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 Ruth
                        Cardoso Professora
                        universitária e antropóloga
                        
                          
                        
                        
                        
                         Antes
                        de iniciar minha participação neste simpósio,
                        gostaria de agradecer a todos pela recepção calorosa
                        que estou tendo. Quero também dizer que considero
                        extremamente importante discutir esse tema, a Cidadania
                        e a Multiculturalidade nas Sociedades. É realmente
                        oportuno retomarmos o problema do preconceito, das
                        discriminações, entendê-lo melhor para lutar mais
                        eficientemente contra toda e qualquer forma de
                        discriminação.                
                        
                        
                         O
                        título que foi escolhido para essa minha palestra,
                        “Cidadania em Sociedades Multiculturais”, tenta
                        reunir dois aspectos, que nem sempre são apresentados
                        conjuntamente: o da cidadania e o da multiculturalidade,
                        ou seja, a questão da diversidade das nossas
                        sociedades, da complexidade cultural nas  sociedades atuais. O problema da cidadania já é
                        reconhecidamente uma das mais importantes questões do
                        nosso tempo. Ele reaparece com esta força, domina as
                        preocupações dos grupos envolvidos com o resgate
                        daqueles que estão excluídos da nossa sociedade e, por
                        isso, ganha uma importante dimensão política, além de
                        se configurar também em instrumento intelectual de
                        bastante força. O conceito de cidadania é hoje aceito
                        por todos, mas deve se reencontrar com a questão de
                        direitos e deveres que a sociedade começa a colocar.
                         
                        
                         Nós
                        temos definições muito precisas do que seja cidadania.
                        Mas hoje, como lemos em revistas, jornais e até mesmo
                        em trabalhos acadêmicos e discursos, o conceito não é
                        usado de maneira tradicional, não corresponde mais à
                        formulação do fim do século XVIII e do século XIX.
                        Ele tem outro significado. Hoje, claramente, cidadania
                        quer dizer inclusão de populações excluídas, ou
                        seja, todos numa sociedade devem tornar-se cidadãos. O
                        conceito de cidadania ortodoxo implicava em que sempre
                        há pessoas fora do mundo da cidadania. Atualmente, esse
                        conceito não é mais definido por seus limites. Ao
                        contrário, ele não deve ter limites. Deve ser um
                        instrumento de inclusão de todos os segmentos da
                        população que estão excluídos. Essa discussão
                        aflora exatamente como o aflorar de problemática que a
                        sociedade nova está trazendo. Os instrumentos ficam
                        antigos para a realidade nova e a realidade força uma
                        redefinição. Isso é um desafio, um desafio sobre qual
                        nós temos que pensar.
                         
                        
                         É
                        importante ressaltar que isso não é uma problemática
                        brasileira. Freqüentemente no Brasil 
                        considera-se que tudo o que está acontecendo,
                        está acontecendo exclusivamente aqui. Este é um
                        defeito do nosso pensamento. Aprenderemos mais se
                        pensarmos sobre problemas semelhantes no resto do mundo.
                        Como a redefinição da idéia de cidadania é hoje
                        universal, nós temos aliados no mundo todo. Certamente
                        os problemas não são os mesmos, mas têm aspectos
                        muito semelhantes e as formas de lutar contra eles
                        talvez sejam também semelhantes.
                         
                        
                         A
                        questão da cidadania começa a se modificar, nos anos
                        60, quando a sociedade passa a ter outros registros e
                        outras maneiras de manifestar a sua vontade. Nós todos
                        identificamos os anos 60 como sendo os anos das
                        explosões e das manifestações dos segmentos que não
                        faziam parte da política,
                        não tinham instrumentos para se manifestar, mas passam
                        a aparecer no cenário para representar a sua vontade e
                        reverter sua situação. Estes segmentos estavam então,
                        em graus 
                        
                         diferentes,
                        excluídos da cidadania, conceito agora usado em seu
                        sentido moderno. Quando eles começam a ter voz, a arena
                        das discussões muda e passa a incorporar novos atores
                        que com esta face, com essas reivindicações, só
                        aparecem a partir dos anos 60. Esses segmentos, as
                        mulheres, os negros, os jovens, reivindicavam autonomia
                        e poder de decisão. Se nós lembrarmos um pouco o que
                        foi 1968 e de todas as outras manifestações da
                        juventude durante os anos 70 veremos a busca pelo poder
                        de influência. Não pelo poder em seu sentido vago, mas
                        pela presença, pelo poder numa nova arena na qual os
                        problemas se discutem de modo diferente. E é esse o
                        momento do mundo contemporâneo em que se recoloca a
                        questão da cidadania. 
                        
                          
                        
                         Para
                        entendermos o que aconteceu nessa recolocação dos
                        limites da cidadania, é importante pensarmos um pouco
                        sobre a contribuição que o movimento da mulheres deu
                        neste campo. Entre todos os movimentos que surgiram
                        nessa época, o de mulheres tem um caráter especial.
                        Segmentado, dividido em vários caminhos, o movimento de
                        mulheres acaba por traçar caminhos diferentes. Ele se
                        tornou universal muito rapidamente, teve apoios e
                        assumiu características próprias nos diferentes
                        continentes do mundo. Mas encontrou suporte para a
                        reivindicação de igualdade nestes continentes, ainda
                        que de maneiras muito diversas. Embora tenha assumido
                        posturas bastantes radicais em certos momentos, nunca
                        foi violento. Este é um traço importante quando se
                        pensa sobre esse modo de aparição pública de novos
                        segmentos na sociedade contemporânea. Freqüentemente a
                        luta pelo ingresso na cidadania foi feita usando
                        instrumentos que podiam levar ao enfrentamento e à
                        violência.
                         
                        
                         O
                        movimento de mulheres é paradigmático neste sentido;
                        ele pode ter sido radical, mas não violento. Além
                        disso, por suas próprias características, deu uma
                        contribuição extremamente importante, teórica e
                        conceitual, à compreensão dos processos tais como eles
                        estavam ocorrendo na sociedade. E a reivindicação das
                        mulheres é aquela que busca a igualdade num mundo que
                        reúne homens e mulheres. É uma reivindicação de que
                        este seja um mundo de iguais. Esta reivindicação
                        incide diretamente sobre o próprio conceito de
                        cidadania. As mulheres já vinham lutando pela igualdade
                        perante a lei desde o começo do século. Em alguns
                        países desenvolvidos, até o direito a votar e ser
                        votada foi muito tardio, mas foi conquistado. Ou seja, a
                        noção de igualdade entre homens e mulheres já era
                        plenamente aceita e aparentemente condizente com o
                        conceito de igualdade perante a lei, 
                        com a garantia dos direitos individuais a todos.
                         
                        
                         A
                        eclosão do movimento feminino mostrou que a igualdade
                        não se realizava plenamente. A garantia de direitos
                        iguais era garantia legal, mas não se estendia
                        imediatamente ao cotidiano e à cultura. A sociedade
                        alimentava uma diferença que estava subjacente ao
                        conceito de cidadania. Uma importante autora feminista,
                        Carol Peterson, num trabalho denominado “O contrato
                        sexual”, demonstra que o contrato social supõe o
                        direito individual. A garantia do direito individual
                        subjacente a este contrato, era um outro, o chamado
                        contrato patriarcal, no qual a diferença continua a
                        existir. Esse é o fundamento da luta das mulheres. Elas
                        foram, junto com o movimento negro e o movimento jovem,
                        responsáveis por trazer a luz para a questão da vida
                        privada, mostrando como a vida privada é também um
                        campo da política. Aí aparecem as discriminações.
                        Ainda que não estejam inscritas nas leis e nem sejam
                        coerentes com a situação legal, elas persistem. Não
                        são leis, são costumes e como tal permanecem
                        subjacentes a toda noção de igualdade.
                         
                        
                         O
                        movimento de mulheres tem este caráter exemplar. Entre
                        todos os esforços dos movimentos nos anos 60 e 70, foi
                        o das mulheres que mostrou com maior clareza que os
                        direitos garantidos a um indivíduo abstrato - o
                        cidadão -continua a encobrir todas as diferenças. E
                        essas diferenças não podem ser tomadas como elementos
                        de discriminação. Por isso o lema das mulheres é
                        “Diferentes, porém iguais”. Não se trata de
                        eliminar as diferenças, mas de garantir a 
                        igualdade.  
                        
                         Novamente
                        as mulheres são exemplo, porque as diferenças
                        biológicas continuam a existir. As mulheres, mantendo o
                        seu papel, querem ver reconhecido seu direito à
                        diferença. Ou seja, as 
                        mulheres
                        querem exercer plenamente seus direitos; enquanto iguais
                        e enquanto diferentes. Essa é uma questão que se
                        coloca para todas as minorias que sofrem
                        discriminação.
                         
                        
                         O
                        grande problema é exatamente reconhecer essas
                        diferenças ao mesmo tempo em que se garante a
                        igualdade. A ampliação do alcance das comunicações e
                        o desenvolvimento tecnológico levaram o mundo,
                        rapidamente, à globalização e ao aumento das
                        diferenças culturais dentro de cada sociedade. De modo
                        que a diversidade aflora com mais intensidade. Até a
                        primeira metade do século XX, as categorias que
                        realmente importavam para se entender o mundo eram
                        categorias gerais, eram categorias de universalização
                        dentro de uma sociedade. Hoje todas as categorias com as
                        quais nós lidamos para entender o cotidiano de uma
                        sociedade são segmentadas, parceladas, são grupos de
                        novos atores presentes no espaço público, que querem
                        reconhecimento e legitimidade como grupo. 
                         
                        
                         O
                        movimento de mulheres foi o primeiro a também construir
                        o slogan “A política da vida privada”, ou o privado
                        é político, e esse foi um grande slogan do movimento
                        feminista. É na vida privada, e não no aparato legal
                        ou na vida pública, que está a discriminação. E isso
                        é verdade também para o racismo. Nós conhecemos, no
                        Brasil, esta situação. Vivemos num país que tem uma
                        grande capacidade de encobrir o racismo. Ele quase não
                        aparece à luz do dia, mas existe, é forte e produz a
                        discriminação.
                         
                        
                         A
                        entrada destes elementos da vida privada na vida
                        política configura um salto fundamental, nesta última
                        metade do século XX. Temos que incorporá-los
                        conceitualmente e, a partir daí, saber trabalhar. A
                        igualdade já garantida entre as raças, entre os sexos,
                        a igualdade de todos, é um arcabouço absolutamente
                        fundamental. Sem ele nenhuma luta é possível. Mas
                        agora trata-se de entender essa igualdade e identificar
                        quais são as fontes que alimentam a desigualdade.
                        Insisto no exemplo das mulheres até porque eu o
                        conheço mais. Eu apresentei esta questão na IV
                        Conferência das Mulheres, em Pequim.
                         
                        
                         Na
                        América Latina toda houve um progresso muito grande no
                        nível educacional das mulheres. Hoje no Brasil, nos
                        mesmos segmentos de idade, as mulheres têm maior
                        escolaridade que os homens. Se avaliarmos esta
                        situação sob o ângulo das faixas etárias, as
                        mulheres têm maior número de anos de estudo. Isto
                        mostra que as nossas sociedades não são excessivamente
                        preconceituosas com as mulheres. Quando houve a
                        expansão das oportunidades de escolaridade, as
                        famílias não impediram as meninas de irem 
                        para a escola. Elas estão incorporadas à escola
                        e conseguindo um nível de desempenho maior que o dos
                        meninos. Entretanto, a conclusão da minha
                        apresentação em Pequim não foi tão favorável. O
                        salário das mulheres é ainda, em média, a metade do
                        salário dos homens. Ou seja, é vã a expectativa de
                        que o aumento da oferta educacional tenha um efeito
                        imediato sobre a desigualdade. É preciso continuar
                        também lutando em outras frentes.
                         
                        
                         Da
                        questão que envolve as mulheres, devemos tirar uma
                        lição. Elas têm a garantia de ingresso no sistema
                        educacional, mas continuam vivendo uma situação de
                        desigualdade sancionada exclusivamente pela cultura, os
                        costumes e as  tradições.
                         
                        
                         Isto
                        é preconceito, é discriminação. E temos que lutar
                        até mostrar que as diferenças que as mulheres podem
                        ter são limitações que atingem a toda a sociedade.
                        Quando uma vai mulher vai ter um filho, e tem quatro
                        meses de licença, ela está servindo à sociedade. 
                        Este direito tem que ser reconhecido, garantido.
                        É preciso assegurar a idéia de que igualdade é
                        igualdade em todos os níveis, inclusive na vida
                        cotidiana. Os exemplos de discriminação são
                        inúmeros. Em cada segmento, com uma face política
                        distinta, existem direitos específicos que têm de ser
                        reconhecidos. Novos problemas e indicadores de
                        discriminação estão vindo a público, estão sendo
                        trazidos à arena 
                        
                         política.
                        Isto significa que a demanda é o reconhecimento de
                        direitos específicos de diferentes segmentos. Quanto
                        aos negros, precisam lutar contra o racismo. Da mesma
                        maneira que as mulheres, 
                        
                         eles
                        têm de lutar contra tudo aquilo que está sedimentado e
                        que, quase inconscientemente, é posto em circulação
                        na nossa sociedade. Para lutar contra o preconceito é
                        preciso realizar atos que demonstrem a necessidade de
                        que os segmentos vítimas de discriminação tenham
                        reconhecidos os seus direitos específicos.
                         
                        
                         Para
                        que se concretizem os direitos específicos é preciso
                        garantir seu reconhecimento político. É preciso
                        disseminar a noção dos direitos específicos e a
                        necessidade prática de seu reconhecimento, para que se
                        possa lutar. No caso das mulheres, isto significar
                        reconhecer que trabalho igual deve corresponder a
                        salário igual; no caso dos negros, trata-se de atuar
                        contra a discriminação com a idéia das chamadas
                        políticas de discriminação positiva, que são aquelas
                        que garantam alguma vantagem específicas a grupos que
                        foram tradicionalmente discriminados. São vantagens que
                        buscam neutralizar a discriminação onde ela sempre se
                        mostrou mais efetiva e digamos, tradicional.
                         
                        
                         Este
                        é um ponto chave da extensão da cidadania, porque na
                        medida em que nós que aceitamos a idéia de direitos
                        específicos para as minorias discriminadas legitimamos
                        a luta por esses direitos.
                         
                        
                         Apesar
                        de a discriminação atuar no nível da sociedade, o
                        Estado tem um papel fundamental nessa questão. São
                        dois planos e duas ações. É tarefa do Estado atuar
                        para construir uma igualdade inexistente e que é sempre
                        imperfeita. Por isso o Estado deveria usar mais os
                        instrumentos de discriminação positiva.
                         
                        
                         As
                        cotas, por exemplo, são uma parte da política de
                        discriminação positiva. Hoje já se tem uma
                        avaliação mais coerente do seu efeito. Políticas de
                        cotas são bastante criticadas hoje. Elas não
                        produziram o que se esperava delas. Nas escolas, por
                        exemplo, ou no trabalho, elas produziram, às vezes,
                        efeitos perversos que não eram previstos. Estamos num
                        momento especialmente rico que a eclosão de questões
                        na sociedade nos trouxe. Temos arcabouço teórico que,
                        não sendo suficiente para o debate de todas essas
                        questões, nos obriga a repensar, a redefinir conceitos.
                         
                        
                         Um
                        exemplo claro disto é o que eu estou tentando mostrar
                        sobre o conceito de cidadania. Estamos hoje frente às
                        sociedades multiculturais, onde o número de segmentos
                        que tem presença pública é muito grande. Os velhos
                        conceitos não são suficientes para a compreensão dos
                        problemas. Temos portanto que trabalhar com os novos.
                        Penso que a multiplicidade de grupos nas sociedades
                        multiculturais ganharam uma importância muito grande,
                        conferindo força a novos atores. Anteriormente, eles
                        até existiam como grupos, mas suas reivindicações
                        tinham menos eficácia e menos pertinência em relação
                        à vida política. Isto porque o Estado teve que
                        reconhecer esta arena nova e tem de reconhecer que a
                        sociedade não é mais feita pelas categorias amplas, e
                        generalizadas, mas se compõe de novas identidades, que
                        são o lucro da política das minorias hoje. Os grupos
                        sociais, como os indivíduos, definem sua identidade a
                        partir da criação de ligações internas, ao mesmo
                        tempo em que encontram sua diferenciação com relação
                        ao outro. Isto cria processos complexos nas sociedade
                        multiculturais. Precisamos ficar atentos aos processos
                        de construção social de grupos novos. Se observarmos o
                        exemplo dos hispânicos nos Estados Unidos veremos que
                        antes dos anos 70, havia pouco em comum entre os
                        mexicanos e os porto-riquenhos, que aliás eram
                        tradicionais inimigos. Hoje o processo político de
                        criação de identidade e de reconhecimento do outro
                        criou um grupo, o dos hispânicos, que tem força,
                        presença, identidade e reivindicações próprias. A
                        política hoje tem de lidar com estes novos grupos. Um
                        exemplo brasileiro desta situação é o homem do campo.
                        O conceito chave para este grupo, nos anos 50, era dado
                        pela palavra camponês. Essa palavra criava uma
                        categoria generalizadora, que acomodava todas as
                        diferentes 
                        
                         situações
                        vividas na zona rural brasileira pelos homens do campo.
                        Hoje, a palavra camponês é estranha no nosso
                        vocabulário político. Falamos atualmente de segmentos,
                        capazes de se apresentar 
                        
                         com
                        identidade própria: sem-terras, bóia-frias, e cada
                        grupo desses tem suas reivindicações específicas. Uns
                        se distinguem dos outros porque constróem identidades
                        diferentes e desta maneira são legitimados.
                         
                        
                         Nesse
                        processo o Estado tem um papel importantíssimo:
                        reconhecer categorias novas. À sociedade cabe o papel
                        de permitir a gestação desse diferentes segmentos, que
                        se apresentam e mostram suas diferenças. A partir daí
                        se estabelece uma espécie de luta pelo reconhecimento
                        de direitos específicos, ao mesmo tempo em que se cria
                        uma contra-ofensiva. Depois do avanço, há um
                        retrocesso. É importante que se entenda como isso
                        aconteceu. Muitas vezes a luta pelos novos direitos
                        assume um caráter ingênuo e parece que o
                        não-reconhecimento de direitos é uma maldade ou uma
                        injustiça a ser corrigida. Certamente é uma injustiça
                        e é certamente por isso que temos que dar legitimidade
                        a essa luta. Mas não podemos pensar que as sociedades
                        se movem pelos mecanismos da justiça. Nós sabemos que
                        não é assim. Freqüentemente vemos a negação da
                        competição entre dois grupos. A competição existe e
                        está posta. Precisamos trazê-la para nossas
                        considerações. É esta competição, freqüentemente
                        negada, que reafirma a necessidade de lutarmos contra o
                        preconceito.
                         
                        
                         Depois
                        de Hobbes, é difícil acreditarmos numa sociedade de
                        direito natural, numa sociedade de justiça. Temos de
                        reconhecer então que a luta desses novos parceiros para
                        serem reconhecidos na arena política não exclui um
                        processo de competição entre eles mesmos. É evidente
                        que é preciso unir o nível do espaço privado ao
                        nível em que ele se transforma em espaço público. No
                        espaço público, é preciso verificar se o preconceito
                        aparece como falta de informação e se mostra como
                        instrumento de defesa e de competição dentro de um
                        mundo cada vez mais segmentado. É curioso que a mesma
                        sociedade que, como vimos aqui, contribui para a
                        ampliação do conceito de cidadania e reconhece a
                        existência de direitos específicos, atua na
                        multiplicação do preconceito. Ainda hoje temos guerras
                        étnicas, impensáveis há vinte ou trinta anos atrás.
                        Considero importante observarmos com atenção estes
                        dois lados da questão e estou convencida de que a
                        solidariedade, nesta situação, tem uma importância
                        muito grande. Mas se não entendermos melhor esta
                        questão, se não fizermos um esforço para compreender
                        o que está acontecendo, não teremos armas para lutar
                        contra o preconceito que se reinstala e se reinventa a
                        cada dia.
                         
                        
                         Vou
                        dar apenas mais um exemplo que serve a esta discussão.
                        Vários estudos mostram que as metrópoles do mundo
                        contemporâneo - há estudos sobre a cidade de São
                        Paulo que mostram isso claramente - estão sofrendo um
                        processo de urbanização diferente desde os anos 80.
                        Há uma transformação nas formas de urbanização, nas
                        formas de apropriação nas cidades. Levamos muito tempo
                        para perceber isso. Ainda pensamos a cidade de São
                        Paulo, por exemplo, a partir de um modelo superado, no
                        qual a periferia abriga a população pobre, deserdada,
                        e o centro, em seu sentido amplo, é o centro preservado
                        e cuidado. Esse modelo não serve mais para explicar a
                        cidade de São Paulo, como não serve para explicar as
                        grandes metrópoles do mundo. O avanço tecnológico, a
                        globalização, as novas formas de exploração
                        comercial também atuaram nesta transformação. Hoje
                        temos em toda parte grandes condomínios fechados com
                        grades, que vendem a idéia de segurança. Os preços
                        dos terrenos na cidade de São Paulo vêm se equalizando
                        porque numa ampla área se pode construir esse tipo de
                        condomínio fechado. Eles se multiplicam e não existem
                        apenas no Morumbi, mas também na Moóca, em Santana, no
                        Tatuapé, em São Miguel Paulista porque são ilhas, e
                        as ilhas podem estar em qualquer lugar. A existência
                        dessas ilhas produziu, por outro lado, uma
                        degenerescência de outros espaços na cidade, que
                        estão, estes sim, sendo ocupados pelos mais pobres.
                        Como conseqüência há uma diminuição das favelas e
                        um avanço enorme dos cortiços. Isto é resultado de
                        algo muito mais  amplo.
                        O medo das pessoas e o preconceito na nossa cidade
                        crescem muito a cada dia e o medo da violência
                        justifica, muitas vezes, uma violência prévia. 
                        
                         As
                        pessoas se isolam porque descobrem que estão do lado
                        daqueles que constituíam a classe perigosa, e que, do
                        seu ponto de vista, estavam longe. Estando próximos,
                        forçam uma redefinição da sociabilidade para permitir
                        a convivência com esse novo fenômeno, com esta nova
                        sociedade. Esta redefinição pode se dar a partir da
                        idéia da solidariedade, que é a idéia de que a
                        igualdade é um bem que deve ser garantido a todos para
                        que a sociedade possa efetivamente se organizar. O
                        conceito de cidadania se ampliou já na prática e isso
                        ocorreu porque nós temos uma sociedade que coloca
                        politicamente esta questão na arena da realidade,
                        incorporando novos conceitos à vida política.
                         
                        
                         O
                        medo do bandido, que se confunde freqüentemente com o
                        medo dos pobres, é uma questão que tem de ser
                        enfrentada imediatamente. Os pobres estão mais
                        próximos, estão dentro da mesma área. Se nós não
                        combatermos esse preconceito, teremos um esgarçamento
                        muito maior das relações sociais. É preciso entender
                        também que muitas vezes os pobres, obrigados a se
                        distinguir dos bandidos, manifestam opiniões que
                        parecem assustadoras para nós, que somos liberais,
                        condescendentes e solidários. Se por exemplo se realiza
                        uma pesquisa de opinião pública, e uma grande maioria
                        se manifesta favoravelmente à pena de morte para os
                        bandidos, devemos procurar explicações para isso.
                        Certamente as pessoas têm que se distinguir dos
                        bandidos, têm de se mostrar como diferentes, afirmando
                        algo como “tudo bem que venha pena de morte, porque
                        ela não virá para nós, homens de bem, que somos
                        pobres, mas somos homens de bem”. Diante dessa
                        dinâmica da própria cultura e da sociedade que nós
                        vamos ter de encontrar os lugares onde está alojado o
                        movimento de solidariedade, e onde e porque ainda estão
                        vigentes esses preconceitos que nós temos que desarmar.
                        Para desarmá-los, nós temos evidentemente que
                        compreendê-los e acho que vivemos um momento
                        fundamental. É por isso que eu estou participando desse
                        simpósio, que certamente trará uma contribuição para
                        esta questão. Agradeço a atenção de todos.
                         
                        
                         
                        
                        
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