                         
 modelo
                        néoliberal na Argentina, em certo sentido, continua
                        trabalhando sob uma noção da pessoa como desaparecida,
                        só que agora a justiça legitima essa noção. É possível
                        organizar o país, se se produz a dissociação entre ética
                        e eficácia, isto é, se os resultados nada tem a ver
                        com o problema do bem e do mal, da pessoa e do próximo.
                        
                          
                        
                         P:
                        Na Argentina existe algo parecido com a imagem de
                        homem cordial, que existe no Brasil? 
                        Quais as consequências disso no imaginário do
                        país?
                        
                          
                        
                         Hoje,
                        no almoço com o Belisário, com o Dalmo, o Julio e a
                        Margarida Genevois, surgiu um esteriótipo que foi
                        lembrado, que é o seguinte: no imaginário argentino, o
                        argentino homem é uma pessoa que acredita que ninguém
                        gosta dele... Já o brasileiro é aquele que acha que
                        todo mundo gosta dele! E essa idéia exprime um pouco a
                        existência de outros estereótipos que são
                        interessantes, segundo os quais podemos ver a identidade
                        nacional. Para mim o âmago do estereótipo argentino é
                        o autoritarismo. É um povo que tem uma paixão pela
                        violência muito forte, muito forte, nós estivemos a
                        ponto de "ganhar" uma guerra da Inglaterra,
                        mas não sei o que aconteceu, mas estamos aí, né?... O
                        grau de veracidade que teve o fato de um enfrentamento
                        militar com a Inglaterra como favorável à Argentina
                        foi unânime. Essa guerra ganhamos, já tínhamos ganho
                        uma, no século dezenove, agora íamos ganhar mais
                        outra... Teve um problema no meio com a OTAN, mais isso
                        é secundário... Essa tendência à violência, essa
                        tendência à onipotência, uma espécie de onipotência
                        muito grande, tem suas nuances, tem seus pontos fracos,
                        e tem seus encantos também. Evidentemente ninguém vive
                        num país em que só existe a violência e ninguém se
                        sente representativo apenas da violência no país onde
                        vive. O meu país é um país com pessoas imensamente
                        fraternais, cordiais, simpáticas e com grande consciência
                        dos dilemas da Argentina, em termos de solidariedade,
                        como qualquer país. Nós também temos gente assim.
                        
                          
                        
                         P:
                        O Senhor poderia explicar melhor porque ainda não
                        existe democracia na Argentina e 
                        também no Brasil, e explicar também melhor a
                        comparação dos desaparecidos com os atuais
                        desempregados?
                        
                          
                        
                         A
                        idéia é de uma certa continuidade. Como é que, por
                        exemplo, a Argentina ingressa na democracia, porque
                        fracassa o modelo militar. O modelo militar não
                        fracassa pela força cívica que o enfrenta, fracassa
                        devorado pelas suas próprias contradições. Foi a
                        guerra com a Inglaterra que acabou com a possibilidade
                        de um governo militar. Ele se enfraqueceu, esse governo,
                        e cedeu, ofereceu o poder à civilidade, em certas condições.
                        A nossa democracia não foi conquistada com consciência
                        cívica ainda, porque as nossas instituições
                        representativas não tem autonomia crítica para o exercício
                        das suas funções, elas estão submetidas ao poder
                        executivo de uma maneira profundamente autoritária. Então
                        a transição à vida democrática não foi realizada em
                        função das instituições, mas sim em função dos
                        partidos e dos homens, das negociações e não das
                        instituições, e isso afetou profundamente a nossa
                        democracia, que ela é simulada. Em relação entre o
                        ponto de convergência entre desaparecidos e
                        desempregados é o seguinte, o desaparecido não tem
                        identidade jurídica, ele não é ninguém perante a
                        lei. Não existe essa figura. Na medida em que o indulto
                        foi legitimado pelos governos civis, a figura do
                        desaparecido não tem existência jurídica, não há
                        ninguém que o seja. O desempregado não existe também
                        para o sistema, ele não é produzido pela democracia. A
                        democracia não tem a coragem de aceitar as contradições
                        que ela gera, dizendo bem, aqui estamos com um estado
                        que vai delegar as suas responsabilidades em instituições
                        privadas, e o produto do desmantelamento de um estado
                        sem consistência e sem produtividade, necessariamente,
                        é o desemprego. Não é que estamos expulsando pessoas
                        de um emprego produtivo, estamos expulsando pessoas de
                        instituições que são fantasmas. Agora, até aí, até
                        podemos aceitar as coisas, a dissolução de um estado
                        improdutivo gera desemprego. Mas o desempregado, ele é
                        ou não é produto da nação, ele é ou não é parte
                        da realidade? O que quer dizer que ele não tenha
                        futuro, o que quer dizer que ele de imediato vai ser a vítima,
                        sempre a vítima., Quem é o desempregado? Não 
                        
                         
 é
                        o homem que tem poder, é o homem que não representa
                        nada. Ele não tem onde exprimir o seu protesto, ele vai
                        sair à rua e é reprimido, como de fato é reprimido,
                        na Argentina pelo menos. Agora ele não pode ser
                        incorporado pelo sistema, porque o sistema vai se
                        estruturar com menos gente do que existe. Todo o dilema
                        do meu país foi sempre o seguinte: vamos organizar o
                        sistema para trinta milhões de pessoas, ou vamos
                        prescindir de dez milhões? Buenos Aires tem nove, a
                        província de Buenos Aires tem doze, depois tem o resto.
                        Então, o problema fundamental é que há uma desaparição,
                        um aniquilamento, uma destruição do direito do homem,
                        que tem que desaparecer com o estado obsoleto, o estado
                        que não presta, não só ele desaparece, com ele o
                        empregado também, a pessoa, a pessoa desaparece como
                        realidade. Então nesse sentido é uma continuação
                        cultural, no conceito, justamente, preconceito, segundo
                        o qual onde não está o poder, não há realidade.
                        
                          
                        
                         P:
                        O que você acha do fato de suas obras serem
                        traduzidas para várias línguas, menos o português?
                        Diversos intelectuais brasileiros sofrem o mesmo
                        problema. O que você acha desse pequeno intercâmbio
                        cultural Brasil - Argentina?
                        
                          
                        
                         Eu
                        acho fundamental esse intercâmbio. Eu acho importantíssimo
                        e pessoalmente comovente. Agora o fato de eu não ter
                        sido traduzido para o português exprime por uma parte a
                        consciência crítica dos editores. Da outra parte, que
                        eu ainda não tive sorte, mas eu vou ter. Eu vou ter. 
                        
                          
                        
                        
                         Aproveito
                        para agradecer ao secretário Belisário dos Santos
                        Junior. E a Júlio Lerner e Margarida Genevois,
                        organizadores desse simpósio tão atual, pelo convite
                        que me fizeram. Agradeço também a todos pela atenção.
                        Muito obrigado.
                        
                        
                        
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