FRANS MOONEN
CIGANOS
CALON NA PARAÍBA,
BRASIL (1993).
Apresentação
População
O
direito à cidadania
Economia
Educação
Os
ranchos
Considerações
finais
Núcleo
de Estudos Ciganos
E-Texto
no. 4
Recife,
2000
Apresentação.
Em 1992 aceitamos o convite do Procurador da República
na Paraíba, Luciano Mariz Maia, de realizar uma pesquisa
sobre os ciganos calon sedentarizados na cidade de Sousa,
visando a obtenção de dados para o Inquérito Civil instaurado,
a pedido dos próprios ciganos, para apurar violações aos
seus direitos e interesses.
O
ensaio a seguir é uma reprodução parcial do relatório
preliminar apresentado em junho de 1993.
Os dados se baseiam em pesquisa realizada nos dias 15
a 28 de janeiro, 24 a 26 de março e 14 a 18 de abril de
1993. Por falta absoluta de apoio financeiro e devido
à impossibilidade de sermos liberados em tempo integral
das atividades docentes na Universidade Federal da Paraíba,
em João Pessoa, não foi possível realizar uma tradicional
pesquisa antropológica, com uma permanência mais prolongada
no campo.
Estamos,
portanto, conscientes das inúmeras falhas deste relatório,
mas esperamos que sirva pelo menos para estimular outros
cientistas sociais brasileiros - que hoje já podem dispor
de toda a bibliografia ciganológica nacional e mais uma
ampla bibliografia ciganológica internacional
- e talvez até alguns cientistas sociais estrangeiros,
a retomar a pesquisa, completar os dados que faltam e
corrigir os nossos erros. O Brasil é um verdadeiro campo
ainda inexplorado para “ciganólogos” nacionais ou estrangeiros.
Aos
ciganos de Sousa, nossos sinceros agradecimentos pela
excelente acolhida que nos deram em 1993.
População.
Na
Paraíba, Nordeste do Brasil, uma grande concentração de
ciganos é encontrada na cidade de Sousa, no interior do
Estado, a 420 km da capital João Pessoa. Na periferia
da cidade, em 1991 com uma população de quase 45.000 habitantes,
habitavam em 1993 cerca de 450 ciganos, espalhados sobre
três "ranchos", a 3 km do centro. Os ranchos
A e B eram vizinhos e o rancho C ficava a cerca de ùm
quilômetro de distância; no meio existiam algumas casas
isoladas habitadas por ciganos e várias casas de não-ciganos
pobres. O número total de habitações ciganas era em torno
de 70, na maioria modestas casas de taipa, umas oito
casas de alvenaria (algumas ainda em construção) e um
número igual de "latadas" (abrigos simples,
feitos com algumas estacas de madeira e teto e paredes
de palha de coqueiro). Ao lado de várias casas existiam
ainda "latadas" apenas com um teto de palha
e sem paredes, que não eram usadas para morar, mas apenas
para cozinhar ou exercer atividades diversas.
Os
ciganos de Sousa pertencem ao grupo Calon, ou seja, são
descendentes de ciganos portugueses que, em séculos
passados, migraram voluntaria ou compulsoriamente
para o Brasil. Os sobrenomes mais comuns são Pereira,
Fereira, Lopes, Costa, Carvalho, Torquato, Figueiredo
e Alves, uma prova adicional de sua origem portuguesa.
Uma origem que, por sinal, eles próprios desconhecem.
Afirmam
que existem outros ciganos espalhados por todo o interior
da Paraíba, mas sempre se trata de grupos menores. A segunda
maior concentração parece ser em Patos onde vivem cerca
de cem ciganos, segundo informação do chefe destes ciganos,
quando em visita aos familiares de Sousa.
Antes
de iniciarmos a pesquisa de campo, dois chefes ciganos
calcularam a população cigana da cidade de Sousa em
cerca de 800 pessoas. Na realidade, em janeiro de 1993
o número de ciganos era de 445 pessoas, sendo 224 homens
e 221 mulheres.
O
resultado do nosso recenseamento, que acusou a presença
de apenas 445 ciganos, visivelmente não agradou a um dos
chefes que insistia que eram 800, porque muitos estariam
viajando, estariam fora, para ganhar algum dinheiro
e que dentro de algumas semanas ou talvez meses voltariam
para Sousa. No entanto, até meados de abril, não nos
foi possivel presenciar a volta de famílias ciganas
de suas viagens. A irritação deste chefe cigano tem sua
razão de ser porque quanto mais ciganos, mais eleitores,
mais votos e, segundo acreditam errôneamente, mais apoio
dos políticos locais. Não faltou quem confundisse
o nosso censo com uma pesquisa sobre o número de eleitores:
"Doutor, pode
escrever que na minha casa tem oito eleitores".
POPULAÇÃO CIGANA DE SOUSA – 1993
Idade
|
Homens
|
Mulheres
|
Total
|
75
- ++
|
3
|
4
|
7
|
70
– 74
|
6
|
4
|
10
|
65
– 69
|
5
|
4
|
9
|
60
– 64
|
6
|
6
|
12
|
55
– 59
|
5
|
4
|
9
|
50
– 54
|
5
|
6
|
11
|
45
– 49
|
10
|
4
|
14
|
40
– 44
|
7
|
13
|
20
|
35
– 39
|
14
|
13
|
27
|
30
- 34
|
13
|
18
|
31
|
25
- 29
|
21
|
15
|
36
|
20
- 24
|
18
|
21
|
39
|
15
- 19
|
27
|
30
|
57
|
10
- 14
|
39
|
26
|
65
|
5
- 9
|
31
|
27
|
58
|
0
- 4
|
14
|
26
|
40
|
TOTAL
|
224
|
221
|
445
|
Observa-se que nas faixas etárias de 10 até 75
anos, a pirâmide populacional apresenta uma configuração
que pode ser considerada normal, mas que abaixo disto
inicia um declínio, mais acentuado no lado masculino.
Não dispomos de dados sobre a mortalidade infantil.
Mas veremos a seguir que o processo de sedentarização
iniciou em 1982, ou seja há dez anos. Uma das consequências
disto aparentemente tem sido uma drástica redução no
número de nascimentos, ou um aumento do índice de mortalidade
infantil, ou ambas as coisas. Várias pessoas informaram
que "antigamente" (antes de 1982) quando ainda
"viajavam", ninguém tinha doenças, as mulheres
pariam e pouco depois já estavam andando de novo, não
faltava comida. Hoje (após 1982) está tudo diferente,
muitas pessoas estão doentes, a mulher grávida precisa
de médico, de hospital, e todo mundo passa fome.
Perguntando
sobre a diminuição do número de filhos, vários ciganos
responderam que era por causa da pobreza e da miséria
em que vivem hoje, pelo que não é mais possível sustentar
tantos filhos como antes, quando eram nômades, e mais
ricos. Mas houve também quem acusasse médicos de uma
maternidade local de esterilizar mulheres ciganas.
Pelo menos umas dez mulheres já fizeram cesariana,
e parte destas mulheres teve as trompas ligadas. Em
pelo menos três casos, a laqueadura foi feita sem conhecimento
e sem consentimento do casal, apresentando os médicos
depois uma mistura de justificativas médicas e sociais
(do tipo: "a
senhora poderia morrer se tivesse outro filho"
e "a senhora
não tem condições de criar mais outros filhos").
Outra cigana esterilizada, no entanto, elogiou a atitude
dos médicos e confirmou que, pelo menos no seu caso particular,
a laqueadura realmente tinha sido necessária por motivos
médicos e que tinha concordado antes.
O
problema é que, como pudemos observar em outras ocasiões,
os ciganos, salvo raríssimas exceções, e mesmo assim
apenas quando por nós provocados, não costumam denunciar
nem criticar pessoas das quais dependem para obter benefícios
ou favores (p. ex. políticos e médicos), ou que eventualmente
possam prejudicá-los (p.ex. certas autoridades policiais),
mesmo quando estas pessoas agem ilegalmente. A esterilização
involuntária de mulheres ciganas talvez merecesse
uma investigação mais detalhada por pessoas competentes
da área médica.
O
direito à cidadania.
O nosso pequeno questionário usado para o recenseamento
não indagava sobre certidões de nascimento e outros
documentos. A questão surgiu quando, durante o recenseamento,
alguém pediu a nossa colaboração para registrar seus
filhos. A partir de então passamos a perguntar também
sobre os registros dos filhos. Constatamos que pelo menos
72 menores não tinham certidão de nascimento. Na realidade
este número é bem maior, já que não investigamos o
assunto desde o início, em todas as casas. Sem certidão
de nascimento, não há acesso às escolas ou aos hospitais
públicos.
Em
julho de 1992 esteve em Sousa o "Programa Cidadania",
do Governo do Estado, que em toda a Paraíba visa documentar
devidamente a população de baixa renda, fornecendo
gratuitamente certidões de nascimento e carteiras
de identidade e profissionais. Desconhecemos os métodos
de trabalho adotados pela equipe do Programa Cidadania,
mas aparentemente foram distribuídas fichas numeradas,
como se fosse um favor de algum político local. Apenas
um único cigano obteve três fichas para fazer o registro
de seus filhos, e mesmo assim nada conseguiu, porque
o juiz se negou a autorizar os registros. O que deveria
ser um direito de todos, inclusive garantido por Lei,
virou um favor para alguns poucos.
Diante
disto procuramos o cartório de registro, cujo proprietário
nos informou que "mesmo se o juiz mandasse, não
faria mais nenhum registro de graça". O juiz, por
sua vez, quando por nós entrevistado, deixou claro que
a "Justiça" local cria tantos obstáculos e
faz tantas exigências que na prática se torna impossível
um cigano pobre registrar seus filhos. Por isso, a maioria
dos menores e adolescentes ciganos continua sem registro
de nascimento, e por causa disto sem direito a escola,
a hospital e a outros benefícios sociais. Na realidade,
em Sousa cigano só se torna cidadão brasileiro ao alcançar
a maioridade, e mesmo assim ainda tem que esperar até
a próxima eleição e pedir a algum político o favor de
providenciar a documentação necessária para obter
seu título de eleitor. E então a única exigência é o
voto! Para melhorar a situação dos paraibanos ciganos,
a primeira exigência será garantir o seu direito à cidadania
brasileira, desde o dia de nascimento.
Economia.
Antes de na década de 80 abandonarem a vida nômade
e semi-nômade, os 450 ciganos atualmente sedentarizados
na cidade de Sousa, viviam basicamente do comércio
de "animais" (isto é, de equinos: cavalos,
jumentos, burros) ou de objetos industrializados, especialmente
armas. Não consta que tenham sido produtores de artesanato
de qualquer espécie. Nunca, também, trabalharam em atividades
circenses, nem em parques de diversões. As mulheres
completavam a renda familiar praticando a quiromancia
ou rezando "orações" para proteger a pessoa
contra doenças, mau-olhado e outros males. Mas a principal
fonte de renda era o comércio ambulante praticado pelos
homens. A área de perambulação era o interior da Paraíba,
Pernambuco e Rio Grande do Norte.
Na
época, este comércio proporcionava aos ciganos uma vida
bastante confortável. Existiam até ciganos ricos como,
por exemplo, um
antigo chefe, avô de um dos atuais chefes de Sousa.
Segundo vários informantes mais idosos, este chefe possuia
"uma cruz em ouro 18 maciça", muitas jóias
e moedas de ouro, esporas e arreios de cavalo em prata
legítima, etc. Mesmo dando o devido desconto para eventuais
exageros históricos, não resta dúvida alguma que era
um cigano rico.
As informações são contraditórias quanto à época
em que começou o declínio. O chefe teve seis filhos,
um deles hoje residente em Sousa. Segundo alguns informantes,
este chefe era "mão aberta", generoso demais,
e muitos ciganos se aproveitaram disto e ele ficou pobre
ainda em vida; segundo outros foram os filhos que não
souberam administrar a riqueza após o falecimento do
pai. Seja como for, hoje todos os descendentes vivem
na miséria absoluta.
Não
temos informações sobre outras famílias tão ricas. A riqueza
do cigano citado acima talvez tenha sido uma exceção,
mas não resta dúvida alguma que todas as famílias ciganas
antigamente viviam numa situação bem mais confortável
do que hoje.
Talvez
por causa do empobrecimento, em épocas mais recentes
nem sempre viveram exclusivamente das atividades comerciais.
Também lembram, com saudade, os "bons tempos"
em Pau dos Ferros, no Rio Grande do Norte, onde residiram
vários anos numa fazenda e construiram açudes e barragens,
mas informam ter trabalhado também em atividades agrícolas:
plantio e colheita de arroz, feijão, milho e outros
produtos.
Os
ciganos sabem que esta vida nômade de outrora acabou
definitivamente: "Deus deu um tempo para o cigano andar, e outro para morar .........
agora Deus disse para nós parar". Segundo
outro informante deixaram de andar "porque
foi vontade de Deus, foi tudo concebido por Jesus".
Só alguns poucos ciganos parecem ter consciência das
reais causas de sua sedentarização.
Em
primeiro lugar pode ser citada a industrialização do Brasil
a partir da década de 60 quando, inclusive, começou,
em escala maior, a produção nacional de automóveis,
caminhões, ônibus e tratores. Sempre mais o uso de animais
de transporte ou de tração se tornou supérflua. Hoje,
quase só a população pobre ainda utiliza o tipo de equinos
comercializados pelos ciganos, para carregar água,
lenha ou produtos agrícolas.
Ao
mesmo tempo iniciou-se a construção das rodovias e com
isto surgiu outra importante mudança para os ciganos.
Segundo eles próprios informam, muitos dos fazendeiros
que antigamente hospedavam ciganos, oferecendo-lhes
empregos temporários (p.ex. a construção de açudes,
trabalho nas épocas de plantio e colheita, etc.), ou que
davam alguma assistência temporária (água, alimentação,
ou autorização para acampamento), hoje não residem mais
nas suas propriedades, mas preferiram o conforto de
cidades grandes muitas vezes distantes. Hoje as propriedades
rurais são administradas por capatazes que nada fazem
em favor dos ciganos. Capataz também não compra ou troca
animal, nem dá emprego. Ao que tudo indica, foi este
êxodo dos proprietários rurais para as grandes cidades
um dos principais motivos pelos quais os ciganos tiveram
que abandonar a sua vida nômade, ou seja, foi a causa
principal de sua sedentarização. Mas sedentarização
não significa, necessariamente, também pauperização.
Tanto na Europa quanto no Brasil existem ciganos sedentários
ricos.
Os
melhoramentos nos meios de transporte fizeram aumentar
também o número de estabelecimentos comerciais nas
vilas e nas cidades do interior, outro fator que resultou
na desvalorização do comércio ambulante cigano.
Viajar deixou de ser uma aventura e mesmo as vilas e
sítios menores passaram a ser servidos por uma linha
de ônibus ou outro tipo de transporte coletivo. Hoje
quase todas as pessoas preferem fazer suas compras nas
cidades próximas, onde encontram produtos de melhor
qualidade,
maior variedade e preços mais baratos.
Todos
estes fatores fizeram com que o tradicional comércio ambulante
cigano se tornasse aos poucos sempre menos rentável.
Diante disto, a sedentarização nas proximidades de
uma cidade maior, para muitos ciganos se tornou a única
saída. Ou seja, a nosso ver, não foi a sedentarização
que causou a proletarização, mas foi a proletarização,
foi o empobrecimento que obrigou os ciganos de Sousa
a aceitar uma vida sedentária. E por causa disto, na
década de 80, três grupos ciganos se fixaram sucessivamente
na cidade de Sousa. Hoje totalizam cerca de 70 famílias
nucleares e 450 pessoas.
Os
homens, ao serem questionados sobre suas atividades e
habilidades profissionais, em sua quase totalidade
respondem que não sabem fazer outra coisa a não ser "negociar”
animais ou pequenos objetos. Mas se este pequeno comércio
já era difícil na zona rural, pior ainda é a situação
na cidade. A população urbana não precisa de
animais;
o comércio de armas é ilegal e tem de ser feito às
escondidas; trocar ou vender objetos usados como um relógio, um radio,
um conjunto de som ou uma televisão nunca dá muito lucro;
encontrar otários que compram caro um objeto barato
é quase impossível. Conforme um cigano: "a gente compra aqui mesmo na bijouteria uma pulseirinha ou
um colar, e depois vende como se fosse de ouro".
Mas para um pequeno negócio como este dar algum
lucro, obviamente será necessário encontrar um comprador
não muito esperto. Dificilmente um morador de Sousa ainda
cai nesta armadilha
pelo que as vítimas são normalmente os habitantes
dos sítios rurais em visita à cidade. Mais tarde, naturalmente,
estas pessoas descobrem que foram enganadas e ninguém
pode culpá-las por terem preconceitos contra ciganos.
Daí porque, mesmo na cidade, o mercado de trabalho para
os ciganos comerciantes, está diminuindo sempre mais.
A
situação piora ainda mais devido à falta quase total de
qualificação profissional, apesar de vários informantes
afirmarem categoricamente que "cigano
é muito inteligente, sabe fazer qualquer coisa, logo
ele aprende......". Aos poucos, no entanto, nossas
observações nos levaram a desconfiar que os ciganos
não conseguiram aprender tudo que deveriam ter aprendido
para sobreviver como comerciantes e que talvez mais
do que os fatores acima citados para explicar sua sedentarização,
a sua falta de escolaridade e de preparo profissional
tenha sido a principal causa de sua falência como comerciantes
e de seu empobrecimento. Tudo indica que, pelo menos
os ciganos de Sousa, foram derrotados também, e talvez
até principalmente, por sua incapacidade de lidar com
números e em consequência disto, com a inflação que castiga
o Brasil há dezenas de anos.
No
Brasil, a inflação existe há muito tempo, mas para a nossa
análise basta recordar a inflação desde a época em
que Sousa foi escolhida como "ponto fixo" por
pelo menos três grupos ciganos, na época ainda nômades
e semi-nômades. Principalmente a partir da década de
80, a inflação assumiu proporções catastróficas a ponto
de ser calculada em bilhões de porcentos (segunda a
revista Veja, de 09.06.93, de 1980 a 1993 a inflação brasileira
foi de 146.219.946.300%). A moeda nacional mudou quatro
vezes de nome, cada vez tirando-se três zeros da moeda
anterior; as TV's não se cansam de mostrar que ninguém
sabe mais o preço e o valor das coisas, nem de uma simples
caixa de fósforos, de um pão francês ou de um quilo de
batata, para não falar de objetos industrializados
como vestuário ou eletrodomésticos.
Boa parte da população brasileira soube adaptar-se,
a ponto de se falar, inclusive, na existência de uma
"cultura inflacionária". Mas qualquer comerciante
que queira sobreviver num país com uma "cultura
inflacionária" e uma inflação permanente de algumas
dezenas de porcentos ao mês, no mínimo terá que entender
algo de cálculos, terá de saber as quatro operações básicas:
somar, subtrair, dividir e multiplicar. Os ciganos,
devido à sua vida nômade e por outros motivos, não
costumavam frequentar escolas, mas apesar disto, muitos
aprenderam a ler e a escrever. Mas tudo indica que
nunca aprenderam corretamente a calcular. Em 1993 fizemos
um pequeno teste com sete ciganos adultos, três dos quais
tinham estudado no primeiro grau; os outros quatro nunca
frequentaram uma escola, mas sabiam razoavelmente ler
e escrever. Nenhum deles, no entanto, sabia corretamente
fazer cálculos, nem os mais simples.
Os
fatores macro-econômicos citados no início deste capítulo
(industrialização, mecanização rural, êxodo dos proprietários
rurais, aumento do número de estabelecimentos comerciais
no interior, etc), sem dúvida alguma, contribuiram
para a sedentarização e o empobrecimento dos ciganos,
não somente aqui no Brasil, mas comprovadamente também
na Europa. No entanto, os testes que realizamos com estes
sete ciganos provam que com certeza não foram os únicos
culpados. Acreditamos que uma das causas da falência
do comércio ambulante cigano tenha sido também a sua
precária escolaridade (para a maioria a ausência total
de escolaridade), que não apenas os tornou comerciantes
desqualificados num país com uma constante inflação
alta, como também os torna, ainda hoje, mão-de-obra desqualificada
para a quase totalidade dos empregos urbanos. As causas
macro-econômicas são irreversíveis; a falta de escolaridade
tem solução.
Ao
perguntarmos aos homens sobre as suas fontes de renda
atuais, sobre como conseguem comprar comida, roupa,
etc., a resposta, quase sem exceção, era que de vez
em quando faziam "algum negócio" (quase nunca
claramente especificado). Só alguns poucos ciganos são
assalariados. Em todos os casos trata-se de empregos
públicos, conseguidos como favor político. Um cigano,
por exemplo, trabalha na Rede Ferroviária, outro na
CAGEPA (Companhia de Água e Esgotos da Paraíba), e recentemente
o novo prefeito contratou quatro ciganos para vigiar
um ginásio de esportes, localizado perto dos ranchos
ciganos e que, embora de construção recente, se encontra
em completo abandono. O salário destes vigias é irrisório,
menos do que um salário mínimo, a ser dividido entre
os quatro!
Apesar da baixa remuneração, são estes os empregos
cobiçados por todos, por não requererem qualificação
profissional alguma. O problema é que não existem muitos
destes empregos disponíveis em Sousa. Aliás, na cidade
quase não existe oferta de emprego para ninguém, cigano
ou não-cigano, fato agravado ainda mais pela recessão
econômica e pela sêca que assolava a região em 1992/1993.
Não dispomos de dados estatísticos, mas tudo indica que
existe uma altíssima percentagem de desempregados na
região como um todo.
Os ciganos, obviamente, costumam atribuir o seu
desemprego à discriminação pela sociedade não-cigana,
e não à sua falta de qualificação profissional. Não
negamos que existem estereótipos negativos sobre os
ciganos. E por causa da má fama que os ciganos gozam
na região, é lógico que o industrial, o empresário,
o construtor ou o comerciante que precisar de mão-de-obra
não-qualificada, dê preferência à contratação de não-ciganos,
mesmo para serviços avulsos.
Aparentemente
não falta vontade de trabalhar. Inúmeras vezes homens
nos pediram para falar com a pessoa X ou Y para "arrumar
um emprego". Ao indagarmos sobre "que
tipo de emprego?", a resposta, quase invariavelmente
era, "qualquer
um, mas vê se êle não precisa de um vigilante".
A preferência pela "profissão" de vigilante
tem sua razão de ser, não porque ela não exige qualquer
habilitação profissional, mas principalmente porque ela
justifica que a pessoa ande armada e talvez até consiga
o tão desejado porte de armas.
Em
Sousa não é segredo para ninguém que muitos ciganos
possuem armas. Mas para andar armado na cidade, sem
ser incomodado pela polícia, o porte de armas é talvez
o documento mais cobiçado. Pelo menos uns dez homens
nos pediram para falar, em João Pessoa, com o Secretário
da Segurança Pública, ou com o Procurador da República,
para lhes conseguir um porte de armas.
Na
prática, não há trabalho assalariado para os homens, ninguém
possui terras para plantar, e as atividades comerciais
são quase inexistentes. Diante disto, uma importância
fundamental assumem as atividades econômicas femininas,
porque, ao que tudo indica, hoje são basicamente as
mulheres que sustentam as famílias, que conseguem o
feijão e o arroz de cada dia, e às vezes algum pouco "tempero"
(carne, peixe). Logo cedo pela manhã, enquanto a maioria
dos homens ainda está dormindo ou joga baralho "para
passar o tempo", as mulheres já estão a caminho
do centro de Sousa (menos de três quilômetros de distância)
onde se dedicam principalmente à mendicância: "a
gente consegue um pouco de feijão aqui, um pouco de arroz
ali; vai juntando até dar para uma refeição".
Durante
a nossa pesquisa, nenhuma cigana pediu para "ler"
a nossa mão. Afirmam que ainda dominam a arte da quiromancia,
mas como já estão há tanto tempo em Sousa, provavelmente
já "leram" a mão de cada habitante umas cinco
vezes, e ninguém aguenta mais. Só fazem isto de vez
em quando, se encontrarem uma pessoa desconhecida. Da
mesma forma, nenhuma cigana puxou uma bola de cristal,
um tarô, e menos ainda pedras runas, para ganhar algum
dinheiro às nossas custas.
Também
as mulheres afirmam que sabem fazer "muitas coisas",
como, por exemplo, crochê e renda. Só que não vimos nenhuma
mulher fazendo crochê ou renda. Enquanto isto, no distrito
vizinho Aparecida, a cerca de 20 km. de distância, encontram-se
dezenas de moças e mulheres fazendo crochê, durante o
dia todo, em qualquer esquina do lugarejo ou sentadas
na frente de suas casas.
Resta, portanto, apenas a mendicância, praticada
quase que exclusivamente pelas mulheres. Apenas alguns
poucos homens, geralmente velhos, viúvos ou com problemas
mentais, também pedem esmolas; os outros, quando de
suas idas ao centro de Sousa, ficam parados junto ao
prédio da TELPA, esperando pessoas para trocar ou vender
algum objeto ou animal, ou para arrumar algum serviço.
Ao
que tudo indica, muitos ciganos de Sousa incorporaram
o discurso da "discriminação generalizada contra
os ciganos", e por causa disto nada mais fazem para
conseguir um emprego ou um trabalho avulso: "Não
adianta, doutor, ninguém nos dá emprego; por isso a gente
nem procura mais". O que aparentemente existe
é uma imensa apatia, uma enorme falta de força de vontade
de vencer na vida, por muitos não-ciganos, com ou sem
razão, interpretada como "preguiça".
Esta
opinião é partilhada também por um chefe cigano de outra
cidade da Paraíba. Para ele, os ciganos de Sousa seriam
"acomodados": "de
cada cem, uns vinte trabalham, e os outros ficam dependendo".
A origem desta dependência provavelmente seja o
alto valor que, ainda hoje, os ciganos dão à família extensa
e ao chefe. Um bom chefe é aquele que não apenas decide
por seu povo, mas que também cuida do seu povo, que arruma
alimentos, que paga as consultas médicas e compra os
remédios, que resolve os problemas com as autoridades
locais, etc. Este valor cultural, obviamente, tem seu
lado positivo, porque - como eles próprios dizem -
ninguém passa fome (a não ser quando todos passam fome,
um fenômeno sempre mais frequente). Mas o lado negativo
deste paternalismo, com certeza, tem sido o estímulo
ao acomodismo, à falta de espírito de iniciativa, à
passividade de boa parte dos homens ciganos de Sousa.
Naturalmente,
os ciganos negam isto e fazem questão de dizer que são
esforçados, trabalhadores, etc. O problema é apenas
que não apresentam as provas disto. Com exceção louvavel
para os ciganos que sonhavam fundar um conjunto musical,
não observamos nenhuma iniciativa para melhorar de vida.
A quase totalidade dos ciganos fica esperando que Deus,
Jesus, Nossa Senhora, Padre Cícero, São Francisco das
Chagas, frei Damião ou, na falta deles, algum político,
algum procurador ou até algum antropólogo resolva todos
os seus problemas. A pessoa vence na vida não por esforço
próprio, mas com a ajuda de alguma entidade celeste,
ou de algum político ou amigo terrestre.
Em
Sousa existe ainda um problema adicional, observado às
vezes também na Europa: a presença, num determinado
local, de um número excessivo de ciganos, que quase
todos se dedicam à mesma profissão. Em Sousa encontram-se
126 homens de 15 a 64 anos de idade, que só sabem fazer
uma única coisa: negociar animais ou pequenos objetos,
e um número quase igual de mulheres que apenas sabem
mendigar. Metrópoles como São Paulo, Rio de Janeiro ou
Recife talvez fossem capazes de absorver tamanha população
não-qualificada cigana, mas isto é simplesmente impossível
numa pequena cidade como Sousa onde um em cada cem habitantes
é cigano.
Não
acreditamos que em Sousa os tradicionais valores culturais
tenham contribuído para o alto grau de desemprego
entre os homens. Os homens não trabalham em atividades
independentes, como autônomos, porque suas atividades
tradicionais deixaram de ser rentáveis e nunca aprenderam
ou se interessaram em aprender outras atividades; os
homens não são operários assalariados não porque não
querem, mas porque não existem suficientes empregos
assalariados, e mesmo quando existem, ninguém emprega
um cigano.
Voltar
à vida nômade em grupo está fora de cogitação, mas vários
ciganos demonstraram vontade de iniciar o que Liégeois
chama de "comércio móvel", tendo a cidade de
Sousa como ponto fixo. Não seriam mais viagens em grupo,
mas viagens individuais; mulheres e crianças ficariam
em Sousa, inclusive por causa dos estudos dos filhos.
Acontece,
porém, que os ciganos de Sousa estão completamente descapitalizados
e não é possível alguém iniciar um comércio móvel ou
uma micro-empresa sem capital inicial. Mas somente
capitalizar os ciganos não basta. Como já vimos acima,
também seria necessária uma "reciclagem matemática";
os ciganos teriam que aprender a lidar com números,
seja fazendo contas com lápis e papel, seja com máquina
de calcular. E finalmente, especialistas em micro-empresas
teriam que ensinar aos ciganos como fazer bons negócios
num país com uma cultura inflacionária (pelo menos até
1995).
Educação.
A quase totalidade dos ciganos adultos de Sousa
nunca frequentou uma escola. Exceção é, por exemplo,
L. de 45 anos de idade, filho de um dos chefes e aluno
do Curso de Direito, único curso superior ministrado
em Sousa pela Universidade Federal da Paraíba. Outro
adulto já concluiu o Segundo Grau e tentou (mas não conseguiu)
ingressar no mesmo Curso de Direito em 1992 e 1993.
O
fato de os ciganos de Sousa nunca terem frequentado os
bancos escolares não significa que todos sejam analfabetos.
Boa parte dos adultos (e também dos menores) declara
saber ler e escrever. Talvez não saibam ler e escrever
com facilidade, mas possuem os conhecimentos básicos,
aprendidos por esforço próprio. Não dispomos de números
exatos, inclusive porque não foi possível realizar testes,
mas acreditamos que quase a terça parte da população
cigana acima de 10 anos de idade tenha pelo menos conhecimentos
rudimentares de leitura e de escrita, embora não de
contabilidade (matemática).
Ao
contrário do que afirmam muitos autores sobre os valores
educacionais dos ciganos europeus, existe entre os
ciganos de Sousa uma desejo enorme de matricularem seus
filhos numa escola. Mas apenas alguns poucos conseguiram
realizar este sonho, e mesmo assim apenas em parte.
Por
ironia do destino, dois dos ranchos ciganos ficam localizados
a poucos metros da Escola Estadual de 1o.
Grau Celso Mariz, que ensina do 5o. ao 8o.
ano, e da Escola Agrotécnica Federal de Sousa, que ministra
um curso de Técnico em Agropecuária (80 vagas anuais)
e outro de Técnico de Economia Doméstica (40 vagas
anuais). Trata-se de cursos profissionalizantes para
alunos que já concluíram o Primeiro Grau. Não há registro
de ciganos estudando ou que tenham frequentado a Escola
Agrotécnica. A diretora da Escola Celso Mariz informou
que no estabelecimento já estudaram alguns ciganos
e que os mesmos sempre tiveram um comportamento exemplar.
Não
dispomos da relação de todos os estabelecimentos de 1o.
Grau da cidade de Sousa, mas alguns ficam distantes demais
dos ranchos ciganos e outros nem mais são procurados
por sempre terem recusado a matrícula de ciganos.
Exemplo disto é a Escola Rotary Clube. Ninguém estuda
nesta escola porque um dos professores ameaçou abandonar
a escola caso algum cigano fosse aceito como aluno. Outro
exemplo é a Escola Batista Leite. Parece que a última
vez que alguns ciganos tentaram a matrícula nesta escola
foi em 1989/90, quando receberam como resposta: "vocês
estudam, mas têm que arrumar cinco galinhas p'ra nós"
(fato citado por vários informantes). Não sabemos se
esta resistência à presença de ciganos nestas escolas
parte dos seus dirigentes e docentes, ou se se trata
de uma exigência dos pais não-ciganos, que não querem
ver seus queridos filhos "misturados" com crianças
ciganas. Sobra então apenas a Escola Municipal Otacílio
Gomes de Sá, com ensino do 1o. ao 4o.
ano do primeiro grau.
A Escola Otacílio Gomes de Sá é pequena e dispõe
de apenas quatro salas com capacidade para 40 alunos
cada. Em janeiro de 1993, uma das salas servia exclusivamente
para guardar algumas dezenas de carteiras quebradas,
mas é possível que seja utilizada para ministrar aulas
a partir de março, quando do início do período letivo.
Embora a escola fique a apenas pouco mais de um quilômetro
dos ranchos, só alguns poucos ciganos conseguem estudar
na mesma. A criança cigana sem certidão de nascimento
(a maioria) não tem direito à matrícula. E para aquelas
que possuem este documento, tudo parece depender da
sorte. Não tivemos oportunidade de entrevistar a diretora
desta escola,
mas segundo vários pais ciganos, a tática da escola
é vencer pelo cansaço: "volte
amanhã, volte na semana que vem...", e no final
a frase fatal: "não têm mais vagas".
Diante disto não é de estranhar que apenas algumas
poucas crianças ciganas tenham conseguido matrícula
na Escola Otacílio Gomes de Sá. E destas poucas "privilegiadas",
várias desistiram no meio do caminho. Pelo menos três
meninas desistiram de frequentar as terceira e quarta
séries, pelo fato de estas serem ministradas à noite.
Entre a escola e os ranchos fica uma área deserta e,
não sem motivo, as meninas tinham medo de serem molestadas
por elementos não-ciganos da cidade de Sousa.
Por
outro lado, constatamos também que os ciganos costumam
culpar a discriminação pela população local por todos
os seus males, quando na realidade a culpa muitas vezes
é, pelo menos em parte, a sua própria atitude, ou a sua
ignorância. Em janeiro, ao recebermos a informação
de que a Escola Otacílio Gomes de Sá se recusava matricular
um menino cigano na segunda série, resolvemos acompanhá-lo
à escola para ouvir as explicações da diretora. Em primeiro
lugar, a matrícula nem sequer tinha começado e só
iniciaria em 10 de fevereiro, portanto, ninguém recusou
matrícula de ninguém. Em segundo lugar, como só depois
ficamos sabendo, o menino tinha abandonado o curso de
alfabetização, e nunca tinha frequentado a primeira série.
Mesmo assim, o pai pretendia a qualquer custo matricular
seu filho na segunda série, "porque ele é muito inteligente".
Obviamente a matrícula deste menino teria sido recusada,
por motivos legais, e não por causa da discriminação.
Em
resumo, observamos que: (1) entre os ciganos de Sousa
existe uma enorme vontade de matricular seus filhos
numa escola; (2) existe também entre as crianças uma
enorme vontade, para não dizer ansiedade, de frequentar
uma escola; (3) mas apenas algumas poucas crianças estudavam
ou já estudaram em escolas da rede pública, (a) por
causa da discriminação dos ciganos pela população
local, (b) por falta da documentação necessária, e (c)
por motivos de segurança (aulas noturnas para alunos
das terceira e quarta séries de 1o. Grau!).
Como
estes problemas existem há pelo menos dez anos, constatamos
uma demanda educacional reprimida: entre os 123 menores
ciganos de 5 a 14 anos, havia pelos menos uns cem ansiosos
para receber ensino formal de primeiro grau, e a quase
totalidade deles teria que iniciar a partir da alfabetização.
Desde já deve ser óbvio que a Escola Otacílio Gomes de
Sá, mesmo se tivesse a maior boa vontade, com suas quatro
salas de aula, seria incapaz de resolver este problema.
Entre
os ciganólogos europeus predomina a idéia que o ideal
seja uma escola só para as crianças ciganas. Outros, entretanto,
defendem a escola mista (ciganos e não-ciganos), pelo
fato de ela ser uma maneira - e talvez a única - de diminuir
ou até acabar com os preconceitos contra os ciganos.
Diante disto perguntamos aos ciganos - aos adultos
e aos poucos adolescentes e menores que já frequentaram
uma escola - sobre a sua preferência. Quase por unanimidade
a resposta era uma escola somente para os ciganos. Apenas
um menino cigano estava a favor da escola mista, e em
poucas palavras resumiu as vantagens: "porque
lá eu tinha amigos". E amigo de escola, geralmente
é amigo para sempre. Cem crianças ciganas numa escola
mista podem significar quatrocentos ou mais amigos
no futuro, e como estes amigos também têm parentes e
amigos não-ciganos, cada criança cigana matriculada
numa escola mista no futuro pode significar cerca de
dez ou mais pessoas sem preconceitos contra ciganos.
E enquanto não conseguirmos acabar com os preconceitos
e as discriminações contra os ciganos, nunca também
encontraremos uma solução definitiva para os inúmeros
problemas atualmente enfrentados pelo povo cigano.
O
assunto é discutível, mas de qualquer forma, uma escola
só para ciganos exigiria a construção de um prédio
escolar novo e a devida formação de pelo menos alguns
professores ciganos (porque nestas escolas o ensino
costuma ser bilíngue), o que levaria muito tempo. E
os ciganos de Sousa necessitam uma solução de emergência
a curto prazo, a saber, uma escola (alfabetização e as
primeiras séries do 1o. Grau) para uma centena
de crianças e para vários adolescentes e adultos ciganos.
Diante
disto, ainda no início de fevereiro de 1993 foram tomadas
duas medidas práticas. Em primeiro lugar, para possibilitar
a matrícula de pelo menos uma parte das crianças ciganas
na Escola Otacílio Gomes de Sá, ou em outra escola de
primeiro grau, a Procuradoria da República na Paraíba
forneceu aos ciganos formulários individuais de matrícula,
devendo a diretora da Escola, em caso de recusa, mencionar
por escrito o motivo da mesma. Nenhum cigano precisou
devolver o formulário. Em segundo lugar, com apoio da
diretora da Escola Estadual de 1o. Grau Celso
Mariz, situada a poucos metros dos ranchos ciganos,
e posterior autorização da Secretaria de Educação e
Cultura do Estado da Paraíba, foram aproveitadas três
salas ociosas desta escola para a alfabetização e a
1a. Série do 1o. Grau. A quase totalidade
das crianças ciganas preferiu estudar na Escola Celso
Mariz. Não dispomos ainda de números exatos, mas em
abril de 1993, a diretora estimou que cerca de 80 a
100 crianças ciganas estavam matriculadas, com a dispensa
provisória dos documentos normalmente exigidos, em classes
mistas, junto com outras crianças não-ciganas da área.
Ao curso de alfabetização deverão seguir-se, nos próximos
anos, as séries normais do Primeiro Grau. Uma vantagem
adicional é que esta escola não se limita apenas ao
ensino teórico, mas dispõe, ainda, de uma ampla oficina
na qual ensina aos alunos habilidades técnicas, além
de cursos de datilografia e corte-e-costura.
Existe,
ainda, um número razoável de adolescentes e adultos candidatos
ao "Curso Supletivo", para o que se exige a
alfabetização e idade mínima de 16 anos. Em 1993, vários
ciganos se matricularam no "Supletivo", e
neste curso ninguém constatou discriminação alguma contra
ciganos; todos se matricularam sem o menor problema.
Com
estas medidas, o problema escolar dos ciganos de Sousa
parece em boa parte resolvido e hoje só não estuda quem
não quiser. Mas apesar dos avanços obtidos na cidade
de Sousa, continuam inalterados - e desconhecidos -
os problemas escolares dos outros ciganos sedentários,
semi-sedentários e nômades do Estado da Paraíba. Podemos
supor que também em outras cidades existam preconceitos
e discriminações, além de exigências impossíveis de serem
satisfeitas pelos pais ciganos, como a apresentação
de registros de nascimento, pagamento de matrículas,
compra de fardamento e material escolar, frequência
regular às aulas (impossível no caso de ciganos seminômades
e nômades), etc. Nada, também, se sabe do aproveitamento
escolar das crianças ciganas, de eventuais problemas
com
colegas não-ciganos, discriminação por professores,
etc.
Os
ranchos.
Em Sousa os acampamentos ciganos são conhecidos
como "ranchos". Como já vimos, existem três
ranchos distintos, os ranchos A e B, localizados vizinhos
às Escolas Celso Mariz e Agrotécnica Federal, e o rancho
C, a cerca de um quilômetro de distância, vizinho ao
Parque de Exposição de Animais. Embora construídos na
periferia, a distância até o centro da cidade é de cerca
de três quilômetros apenas.
Nos
três ranchos, quase todas as casas, mesmo as de taipa,
têm energia elétrica, mas nenhum dos ranchos tem saneamento
básico; nenhuma
latada ou casa de taipa possui sanitário, nem
dentro, nem separado da habitação; não há recolhimento
de lixo; as condições de higiene são as piores possíveis.
O
rancho A tem 16 casas (quase todas de taipa e algumas
"latadas", mas nenhuma de alvenaria)
e é chefiado por JVA, 43 anos, que se fixou no
local em 1982. Cinco casas foram construídas em dois
pequenos terrenos comprados pelos ciganos em 1992.
No meio da rua,
existe uma única torneira d'água que abastece
todos os moradores.
A
cerca de 50 metros de distância fica o rancho B, chefiado
por VVN, 71 anos, que fixou residência definitiva no local
em 1986/87. VVN, embora nascido em Sousa de família não-cigana,
casou com a filha de um chefe cigano e há muito tempo
é mais cigano do que muitos ciganos natos. O seu rancho
conta com 21 casas, três das quais de alvenaria, inclusive
a sua própria, comprada de um não-cigano. Neste rancho
existem duas torneiras para o abastecimento de água;
no terraço da casa de VVN existe um telefone público.
O
rancho C, a quase um quilômetro de distância, construído
no início da década de 80 (1982?),
é o maior e tem 35 casas, sendo quatro de alvenaria,
três "latadas" e as outras casas de
taipa. Possui uma única torneira de água, mas todas as
casas deste rancho já tiveram água encanada. Como quase
nunca chegava água, os moradores deixaram de pagar suas
contas e por causa disto um ex-prefeito, declaradamente
anti-cigano, mandou arrancar todas as encanações, deixando
apenas uma única torneira. Mas também esta, pelo menos
em 1993, quase não fornecia água, aparentemente devido
a um problema técnico. Diante disto, as pessoas iam
buscar água no rancho B. Também no rancho C, uma das
casas de alvenaria possue telefone público. Alguns
lotes de terrenos foram comprados, mas a quase totalidade
das casas foi construída em área "doada" (sem
documento escrito) pelo ex-deputado Gilberto Sarmento,
amigo dos ciganos. Na realidade os terrenos não pertenciam
ao deputado, mas à sua família, que quer os terrenos de
volta.
Em
Sousa, este rancho é conhecido como o "rancho de
PM", 63 anos, que seria o chefe do mesmo. Na realidade,
não é bem assim. Apenas umas dez casais (famílias nucleares)
pertencem a sua "família", ou "turma",
e as outras vinte e cinco às turmas de VVN e JVA. Embora
PM seja casado com uma irmã (não-cigana) de VVN, atualmente
as relações entre ambos os chefes estão estremecidas.
A
história é um pouco complexa e exigirá alguns esclarecimentos
complementares que, aparentemente, nada têm a haver
com este assunto, mas que na realidade são fundamentais
para entendermos melhor a situação local. E para entender,
inclusive, porque tantos ciganos estão em Sousa, e não
em outro município qualquer da Paraíba ou de Estados
vizinhos.
Até
o início da década de 60 os ciganos ainda tinham uma
vida nômade. Aconteceu então que no município de Sousa,
em 1962, foi eleito um prefeito jovem, chamado Antônio
Mariz. Não sabemos o que este jovem realizou na época,
mas logo conquistou a confiança e a amizade dos ciganos
da região, "porque
ele nos tratava como gente". O jovem prefeito
depois se tornou deputado federal e senador, e sempre
continuou tratando os ciganos "como gente",
como faz até hoje. Bem diferente, portanto, de um certo
ex-prefeito que, logo depois de eleito inclusive com os
votos ciganos, disse que ia mandar cavar uma vala para
enterrar todos os ciganos de Sousa.
Pelo
menos desde então, muitos ciganos nômades se tornaram
seminômades, ou seja, durante semanas ou meses perambulavam
pela região, negociando animais ou armas, mas sempre
voltavam a Sousa para permanências mais ou menos prolongadas,
em ranchos temporários, com barracas de lona. E desde
então (ou seja, há 30 anos!) sempre votaram em Antônio
Mariz, ou nos candidatos por ele indicados. Para os ciganos,
Sousa é, antes de tudo, um domicílio eleitoral, a cidade
do ex-prefeito e atual senador Antônio Mariz (que possui
uma residência na mesma) e que, quando de passagem,
sempre dá algum apoio aos ciganos ou, no mínimo, os
trata "como gente".
Por
coincidência, quando da nossa pesquisa de campo, de janeiro
a abril de 1993, o senador Antônio Mariz foi submetido
a duas delicadas cirurgias, em São Paulo. Todo dia os
ciganos perguntaram sobre o estado de saúde do senador,
os rádios do acampamento ficaram ligados só para ouvir
notícias a respeito, imagens do padre Cicero e frei
Damião foram colocadas na frente de um calendário ano
1993 com o retrato do senador, todos rezaram, promessas
foram feitas. Houve quem ameacasse de rasgar não somente
seu próprio título eleitor, mas também os títulos eleitores
de todo mundo, caso acontecesse o pior, porque então
tudo estaria perdido para os ciganos, e nunca mais ninguém
iria votar seja em quem for.
O
que Antônio Mariz, em sua longa vida pública, fez a favor
dos ciganos não está muito claro. Ao que tudo indica,
não fez nem mais nem menos do que aquilo que qualquer
político do interior faz para seus eleitores, só que
incluindo entre eles também os ciganos: "Antônio
Mariz é o único homem que fala a nosso favor, que nos
quer bem", "nós não deixa ele para ninguém", e várias vezes ouvimos
a já citada observação de que ele trata os ciganos como
gente. Mas para nosso tema - os acampamentos -
importante é a frase: "Enquanto
Mariz viver, a gente não sai daqui" e, segundo
outro, "Se
Mariz morrer, a gente vai-se embora daqui".
Para os ciganos
terem
tanta veneração por Antônio Mariz, obviamente
o senador deve tratá-los de maneira diferente e melhor
do que os outros políticos da região. [Antônio Mariz
faleceu em 1995, pouco depois de ter sido eleito Governador
do Estado da Paraíba; os ciganos continuam em Sousa, e
continuam votando nas eleições!].
O
conflito entre PM e VVN, acima citado, já é relativamente
antigo, embora ainda não saibamos exatamente os motivos
disto. Mas não resta dúvida que PM cometeu um pecado
mortal ao candidatar-se, em 1992, a vereador e apoiar
um candidato a prefeito da "oposição", isto
é, contrário ao candidato apoiado por Antônio Mariz.
Basta dizer que PM obteve apenas 9 votos, o que significa
que nem o seu "povo", nem a sua própria família
votou nele. Foi depois disto que PM cercou a sua casa,
transformando-a numa pequena fortaleza que ao mesmo
tempo se tornou uma quase-prisão, da qual dificilmente
sai.
Derrotado
não apenas politicamente, mas também moralmente, PM acredita
que está ameaçado de morte e que não resta outra solução
a não ser sua saída de Sousa. Daí ele solicitar a nossa
intervenção junto às autoridades competentes para
resolver este problema. Ao ser perguntado sobre quantas
pessoas o acompanhariam, se saisse, a resposta foi cerca
de dez casais com em torno de cem pessoas. Estes números
foram depois confirmados por ciganos de outro rancho.
A
criação de um acampamento (rancho) único para os atuais
ciganos de Sousa encontraria logo um grave obstáculo
neste conflito de PM com VVN (e por extensão com JVA).
As relações entre VVN e JVA, hoje, são boas, melhor
dito, normais, ou seja ainda sem problemas.
A
construção, em Sousa, de uma espécie de "conjunto
habitacional cigano" precisaria de uma área bem
maior do que para a população não cigana, porque teria
que deixar espaços bastante grandes entre as casas a
serem construídas para os membros de cada um dos três
ranchos. E os construtores teriam que saber exatamente
quantas casas a construir para cada "família"
ou "turma". Temos notícias de que pessoas bem
intencionadas estão planejando a construção de "casas
para os ciganos", não se sabe ainda aonde, nem como,
nem quando, e se estas casas serão doadas, financiadas
etc.
Não consta que estes "planejadores" das
casas ciganas tenham realizado pesquisas a respeito
dos problemas, conflitos e valores culturais ciganos,
nem sobre o tipo de casa desejada e mais apropriada para
os ciganos.
Se
este "conjunto habitacional cigano" algum dia
sair da prancheta (o que duvidamos muito), certamente
serão construídas casinhas minúsculas, com salinhas
de alguns poucos metros quadrados, um banheirinho com
vaso sanitário e um espaçozinho muito bonito para a cozinha,
com lugar apropriado para colocar um fogão a gás, mas
não para a geladeira. Naturalmente colocarão uma casinha
bem junto à outra, sem espaço para futuras ampliações.
Certamente nenhum dos planejadores e arquitetos levará
em consideração que as casas ciganas precisam de pelo
menos um amplo espaço (a sala) para hospedar eventuais
parentes de passagem pelo local, às vezes por um período
bastante prolongado; ninguém pensará no fato de os
ciganos de Sousa não terem dinheiro para comprar fogões
ou bujões de gás, e cozinharem apenas com lenha, o
que quase sempre é feito fora de casa, num terraço ou
numa latada anexa à casa, especialmente construída para
este fim. As casas ciganas precisarão de um amplo terraço
coberto, mas com certeza nenhum dos arquitetos ficou
tempo suficiente nos ranchos para estudar a posição
do sol, e principalmente a direção dos ventos, para
evitar, na medida do possível, que estes encham as panelas
de comida também com a poeira das áreas vizinhas, ricas
em excrementos animais e humanos, e que o calor logo
reduz a pó. Com certeza uma das causas de muitas doenças
encontradas entre os ciganos de Sousa.
Um
problema adicional será: aonde construir este "acampamento"
(ou conjunto habitacional) cigano? Nos locais onde estão
hoje? O problema é que os ciganos são proprietários apenas
de alguns poucos lotes ou casas. A quase totalidade
das casas está em terrenos invadidos. Como a prefeitura
local certamente não dispõe de recursos para desapropriar
terrenos, é provável que se planeja construir este "conjunto
habitacional cigano" na área mais periférica possível
da cidade, de preferência tão distante que os ciganos
desistam de incomodar ainda os habitantes da cidade
de Sousa.
Além
disto, a transformação dos três ranchos num "acampamento
oficial", ou o estabelecimento de um novo "acampamento
oficial" num terreno municipal em outro lugar, na
realidade significaria a criação de um "acampamento-para-os-ciganos-de-Sousa",
e não um "acampamento cigano", ou seja, um
lugar onde ciganos de qualquer origem possam estabelecer-se,
por um período determinado ou indefinido, mas sempre
temporário, desfrutando de uma infra-estrutura mínima,
principalmente de água e instalações sanitárias,
energia elétrica, assistência educacional e médica.
Na realidade, as atuais famílias ciganas residentes
em Sousa teriam o poder de vetar o acesso e a permanência
de outros ciganos ao local. Tratando-se de uma espaço
limitado, com recursos limitados, conflitos com outras
famílias ciganas seriam inevitáveis.
Um
dos chefes deixou claro que no seu rancho em hipótese
alguma toleraria a presença de ciganos estranhos,
isto é, de ciganos não pertencentes à sua "família".
Como ciganos inimigos foram citados, por exemplo, os
de Caicó, no Rio Grande do Norte, mas principalmente
os de Campina Grande e de Umbuzeiro, na Paraíba, inimigos
mortais. Um encontro com membros destes dois grupos
significa certeza de briga, e quase sempre morte, como
já ocorreu várias vezes em anos anteriores.
A
criação de um "acampamento oficial" talvez resolvesse
parcialmente alguns problemas dos atuais ciganos de
Sousa, mas de modo algum resolveria os problemas da população
cigana em geral, da Paraíba e de outros ciganos de passagem
pela Paraíba. Antes pelo contrário. Seria uma constante
fonte de conflitos. Além disto existiria o perigo de
outros grupos ciganos da Paraíba ou até de Estados vizinhos
serem expulsos para o "acampamento" em Sousa.
Ao
que tudo indica, as entidades governamentais atualmente
envolvidas na questão dos ciganos de Sousa (e apenas
os de Sousa, e não os ciganos da Paraíba!) têm baseado
sua ação no princípio talvez errôneo que os ciganos de
Sousa, sedentarizados por força das circunstâncias, para sempre queiram
ser sedentários
em Sousa.
A bem da verdade, alguns líderes ciganos talvez tenham
dado esta impressão, ao solicitarem "ajuda"
para suas famílias "radicadas" em Sousa. Parece
que, em momento algum, estas entidades tenham questionado
junto aos ciganos a vontade de eles desejarem voltar
a ser ciganos nômades ou semi-nômades, e quais as condições
necessárias para isto.
Já
vimos acima que os ciganos estão em Sousa graças e por
causa de Antônio Mariz e que sem a presença do senador
são capazes de abandonar a cidade e migrar para outro
lugar qualquer. A força do senador é tão grande que,
segundo um dos informantes, inclusive começariam a
"andar", a "peregrinar" de novo, se
Antônio Mariz assim ordenasse: "Se
o Doutor Antônio Mariz quiser, nós anda de novo; (mas)
o tempo gastou, o que tinha que dar para nós acabou".
Já vimos também que uma cidade pequena como Sousa
não tem capacidade para dar emprego para tantos ciganos.
Os
ranchos de Sousa, de fato, dão a impressão de ciganos
sedentários, de ciganos que definitivamente abandonaram
a vida nômade. Mas, segundo informam, muitos dos seus
parentes ainda andam pelo Nordeste. Por isso, é possível
que a solução para os ciganos, de Sousa e da Paraíba em
geral, não seja apenas criar acampamentos oficiais,
ou melhorar as condições dos ranchos nos quais vivem,
mas também, e principalmente, criar condições para que
possam retomar a sua antiga, e por muitos ainda desejada
vida nômade ou semi-nômade.
Todas
as pessoas às quais perguntamos sobre "a vida de
antigamente", tinham saudades da vida nômade,
"isto era vida,
de pé no chão...", "ninguém tinha doença, a
mulher paria e pouco depois já andava de novo; não
precisava de médico"; "hoje não dá mais, existe
muita doença, para qualquer coisa cigano precisa de médico,
de hospital"; "antes sofria mais, mas era mais
feliz do que hoje; antigamente tinha saúde completa,
hoje não tem mais". Antes, todo mundo "tinha
fartura, tinha comida, feijão, queijo, arroz",
que recebiam trabalhando nas fazendas ou era doado
pelo pessoal que tinha pena deles. Hoje não tem mais
isso, porque "também
os donos das fazendas e dos sítios passam necessidades".
Pior ainda: "Hoje somos moradores; não somos mais ciganos".
Considerações
finais.
Em todo mundo os antropólogos têm constatado que
programas assistenciais para populações com valores
culturais diferentes (índios, camponeses, grupos minoritários
etc.), elaborados quase sempre com a maior boa vontade
e com as melhores intenções humanitárias possíveis,
têm resultado em fracassos
ou até têm prejudicado as pessoas que se pretendia
"ajudar". Existe uma ampla bibliografia antropológica
a respeito.
Como
os antropólogos quase sempre são chamados depois, para
esclarecer as causas destes fracassos, e não antes
para estudar como evitá-los, e como quase sempre os culpados
do fracasso são os administradores e os executores dos
projetos e não as pessoas a serem beneficiadas, em todo
mundo as relações entre antropólogos e administradores
não costumam ser das melhores. Também o ciganólogo europeu
Liégeois se refere a este velho, e ao que tudo indica
insuperável problema ao afirmar que "antes de
decidir, é necessário estar de posse dos fatos",
mas o que se observa é que os administradores
costumam agir e elaborar projetos mirabolantes, sem
conhecer a realidade em que vivem as pessoas a serem
beneficiadas, e sem conhecer seus desejos, suas aspirações,
seus interesses, suas habilidades, seus valores culturais
e suas personalidades. O resultado final será, inevitavelmente,
o fracasso do projeto, cuja culpa será então atribuída
não à inépcia dos burocratas das instituições que elaboraram
e tenteram executar o projeto, mas à preguiça, ao
desinteresse, à apatia ou a outras características negativas
atribuídas aos ciganos, vítimas involuntários do projeto.
Enquanto estavamos realizando nossa pesquisa, outras
pessoas, após algumas apressadas visitas aos ranchos
ciganos e sem nada saber de experiências realizadas
no exterior ou no Brasil, já estavam em ação, elaborando
projetos para "melhorar" a vida dos ciganos.
Por enquanto, tudo não passa de vagos projetos em papel,
felizmente.
Mas
muitos futuros problemas poderiam ser evitados se, antes
da ação, estas instituições contratassem pesquisadores
sociais profissionais, honestos e devidamente habilitados,
e não pesquisadores amadores nem sempre honestos, para
um estudo mais aprofundado da realidade que pretendem
melhorar ou modificar. Bacharéis em História ou arquitetos,
por exemplo, por mais bem intencionados e por mais competentes
que sejam nas suas áreas, não são pesquisadores sociais
habilitados, porque nunca aprenderam métodos e técnicas
de pesquisa de campo. Mas, diz Liégeois: "Pesquisadores
acadêmicos são prejudicados pelo fato de que eles têm
que convencer os outros da utilidade de suas pesquisas.
(..) Pesquisadores dão a impressão de estarem mendigando
fundos, ao passo que deveriam ser considerados como
provedores de serviços. Parece justo e correto pagar
o arquiteto que constroi um prédio e um centro social
num acampamento (cigano), mas ninguém pensa em contratar
um antropólogo ou um sociólogo para, junto com os usuários,
refletir sobre a localização e a organização
do acampamento. Mais tarde é considerado essencial
ter uma equipe de assistentes sociais para ver se consigam
ajustar os usuários a um acampamento inadequado".
Como
auto-crítica não costuma ser uma característica de autoridades
burocráticas, os culpados pelo fracasso do programa
sempre serão considerados os próprios ciganos! Falando
de problemas semelhantes na Holanda, Willems e Lucassen
acrescentam: "A experiência mostra que os ciganos,
que antes são vistos como vítimas, no final terminam
sendo acusados de ter causado a miséria em que se encontram".
Esperamos que este nosso ensaio, apesar de todas suas
falhas, contribua para que o mesmo não aconteça também
com os paraibanos ciganos.
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