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FRANS MOONEN 

AS MINORIAS CIGANAS:

DIREITOS E REIVINDICAÇÕES

 

1. Rom, Sinti e Calon: os assim chamados “ciganos

 2. Direitos ciganos no Brasil 

 3. Os ciganos e a Organização das Nações Unidas

 4. O ciganos e o Conselho da Europa

 5. Os ciganos e a União Européia

 6.  O Movimento Cigano: Direitos e Reivindicações

 7. Direitos culturais

 8. Direitos linguísticos

 9. Direitos educacionais

 10. Novos tempos, novas esperanças 

 11. Considerações finais

Núcleo de Estudos Ciganos

E-Texto no. 3

Recife, 2000

 

1. Rom, Sinti e Calon: os assim chamados “ciganos”.

 

            Por volta do ano 1000, por motivos ainda ignorados, iniciou uma migração de indianos em direção ao Ocidente. Nada se sabe sobre estes primeiros migrantes, mas depois de passarem pela Pérsia e pela Turquia, no Século XIII, sua presença já é registrada na Grécia e em outros paises balcânicos. A partir do início do Século XV migram para a Europa Ocidental, onde geralmente dizem ser originários do “Pequeno Egito”, então uma região da Grécia, mas pelos europeus confundida com o Egito, na África.  Por isso, em vários países passaram a ser chamados “egípcios” ou “egitanos” , de que derivam, p. ex., os termos gypsy (inglês), gitan (francês), gitano (espanhol).  Mas sabemos que outros grupos se apresentaram como gregos ou atsinganos, como então eram chamados na Grécia, pelo que também ficaram conhecidos como ciganos (português), tsiganes (francês), zigeuner (alemão e holandês), zingari (italiano). 

            Hoje os ciganos, no entanto, costumam usar autodenominações completamente diferentes e distinguem pelo menos três grandes grupos:

            - os Rom, ou Roma, que falam a lín­gua roma­ni; são divididos em vários sub-grupos, com denominações próprias, como os Kalderash, Matchuaia, Lovara, Curara, Ursari e.o.; são predominantes nos países balcânicos, mas a partir do Século XIX migraram também para outros países europeus e para as Américas, inclusive para o Brasil;

            -  os Sinti, que falam a língua sintó e são mais encontrados na Alemanha, Itália e França, onde também são chamados Manouch;

            -  os Calon, ou Kalé, que falam a língua caló, os “ciganos ibéricos”, que vivem principalmente em Portugal e na Espanha, mas que no decorrer dos tempos se espalharam também por outros países da Europa e foram deportados ou migraram inclusive para a América do Sul.

Quase nada sabemos sobre os ciganos brasileiros na atualidade. As pesquisas até agora realizadas no Brasil provam a existência de ciganos de pelo menos dois grupos diferentes: os Calon que foram degredados ou migraram voluntariamente para o país, já a partir do Século XVI, e os Rom que vieram para o Brasil somente a partir de meados do Século XIX.[1] Nenhuma publicação trata de ciganos Sinti, mas que com certeza também devem ter migrado para o Brasil, junto com os colonos alemães e italianos, a partir do final do Século XIX.

Nada, mas absolutamente nada, sabemos sobre o número de ciganos nômades, semi-nômades e sedentários atualmente existentes no Brasil, nem sobre sua distribuição geográfica. Há quem, delirando e sem apresentar quaisquer provas, fala até na existência de 800 mil ou 1 milhão de ciganos no Brasil. No entanto, quaisquer estimativas sobre a população cigana brasileira não passam de meras fantasias. No Brasil, até hoje, nem o IBGE ou ou­tra instituição de pes­qui­sa demográfica, nem cientista al­gum tem feito um le­vantamento da população ciga­na.

Na Europa, onde vive a maioria dos ciganos,  os dados demográficos são igualmente duvidosos, mas de um modo geral estima-se que sua população está em torno de 10 a 15 milhões de pessoas. Os países com maiores populações ciganas são a Romênia (1.800 a 2.500.000),  Bulgária (700 a 800.000), Espanha (650 a 800.000) e Hungria (550 a 600.000).

            Desde sua chegada na Europa Ocidental, os ciganos têm sido vítimas de políticas anti-ciganas, em todos os países por onde passaram. “Cigano” virou palavrão;  ser “cigano” virou crime, o que em muitos países significava a condenação à morte. Ainda em pleno Século XX, os nazistas exterminaram cerca de 500.000 ciganos, um holocausto que os historiadores preferem esquecer. 

            Somente a partir da década de 60, com a crescente unificação da Europa, começam a surgir as primeiras políticas pró-ciganas, em documentos do Conselho da Europa e da União Européia. E também os ciganos, pela primeira vez na história, começam a reivindicar os seus direitos e a denunciar.

            Ainda vai levar algum tempo para estas novas idéias e políticas ciganas e pró-ciganas conseguirem atravessar o Atlântico e ficarem também amplamente conhecidas e discutidas no Brasil, não apenas por políticos e juristas, mas também por antropólogos e outros cientistas da área humanística.

            Este ensaio tenta apenas contribuir para uma maior divulgação, no Brasil, das políticas pró-ciganas e das reivindicações ciganas européias, quase sempre divulgadas em publicações de difícil ou impossível acesso para os juristas e cientistas sociais brasileiros, porque inexistentes em qualquer biblioteca universitária ou biblioteca pública. Por este motivo, vários documentos serão amplamente transcritos.



[1].    Veja R. Corrêa Teixeira, História dos ciganos no Brasil, Recife, Núcleo de Estudos Ciganos, 1999, 140pp.; E. M. Lopes da Costa, “O Povo Cigano e o espaço da colonização portuguesa – que contributos?”, IN: A. Gómez Alfaro, E.M. Lopes da Costa e Sh. Sillers Floate, Ciganos e degredos, Lisboa, Centre de Recherches Tsiganes / Comissão Européia, 1999, pp. 49-92

2. Direitos ciganos no Brasil.

 

            O Brasil talvez seja o único país do mundo no qual um cigano chegou a ser Presidente da República (Juscelino Kubitschek, 1956-60).[1] Mesmo assim, todas as Constituições Federais sempre ignoraram a existência de ciganos, e no Brasil não existem políticas anti- ou pró-ciganas, nem leis que tratam especificamente das minorias ciganas. Oficialmente, os Rom, Sinti e Calon nem sequer são considerados minorias étnicas, e como tais com direitos específicos, reconhecidos em diversas convenções internacionais, várias das quais promulgadas também no Brasil.[2]

            Após 1988, ocorreram algumas mudanças. A Constituição Federal do Brasil de 1988 atribuiu ao Ministério Público Federal a defesa também dos direitos e interesses indígenas (CF, Art. 232), antes atribuição exclusiva da Fundação Nacional do Índio. Um dos resultados práticos foi a criação, na Procuradoria da República, da Coordenadoria de Defesa dos Direitos e Interesses das Populações Indígenas/CDDIPI. Alguns anos depois, a Lei Complementar 75, de 20.05.1993, ampliou ainda mais a ação do MPF ao atribuí-lo também a proteção e defesa dos interesses relativos às comunidades indígenas e minorias étnicas (Art. 6, VII, “c”). Diante disto, em abril de 1994, a CDDIPI foi substituida pela Câmara de Coordenação e Revisão dos Direitos das Comunidades Indígenas e Minorias, incluindo-se nestas também as ‘comunidades negras isoladas’ (antigos quilombos) e as minorias ciganas.[3] 

            O MPF reconheceu logo que, para poder defender os direitos e interesses das minorias étnicas, precisava também da perícia dos antropólogos, pelo que em 1993 abriu concurso, pela primeira vez, para a contratação de dez antropólogos.

            Para a defesa das minorias indígenas, o MPF pode dispor de milhares de publicações sobre povos indígenas, escritas por dezenas de antropólogos brasileiros e estrangeiros que já realizaram ou estão realizando pesquisas de campo entre povos indígenas. Vários livros, ensaios e artigos tratam especificamente dos direitos indígenas. O MPF pode contar ainda com a colaboração voluntária de muitos destes antropólogos, como também de umas duas ou três dezenas de organizações não-governamentais de apoio aos povos indígenas, muitas delas ONG’s estrangeiras. Além disto, existe um órgão governamental – a FUNAI / Fundação Nacional do Índio – que tem como incumbência cuidar da defesa dos interesses indígenas, baseando-se na Lei no. 6.001/73, mais conhecida como o Estatuto do Índio..

            A defesa dos direitos e interesses das minorias ciganas, no entanto, é bem mais difícil e complexa, porque nas bibliotecas universitários os interessados procurarão em vão uma bibliografia nacional e estrangeira sobre ciganos, ou sobre direitos ciganos. Os antropólogos, historiadores, geógrafos, juristas e outros, quase sempre ignoraram a existência das minorias ciganas no Brasil. 

            No Brasil não existe uma legislação especificamente cigana. No entanto, na Constituição Federal de 1988 existem alguns artigos que, por extensão, dizem respeito também às minorias ciganas.

 

Direito à não-discriminação:

“Art.3º . Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil:

I – construir uma sociedade livre, justa e solidária;

IV – promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.”

“Art. 5º . Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza , garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade ....

XLII – a prática do racismo constitui crime inafiançável e imprescritível, sujeito a pena de reclusão, nos termos da lei. “

 

Direito à livre locomoção:

“Art. 5º . Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza ......

XV – é livre a locomoção no território nacional em tempo de paz, podendo qualquer pessoa, nos termos da lei, nele entrar, permanecer ou dele sair com seus bens.

 

Direitos culturais.

“Art. 215. O Estado garantirá a todos o pleno exercício dos direitos culturais e acesso às fontes da cultura nacional, apoiará e incentivará a valorização e a difusão das manifestações culturais.

# 1º  - O Estado protegerá as manifestações das culturas populares, indígenas e afro-brasileiras, e das de outros grupos participantes do processo civilizatório brasileiro.

Art. 216.  Constituem patrimônio cultural brasileiro os bens de natureza material e imaterial, tomados inividualmente ou em conjunto, portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira, nos quais se incluem:

I – as formas de expressão;

II – os modos de criar, fazer e viver;

III – as criações científicas, artísticas e tecnológicas ................

# 3º - A lei estabelecerá incentivos para a produção e o conhecimento de bens e valores culturais. “

 

            A Constituição Federal garante aos ciganos nascidos no Brasil os mesmos direitos dos outros cidadãos, pelo menos em teoria. Na prática, muitos destes direitos são constantemente violados, o que se manifesta na existência de estereótipos negativos, preconceitos e várias formas de discriminação das minorias ciganas pela população majoritária nacional. Porém, os ciganos, por constituirem minorias étnicas, também têm direitos especiais, citados em vários documentos internacionais, aprovados e promulgados também pelo Governo Brasileiro. Desnecessário dizer que também estes direitos especiais são constantemente ignorados e violados.

            A seguir trataremos apenas dos direitos e das reivindicações das minorias ciganas na Europa Ocidental, porque trata-se de um tema quase totalmente ignorado no Brasil, mesmo entre os assim chamados “ciganólogos”. Em parte porque a bibliografia sobre este assunto foi publicada em revistas e livros que dificilmente os brasileiros têm condições de adquirir ou de encontrar em qualquer biblioteca pública ou universitária.

            Este ensaio pode não agradar ao leitor que esperava encontrar informações sobre magia cigana, tarô cigano, e outros assuntos esotéricos supostamente ‘ciganos’, ou irresponsáveis generalizações sobre uma suposta “cultura cigana”, mas esperamos que possa servir de instrumento para futuras reflexões sobre os direitos ciganos no Brasil, e estimular a realização de pesquisas de campo por antropólogos e outros cientistas sociais brasileiros. Esperamos, ainda, que estes documentos ajudem também as organizações não-governamentais ciganas e pró-ciganas a definir e expressar melhor suas reivindicações, conforme o atual pensamento do movimento cigano internacional.

 

3. Os ciganos e a Organização das Nações Unidas.

 

Nos anos 30 e 40, na Alemanha nazista foram exterminados não apenas 6 milhões de judeus, como também cerca de 500.000 ciganos. Para evitar a repetição de atrocidades semelhantes, a Organização das Nações Unidas (ONU), criada logo após a guerra,  elaborou vários documentos genéricos sobre direitos humanos. O documento mais famoso (e mais desrespeitado) certamente é a Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948, que no seu primeiro artigo solenemente afirma que: “Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos ....”.[4] 

            Vários documentos posteriores da ONU tratam de discriminação e racismo. Em 1965, por exemplo, na Convenção sobre a Eliminação de todas as formas de Discriminação Racial, a ONU solicita mais uma vez que os Estados membros se comprometam

 

 “a proibir e a eliminar a discriminação racial em todas as suas formas e a garantir o direito de cada um à igualdade perante a lei sem distinção de raça, de cor ou de origem nacional ou étnica, principalmente no gozo dos seguintes direitos: a) direito a um tratamento igual perante os tribunais ou qualquer outro órgão que administra justiça; b) direito à segurança da pessoa ou à proteção do Estado contra violência ou lesão corporal cometida, quer por funcionários do Governo, quer por qualquer indivíduo, grupo ou instituição; ... d) direito de circular livremente e de escolher residência dentro das fronteiras do Estado.... ; e) direitos econômicos, sociais e culturais, principalmente: direito ao trabalho, à livre escolha de seu trabalho ...; direito à habitação...”. [5]

 

A Declaração de 1948, a Convenção de 1965 e vários outros documentos da ONU, no entanto, apenas tratam genericamente de direitos individuais, mas não de direitos coletivos, de direitos específicos de minorias nacionais, étnicas, linguísticas ou religiosas. Quanto a estas e outras minorias, em 1966, finalmente a Assembléia Geral da ONU aprovou o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos que, no Artigo 27, solenemente afirma que:

 

“Nos Estados em que haja minorias étnicas, religiosas ou linguísticas, as pessoas pertencentes a essas minorias não poderão ser privadas do direito de ter, conjuntamente com outros membros de seu grupo, sua própria vida cultural, de professar e praticar sua própria religião e de usar sua própria língua”.[6]

 

Estas poucas linhas tratam de um óbvio ululante, dos direitos mínimos que qualquer pessoa sensata possa imaginar para uma minoria. Mas mesmo assim, poucas minorias tiraram algum proveito deste ainda hoje sempre citado Artigo 27 porque os diplomatas da ONU não chegaram a um acordo sobre o que é uma minoria étnica, racial, nacional, religiosa, linguística ou outra. Ou seja: antes definiram alguns direitos básicos das minorias, mas depois nunca chegaram a definir, e na realidade acharam melhor não definir, o que é uma "minoria", apenas para não causar problemas diplomáticos e constrangimentos para determinados governos membros da ONU, renomados desrespeitadores dos direitos de suas minorias. Porque, recusando-se a definir objetivamente o que é uma "minoria" - mas desde já exluindo imigrantes, operários estrangeiros, refugiados, ciganos, índios e outros - não há como a ONU exigir que um governo qualquer cumpra as obrigações para com suas "minorias", ou então condenar e menos ainda punir um governo por causa dos maus tratos de suas minorias.[7] Naturalmente, em momento algum se falou e nem sequer se pensou nas minorias ciganas.

            Acrescenta-se, a título de curiosidade, que a ONU também não considerou "minorias étnicas" os povos indígenas americanos e outros povos nativos, cuja situação é tratada especificamente pela Organização Internacional do Trabalho (OIT), na sua Convenção 107 de 1957, sobre a Proteção e Integração de Populações Indígenas e Tribais, atualizada em 1989 pela Convenção 169 sobre Povos Indígenas e Tribais.[8]

            Nos documentos da ONU, os ciganos aparecem pela primeira vez em 1977, numa Resolução que exorta os países nos quais vivem ciganos a garantir-lhes os mesmos direitos dos outros cidadãos não-ciganos, e nada mais. Em 1979 a ONU reconhece a União Romani Internacional como organização não-governamental que representa os ciganos, dando-lhe status consultativo em 1993. [9]

Em 1992 a Comissão de Direitos Humanos da ONU divulga a Resolução 65 sobre “A proteção dos Rom”, na qual, em algumas poucas linhas, solicita estudos sobre os ciganos e medidas para eliminar a discriminação anti-cigana. E nada mais.

            Em resumo: a ONU nunca teve muito interesse em ciganos, nunca financiou pesquisas sobre ciganos, e nunca publicou qualquer livro sobre a perseguição e discriminação dos ciganos, na Europa, no Brasil, ou em outra parte do Mundo.

           

4. Os ciganos e o Conselho da Europa.

 

            O Conselho da Europa (CE) foi criado em 1949 e hoje (1999) são membros cerca de 40 países. É formado por uma Comissão de Ministros, que são os ministros de relações exteriores dos países membros, e uma Assembléia Parlamentar, com deputados nomeados pelos parlamentos dos países membros.

            Até hoje o CE divulgou umas 150 “Convenções” que tratam de direitos humanos, questões sociais e econômicas, educação, cultura, saúde, etc. A mais conhecida talvez seja a Convenção Européia de Direitos Humanos de 1950. De 1995 é uma Convenção sobre os Direitos das Minorias.

            Além de Convenções, o Conselho da Europa produz também Recomendações e Resoluções. Porém, não se trata de documentos jurídicos – como leis e decretos – que obrigam os países membros a determinadas atitudes ou ações, mas cada país é livre de adotá-las ou não. Ou seja, são apenas documentos com boas intenções, muitas vezes (quase sempre) sem qualquer efeito prático. Principalmente quando tratam de ciganos.

            O primeiro documento do Conselho da Europa que trata especificamente de ciganos, e que por isso merece ser amplamente transcrito, é a Recomendação 563 de 1969:

 

A Assembléia,

1. Constatando que a situação da população cigana na Europa é grave­mente afetada pelas mudanças rápidas da sociedade moderna que privam os ci­ga­nos e outros nômades de numerosas pos­sibilidades para o exercício de suas pro­fissões tradicionais, e que agravam suas desvantagens em matéria de instrução e de formação profissional;

2. Convencida que uma integração da população cigana na moderna so­cie­dade eu­ro­péia se impõe e que esta inte­gração exige uma ação combinada dos governos membros do Conselho da Europa;

3. Profundamente alarmada com o fato de que, muitas vezes, os esforços que visam melhorar esta situação têm malo­grado por causa de uma discrimina­ção contra os ciganos, devida ao fato de per­tencerem a um grupo étnico particular e incompatível com os ideais da Convenção Européia dos Direitos do Homem e da Declaração dos Direitos do Homem das Na­ções Unidas;

4. Consciente que a falta de terre­nos para acampamento ou de casas com boas aco­modações, como também de zo­nas de trabalho, de instalações es­colares e de possibilida­des de trabalho para os ciganos e outros nômades tem provocado frequentes fricções entre as famílias dos nômades e a população se­dentária;

5. Considerando que residências permanentes são, para os ciganos e outros nôma­des, condições quase necessárias para a aquisição de uma boa ins­trução e para a adapta­ção à socie­dade moderna;

6. Considerando que a falta de instrução, devida principalmente ao modo de vida iti­nerante dos ciganos e outros nômades, tem efeitos futuros, além dos fa­tores puramente mate­riais e finan­ceiros, sobre sua vida e sobre o clima social, efeitos que arriscam preju­dicar a longo prazo sua integração  na moderna socie­dade européia e sua aceitação como cidadãos com direitos iguais ;

7. Considerando que os progra­mas destinados a melhorar a situação dos ciganos de­vem ser elaborados em cola­boração e consulta com seus representan­tes;

8. Recomenda ao Conselho dos Ministros de incitar os governos mem­bros:

(I)  a tomar todas as medidas ne­cessárias para por fim à discriminação, nas leis ou nas práticas administrativas, contra os ciganos e outros nômades;

(II) no mínimo, a incentivar ati­vamente a construção, pelas autoridades competentes e em benefício dos ciganos e outros nômades, de um número sufici­ente de terrenos de acampa­mento munidos de instalações sanitárias, eletricidade, tele­fone, prédios comunitá­rios e equi­pamen­tos contra incêndio, como também de zo­nas de trabalho e situados perto de esco­las e de aldeias ou de cidades;

(III) a fazer com que, na medida do possível, as autoridades locais forne­çam casas às famílias dos nômades, so­bretudo nas regiões onde o clima torna os trailers impróprios para a residência permanente;

(IV) a estimular, já que não é possível frequentar as escolas existentes, a criação, perto dos terrenos de acampa­mento ou de outros lugares onde grupos de nômades se reu­nem regularmente, de classes especialmente destinadas a suas crianças, a fim de facilitar sua inte­gração nas escolas públicas, e a estabelecer uma ligação satisfatória entre os pro­gramas escola­res das crianças nômades e os pro­gramas do Ensino de Segundo Grau ou de outras formas de instrução mais avan­çadas.

            (V) a criar ou a melhorar as pos­sibilidades de formação profissional dos ciganos e dos nômades adultos visando melhorar suas atividades profissionais;

            (VI) a apoiar a criação de órgãos nacionais com a participação de repre­sentantes dos governos, das comunidades ciganas e nômades, como também de or­ganizações volun­tárias que defendem os interesses dos ciganos e de outros nô­ma­des, e a consultar estes ór­gãos quando da preparação de medidas que visam melho­rar a situação dos ciganos e de outros nômades;

(VII) a adaptar a legislação naci­onal em vigor para fazer com que os ci­ga­nos e ou­tros nômades tenham os mes­mos direitos da população sedentária em matéria de seguri­dade social e de cuida­dos médicos. [10]

 

Os 'considerandos' iniciais sobre a problemática dos ciganos na Europa são corretos e não há como negar que as posteriores recomendações são bem intencionadas. Mas trata-se apenas de recomendações que um governo aceita ou rejeita, e não de ordens a serem cumpridas. Por isso entende-se que, seis anos depois, foi constatado que pouca coisa tinha mudado, o que levou o Conselho da Europa a editar a Resolução (75)13, que acrescenta já alguns detalhes práticos.

A Resolução (75)13 fala apenas de "nômades", e não mais de "ciganos". Tradicionalmente os ciganos têm sido considerados nômades, mas há muito tempo a maioria absoluta dos ciganos é sedentária. Os índices de sedentarismo variam de país para país, mas alguns autores estimam que na Europa atual, o índice de sedentarismo cigano é em torno de 80-90%. Enquanto isto, sabe-se que o número de nômades (ou talvez melhor: viajantes ou itinerantes) não-ciganos em alguns países da Europa Ocidental, há séculos e ainda hoje, é superior ao número de nômades (viajantes ou itinerantes) ciganos.

Portanto, os autores da Resolução (75)13 podem até ter pensado em ciganos, mas a resolução trata dos nômades em geral, sejam eles ciganos ou não-ciganos, e não da maioria absoluta dos ciganos sedentários. Ou seja, o problema não eram os ciganos, mas os nômades, entre os quais, embora minoritariamente, também ciganos. A Resolução (75)13 lembra as preocupações expressas na já citada Recomendação 563 e recomenda aos governos as seguintes medidas:

 

A -  Política geral.

1. Devem ser tomadas todas as medidas necessárias, no quadro das le­gislações nacio­nais, para por um fim a todas as formas de discriminação contra as populações nô­mades.

2. Os preconceitos que formam a base de certos comportamentos e ati­tudes dis­crimi­natórias contra as populações nômades devem ser combatidos, no­tada­mente por uma melhor informação das populações sedentárias sobre as ori­gens, os modos de vida, as condições de exis­tência e as aspirações das popula­ções nômades.

3. A participação das populações nômades na elaboração e a implemen­ta­ção das me­didas que lhes dizem respeito deve ser favorecida e exercida nas con­dições previstas pela legis­lação nacional.

4. O patrimônio e a identidade culturais das populações nômades devem ser salva­guardados. (...)

B - Estacionamento e alojamento:

1. O estacionamento e a perma­nência dos nômades em terrenos equipa­dos de ma­neira a garantir normas satisfa­tórias de segurança, higiene e bem-estar devem ser facilita­dos e enco­rajados.

2. Como regra geral, estes terre­nos devem ser localizados próximos a ci­dades ou, no mínimo, de maneira a oferecer facilidades de acesso às comu­nica­ções, o abastecimento, a fre­quência escolar das crianças, o exercício de ati­vidades profissionais e outros contatos sociais.

3. A instalação de nômades que desejam sedentarizar-se, em alojamen­tos apropria­dos, deve ser facilitada.

C -  Educação, orientação  e treinamento profissional.

1. A escolarização dos filhos de  nômades deve ser encorajada pelos mé­todos mais apropriados e visando a inte­gração destas crianças no sistema escolar normal.

2. Ao mesmo tempo, a educação geral dos adultos, inclusive a alfabetiza­ção, deve ser favorecida, se necessário.

3. Os nômades e seus filhos de­vem efetivamente poder beneficiar-se das diferentes possibilidades existentes de orientação, de formação ou de reformação profissional.

4. Em matéria de orientação e de formação profissional, convém levar ao máximo em conta as aptidões e inclina­ções inatas destas populações.

D -  Ação sanitária e social:

1. A ajuda dada às pessoas nôma­des no quadro dos sistemas nacionais de ação sanitá­ria e social deve ser a mais completa possível, em cooperação com os serviços mé­dicos e soci­ais de qual­quer tipo.

2. Quando necessário, convém informar os trabalhadores sociais sobre os proble­mas das populações nômades et de promover a formação de trabalhadores sociais origi­nários de famílias nômades.

            3. As intervenções destes serviços devem ser concebidos de maneira que possam permitir a estas populações de integrar-se às organizações educati­vas, culturais, profissio­nais e recreativas abertas para a população em geral.

E. Seguridade social.

            1. Medidas apropriadas devem ser tomadas para evitar na medida do possível, que o modo de vida dos nôma­des não tenha como consequência de im­pedir, na prática, que eles se beneficiem das vantagens às quais legalmente têm direito em matéria de seguridade social;  es­tas medidas devem visar, em particu­lar, facilitar o cumprimento das formalida­des administra­tivas necessárias para re­ceber os benefícios da seguridade so­cial.

2. Os interessados devem ter acesso a uma informação apropriada so­bre seus direi­tos e deveres em matéria de seguridade social e convém ajudá-los a uti­lizar os serviços ofertados. [11]

 

Mais uma vez não faltam nobres intenções pró-nômades! Mas outra vez passaram-se seis anos, e pouca coisa melhorou para os ciganos, conforme admite o próprio Conselho da Europa, na Resolução 125 de 1981, na qual lamenta que na maioria dos países membros as autoridades locais e reginais não foram plenamente informadas sobre a Recomendação 563 e a Resolução 75(13) e nada fizeram para melhorar a situação dos nômades e dos ciganos. Por isso, mais uma vez segue uma longa lista de considerandos e bem intencionadas recomendações, nas quais os ciganos novamente são citados ao lado dos assim chamados "viajantes" não-ciganos. Vejamos o documento a partir do ‘considerando’ número 8:



[1].   Teixeira 1999, pp. 52-53

[2].    Por exemplo, a “Convenção sobre a eliminação de todas as formas de discriminação racial”, da ONU, 1965,  promulgada pelo Decreto no. 65.810 de 1969, ou o “Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos”, da ONU, 1966,  promulgado pelo Decreto no. 592 de 1992.

[3].   Atualmente 6ª Câmara de Coordenação e Revisão do Ministério Público, também chamada Câmara dos Índios e Minorias, cuja homepage (em construção) contém dados também sobre ciganos [www.prdf.mpf.gov.br/sextacamara] .

[4].    Mosca, J. e Aguirre, A. (orgs.), Direitos Humanos: pautas para uma educação libertadora, Petrópolis, Vozes, 1990, pp. 169-175; existem inúmeras outras edições da Declaração Universal dos Direitos Humanos, muitas vezes também denominada Declaração Universal dos Direitos do Homem.

[5].     Maia, L. Mariz, Legislação Indigenista, Brasília, Senado Federal, 1993, pp. 51-60

[6].     Mosca e Aguirre 1990, pp. 176-194

[7].    Capotorti, F., Study of the rights of persons belonging to ethnic, religious, and linguistic minorities, Geneve, United Nations, 1979, passim.; Packer, J., “On the definition of Minorities”, IN: Packer, J. & Myntti, K. (eds. ), The protection of ethnic and linguistic minorities in Europe, Abo/Turku, Abo Akademi University, 1995, pp. 23-65.

[8].    Maia 1993, pp. 23-50

[9].  Jiménez, D. L. Fernández, Situación y perspectivas de la juventud gitana en Europa, Barcelona, Instituto Romanò, 1996, pp. 16-17

[10].  Charlemagne, J. e Pigault, G. (eds.), Répertoire des textes législatifs et rélementaires concernant les Personnes Sans domicile Fixe, Paris, UNISAT, 1990, pp. 90-92 

[11].  Charlemagne e Pigault 1990, pp. 243-247; Liégeois, J.P., Gypsies and Travellers, Strasbourg, Council of Europe, 1987,  pp. 205-207 

"8. Notando que alguns destes problemas são devidos ao fato de que está ficando sem­pre mais difícil manter uma vida nômade na moderna sociedade euro­péia na qual a maioria dos direitos e das obrigações dos cidadãos está ligada à sua residência num lugar fixo e na qual o uso intensivo da terra, especialmente nas áreas urbanas mas também nas áreas rurais, deixa pouca oportunidade para es­paços abertos tradicionalmente usados pe­los viajantes, enquanto ao mesmo tempo a industrialização acabou com o valor de suas habilidades tradicionais que não são mais suficientes para ganhar seu sustento;  

9. Notando, por outro lado, que pessoas de origem nômade que foram mais ou me­nos forçadas a sedentarizar-se tem uma tendência de causar proble­mas devido à perda de sua iden­tidade cultural e social, que muitas vezes está liga­da ao modo de vida nômade, e são incapazes de adotar de um dia para outro os padrões sociais e culturais dos habitantes seden­tários da comunidade;

10. Convencida que progresso notável será alcançado somente quando for possível persuadir a opinião pública de que aos grupos minoritários - muitas ve­zes de origem étnica di­ferente e com um modo de vida diferente - deve ser re­co­nhecido o direito de viver entre nós em pé de igualdade e que eles têm os mes­mos direitos e obrigações como outros cida­dãos............;

11. Notando que somente realiza­ções materiais não irão melhorar a situ­a­ção en­quanto os preconceitos persistem, e que combater estes preconceitos cabe em especial às autoridades locais e regi­onais como também aos próprios viajan­tes, que devem se esforçar para informar outras pessoas sobre si mesmos, sobre sua identidade cultural e social e sobre os problemas por eles enfrentados;

13. Recomenda ao Conselho de Ministros:

IV. Estudar a viabilidade de se criar, no quadro do Conselho da Europa, um fundo de solidariedade afim de fi­nanciar as medidas gerais de assistência aos nômades, inclusive medi­das a serem tomadas para a promoção de sua identi­dade cultural. As contribuições dos Estados membros para este fundo devem ser pro­porcionais à sua população e sua renda per capita, in­dependente do número de viajantes (e ciganos), já que o pro­blema deve ser considerado uma herança co­mum européia. O fundo deve cobrir, em particular, os gastos feitos pelas mu­nicipa­lidades e regiões.

VI. estudar a viabilidade de se criar, no quadro do Conselho da Europa, um centro de informação sobre viajantes, como uma contribuição européia para a luta contra os pre­conceitos e as discrimi­nações e para compensá-los pelas injus­ti­ças sofridas no passado;  este objetivo, evidentemente,  deve ser perseguido em contato estreito com os nômades; o Centro deve provi­denciar informação não so­mente para os próprios nômades, como tam­bém para as municipali­dades e regi­ões envolvidas.

14. Exorta os governos dos Estados membros: II. a reconhecer os Rom (ciganos) e outros grupos nômades específicos tais como os Sami, como minorias étnicas e, consequentemente, garantir-lhes o mesmo status e as vanta­gens desfrutadas por ou­tras minorias; em especial quanto ao res­peito e a manutenção de sua própria lín­gua e cultura;

16. Exorta as autoridades locais e regionais: I . a tomar todas as medidas ne­cessárias para providenciar facilidades de acampa­mento e de habitação........ II. a criar, quando possível, as­sociações entre as municipalidades en­volvi­das, a fim de providenciar o equi­pamento necessário de maneira mais efi­ciente; III. a procurar a participação e a colaboração dos próprios nômades nes­tas medi­das e a permitir que participem ati­vamente na administração das facilida­des providencia­das; IV. a ajudar a superação de pre­conceitos, providenciando plena infor­ma­ção aos ci­da­dãos sobre as origens, modos e condições de vida e aspirações dos nômades ou, melhor ainda,  apoiar plenamente os viajantes (e ciganos) quando eles próprios organizam este tipo de infor­mação.

17. Exorta os próprios viajantes (e ciganos): I. a procurar dar  às outras pes­soas plena informação sobre sua própria identidade cul­tural e social, sendo esta informação a melhor garantia contra dis­criminação e precon­ceito;  II. a cooperar na busca de cami­nhos e meios para sua adaptação às inevi­táveis mu­danças na sociedade mo­derna, sem sacrificar sua identidade tra­dici­onal e seus valores; III. a aceitar um mínimo necessá­rio de constrangimentos administrativos  necessá­rios para que possam manter seu próprio modo de vida  nômade na nossa sociedade mo­derna. 

            18. Solicita ao Conselho de Cooperação Cultural: I. providenciar um estudo comple­to sobre problemas educacionais e de treinamento profissional para nôma­des........ II.  preparar, como parte de seu trabalho sobre educação intercultural, in­formação so­bre dossiês para professo­res da história, cultura e vida familiar de po­vos de origem nô­made nos Estados membros, semelhantes aos dossiês  in­forma­tivos para professores de crianças de imigrantes; III.  estudar a possibilidade de elaborar, se possível em cooperação com a Unesco, um programa específico de treinamento para professores visando habilitá-los ao ensino da língua rom (cigana).

20.  Solicita à Secretaria Geral do Conselho da Europa: III. tomar as medidas necessárias para a elaboração de um mapa euro­peu de acam­pa­mentos abertos para viajantes (e ciganos), indicando claramente as facilidades local­mente dis­poníveis, e com a finalidade de orientar não somente os próprios viajantes (ciganos), mas tam­bém (as autoridades)  municipais e regio­nais. [1]

 

            Ninguém pode negar que este documento trata de temas importantes a serem pensados e repensados, e se possível colocados em prática, também em outros países nos quais vivem minorias ciganas, inclusive no Brasil.  

            Saber se alguma recomendação tenha se tornado realidade, já é mais difícil. Parece que pelo menos na área da educação foram obtidos alguns resultados. Seja como for, em 1993 o Conselho da Europa acha necessário editar dois novos documentos sobre os ciganos: a Recomendação 1203 e a Resolução 249.

No início de 1993 o CE aprova a Recomendação 1201, que trata amplamente dos direitos das minorias, a serem incluídos na Convenção Européia de Direitos Humanos.  Este documento, no entanto, trata de ‘minorias nacionais’, conceito inclusive bem definido logo no Artigo 1, e que excluiria as minorias ciganas.[2] 

As organizações ciganas devem ter reclamado, porque logo depois, em fevereiro, o CE aprova a Recomendação 1203 que reconhece também os ciganos como minoria: “Os ciganos ocupam um lugar especial entre as minorias. Ao viverem dispersos pela Europa toda, sem poderem reivindicar uma nação própria, constituem uma autêntica minoria européia ....” , e informa que, embora os ciganos não sejam uma minoria nacional no sentido tradicional da palavra, todos os textos sobre os direitos das minorias também se aplicam aos ciganos.

Seguem depois 23 recomendações práticas no âmbito da cultura, da educação, da informação e da igualdade de direitos, além de algumas medidas gerais. No final solicita que, no Conselho da Europa, seja nomeado um defensor público, indicado pelas organizações que representam os ciganos, e cuja função seria verificar se as recomendações do Conselho estão sendo colocadas em prática, estabelecer contatos com os representantes dos ciganos, aconselhar os governos em assuntos ciganos, aconselhar os diversos órgãos do Conselho sobre assuntos ciganos, investigar as políticas governamentais e as violações aos direitos ciganos, além de investigar a situação dos ciganos apátridas ou de nacionalidade indeterminada.[3]

Em março de 1993, a Resolução 249 convide mais uma vez as autoridades locais e regionais: (1) a tomar todas as medidas necessárias para facilitar a integração dos Rom / Ciganos na comunidade local, providenciando habitação, áreas de estacionamento, educação, saúde, respeitando-se sua identidade e sua cultura; (2) promover a participação dos Rom / Ciganos nos projetos que visam esta integração; (3) facilitar e promover a comunicação entre ciganos e gadjé [nome genérico que os ciganos dão a todos os não-ciganos][4] através da informação global sobre os preconceitos de que os Rom / Ciganos são vítimas.

Seguem ainda umas duas dezenas de outras recomendações. No final solicita-se aos ciganos que dêem informações objetivas sobre sua identidade cultural e social, que respeitem as leis do país em que se encontram a fim de melhorar as relações com os gadjé e reduzir os conflitos interétnicos, que procurem cooperar com as autoridades locais e, finalmente, que criem uma associação européia que representa as comunidades ciganas junto aos governos e instituições européias. Estas recomendações fazem supor que, no fundo, os autores da Resolução 249 consideram, pelo menos em parte, os próprios ciganos culpados pela situação deplorável em que se encontram.[5]

Os documentos acima citados – e vários outros não citados - provam que nos países membros do Conselho da Europa existe uma grande preocupação com os direitos ciganos e interêsse na melhoria de suas condições de vida. O Conselho da Europa, inclusive, edita livros e uma revista sobre os ciganos na Europa.[6] Por outro lado, também deve ser reconhecido que até hoje suas bem intencionadas Recomendações e Resoluções surtiram poucos efeitos práticos.

 

5. Os ciganos e a União Européia.

 

A Comunidade Econômica Européia foi fundada em 1957 por seis países: Alemanha, Bélgica, França, Holanda, Itália e Luxemburgo, aos quais depois se juntaram Dinamarca, Irlanda e o Reino Unido (1973), Grécia (1981), Espanha e Portugal (1986), e Austria, Finländia e Suécia (1995).[7] A partir de 1993 passou a ser chamada União Européia, fazendo hoje parte dela os quinze países acima citados. Vários outros paises já solicitaram seu ingresso na UE, que deve continuar a crescer também no futuro.

Embora existam vários documentos da União Européia sobre racismo e xenofobia, e sobre “nômades” e “minorias” em geral, pouca atenção tem sido dada aos ciganos. Nos 28 documentos normativos sobre racismo e xenofobia publicados pela União Européia entre 1986 e 1996, apenas dois mencionam rapidamente os ciganos. O primeiro, de 1991, solicita “programas de ação específicos para os ciganos e outras comunidades itinerantes” , lembra a existência de outro documento sobre a educação de crianças ciganas e nômades, e solicita respeito pela forma de vida tradicional dos ciganos e outras comunidades nômades. O segundo, de 1995, comemorando o Holocausto, lembra “o holocausto dos judeus e o genocídio dos ciganos” (grifos nossos). E nada mais.[8] 

Um dos poucos documentos mais amplos da União Européia é a Resolução sobre a Situação dos Ciganos na UE, de abril de 1994, que repete muitos temas já vistos antes nos documentos do Conselho da Europa, mas acrescenta algumas novidades bem mais radicais, pelo menos no campo político. A Resolução informa, por exemplo, que "o povo Rom constitue uma das maiores minorias na União Européia" e recomenda aos governos membros que, na Convenção Européia sobre Direitos Humanos, os ciganos explicitamente sejam reconhecidos como minorias, um status lhes negado em muitos países da UE. Os ciganos devem ter ainda o direito de viajar livremente por todos os países da UE, como qualquer outro cidadão da UE.

A Resolução reconhece que em muitos países da Europa Central e Oriental os ciganos são perseguidos, e que portanto merecem ser tratados como refugiados, pelo que condena a política de repatriação compulsória praticada por alguns governos membros  - em especial a Alemanha e a França, embora não sejam citadas nominalmente - que tratam os ciganos como objetos e os revendem aos seus países de origem. Um recado direto para o governo alemão que pagou centenas de milhões de marcos para repatriar dezenas de milhares de ciganos romenos, (ex-)iugoslavos e outros para seus (supostos) países de origem. Para isto não hesitou em separar famílias inteiras, por exemplo, enviando o pai para a Macedônia (porque nasceu na Macedónia), a mãe para a Bósnia (porque nasceu na Bósnia), três filhos para a Sérvia (porque nasceram na Sérvia) e duas filhas para a Albânia (porque nasceram na Albânia). Qualquer semelhança com as antigas práticas nazistas (não) é mera coincidência. O governo francês preferiu pagar diretamente aos ciganos para voltar aos seus países de origem.

Logo a seguir a Resolução solicita aos países membros não expulsar ciganos que fugiram da Romênia e da ex-Iugoslávia mas, ao contrário disto, facilitar a sua entrada nos países membros.

O governo alemão, por sinal, não deve ter ficado nada contente, porque a Resolução solicita também que a Alemanha indenize "quaisquer ciganos e suas famílias vítimas da perseguição nazista", algo que, ao contrário de muitos judeus, até hoje só alguns poucos ciganos conseguiram. E no final recomenda aos ciganos a criação de uma organização cigana a nível europeu, e solicita aos governos membros dar apoio financeiro a esta organização.[9]

            Em maio de 1994 realizou-se em Sevilha, Espanha, com muita pompa e circunstância, o I Congresso Cigano da União Européia, que tratou principalmente de política educacional, política social, liberdades públicas e minorias.[10] 

            O mais importante talvez não sejam nem todas estas recomendações, mas o fato de a problemática cigana, finalmente, ter sido amplamente discutida também no Parlamento Europeu, com 626 deputados eleitos nos países membros, um deles o cigano espanhol Juan de Dios Ramírez-Heredia. Porém, enquanto permanecer esta mentalidade burocrática e diplomática, com belos discursos e documentos oficiais produzidos por pessoas talvez até bem intencionadas, mas que provavelmente nunca apertaram a mão de um cigano e não sabem absolutamente nada sobre os problemas práticos enfrentados diariamente pelas minorias ciganas, e enquanto tudo ficar apenas na base de recomendações e convites às autoridades locais, regionais ou nacionais, e não de ordens seguidas de sanções contra os infratores, os ciganos obviamente não podem esperar muitos resultados positivos, já que tudo depende da boa ou má vontade da população local e de seus representantes políticos, na quase totalidade dos casos declaradamente e comprovadamente anti-ciganos.

 

6. O Movimento Cigano: direitos e reivindicações.

 

            Após a II Guerra Mundial surgiram na Europa várias organizações ciganas, nacionais e internacionais. Algumas destas organizações tiveram vida curta; outras eram ou são compostas por apenas meia dúzia de ciganos e nenhuma delas - por mais belas que sejam suas auto-denominações - chegou até hoje a representar, de fato, todos os ciganos de um determinado país, e menos ainda todos os ciganos do Mundo.

            Na Alemanha existem organizações ciganas pelo menos desde 1952 quando foi fundada a Associação dos Sinti na Alemanha, depois chamada Associação dos Sinti Alemães. A mudança de nome não foi apenas um capricho momentâneo qualquer, mas significa que os Sinti (e outros ciganos) residindo na Alemanha, até então muitas vezes considerados 'apátridas', ou seja pessoas sem nacionalidade alguma (inúmeros ciganos perderam seus documentos de identidade ou de nacionalidade durante a II Guerra Mundial), e portanto "não-cidadãos", e como tais sem direitos de qualquer espécie, queriam ser reconhecidos e tratados como cidadãos alemães, e com os mesmos direitos destes. Na década de 80, várias associações regionais se uniram no Conselho Central dos Sinti e Roma, e depois também na União dos Sinti e Rom.

Na França surge a Associação dos Ciganos da França (1962), a Organização Nacional Cigana da França (1968), a União dos Ciganos e Viajantes da França (1980), a Federação Cigana da França (1981), o Movimento Federal Cigano (1992), além de outras mais.[11]

            Na Holanda foram fundadas, a partir de 1978, nada menos do que sete organizações ciganas (antes existiram ainda outras). No entanto, segundo Hovens, em geral eram pequenas organizações de uma pessoa ou uma família só, sem aceitação pelos ciganos em geral, nem sequer a nível local, e menos ainda a nível regional ou nacional. Em resumo: na prática não existe uma organização que representa e fala em nome de todos os ciganos holandeses. Muitas vezes os direitos reclamados por determinada pessoa ou família não correspondem ao que os outros ciganos desejam.[12]

Também em outros países da Europa nasceram inúmeras organizações ciganas, mas sua importância, na maioria das vezes, foi (e continua sendo) praticamente nula. Segundo estimativa de Liégeois, existiam em 1993 na Europa cerca de mil organizações políticas e culturais ciganas.[13] Portanto, não faltava quantidade, mas apenas qualidade. Crowe calcula que depois de 1991 surgiram quase mil organizações ciganas somente na Hungria, duzentas das quais registradas oficialmente, mas a maioria não tinha mais do que dois ou três membros e foi fundada somente para receber verbas governamentais.[14] O mesmo vale para inúmeras outras organizações ciganas (muitas vezes pseudo-ciganas) em outros países.

            Os problemas enfrentados por estas organizações não são poucos. Em primeiro lugar existe a enorme diversidade linguística que torna uma efetiva comunicação nacional ou internacional entre os ciganos praticamente impossível. Mesmo a nível nacional muitas vezes são falados vários dialetos ciganos diferentes. Não é sem motivo que os intelectuais ciganos estão preocupados com a unificação das inúmeras línguas e dialetos ciganos, através da criação de um romani estandardizado, uma espécie de "língua geral" cigana.

Em segundo lugar há a enorme variedade de problemas, aspirações e interesses familiares, locais, regionais ou nacionais: o que uma família ou grupo, ou os ciganos de determinado país podem achar importante, pode não ter o mínimo interesse para os outros, e os problemas de um não precisam ser, e quase nunca são, também os problemas dos outros.

Acrescenta-se, em terceiro lugar, que as estruturas políticas ciganas ainda são inadequadas para este tipo de organização, que sempre significa mudanças na cultura tradicional. As lideranças ciganas sempre foram a nível familial ou grupal e nunca tiveram uma organização política a nível regional, nacional, e menos ainda internacional. Mesmo os folclóricos auto-proclamados “reis” ciganos, que de vez em quando ainda teimam em aparecer, nunca tiveram poder real algum e só costumam ser levados a sério apenas pelos gadjé, mas nunca pelos próprios ciganos. Os atuais novos líderes ciganos, geralmente intelectuais com títulos universitários ou até professores universitários, que se comunicam com o Mundo cigano e não-cigano publicando artigos e livros, ou através da Internet, constituem uma ameaça para os líderes tradicionais, geralmente idosos analfabetos, pelo que será comum estes novos e jovens líderes serem acusados de trairem as ‘tradições’ ciganas.

Em quarto lugar, conflitos internos ainda podem surgir, e na realidade, sempre surgem, quando estas organizações passam a receber recursos financeiros de entidades não-ciganas civis, religiosas ou governamentais; acusações de apropriação indevida ou de corrupção serão quase inevitáveis.

E para terminar esta lista, em quinto lugar há o problema universal e não exclusivamente cigano, de rivalidades, ciúmes e competição entre as lideranças, conforme testemunha o professor universitário cigano Hancock: “Já se disse mais de uma vez que o maior problema é falta de gente suficientemente educada entre nós para organizar as coisas. Isso não é verdade; existem, sem dúvida, suficientes roma educados e preocupados para realizar a tarefa. O problema é [que] por alguma razão [somos levados] a querer atrapalhar em vez de ajudar aqueles de nós que estão progredindo. Como caranguejos dentro de um balde, quando alguém tenta subir para fora, os outros o agarram e puxam para baixo”.[15]

            Apesar de todas estas dificuldades práticas, financeiras, ideológicas e outras, surgiram organizações ciganas também a nível internacional. No início da década de 60 existia, em Paris, a Comunidade Mundial Cigana que, entre outras coisas, estava empenhada em obter do governo alemão indenizações por perdas e danos durante a II Guerra Mundial. A organização foi sumariamente extinta e proibida pelo general e então presidente De Gaulle que na época estava mais interessado numa reaproximação com o governo alemão do que em reparar injustiças e atrocidades cometidas contra os ciganos pelos alemães, e por sinal também pelos próprios franceses, durante a II Guerra Mundial. Apesar disto, já em 1965 foi criado, também em Paris, o Comité Internacional Cigano.

            Em 1971 é realizado, em Londres, o Primeiro Congresso Mundial Romani, com delegados de quatorze países. Neste Congresso, o termo genérico cigano é rejeitado e passa a ser substituído pelo termo Rom (adjetivo: romani). E assim, o Comité Internacional Cigano passa a partir de então a denominar-se Comité Internacional Rom; outras organizações nacionais e internacionais seguem o exemplo. Além de uma bandeira [duas faixas horizontais de tamanho igual, em cima azul (simbolizando o céu), em baixo verde (simbolizando a terra), com uma roda de carroça no meio (simbolizando o nomadismo)] e um hino internacional, são criadas cinco comissões: de assuntos sociais, educação, crimes de guerra, lingua e cultura.  

            O Segundo Congresso Mundial Romani foi realizado em 1978, em Genebra, com representantes de 26 países. Este Congresso contou até com a presença de políticos da Índia, a partir de então simbolicamente reconhecida como ‘a pátria-mãe’ de todos os Rom. Neste congresso é criada a União Romani (atualmente União Romani Internacional) que em 1979 é reconhecida como organização não-governamental, hoje com estatuto consultativo na Organização das Nações Unidas.

O Terceiro Congresso foi realizado em Gottingen, Alemanha, em 1981, com cerca de 300 delegados de 22 países, e o Quarto Congresso em Serok, perto de Varsóvia, Polônia, em 1990, com cerca de 250 delegados de 24 países.[16] Infelizmente não temos informações sobre o que foi discutido, planejado e resolvido nestes congressos ciganos internacionais.

No entanto, um importante documento trata amplamente de reivindicações e direitos dos Rom europeus. Trata-se da Ata do Congresso Internacional sobre Políticas Regionais e Locais Ciganas, realizado em Roma, em 1991, intitulada "Estratégias políticas para os Rom e Viajantes a nível mundial nos anos 90", que será amplamente transcrita a seguir.[17] Inicialmente este documento apresenta algumas considerações sobre direitos em geral'.

 

"Todas as estratégias políticas dos rom têm de combinar: (1) a aborda­gem dos direi­tos humanos; (2) a abordagem dos direitos das minorias; (3) a abor­da­gem do movi­mento social e do desen­volvimento comunitário. Embora estreitamente interrelaci­onadas, cada uma destas abordagens re­quer atitu­des distintas, técnicas de ação e diferentes redes de alianças, que po­dem ser promovidas em con­junto ou em sepa­rado por entidades governamentais, or­ganizações não-governamen­tais e por comunidades e associações rom.

A ABORDAGEM DOS DIREITOS HUMANOS promovida pela União Romani e pelas associações nacio­nais rom, combina a documentação, caso a caso, de violações dos direi­tos huma­nos dos rom com a atuação na defesa dos seus direitos civis e políticos, a par dos direitos dos cidadãos dos territórios onde os rom vivem. O direito ao nomadismo, por exemplo, é um direito humano e não um direito étnico.

Todos os programas e projetos respeitantes aos rom nos contextos con­cretos, naci­onais ou locais, têm de ser baseados, de forma explícita, em leis e pa­drões internacional­mente aceitos para os direitos humanos e liberdades básicas, e conduzidos de forma caute­losa pelas autoridades locais e nacionais, pelas ONG's (Organizações Não-Governamen­tais) e pelas pró­prias associações e co­munidades rom.

A luta contra o racismo e a dis­criminação dos rom tem hoje uma base política e le­gal mais específica definida por: (a) a Resolução n.21 adotada pela 43.sessão (agosto de 1991) da ONU, Subcomissão para a Prevenção da Discriminação e Proteção das Minorias; (b) o Artigo 40 do Documento Final do Encontro de Copenhague, de junho de 1990, Conferência sobre a Dimensão Humana, da Conferência de Segurança e Cooperação na Europa (CSCE); (c) a re­comendação referente à solução dos problemas específicos dos rom incluída no Relatório da Reunião dos Especialistas das Minorias Nacionais da CSCE, de julho de 1991.

De acordo com os compromissos assumidos pelos governos signatários destes do­cumentos, a administração da justiça não deve ser discriminatória. Se não existir ainda le­gisla­ção específica contra a discriminação e a violência étni­ca e racial, ela terá de ser adotada. Nesta questão pode ser solicitada ajuda ao Centro dos Direitos Humanos das Nações Unidas, ao Conselho da Europa e a outras or­ganizações que acumularam experi­ência na luta contra o racismo, a segregação e a discriminação.

Devemos consolidar e expandir a rede de cooperação entre as associa­ções rom e não rom de defensores dos direitos humanos, de especialistas em or­ganiza­ções oficiais e/ou aca­dêmicas e de sim­patizantes. A comissão de Helsínquia da União Romani tem de desempenhar um papel mais ativo neste contexto.

A ABORDAGEM DOS DIREITOS DAS MINORIAS tem de examinar o sen­tido para as comunidades e para o povo rom dos debates frequentes sobre o esta­tuto das mino­rias no mundo e, em especial, na Europa. Uma política tendente à promoção étnica e da identi­dade cultural dos rom tem de ser posta de forma ade­quada com as especificidades das comunidades rom, com as suas pró­prias dinâ­micas internas e com a sua arti­culação e interação nos variados contex­tos culturais e sociais do lugar onde vi­vem. (...)

A aceitação da diversidade dos grupos rom é um requisito prévio de qual­quer po­lítica acertada, a ser adotada nos casos locais e regionais, e das estra­tégias políticas das próprias associações rom.

Um programa de trabalhos espe­cíficos para a abordagem dos direitos das minorias incluirá problemas como os di­reitos dos rom a uma residência legal, à ci­dadania dos paí­ses onde vivem e à proteção de sua própria identidade cultu­ral contra todas as formas de racismo, e os direitos à educação e às atividades  cultu­rais nos dialetos rom para a repre­sentação coleti­va, pública, política, etc. O quadro específico, teórico e legal, para a pro­moção dos direitos das minorias relativos aos rom há de modificar-se de acordo com as especificidades políticas e só­cio-culturais dos países onde vivem os rom e de acordo com as variantes das suas próprias comunidades.

O fato de os rom não correspon­derem ao tipo "padrão" das minorias "nacionais" ou "históricas" tem contribu­ído para a negligência, discriminação e per­seguição que os tem acompanhado há muito tempo. Do mesmo modo, e de certa forma em paralelo com as rea­lida­des da variação cultural e da diferenciação dos rom dentro e entre as fronteiras dos paí­ses, os rom em toda parte, ou pelo menos os que são dados à política, exprimem cres­centemente o sentimento de que são um só e distinto povo que partilha traços culturais co­muns e perenes, modelos similares de interação com os ambientes multiculturais e proble­mas comuns, re­sul­tan­tes da expansão de atitudes preconcei­tuosas contra os ciganos, hosti­lidade ét­nica, rejeição, ódio racial e violência. (...)".

 

A seguir são discutidos vários direitos específicos, destacando-se os direitos culturais, os direitos linguísticos e os direitos educacionais.



[1].   Charlemagne e Pigault 1990, pp. 413-416; Liégeois 1987, pp. 207-211

[2].   I Tchatchipen, no. 4, 1993, pp. 11-15

[3].   I Tchatchipen, no. 2, 1993, pp. 16-20;  no. 11, 1995,  pp. 10-13

[4].   Nome genérico (e quase sempre pejorativo) que os ciganos dão aos não-ciganos; na Inglaterra usam também o termo “gorgio”, e na Espanha o termo “payo”. 

[5].   Ethnies,  no. 15, 1993, pp. 47-48

[6].  Entre os quais: Liégeois, J.P., Gypsies and Travellers, Strasbourg, 1987 (nova edição revista e ampliada em 1994; também publicado em várias outras línguas); a “Coleção Interface” ,  hoje com mais de dez livros publicados, quase sempre em várias línguas, alguns inclusive em romani; a revista Interface, que trata principalmente de assuntos educacionais.

[7].  Ramírez-Heredia, J. de Dios (org), Europa contra el racismo: repertorio de  iniciativas comunitárias (1986-1996),  Barcelona, Instituto Romanó,  s.d., p. 21

[8].  Ramírez-Heredia, s.d., pp. 301-375.

[9].  Interface  no. 19, 1995, pp. 20-23; I Tchatchipen, no. 7, 1994, pp. 28-37

[10].  I Congreso Gitano de la Union Europea, Sevilla, 18-24 de mayo de 1994, Barcelona, Instituto Romanó/Comisión Europea/Ministerio de Educación y Ciencia, s.d. , 494pp.

[11].   Liégeois, J.P., Roma, tsiganes, voyageurs, Strasbourg, Conseil de l’Europe, 1994, p. 246 

[12].  Hovens, P., Ethnic associations, cultural rights and government policy, Leiden, LUF-Conference (m.s.) 1990;  Hovens, P., “Les organisations tsiganes aux Pays-Bas”, Interface, no. 5, 1992, pp. 13-15

[13].  Liégeois 1994, p. 255

[14].  Crowe, D., A history of the gypsies of Eastern Europe and Russia, New York, St. Martin’s Press, 1995, p. 105 

[15].  Citado por Fonseca, I., Enterrem-me em pé: a longa viagem dos ciganos, São Paulo, Companhia das Letras, 1996, p. 331. Veja também Fernandez, A. Torres, “El Movimiento Asociativo Gitano”, I Tchatchipen, no. 6, 1994,  pp. 28-40.

[16].  Liégeois 1994, pp. 250 e segs.; Acton, T., Gypsy politics and social change, London, Routledge & Kegan Paul, 1974, pp. 231 e segs.

[17].  Revista Lacio Drom, suplemento do no. 1-2, 1992

 

7. Direitos culturais.

 

            A Declaração Universal dos Direitos dos Povos, de 1976, dedica uma seção ao "Direito à Cultura", na qual afirma: "Art. 13 - Todo povo tem o direito de falar sua língua, de preservar e desenvolver sua cultura, contribuindo assim para o enriquecimento da cultura da humanidade. Art. 14 - Todo povo tem direito às suas riquezas artísticas, históricas e culturais. Art. 15 - Todo povo tem direito a que se não lhe imponha uma cultura estrangeira".[1]

            Também a Conferência sobre a Segurança e Cooperação na Europa, em 1990, assim se pronunciou a respeito do assunto:

 

 32. Pertencer a uma minoria nacio­nal é assunto de escolha pessoal, e esta escolha não pode resultar em danos. As pessoas pertencentes a uma minoria na­ci­onal têm o direito de de expressar, de preservar e de desenvolver em plena li­berdade sua identidade étnica, cultural, linguística ou religiosa, e de manter e des­envolver sua cultura sob todas as for­mas, salvos de qualquer tentativa de as­simila­ção contra sua vontade. Em particu­lar, elas têm o direito de:

32.1. Utilizar livremente sua lín­gua materna, na vida privada como tam­bém em pú­blico.

32.2. Criar e manter suas próprias instituições, organizações ou associa­ções edu­cati­vas, culturais e religiosas, poden­do solicitar ajudas financeiras sobre­tudo lucrativas, e outras contribuições, inclu­sive ajuda pública, conforme a legisla­ção de cada país.

32.3. Professar e praticar sua re­ligião, inclusive possuir e utilizar objetos religio­sos, como também ministrar ensino religioso em sua língua materna.

32.4. Estabelecer e manter conta­tos entre si no seu país, como também manter con­ta­tos extra-fronteiras com ci­dadãos de outros Estados (da Comunidade Europeia), que têm em co­mum uma origem étnica ou nacional, um patrimônio cultural ou crenças religiosas.

32.5. Corresponder e trocar in­formações  na sua língua materna e ter acesso a estas informações.

            32.6. Criar e manter organizações ou associações no seu país e participar de ativi­da­des de organizações não-governamentais internacionais. (....)

33. Os Estados participantes protege­rão a identidade étnica, cultural, linguís­tica e re­ligi­osa das minorias nacionais que vivem em seu território e criarão as condições neces­sárias para promover esta identidade. Eles tomarão as medidas necessárias a este respeito, após ter rea­lizado as consultas apropriadas, e espe­ci­almente após terem entrado em con­tato com as orga­nizações ou associações destas minorias, conforme os processos de deci­são de cada Estado. Estas medidas deverão ser em conformidade com os princípios de igual­dade e de não-discriminação com respeito aos outros cidadãos do Estado partici­pante em questão. [2]

 

            Mais práticas são as medidas propostas pelos Rom no Congresso Internacional sobre Políticas Ciganas, em 1991:

 

"A única possibilidade de superar, desde já, a atitude hostil da população maioritá­ria para com os Rom e os Sinti passa por uma informação imediata e ob­jetiva que deve salientar não apenas os aspectos negativos do seu modo de vida, como sucede com fre­quência, mas sobre­tudo as origens, a história, a cultura e as tradições deste povo.

Afim de serem superados os pro­blemas que inevitavelmente irão surgir, é condição necessária considerar a cultura dos Rom e dos Sinti igual à cultura de cada um dos outros po­vos. Para realizar este desiderato é preciso:

1. recolher o máximo possível da tradição oral popular e conservá-lo, quer seja em forma literária quer seja em quaisquer das outras formas existentes. Destaque para contos, provérbios, fábu­las, canções, poesia e música;

2. criar um arquivo e um centro de documentação informativo dos mate­riais relati­vos a todos os aspectos da cultura e da história dos Rom e dos Sinti;

3. promover condições sociais e medidas políticas para que os Rom e Sinti possam proclamar livremente a sua identidade e diversidade étnico-cultural e desenvolver a sua cultura específica para poderem exprimi-la de forma concreta;

4. possibilitar a inserção da cultu­ra dos Rom e dos Sinti no âmbito da cul­tura maiori­tária superando o particula­rismo familiar onde se encontra hoje, uti­li­zando para tanto a rádio, a televisão, jornais, livros, música e espetáculos, e se possível também a língua cigana;

5. difundir conhecimentos sobre a história e a cultura dos Rom e dos Sinti em todos os níveis a partir da escola;

            6. promover a criação de associa­ções e organismos culturais ciganos, re­conhecidos a nível local, nacional e internacional, com os financiamentos apropria­dos;

7. inserir os programas das orga­nizações Rom e Sinti nos programas  da UNESCO, em pé de igualdade com outras organizações, inclusive quanto ao finan­ciamento.

            Na Terra há lugar para todos. Nenhum povo tem o direito de oprimir e discriminar um outro apenas porque este é diferente e vive em diáspora contínua. A única possibili­dade para uma convi­vência melhor consiste no respeito recí­proco de um pelo outro e, acima de tudo, pelas tradições culturais que cada povo tem o direito de conservar e desen­volver. Este princípio está, entre outros, consig­nado na Declaração Universal dos Direitos Humanos".

 

A sociedade majoritária, no entanto, só pode desenvolver respeito pela cultura daa minorias ciganas se conhecer os valores e as manifestações culturais ciganas. Mesmo na Europa são escassas monografias detalhadas e confiáveis sobre as culturas ciganas, escritas por antropólogos ou outros cientistas sociais, ciganos ou não-ciganos. No Brasil, então, são praticamente inexistentes.

            Em parte isto é devido às dificuldades peculiares de pesquisa de campo entre povos nômades, mas hoje, quando muito, só uns 10% dos ciganos ainda são nômades, inclusive no Brasil, e em boa parte também à falta de cooperação por parte dos próprios ciganos que, por motivos diversos, não costumam ser muito generosos quando se trata de fornecer informações sobre o seu modo de vida. É por este motivo que o Conselho da Europa, na Resolução 125/1981, exorta os ciganos “I – a procurar dar às outras pessoas plena informação sobre sua própria identidade cultural e social, sendo esta informação a melhor garantia contra discriminação e preconceito; II – a  cooperar na busca de caminhos e meios para sua adaptação às inevitáveis mudanças na sociedade moderna, sem sacrificar sua identidade tradicional e seus valores”.[3]

            Seria ideal se os ciganos brasileiros fizessem a mesma coisa, mas não é o que costuma acontecer. No Brasil, a cigana Aristicth reconhece que

 

“algumas vezes, fomos injustiçados; porém admito que esta culpa cabe somente a nós. Se nossos ancestrais tivessem tido a preocupação de informar e esclarecer as pessoas quanto aos nossos hábitos e costumes e que não pretendíamos agredir ninguém com a nossa maneira de ser, certamente muitas destas injustiças não teriam ocorrido". Mais adiante, no entanto, a autora está a favor de não revelar costumes ciganos a estranhos e afirma que: "É inadmissível que um não-cigano venha a conhecer mais as nossas tradições, hábitos e costumes do que nós mesmos".[4]

 

Ou seja, a kalderash Aristicth é declaradamente contrária a pesquisas realizadas por gadjé não-ciganos, incluindo antropólogos. Derrubar estas e outras barreiras que os ciganos, em defesa própria, no decorrer dos séculos e ainda hoje, levantaram entre si e a sociedade dominante, e que inclue o seu mutismo quando se trata de informar sobre sua cultura,  seus valores culturais e sua língua, não é tarefa fácil, mas também não é tarefa impossível.

 

8. Direitos linguísticos.

 

            O direito de falar uma língua própria é reconhecido em muitos documentos internacionais e em praticamente todas as constituições nacionais modernas. Se existem países que proibem seus cidadãos de falarem línguas ou dialetos diferentes da língua nacional oficial, serão poucos. De qualquer modo, não há como proibir o uso de línguas e dialetos diferentes e não-oficiais no uso diário, em casa ou na rua. Por isso, hoje em todos os países europeus os ciganos podem falar livremente suas línguas e seus dialetos, em casa ou na rua, embora o ensino nas escolas seja nas respectivas línguas nacionais, tanto na Europa Ocidental quanto na Europa Oriental.

            Na Europa existem dezenas de línguas e centenas de dialetos diferentes. Alguns países têm até mais de uma língua oficial. E esta enorme diversidade linguística contaminou também as línguas e os dialetos ciganos, que hoje são inúmeros.

Vejamos a seguir algumas das conclusões  e reivindicações do já citado Congresso Internacional sobre Políticas Ciganas e que são suficientemente claras quanto à importância da realização de estudos linguísticos:

 

"A língua é a expressão mais evi­dente da identidade de um povo. Ainda que minori­tária, toda etnia tem o direito de exprimir , conservar e desenvolver a sua própria língua. A perda da língua si­gnifica a perda da identidade cultural de um povo. Os grupos maioritá­rios tem a responsabilidade e o dever moral de as­segurar que este direito seja reconhecido para to­dos e posto em prática de maneira con­creta. Isto não é somente uma questão de proteção dos direitos de minorias, mas um meio de incrementar o respeito mútuo e o diá­logo, afim de evitar qualquer forma de conflito social e cultural. Tudo isto serve, sobre­tudo, para enriquecer o pa­trimônio cultural de cada comunidade.

Se a língua é expressão da cultura de um povo, quando uma língua não é conside­rada igual em dignidade à língua maioritária de um país, persistirá a im­possibilidade de aquela cul­tura comuni­car os seus valores positivos, ficando assim favorecida a recusa racista. O caso dos Rom é um exemplo que demonstra a vali­dade desta lei social geral.

Pelas razões expostas a língua romani reclama o seu direito de ser res­peitada em pé de igualdade com todas as outras línguas do mundo, julgando-se ne­cessário para con­cretizar este direito que seja favorecido o seu desenvolvimento por todos os meios tendo na devida conta as condições atuais do seu uso.

Estes dois propósitos devem ser perseguidos segundo as condições parti­culares de cada país, tendo em conta a situação real dos Rom.

O primeiro objetivo é fortalecer as diversas variantes étnicas da língua romani, como o kalderari, o lovari, o ro­mani eslovaco, etc. através de uma elabo­ração programá­tica da língua e pelo seu uso numa gama sempre mais vasta de fun­ções sociais.

O segundo objetivo é a criação gradual de uma língua padronizada que possa servir como meio de comunicação para todos os Rom do mundo, encon­trando os meios adequa­dos a sua difusão. Ambos os propósitos não são contraditórios, mas complementares e po­dem se des­envolver  em linhas parale­las.

Com efeito, a língua romani ape­sar de ter uma longa história que lhe permite remon­tar às suas origens india­nas, foi até há pouco tempo uma língua es­sencialmente oral, privada de uma forma literária. Todavia, atalmente sem­pre mais intelectuais rom e sinti sentem a ne­cessidade de se exprimir na língua ro­mani, ta­mbém por escrito.

Devido a exigências literárias estes intelectuais, em geral, optaram espon­taneamen­te pelo uso do seu próprio dialeto. Porém, por causa dos contatos inter­nacionais mais fre­quentes e amplos,  vai-se sentindo cada vez mais a necessi­dade e o interesse de haver uma língua unitá­ria de intercomunicação. A concreti­zação destes dois objetivos poderá reali­zar-se da seguinte forma:

1. Desenvolvimento das varieda­des étnicas, como um objetivo em si mesmo, um meio para a criação gradual de uma língua padrão:

            a) Investigação: - estudo e catalogação dos diale­tos de cada país e a elaboração de um mapa dos dialetos roma­ni, sem levar em conta as fronteiras dos Estados; - coleta do maior número possível de textos de todos os gêneros já publica­dos (narrações, bio­grafias, literatura, folclore, dados linguísticos, etc.); - análise dos materiais obtidos. Nota: este material tem uma im­portância fundamental não só por motivos teóricos, mas tam­bém por poder servir para fins didáticos e culturais. Nele se conserva a herança cultu­ral dos Rom sendo o ponto de partida para todo o des­envolvimento futuro.

b) Educação: - elaboração de livros de textos, de material audiovisual e outros instru­mentos edu­cativos em língua romani; - tentativa de uso da língua romani nas escolas de primeiro grau, pelo menos como um meio auxiliar de ensino; a lín­gua romani como matéria facultativa; disci­plinas de estudos romani nas Universidades.

c) Cultura: - acesso aos meios de comunica­ção; - publicação de jornais, revistas, livros, etc.

            2. Padronização da língua: - formação de uma comissão de especialistas de vários países; - promoção da língua padrão numa área mais ampla; - publicação de textos na língua padrão (Boletim da União Romani, etc.) e de textos bilin­gues (padrão-variante étnica), em revistas literárias, na Enciclopédia Romani, etc.; - seminários de estudo de Verão.

 

            É indubitável que hoje existem cientistas ciganos com títulos universitários, ou ensinando em universidades, entre os quais também renomados linguistas. Por outro lado sabe-se que a diversidade linguística entre os ciganos é enorme, e muitas vezes num mesmo país são faladas dezenas de dialetos ciganos. Na Bulgária, por exemplo, são falados cerca de 50 dialetos romani.[5] Acrescenta-se a isto que, até há pouco tempo, praticamente nada existia escrita e publicada em línguas ciganas. Livros, jornais e revistas em romani são um fenômeno muito recente e seus editores costumam enfrentar as mais diversas dificulades.[6] Daí a necessidade da participação também de linguistas não-ciganos. Mais uma vez, no entanto, os linguistas - ciganos e não-ciganos - têm que enfrentar o mutismo, ou até a aberta hostilidade dos tradicionalistas que quase sempre ignoram as políticas linguísticas do movimento cigano internacional. Como representante tradicionalista pode ser citada, mais uma vez, a cigana brasileira Aristicht:

 

"Por ser uma língua sem escrita (ágrafa), é passada de pais para filhos, e esse direito é só nosso. Por isso, é extremamente proibido ensinar o nosso idioma para pessoas não-ciganas. Todo cigano autêntico conhece esta proibição" .... "Estudiosos e até mesmo ciganos "ou pessoas que se dizem de origem cigana" escreveram dicionários do nosso idioma. O que me causa espanto é que estas pessoas demonstraram não ter qualquer conhecimento de causa, pois,  se o tivessem, não o fariam. Mal sabem eles que puseram em risco nossa segurança e até mesmo nossa sobrevivência. Se pessoas não-ciganas aprenderem nosso idioma, como poderemos identificar os verdadeiros ciganos? Pesquisaram ou se informaram se nós estaríamos de acordo? Não! Simplesmente apossaram-se da nossa cultura como se fossem os donos. (...) Gostaríamos de informar aos desavisados e aos que, por pura vaidade pessoal o fazem, que não publiquem "novos dicionários". Digo e afirmo, não somente em meu nome, mas em nome do povo cigano, que não queremos e nem é do nosso interesse ter o nosso idioma popularizado" .[7]

 

            A cigana brasileira – certamente sem saber, ou ter como saber, o que se passa atualmente na Europa e no Mundo - está remando na contra-mão da História, publicando idéias totalmente contrárias às dos intelectuais e líderes ciganos reunidos no já citado Congresso de 1991:

 

“Os três grupos de trabalho (língua, cultura e escola, reunidos conjun­ta­mente) reco­nhecem que a língua é um ponto focal de encontro e interesse co­mum que é, de certo modo, prioritário. (...) Na verdade, todos estão de acor­do sobre a necessidade de se chegar, gradualmente, à criação de um padrão linguístico através de um procedimento que não esqueça a riqueza das variedades e respectiva validade nas utilizações imedia­tas e individuais.

 A padronização pode também ser atingida com a passagem por patama­res inter­medi­ários que levam em conta as variantes regionais.. Assim, por exem­plo, entre as am­plas diver­sidades dialetais existentes na Itália, podem ser reco­nheci­das variedades "regionais" cujas frontei­ras extravasam o território do país. De fato, os dialetos sinti estão difundidos para além da Itália em vários países centro-europeus e no leste constituindo-se numa espécie de denomi­nador comum de fa­lares diversos, mas assaz similares. (...)

Um primeiro projeto é o da compilação de um dicionário ilustrado, com palavras co­muns (palavras antigas) dos dialetos romani, nas várias grafias até agora adotadas, que sirva de ponto de partida para estudos ulteriores e, acima de tudo, para fazer a língua al­cançar di­gnidade a partir de seu uso nas escolas. Um passo inicial será a elaboração de uma primeira lista de palavras que se fará circu­lar entre estudiosos dos vários países no intúito de se alcançar uma lista final, na qual se baseará o próprio dicio­nário. Um segundo projeto prevé a ex­perimentação de material didático sobre a língua, em classes piloto de vários paí­ses, de modo coordenado, com sucessi­vos encontros desti­nados a avaliar os re­sultados conseguidos.

 

            Muitos ciganos certamente subscreverão a opinião de Aristicht, mas muitos outros não. Hovens informa que também os "Sinti holandeses evitam cuidadosamente que sua língua seja aprendido por estranhos, e menos ainda que [nas escolas] esta seja ensinada por gadjé".  Por isso, os Sinti holandeses nunca pediram o ensino de sua língua nas escolas, apesar de suas crianças reconhecidamente sempre mais estarem esquecendo a sua língua, já que em casa, na rua e na escola falam apenas o holandês.[8]

            Apesar de tudo, pelo menos na Europa, os intelectuais ciganos continuam incansavelmente seus estudos linguísticos, ignorando as acusações dos tradicionalistas. Só falta mesmo a cigana Aristicht (ex-Aristides) acusar de traidor o mundialmente conhecido deputado cigano espanhol Juan de Dios Ramírez-Heredia, autor de vários excelentes livros sobre ciganos, inclusive de uma “Gramática Cigana”, que pode ser livremente consultada por ciganos e não-ciganos, inclusive pela Internet.[9] E em hipótese alguma, e em parte alguma do mundo, o “povo cigano” está ameaçado de extermínio por causa desta gramática! Antes pelo contrário!

  

9. Direitos educacionais.

 

Na Convenção da Unesco, de 1960, relativa à luta contra a discriminação no campo do ensino, os Estados membros convêm que:

 

“Deve ser reconhecido aos membros das minorias nacionais o direito de exercer atividades educativas que lhe sejam próprias, inclusive a direção das escolas e .... o uso ou ensino de sua própria língua desde que, entretanto: (I) esse direito não seja exercido de uma maneira que impeça aos membros das minorias de compreender a cultura e a língua da coletividade e de tomar parte em suas atividades ou que comprometa a soberania nacional; (II) o nível de ensino nessas escolas não seja inferior ao nível geral prescrito ou aprovado pelas autoridades competentes; e (III) a frequência a esses escolas seja facultativa”.[10]

 

Na Europa, o assunto já tem sido discutido há algum tempo, e várias soluções práticas já foram sugeridas para o problemático ensino de populações nômades. Apesar disto, o índice de analfabetismo entre os nômades continua alto em praticamente todos os países. Um dos primeiros documentos oficiais sobre a educação de minorias é a a Recomendação 563/69, na qual o Conselho da Europa:

 

“Considerando que a falta de instrução, devida principalmente ao modo de vida itinerante dos ciganos e outros nômades, tem efeitos futuros, além dos fa­tores puramente materiais e finan­ceiros, sobre sua vida e sobre o clima social, efeitos que arriscam preju­dicar a longo prazo sua integração  na moderna socie­dade européia e sua aceitação como cidadãos com direitos iguais ;

            - a estimular, já que não é possível frequentar as escolas existentes, a criação, perto dos terrenos de acampa­mento ou de outros lugares onde grupos de nômades se reu­nem regularmente, de classes especialmente destinadas a suas crianças, a fim de facilitar sua integração nas escolas públicas, e a estabelecer uma ligação satisfatória entre os pro­gramas escolares das crianças nômades e os pro­gramas do Ensino de Segundo Grau ou de outras formas de instrução mais avan­çadas.

- a criar ou a melhorar as pos­sibilidades de formação profissional dos ciganos e dos nômades adultos visando melhorar suas atividades profissionais” .[11]

 

Anos depois, na Resolução 75/13, o Conselho da Europa voltou a tratar do assunto:

 

            “O Conselho de Ministros .... consciente do fato de que a baixa taxa de escolarização das crianças nômades compromete gravemente suas possibilidades de promoção social e pro­fissional ... recomenda: Educação, orientação  e treinamento profissional.

1. A escolarização dos filhos de  nômades deve ser encorajada pelos mé­todos mais apropriados,  visando a inte­gração destas crianças no sistema escolar normal.

2. Ao mesmo tempo, a educação geral dos adultos, inclusive a alfabetiza­ção, deve ser favorecida, se necessário.

            3. Os nômades e seus filhos de­vem efetivamente poder beneficiar-se das diferentes possibilidades existentes de orientação, de formação ou de reformação profissional.

4. Em matéria de orientação e de formação profissional, convém levar ao máximo em conta as aptidões e inclina­ções inatas destas populações”. [12]

 

E em 1981 o Conselho da Europa, na Resolução 125/81,

 

  ....“solicita ao Conselho de Cooperação Cultural: I. providenciar um estudo comple­to sobre problemas educacionais e de treinamento profissional para nôma­des.....; II. preparar, como parte de seu trabalho sobre educação intercultural, in­formação sobre dossiês para professo­res da história, cultura e vida familiar de po­vos de origem nô­made nos Estados membros, semelhantes aos dossiês  in­forma­tivos para professores de crianças de imigrantes; III. estudar a possibilidade de elaborar, se possível em cooperação com a Unesco, um programa específico de treinamento para professores visando habilitá-los ao ensino da língua rom (cigana)”.[13]

 

Isto é feito num “Seminário sobre o treinamento de professores de crianças ciganas”, realizado em Donaueschingen, em 1983, que aprova a seguinte resolução:

 

"Considerando: as precárias condições de aten­dimento escolar para crianças ciganas e nômades;  a importância da educação es­colar para o futuro cultural, social e econômico destas cri­anças;  as exigências legítimas dos ci­ganos e povos nômades, ansiosos de que sua cul­tura e seu futuro sejam respeita­dos; as exigências legítimas dos professores, em especial quanto ao trei­namento ini­cial e posterior e à informa­ção adequada; a natureza conflitual do contato entre povos ciganos e nômades e a popu­lação envolvente; a magnitude e a importância das imagens negativas a respeito destes po­vos, so­bre os quais ainda muitos concei­tos errôneos prevalecem.

Recomenda: que sejam tomadas todas as medidas apropriadas para assegurar o treinamento inicial e posterior de profes­sores afim de habilitá-los com um método pedagógico adaptado a mi­norias cultu­rais;  que a matrícula de crianças ci­ganas e nômades em escolas normais - a tendên­cia atual de educação intercultural - sempre seja acompanhada de treina­mento adequado dos professo­res e a adaptação dos currículos e das estruturas escolares; que a língua e a cultura cigana sejam usadas e respeitadas da mesma forma como as lín­guas e as culturas regi­onais e aquelas de outras minorias; que sejam estabelecidos víncu­los entre as escolas e as famílias ciganas, no inte­resse de uma participação genuina; que aos professores ciganos seja garantida prioridade no ensino de crian­ças ci­ganas; que em escolas com grande nú­mero de crianças ciganas,  a equipe de auxiliares inclua pessoas de cultura ciga­na.

Recomenda, ainda: que em cada Estado um grupo de ciganos e nômades ... prepare material apro­priado para documentação e refle­xão, e o divulgue por todos os meios possíveis entre professores, es­colas, as­sociações ciganas e não-ciganas, associ­ações famili­ares, assistentes sociais, au­toridades locais, etc. ; que sejam formados grupos lo­cais, compostos de ciganos, professores, assisten­tes soci­ais, representantes das autoridades locais, etc.,  para mediar e planejar; estes grupos pro­porcionarão um forum  para discussão e reflexão entre as várias partes envolvidas; que, como regra geral, toda ação de natureza educacional e informativa seja ela­borada e implementada consul­tando-se os próprios ciganos, e que seja baseada num conhecimento exato da situ­ação concreta.[14]

 

            O Conselho da Europa volta a pronunciar-se na Resolução 153/89, após uma reunião com os Ministros de Educação das Comunidades Européias, e que mostra claramente a gravidade do problema: 

 “considerando que os ciganos e os viajantes constituem atualmente na Comunidade uma população de mais de um milhão de pessoas e que , depois de mais de 500 anos, sua cultura e sua língua fazem parte do património cultural e lin­guístico da Comunidade;

considerando que a situação atual, de maneira geral e em particular na setor edu­cacional, é preocupante; que somente 30 a 40% das crianças ciganas e viajan­tes frequen­tam a escola com alguma regu­laridade; que a metade jamais é escolari­zada; que uma per­centagem muito peque­na atinge e ultrapassa o ensino de segun­do grau;  .... que a taxa de analfabetismo entre os adultos muitas vezes ultrapassa 50% e em certas regiões atinge 80% e mais;

considerando que mais de 500.000 crianças estão envolvidas e que este número constantemente deve ser re­visado para cima em razão da juventu­dade das comunidades dos ciganos e viajantes, a metade dos quais tem menos de 16 anos;

considerando que a escolarização, notadamente por causa dos instru­mentos que ela pode fornecer para a adaptação a um meio em transformação e para a auto­nomia pessoal e profissional, é um passo inícial fundamental para o fu­turo cultural, social e econômico das comunidades ci­ganas; (...)

Adotam a seguinte resolução:

Os  Estados membros se esforçarão para promover:

a) as estruturas: apoio aos estabelecimentos escolares, proporcionando-lhes as facilidades ne­ces­sárias para que possam acolher as crianças de ciganos e viajantes; apoio aos professores, aos alunos e aos pais;

            b) a pedagogia e os materiais didáticos: experimentação com ensino à distância, que possa responder melhor à realidade do no­madismo; desenvolvimento de formas de acom­panhamento pedagógico;  medidas visando facilitar a passagem da escola à educação/formação perma­nente; atenção para a história, a cultura e a língua dos ciganos e viajantes; emprego de novos meios (educacionais) eletrônicos e de vídeo; material didático para os estabeleci­mentos escolares que se dedicam à esco­lari­zação de crianças de ciganos e viajan­tes;

            c) o recrutamento e a formação inicial e contínua dos professores: formação contínua e complementar adaptada para os docentes que trabalham com crian­ças de ciganos e de viajantes; formação e emprego, quando possível, de docentes originários da população ci­gana ou de viajantes;

d) informação e pesquisa: intensificação de ações de documentação e informação de esco­las, docentes e pais, e  estímulo à pesquisa sobre a cultura, a história e a língua dos ciga­nos e dos viajantes.[15]

 

Um ano depois, o tema é discutido na Conferência sobre a Segurança e a Cooperação na Europa, quando se solicita aos Estados-membros

 

“esforços para garantir que as pessoas pertencentes às minorias nacionais, inde­pendente do fato de que elas devem aprender a língua ou as lín­guas oficiais do Estado em questão, tenham a possibi­li­dade de aprender sua língua materna como também, se possível e necessário, de utilizá-la em suas relações com os poderes públicos, de acordo com a legisla­ção nacional em vigor. Nos estabelecimentos escolares, o ensino da história e da cultura  levará em conta também a história e a cultura das minorias nacionais”.[16]

 

Embora em muitas publicações se afirme que os ciganos dão pouco valor à educação formal, os participantes do Congresso Internacional sobre Políticas Ciganas, realizado em 1991, desmentem esta informação:

 

 “É importante recordar que a edu­cação é o meio fundamental de promo­ção da cul­tura e da aquisição dos instrumen­tos de adaptação ao meio; outrossim, é o instrumento principal para o desenvolvi­mento da autonomia. Por conseguinte, deve ser prestada a má­xima atenção à educação bem como às condições em que aquela se desenvolve.

O grupo de trabalho sobre a esco­la viu-se obrigado a constatar que, em toda a parte, a situação escolar das crian­ças rom e sinti é sempre muito difícil. As análises e as conclusões apresentadas durante os estudos e os encontros prece­dentes continuam válidos, em particular os trabalhos conduzidos no quadro das Comunidade Européia e do Conselho da Europa. Remetemos para aqueles traba­lhos e, especialmente, para o primeiro seminário dos professores ciganos, or­gani­zado na Espanha pela Comissão da Comunidade Européia e pelo Ministério espa­nhol de Educação. Devem ser desta­cados os seguintes fatos:

1. que estamos numa situação com caráter de urgência sendo necessário agir rapi­damente para melhorar as condições de escolarização em todos os níveis;

2. a língua, a história e a cultura dos Rom e dos Sinti não são suficiente­mente leva­das em consideração na esco­la;

3. as dificuldades resultantes da situação social e econômica impedem inúmeras famílias de enviarem os seus filhos à escola em condições aceitáveis;

4. estereótipos e preconceitos in­fluenciam negativamente o comporta­mento dos responsáveis políticos, dos professores, dos pais dos alunos, dos ou­tros alunos, e a rejei­ção continua a ser um componente importante da situação, consti­tuindo obstáculo de acesso à esco­las das crianças Rom e Sinti;

5. acrescenta-se que migrações constantes provocam a deslocação de famílias ci­ganas da Europa Oriental para a Ocidental; esta situação deve reforçar as ligações e as ações comuns entre a Europa de Leste e do Oeste no sentido de que o acolhimento escolar das crianças seja preparada nas melhores condições. (....)

Os programas da Comunidade Européia dirigidos aos Estados do Leste devem, também eles, favorecer esta cola­boração citando, de modo explícito, os Rom e os Sinti entre outros grupos consi­derados como prioritários. Entre as ações prioritárias, o grupo salienta:

1. a importância de um trabalho de harmonização da língua;

2. a importância da compilação de textos sobre a história dos Rom e dos Sinti des­tinados quer aos estudantes rom quer a outros, no âmbito de uma peda­go­gia intercultural;

3. a importância do ensino de língua materna às crianças desde o seu primeiro in­gresso na escola;

4. a importância de uma escolari­zação intercultural das crianças desde a mais tenra idade;

5. a importância da formação ini­cial e da preparação dos professores numa pers­pectiva intercultural com refe­rência à cultura romani;

6. a importância da formação de monitores e mediadores rom e sinti, que possam agir como intermediários entre os pais dos alunos e os responsáveis da es­cola para a in­formação e a coordenação das ações. Poder-se-á promover um cen­tro europeu para a for­mação destes medi­adores rom e sinti.

7. a importância da participação, sempre crescente, dos especialistas rom e sinti na elaboração e na execução das medidas para suas próprias comunidades”.

 

            A questão, no entanto, não é tão simples e muitas vezes as idéias dos intelectuais ciganos se chocam com aquilo que pensam os ciganos em geral. 

            Na Romênia pós-comunista o ensino continuou sendo obrigatório para todos, mas as crianças ciganas costumavam ser discriminadas nas escolas. E isto não somente porque muitas vezes não falavam direito a língua romena ou porque eram pobres e não possuiam as roupas apropriadas, mas apenas pelo fato de serem ciganos.  Em 1990/91 o Ministério da Educação iniciou o treinamento de professores aptos a ensinarem em romani (língua cigana), mas o programa teve pouco sucesso porque muitos pais ciganos não gostaram da idéia: “muitos pais temiam que classes ou escolas separadas somente marginalizariam ainda mais os ciganos, e acreditavam que a melhor oportunidade para seus filhos era esconder a sua origem étnica”. Nas palavras de uma mãe: “Não estamos interessados em escolas ciganas. Temos medo de sermos ainda mais marginalizados. Queremos ser mais integrados, sem sermos identificados como ciganos”. Ou conforme um líder cigano: “Não faz sentido existirem escolas romani separadas. Estamos na Romênia, e [por isso] devemos ser capazes de escrever e falar romeno. Na minha opinião, se tivessemos escolas [exclusivamente para crianças ciganas], teríamos somente conflitos. Seríamos marginalizados ainda mais”.[17]

Ou seja, nem sempre aquilo que os intelectuais ciganos (e não-ciganos) pensam corresponde àquilo que o “povão” cigano pensa, o que os ciganos discriminados e marginalizados pensam, aqueles ciganos que vivem em favelas, ou debaixo de viadutos, na Espanha, em Portugal e em outros tantos países.  

 

10. Novos tempos, novas esperanças.

 

            Pelo menos na Europa, os direitos ciganos estão sendo seriamente discutidos e vários países já têm legislações pró-ciganas. Resta saber se, e quando, o exemplo será seguido também no Brasil.  Por enquanto, nada está sendo feito. Numa carta ao então Secretário Nacional de Direitos Humanos, José Gregori, o cigano matchuaia Claudio Iovanovitch, presidente da Associação de Preservação da Cultura Cigana, Curitiba – Paraná, denuncia:

 

“ Na I Conferência Nacional de Direitos Humanos, que subsidiou o Programa Nacional de Direitos Humanos, houve aprovação de uma emenda, que incluía os ciganos, afirmando da necessidade de sermos reconhecidos, respeitados, e protegidos nos nossos direitos. Curiosamente, essa emenda não constou do programa nacional, e até hoje não conseguiram explicar direito porque.

Por que queremos, também nós, os ciganos, ser lembrados no Programa Nacional de Direitos Humanos? Primeiramente, porque entendemos que é importante sermos reconhecidos pelo Governo, como uma minoria étnica merecedora de respeito e proteção. Segundo, porque, já sendo tão discriminados no dia-a-dia, nos sentimos mais discriminados ainda, com essa recusa do Governo, em lembrar que nós existimos, como um grupo humano específico, dentro do conjunto dos grupos que formam os brasileiros.

O desconhecimento que as pessoas têm dos ciganos faz com que sejamos tratados por estereótipos, com tratamento assemelhado ao dispensado aos bandidos e ladrões.

A partir mesmo da Constituição de 1988, em que os ciganos estão abrangidos pela grande proteção dada pelos artigos 215 e 216, que manda preservar, proteger e respeitar o patrimônio cultural brasileiro. Este patrimônio é constituído pelos modos de ser, viver, se expressar, e produzir de todos os segmentos que formam o processo civilizatório nacional.

A propósito, o Decreto Nº 1.494, DE 17 DE MAIO DE 1995 (DOU 18.05.1995), que regulamenta a Lei nº 8.313, de 23 de dezembro de 1991, estabelece a sistemática de execução do Programa Nacional de Apoio à Cultura - PRONAC, diz no seu art. 3º que, para efeito da execução do Pronac, consideram-se: VIII - patrimônio cultural: conjunto de bens materiais e imateriais de interesse para a memória do Brasil e de suas correntes culturais formadoras, abrangendo o patrimônio arqueológico, arquitetônico, arquivístico, artístico, bibliográfico, científico, ecológico, etnográfico, histórico, museológico, paisagístico, paleontológico e urbanístico, entre outros”, e especifica como segmentos culturais (XIII) a j) cultura negra; e l) cultura indígena. Por que não m) a cultura cigana? Porque, lamentavelmente, ainda falta o reconhecimento do Governo do Brasil, e o tratamento igualitário, entre as minorias.

Com efeito, sob a expressão geral de “cigano”, qualificam-se minorias étnicas que a si mesmas chamam de calon, rom ou sinti.

Somos vítimas de muitos preconceitos. Para os citadinos, cigano muitas vezes é sinônimo de esperto, de vagabundo, ou de ladrão. Esse ranço histórico é cultivado, inclusive, pela literatura em torno de estórias e histórias vividas ou imaginadas. Assim como os judeus, ou os índios, ou os negros, ou os pobres, os ciganos são discriminados na sociedade.

Quais são os problemas que mais nos afetam?

Não temos acesso ao registro civil de nascimento, nem de óbito. Nosso nomadismo serve de pretexto aos titulares dos cartórios para dificultar e mesmo impedir sejam lançados os nascimentos dos filhos e filhas de ciganos.

Não temos direito de estacionar nossas caravanas, e estabelecermos nossos acampamentos provisórios, sem sermos molestados pelas polícias, e autoridades locais.

Nossas crianças não têm direito de freqüentar escolas, por conta da nossa maneira de viver. E quando nos sedentarizamos, vemos nossos filhos serem tratados como cidadãos de segunda classe, porque nossos valores culturais não são conhecidos nem são respeitados. [...]

Por que não aproveitar experiências avançadas de outros países, no campo do respeito aos direitos das minorias, e entre estas, dos ciganos? Portugal, por exemplo, já tem grandes avanços, com a facilidade de ter tudo na mesma língua materna que o Brasil, e com a possibilidade de utilização de troca de experiência, que enriqueça o esforço do Brasil, para respeitar efetivamente os direitos humanos de todos.”

 

            O Procurador Luciano Maia, do MPF, acrescenta que “até hoje a carta continua sem resposta prática do Governo Federal. A questão dos ciganos ainda não entrou na agenda oficial. [Além disto] não há uma entidade ou instituição de atuação nacional que trate da questão cigana, o que agrava a luta pelo reconhecimento dos seus direitos”. [18]

Por isso, para transformar todas as reivindicações ciganas em realidade, reivindicações estas que incluem o reconhecimento de seus direitos específicos como minorias étnicas, um longo caminho ainda terá que ser percorrido. Mas o que importa é que os próprios ciganos, após séculos de silêncio e resignação, finalmente começaram a levantar a voz, a reivindicar, a denunciar e a exigir os seus direitos. Inclusive, como vimos, no Brasil.

 

11. Considerações finais. 

            No Brasil quase não existe bibliografia nacional e estrangeira sobre os ciganos, nem nas livrarias, nem nas bibliotecas. O cadastro da Associação Brasileira de Antropologia menciona apenas duas dissertações de mestrado sobre ciganos, ambas da década de 70; uma terceira foi apresentada recentemente, em 1999. A situação é idêntica, ou ainda pior, nas outras áreas das ciências humanas. No Brasil, os cientistas sociais nunca deram a mínima importância aos estudos ciganos. A ignorância dos brasileiros sobre seus conterrâneos ciganos é estarrecedor, e até criança sabe que ignorância gera medo, que gera preconceito, que gera discriminação. Urge que os antropólogos iniciem o quanto antes pesquisas sérias sobre a situação dos brasileiros ciganos, sobre suas diversas culturas, sobre a discriminação da qual constantemente são vítimas. Cabe aos antropólogos acabar com a ignorância, porque enquanto esta persistir, será impossível acabar com os preconceitos e com a discriminação.

            Infelizmente, nada é mais difícil de mudar do que idéias preconcebidas sobre outros povos ou grupos de pessoas, por mais infundadas que sejam. Enquanto as imagens anti-ciganas continuarem a existir será difícil, quando não impossível, uma convivência harmoniosa dos ciganos com a sociedade gadjé. Portanto, será necessário corrigir e eliminar, na medida do possível, estas imagens negativas.  Rose observa que:

 

 "Uma das causas que explicam que um grupo seja mal conhecido é o isolamento social em que ele se encontra, mesmo se está em contato permanente com o resto da população. (..) O preconceito origina, muitas vezes, medidas de segregação material e social que, por seu lado, favorecendo a ignorância, contribuem para arraigar o preconceito. [Mas] a) a ignorância provém tanto da ausência de conhecimentos, como da presença de idéias falsas; b) a ignorância em si não faz nascer o preconceito, mas condiciona ou favorece o seu desenvolvimento em graus diversos conforme os grupos de que se trata. Quando a ignorância representa um papel importante no aparecimento dos preconceitos, estes poderão ser eficazmente combatidos pela informação, que virá completar os conhecimentos ou combater as idéias falsas" .[19]

 

            Daí porque uma das medidas propostas tem sido o esclarecimento da opinião pública sobre os ciganos, suas maneiras de viver e de pensar, seus valores culturais, sua história. Rose, por exemplo, propõe: “Divulgar, a respeito dos grupos que são vítimas dos preconceitos, informações exatas de forma a destruir os estereótipos. Fazer conhecer as causas das diferenças que existem entre os grupos minoritários e o grupo dominante. Fazê-lo não somente pelos livros, jornais e pela palavra, mas utilizando também as relações pessoais e os contatos amigáveis”.[20]  A questão é como fazer isto.

            O sociólogo Hendriks lembra que “um prejulgamento pode ser corrigido por nova informação; um preconceito não”. A seguir cita os resultados de uma série de sete documentários na TV holandesa sobre operários-hóspedes turcos e imigrantes molucanos e surinameses (imigrantes ou refugiados de ex-colônias holandesas). Os documentários visavam diminuir os preconceitos contra estes grupos fortemente marginalizados e discriminados naquele país, mas as pesquisas revelaram que o resultado foi justamente o contrário: após a exibição dos documentários o preconceito até aumentou![21]

O mesmo foi constatado por Banton: “A publicação da descoberta de que muitas pessoas discriminam não precisa provocar uma reação corretiva, mas pode ativar o ‘efeito reforço’ e encorajar os discriminadores a continuar discriminando, confortados pela sabedoria que tantos outros fazem a mesma coisa”.[22] Ou seja, um documentário ou um livro sobre ciganos - por mais bem elaborado que seja - não garante automaticamente também uma diminuição nos preconceitos contra os ciganos.

            Finalmente há quem defende medidas legislativas porque estas “diminuirão o respeito que se dedica ao preconceito, suprimindo completamente algumas das suas piores consequências. Este é um dos meios mais eficazes para se lutar contra os preconceitos tradicionais".[23] A prática mostra que não é bem assim, nem na Europa Ocidental nem na Europa do Leste. Em todos os países europeus, e no Brasil, existem as mais belas leis que se possa imaginar sobre direitos humanos, direitos civis, direitos políticos, leis anti-discriminação, etc., mas que nada valem para os ciganos. Trata-se apenas de belas palavras, e nada mais. Portanto, não basta um eminente jurista elaborar, o Congresso aprovar e o Presidente sancionar uma belíssima legislação que condena a discriminação de minorias (inclusive das sempre esquecidas minorias ciganas), mas deve-se lutar também para que esta legislação seja, de fato, aplicada na prática.

            Além disto, as leis anti-discriminação sempre existem porque, de fato, a discriminação existe. Ou seja, como lembra Allport, “as leis atacam sintomas, não causas”.[24] Leis anti-discriminação são necessárias e pelo menos ajudam a diminuir um pouco a discriminação. Mas para acabar com o preconceito e a discriminação, antes de tudo será necessário acabar com a ignorância sobre os ciganos que existe, entre os gadjé e também entre os próprios ciganos.  E esta é uma tarefa principalmente para os antropólogos.

            Ser cigano, pertencer a um povo cigano, não significa necessariamente também conhecer a origem, a história, a cultura, a problemática e a realidade atual deste povo, ou melhor dito, das diversas minorias ciganas que existem no Mundo e no Brasil. Salvo talvez umas poucas exceções, cada cigano costuma conhecer e sabe informar tão somente, e quando muito, sobre o passado recente ou a cultura apenas do grupo ao qual pertence. E poucos ciganos devem saber que, além dos seus direitos comuns como cidadãos, também têm direitos especiais como membros de uma minoria étnica.

            De importância fundamental será informar melhor ciganos e não-ciganos tanto sobre estes seus direitos especiais quanto também sobre seus direitos comuns, sobre a sua história, sobre a sua cultura e valores culturais, sobre a problemática cigana mundial, sobre experiências feitas para melhorar a situação cigana, sobre eventuais soluções encontradas. Na luta contra o anti-ciganismo existe um enorme campo de trabalho ainda inexplorado para cientistas das mais diversas áreas. Porque a ciganologia, geral e brasileira, está apenas dando seus primeiros passos, e aparentemente sem qualquer orientáção teórica e prática. A nossa ignorância ainda é enorme.



[1]. Mosca e Aguirre 1990, pp. 257-262

[2]. Revista Études Tsiganes 3/1991, pp. 5-7

[3]. Charlemagne e Pigault 1990, pp. 413-416; Liégeois 1987, pp.  207-211

[4]. Aristicth, J., Ciganos: a verdade sobre nossas tradições, Rio de Janeiro, Irradiação Cultural, 1990, pp. 11 e 67

[5].  Crowe 1995, p. 29

[6].  Project on Ethnic Relations, The Media and the Roma in contemporary Europe: facts and fictions,  Prague, September 1996 <www.netcom/~ethnic/prague.html>

[7].  Aristicht 1995, pp. 33 e 84

[8]. Hovens 1990, p.15

[9]. Ramírez-Heredia, J. de Dios, “Gramatica Cigana”,  I Tchatchipen, no. 2, 1993, pp.41-64 (“el sistema verbal; el infinito; el  presente; el passado imperfecto;  el passado perfecto e indefinido; el subjuntivo; el imperativo; el pluscuamperfecto; el futuro; el condicional”); no. 3, 1993, pp. 46-63 (“el subjuntivo; el imperativo; el participio; el gerundio; el verbo); no. 4, 1993, pp. 44-63 (“el verbo ser; el verbo tener; reflexivos); no. 8, 1994, pp. 54-62 (“el articulo; el sustantivo; “genero”; “numero”); no. 9, 1995, pp. 44-53 (“el adjetivo; “numerales”; “el pronobre”); no. 10, 1995, pp.44-53 (“el pronombre’; “Indefinidos”; “Posesivos”); no. 12, 1995, pp. 44-50  (“demonstrativos”, “comparativos”).  Pela Internet: www.unionromani.org  

[10]. Maia 1993, p. 53

[11]. Charlemagne e Pigault 1990, pp. 90-92

[12]. Charlemagne e Pigault 1990, pp. 243-247; Liégeois 1987, pp. 205-207

[13]. Charlemagne e Pigault 1990, pp. 413-416; Liégeois 1987, pp. 207-211

[14]. Liégeois 1987, pp. 216-218

[15]. Charlemagne e Pigault 1990, pp. 838-841

[16]. Études Tsiganes, no. 3, /1991, pp. 5-7

[17].  Helsinki Watch, Destroying ethnic identity: the persecution of gypsies in Romania, Helsinki Watch Report, New York, 1991, pp. 73-78

[18]. Maia, L. Mariz, O PIDESC e a situação do direito das minorias no Brasil: subsídios para o relatório da sociedade civil sobre a implementação do Pacto dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (1a. versão), Brasília, 2000, m.s. 

[19].  Rose, A. M.  "A origem dos preconceitos", IN: Unesco, Raça e Ciëncia II, São Paulo, Perspectiva, 1972, pp. 167-168.

[20].  Rose 1972, pp.193

[21]. Hendriks, J., Emancipatie: relaties tussen minoriteit en dominant, Alphen a/d Rijn, Samson,  1981, pp.62-63

[22].  Banton,  M., Racial minorities, London, Fontana/Collins, 1972, p. 59

[23].  Rose 1972, p.193

[24].  Allport, G.,  The nature of prejudice, New York, Doubleday, 1958,  pp.437-38

 

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