A CRIAÇÃO DO
TRIBUNAL PENAL INTERNACIONAL
Embaixador GILBERTO VERGNE SABOIA
Secretário de Estado dos Direitos Humanos
Ao abordar a criação do Tribunal
Penal Internacional parece pertinente refletir, ainda que
brevemente, sobre a natureza da norma jurídica, seu papel na
preservação da ordem pública nacional e internacional e na
proteção de valores essenciais (éticos, políticos, culturais,
econômicos, sociais). Tal reflexão se faz necessária, entre
outras razões, pela elevada carga moral que caracterizou o debate
sobre a criação do tribunal e pelo interesse da opinião
pública em torno da negociação de um tratado internacional que
envolve complexas questões jurídicas e políticas.
Nesta longa controvérsia,
situam-se,de um lado, as correntes do pensamento jurídico (Bentham,
Hobbes, Ockham, Kelsen), normalmente designadas como positivistas,
que procuram compreender a norma jurídica apenas em sua essência
formal, como comando capaz de impor determinado tipo de
comportamento social, prescindindo de outras considerações ou
categorias associadas à natureza do consentimento e ao conteúdo
ou justiça das normas.
De outro lado, encontram-se
correntes, cujas raízes remontam a Platão com seguidores até a
modernidade (São Tomas de Aquino, Kant) , segundo as quais
existem critérios (normas naturais, divinas, universais ou
racionais) através dos quais, para além das características
formais, é possível avaliar os preceitos jurídicos à luz de
sua conformidade com princípios morais e de justiça, e conceber
o direito como um sistema moralmente motivado, criado pela vontade
humana como instrumento de coordenação social para evitar e
coibir os males resultantes da interação humana não regulada.
A visão do direito como uma ordem
inspirada por valores não exclui, é claro, o reconhecimento de
que, ao regular a conduta humana no terreno social, a norma
jurídica contempla interesses e orienta a busca de soluções
para conflitos. Esta consideração é particularmente útil para
o direito internacional onde, por ser a sanção de eficácia e
execução mais questionável, a articulação entre o plano dos
valores e a esfera da coordenação de interesses se torna ainda
mais relevante. Esta articulação transcende o plano teórico,
particularmente nas democracias modernas, onde as considerações
éticas passaram a ter acentuada incidência sobre a política.
Parece útil a distinção,
utilizada de forma tão eficaz no pensamento de Celso Lafer, entre
as concepções de Hobbes, Grocio e Kant como explicação para os
diferentes modos de relações entre estados, sociedades e
indivíduos. Na primeira, a força e o poder são as categorias
relevantes dessas relações, e somente a submissão logra
estabelecer entre os antagonistas alguma ordem, ainda que
precária. Na visão grociana, a existência de interesses comuns
permite o estabelecimento de relações coordenadas em que a
reciprocidade predomina sobre a subordinação, de forma que os
resultados alcançados pela cooperação são superiores aos
obtidos pela força. Finalmente, a ordem kantiana se caracteriza
pela tradução em normas jurídicas de valores ditados pela
razão, vista como fonte dos imperativos éticos de natureza
universal e de respeito à dignidade da pessoa como sujeito de
direito.
A evolução do direito, e em
particular do direito internacional, pode, desse ângulo, ser
vista como a busca progressiva da ampliação da esfera da
normatividade decorrente da coordenação de interesses (visão
grociana) e da esfera dos valores (visão kantiana) com a
conseqüente redução do âmbito de prevalência da violência e
do poder (visão hobbesiana).
Ilustrativo desse caminho é a
história do direito internacional humanitário onde as razões
morais associadas à busca de limites para os sofrimentos causados
pela guerra coexistem com a necessidade de admitir a existência
de conflitos armados, tornando possível estabelecer padrões
mínimos de cooperação e autolimitação entre as partes. O
corpo de normas de direito humanitário que o século XX conseguiu
construir, ao impor restrições ao exercício ilimitado da
força, mesmo em situações extremas como a de conflitos armados,
exemplifica a possibilidade de convergência entre normas de
interesse recíproco e normas de inspiração ética. A criação
do Tribunal Penal Internacional é mais um exemplo desse processo,
e sua compreensão deve ser buscada tanto na ordem dos valores
morais quanto na esfera dos interesses.
I- O Tribunal Penal Internacional.
Antecedentes políticos e jurídicos
A aprovação do Estatuto de Roma
que cria o TPI é, sem dúvida, um dos marcos mais significativos
no desenvolvimento do direito internacional nas últimas décadas.
Várias circunstâncias contribuíram para que este resultado,
cujos antecedentes remontam a mais de 50 anos, pudesse ser
alcançado antes do final do século:
- O fim da guerra fria tornou menos
rígidos os alinhamentos ideológicos que bloqueavam a evolução
do direito internacional nessa direção; - A globalização e a
interdependência acentuaram a necessidade de maior coordenação
e normatividade em diversas áreas das relações internacionais,
inclusive como proteção contra a atuação ilícita de atores
não estatais; - As tendências de fragmentação liberadas pelo
fim da guerra fria levaram à irrupção de conflitos étnicos,
raciais e religiosos, na maioria dos casos não-internacionais, em
que ocorreram catástrofes humanitárias e massacres, ameaçando a
ordem jurídica e pondo em risco a paz e a segurança
internacionais, reforçando assim a opinião dos estados, de
outros atores internacionais e da opinião pública em favor do
reforço da capacidade de sanção do DI neste terreno.
Tão agudamente foram sentidos os
efeitos dessas situações que a comunidade internacional saltou
etapas e foi capaz de criar, num curto espaço de tempo, os
tribunais criminais internacionais ad hoc para a antiga
Iugoslávia (1993) e para Ruanda (1994). Estas instituições
foram criadas não por um tratado internacional, como o TPI, mas
sim por decisões do Conselho de Segurança das Nações Unidas,
sob o amparo do capítulo VII da Carta das Nações Unidas
(ameaças à paz e segurança internacionais), o que torna suas
normas obrigatórias para todos os Estados. Essa observação é
importante para os propósitos do presente seminário, entre
outras razões porque tais normas vinculam o Brasil à obrigação
de cooperar com os dois tribunais ad hoc, inclusive em matérias
como prova testemunhal e entrega de acusados.
Passando ao exame dos antecedentes
jurídicos do TPI, deixaremos de lado aqueles mais distantes, como
os Tratados de Versalhes e Sèvres, subseqüentes à I Guerra
Mundial, e algumas iniciativas da Liga das Nações,que
intentaram, sem êxito, criar instituições para trazer à
justiça os responsáveis por atrocidades cometidas durante e
antes do conflito. Mencionaremos, ainda que brevemente, os mais
imediatos, oriundos da II Guerra Mundial. As atrocidades cometidas
durante a II Guerra levaram ao estabelecimento de dois Tribunais
Militares Internacionais (Nuremberg e Tóquio), destinados a
processar e julgar os principais responsáveis, na Alemanha e no
Japão, pelos crimes contra a paz, crimes de guerra e crimes
contra a humanidade. Apesar de suas imperfeições, estes
tribunais constituíram uma importante base para a conformação
dos princípios básicos da responsabilidade penal internacional,
dentre os quais destacam-se:
- a afirmação da responsabilidade
por crimes definidos pelo direito internacional, independentemente
da existência de lei interna; - o não reconhecimento de
imunidades de jurisdição para crimes definidos pelo direito
internacional; - o não reconhecimento de ordens superiores como
excusa de responsabilidade.
A Assembléia Geral da ONU aprovou
em 1946 a Resolução 95 (1) que declarou o direito de Nuremberg
parte do direito internacional geral. A Convenção sobre o
Genocídio, aprovada em 1948, teve como objetivo principal
reforçar a definição deste crime, independentemente de
referência a um conflito específico, estabelecendo que ao mesmo
se aplica o princípio da jurisdição universal. A convenção
prevê a possibilidade de estabelecimento de um tribunal criminal
internacional.
Afirmou-se assim como princípio
que a humanidade, cujos interesses e valores essenciais são
violados e ameaçados pela prática desses crimes, é, em última
instância, titular do direito de assegurar sua repressão,
devendo-se prever os meios adequados a garantir o exercício dessa
titularidade. Gerou-se assim a expectativa de criação de um
tribunal penal internacional, capaz de promover a punição dos
crimes internacionais na ausência ou incapacidade dos sistemas
judiciários nacionais, freqüentemente incapacitados ou
intimidados pela destruição e pelo terror sistemático e maciço
desencadeado pelos perpetradores de tais crimes.
Por razões políticas vinculadas
à guerra fria, estas expectativas não se realizaram. A Comissão
de Direito Internacional realizou sucessivos estudos que,
entretanto, não lograram concretizar-se, esbarrando em questões
prévias, como a da definição do crime de agressão e a
elaboração do código de crimes contra a paz e a segurança da
humanidade.
No início dos anos 90, o assunto
voltou à ordem do dia nas Nações Unidas. Por iniciativa de
Trinidad e Tobago, a Assembléia Geral voltou a recomendar à
Comissão de Direito Internacional , em 1990, a elaboração de um
projeto de estatuto para o referido tribunal. O ritmo dos
trabalhos na CDI seria, então, influenciado pela decisão do
Conselho de Segurança de criar tribunais criminais internacionais
ad hoc para julgar crimes de guerra e de genocídio cometidos na
Antiga Iugoslávia (1993) e em Ruanda (1994).
Estas decisões, importantes e
dignas de apoio, tornaram patente o vazio jurídico decorrente da
inexistência de uma instância internacional independente, com
base num instrumento jurídico de escopo universal, capaz de
julgar responsáveis pelos crimes mais graves de interesse
internacional. Os dois tribunais, constituídos por um órgão
político da ONU, como é o Conselho de Segurança, têm, é
certo, legitimidade jurídica, mas sua jurisdição e
características correspondem à natureza e circunstâncias das
situações que geraram o seu estabelecimento. Por essa razão, o
Brasil, ao aprovar a criação dos tribunais ad hoc expressou
preferência pelo estabelecimento, por tratado multilateral, de um
tribunal penal internacional, universal, imparcial e independente,
como instrumento fundamental para romper o ciclo de impunidade dos
perpetradores de tais crimes e exercer efeito preventivo e
dissuasor benéfico para a paz e segurança internacionais.
Em 1994, a Comissão de Direito
Internacional submeteu à Assembléia Geral projeto de Estatuto
para um futuro TPI. Em dezembro do mesmo ano, a Resolução 49/53
determinou a criação de um Comitê Ad hoc, aberto a todos os
Estados Membros, encarregado de examinar as principais questões
substantivas e administrativas que surgissem da análise daquele
projeto. Concluído o mandato do Comitê Ad hoc e verificada a
necessidade de discussões adicionais sobre a matéria, a
Assembléia Geral convocou um Comitê Preparatório, que se reuniu
em um total de seis períodos de sessões, de 1996 a 1998.
O Comitê Preparatório levou em
conta o importante trabalho efetuado pela Comissão de Direito
Internacional e o projeto por ela submetido à Assembléia Geral.
No entanto, durante o curso dos debates no Comitê e na Sexta
Comissão, sob a influência já da experiência com os tribunais
ad hoc e diante da evolução da situação internacional,
verificou-se tendência a valer-se também de trabalhos e
contribuições oriundas de outras fontes. Cite-se, entre elas, o
chamado projeto Siracusa, elaborado pelo Comitê de Peritos do
Instituto Internacional de Altos Estudos em Ciências Criminais,
que se reuniu na cidade do mesmo nome, em 1996, e apresentou
sugestões para incorporação ao projeto da CDI. Este texto,
circulado como documento do Prepcom, ampliava em vários aspectos
o escopo do TPI, ao eliminar a cláusula de jurisdição
facultativa, prever a possibilidade de iniciativa autônoma do
promotor para iniciar investigações e ao atribuir maior
independência em relação ao Conselho de Segurança.
O Prepcom, apesar das sérias
controvérsias que marcaram suas sessões, logrou elaborar um
documento de trabalho, submetido à Conferência de
plenipotenciários de Roma, que unificava, num único texto, as
principais opções em debate sobre o projetado Tribunal.
II- A Conferência de Roma e o
estatuto do TPI
Para os propósitos deste
seminário, parece-me suficiente passar em revista os principais
aspectos do Estatuto de Roma, aprovado pela conferência de
plenipotenciários que se realizou naquela cidade em julho de
1998, levando em conta a necessidade de dar uma visão de conjunto
que destaque o caráter "sui generis" e excepcional
deste instrumento internacional.
Complementaridade - O princípio da
complementaridade, que constava já do projeto da CDI, é um dos
elementos mais importantes do estatuto. Seu objetivo é assegurar
que o TPI exerça o papel que lhe é atribuído sem interferir
indevidamente com os sistemas judiciais nacionais, a quem continua
a incumbir a responsabilidade primária de investigar e processar
os crimes. Ao contrário dos tribunais ad hoc, que são
concorrentes e têm primazia sobre as cortes nacionais, o TPI tem
caráter excepcional e complementar, e sua jurisdição, além de
aplicar-se apenas aos crimes de extrema gravidade nele definidos,
somente será admissível (art.17) em casos em que se verifique
claramente a incapacidade ou a falta de disposição dos Estados
em processar os responsáveis. Salvo nesta hipótese, o TPI não
examinará casos ou alegações que estejam ou hajam sido objeto
de investigação por parte das instituições competentes de um
Estado.
É também através da
complementaridade que o TPI poderá, a longo prazo, dar sua mais
importante contribuição, ao incentivar os Estados a dotar seus
sistemas judiciais dos instrumentos normativos e processuais
capazes de aplicar a justiça, de forma eficaz e equânime, nos
casos dos crimes previstos no Estatuto.
Definição de crimes - Ao
contrário do projeto elaborado pela CDI, que enumerava, sem
definí-los, os crimes sob jurisdição do Tribunal, o estatuto de
Roma contém uma lista tipificada dos delitos sujeitos à
jurisdição do tribunal.Constitui assim o estatuto um verdadeiro
código criminal internacional. Para esse fim foram utilizadas, na
maioria dos casos, definições constantes em tratados ou outras
fontes do direito internacional. Em alguns casos, particularmente
no capítulo dos crimes contra a humanidade, foi preciso adaptar
as definições ao contexto desejado para o tribunal ou mesmo
inovar, frente a lacunas do direito internacional convencional,
como foi o caso dos crimes de natureza sexual.
São os seguintes os crimes
previstos no estatuto:
Genocídio. (Definição contida na
Convenção sobre a Prevenção e Punição do Crime de
Genocídio, de 9/12/48).
Crimes contra a humanidade. O
artigo 7 lista 10 figuras criminais e agrega 9 definições de
expressões ou termos. As principais fontes utilizadas foram as
Cartas dos Tribunais de Nuremberg e Tóquio, os estatutos dos dois
tribunais ad hoc e o Projeto de Código de Crimes contra a Paz e
Segurança da Humanidade, preparado pela CDI. É amplamente
reconhecido que, apesar de sua codificação ter sido efetuada
após a II Guerra Mundial, o conceito de crimes contra a
humanidade existe, como parte do direito costumeiro internacional,
muito antes da sua formulação em 1945. Os crimes contra a
humanidade, que podem ser cometidos tanto durante um conflito
armado como em tempo de paz (jurisprudência do caso Tadic), se
distinguem dos crimes de guerra ou dos delitos comuns por se
tratarem de atos cometidos contra qualquer população civil e
pela escala em que são cometidos. A definição deste limiar foi
objeto de difícil negociação durante a Conferência, tendo se
chegado ao emprego da frase. "quando cometidos como parte de
um ataque generalizado ou sistemático contra uma população
civil e com conhecimento de tal ataque".
Crimes de guerra- Também
conhecidos como "Crimes contra as Leis e Costumes Aplicáveis
em Conflitos Armados", os crimes de guerra fazem parte do
direito costumeiro internacional e têm como principais
referências de codificação o regime da Haia (diversas
convenções e protocolos) - relativos às limitações à conduta
de hostilidades - e as Convenções de Genebra e seus Protocolos,
referentes à proteção das vítimas dos conflitos. Assinale-se
também que o estatuto inclui na lista dos crimes de guerra os
crimes cometidos em violação do direito de guerra contra o
pessoal das Nações Unidas em missão humanitária ou de
manutenção da paz.
Algumas das questões mais
sensíveis negociadas em Roma foram relacionadas a este capítulo,
uma vez que abrangem a conduta de operações militares, inclusive
a proibição do emprego de certas armas e envolvem a
possibilidade da incriminação de pessoal subordinado às forças
armadas. Este último aspecto suscitou acentuada preocupação por
parte de potências com envolvimento militar global ou
participação freqüente em situações originárias em
ex-colônias e ensejou árduos esforços para a busca de
soluções aceitáveis.
Esta preocupação tornou
necessária a adoção, no último momento da negociação, de um
dispositivo chamado transitório (art.124), que permite aos
Estados que ratifiquem o Estatuto declarar que não aceitam a
jurisdição do Tribunal sobre crimes de guerra por um período de
sete anos a partir da ratificação. O artigo será revisto na
primeira conferência de revisão do estatuto.
A noção de crime de guerra, tal
como definida nos instrumentos acima citados, não está vinculada
a limiares (thresholds), sendo suficiente a prática de atos,
ainda que isolados, para configurá-los. Dado porém o caráter
excepcional do TPI, além dos limiares gerais já previstos no
preâmbulo e no artigo 1, e do princípio da complementaridade,
conveio-se restringir ainda mais claramente aos casos mais graves
a invocação da jurisdição do tribunal, determinando que ela se
exercerá "em particular quando cometidos como parte de um
plano ou política, ou como parte da prática em larga escala de
tais crimes". Os delitos previstos como crimes de guerra no
Estatuto são as violações graves das Convenções de Genebra de
1949 e outras violações graves das leis e costumes aplicáveis
em conflitos armados internacionais, extraídos ou adaptados das
Convenções de Genebra, do Protocolo Adicional I e dos
Regulamentos da Haia de 1907.
Tendo como fonte o Protocolo
Adicional II às Convenções de Genebra, foram também
incorporados atos cometidos em conflitos armados de caráter
não-internacional: violações graves do artigo 3 comum às
Convenções de Genebra de 1949 (consideradas, pela Corte
Internacional de Justiça, como um padrão humanitário mínimo) e
outras violações graves das leis e costumes aplicáveis a
conflitos armados de caráter não-internacional, inclusive o
recrutamento ou alistamento de crianças de menos de 15 anos em
forças armadas ou em grupos engajados em hostilidades.
Com relação aos conflitos armados
de caráter não-internacional, foram adotadas salvaguardas
adicionais que precisam o âmbito de aplicação do TPI, e
resguardam o direito dos Estados de manter a ordem interna e
defender a soberania e unidade do país.
A primeira assinala que, no caso
das violações do artigo 3 das Convenções em Genebra, os
dispositivos previstos não se aplicam a situações de tensões e
distúrbios internos, tais como tumultos, atos isolados e
esporádicos de violência ou outros atos de natureza semelhante;
No caso das outras violações graves, além da salvaguarda
anterior, condiciona-se ainda a aplicação das normas aos casos
de conflito armado prolongado entre autoridades governamentais e
grupos organizados ou entre tais grupos.
Por último, salvaguarda-se
também, em todas as circunstâncias, o direito dos Estados de
empregar meios legítimos para restabelecer o estado de direito,
manter a ordem interna e defender a soberania e unidade do país.
Estas limitações ou salvaguardas
explicam-se pelo caráter excepcional do TPI, mas sua inclusão
não deixou de causar alguma preocupação com relação à defesa
da integridade do direito humanitário internacional. Por essa
razão, dispôs-se que as mesmas deverão entender-se como
estritamente aplicáveis ao âmbito do TPI pois, do contrário,
seria admitir retrocesso no âmbito de aplicação do direito
internacional relativo a tais delitos. O estatuto incorporou, a
este respeito, uma cláusula específica , constante do artigo 10.
Ainda no capítulo dos crimes de
guerra, o tema das armas proibidas foi matéria de extensa
controvérsia, e fez parte do conjunto de últimas questões
decididas na Conferência. Várias delegações advogavam a
adoção de um dispositivo redigido de forma genérica, de modo a
que pudesse interpretar-se como abrangendo tanto as armas
proibidas pelo direito internacional costumeiro como as que tenham
tido sua proibição consagrada por convenção internacional
(armas químicas, bacteriológicas, minas terrestres
anti-pessoais). Esta solução não convinha às potências
nucleares, que se opunham a qualquer terminologia que tivesse
semelhança com os termos empregados pela CIJ em parecer dado em
1996 sobre a legalidade das armas nucleares ("would generally
be contrary to the rules of international law applicable in armed
conflicts, and in particular the principles and rules of
humanitaran law"), e que pudesse vir a ser invocada como
apoio da tese de ilegalidade destas armas de destruição maciça.
Por outro lado, também não servia aos países que temiam a
inclusão implícita de armas objeto de convenções às quais
não haviam ainda aderido, como a Convenção de Ottawa sobre a
proibição do emprego de minas terrestres anti-pessoais. Outros
enfoques previam seja a utilização de uma lista completa de
armas, com referência explícita aos artefatos nucleares, seja a
combinação de um caput genérico com uma lista não exaustiva.
A solução de compromisso foi
mencionar explicitamente apenas as armas já proibidas pelo
direito internacional humanitário, acompanhadas de um inciso que
proíbe a utilização de armas, projéteis e métodos de guerra
que, por sua natureza, causem ferimentos supérfluos ou sofrimento
desnecessário ou que são inerentemente indiscriminados em
violação ao direito internacional dos conflitos armados, desde
que tais armas sejam objeto de uma proibição abrangente e sejam
incluídas em um anexo ao estatuto, por meio de emenda.
Agressão - A questão da inclusão
do crime de agressão no estatuto percorreu os trabalhos do
Comitê Preparatório e da própria conferência. Apesar da
lógica favorecer a inclusão na lista de crimes de ações que
estão na raiz de grande parte dos crimes mais graves cometidos
contra a humanidade., dificuldades de natureza jurídica e
política criavam obstáculos praticamente insuperáveis para sua
incorporação eficaz.
De um lado, não existe até hoje,
apesar dos esforços desenvolvidos pela CDI e por outros órgãos
(inclusive uma resolução da AGNU, que configura agressão como
ilícito do Estado), uma definição de agressão suficientemente
abrangente e que sirva como elemento constitutivo de
responsabilidade pessoal, e não apenas da responsabilidade do
estado. Tentativas de definição ensaiadas durante a
negociação, como a de vincular o ato de agressão exclusivamente
às ações que resultassem em anexação ou ocupação do
território de um Estado, apresentavam o inconveniente de
restringir excessivamente o conceito de agressão.
Conexa a esta questão, e
igualmente importante, está a circunstância de que a Carta da
ONU não definiu juridicamente agressão, deixando ao Conselho de
Segurança a responsabilidade de decidir, a cada caso, quando
está configurada uma situação de agressão, ameaça à paz ou
ruptura da paz internacional. É claro que, dada a composição e
características do Conselho de Segurança, esta decisão se toma
de um ponto de vista político. Era assim arriscado aceitar
qualquer dispositivo que pudesse implicar a possibilidade de
contradições ou conflitos entre o TPI e o Conselho de
Segurança.
Uma possível solução teria sido
aceitar essa realidade e vincular a figura do crime de agressão
à prévia decisão, pelo Conselho de Segurança, da existência
de uma situação de agressão. Esta hipótese, entretanto,
tampouco era aceitável para um grupo de países, ao acentuar a
dependência do TPI em relação ao Conselho de Segurança.
A solução encontrada foi incluir
o crime de agressão na lista do art.5 mas condicionar o
exercício da jurisdição pelo TPI à aprovação de uma emenda
ao estatuto que contenha a definição de agressão, consistente
com a Carta da ONU. Afora o significado moral ou político da
inclusão, trata-se de um simples adiamento da questão.
Jurisdição - Estabelecimento e
condições. Papel da promotoria.
A definição dos mecanismos de
estabelecimento e exercício da jurisdição do TPI foi,
certamente, a questão de maior complexidade jurídica e política
na negociação do estatuto de Roma. Trata-se, de maneira
simplificada, de responder a dois quesitos: 1) Como se vinculam os
Estados à jurisdição do TPI; e 2) Sob que condições pode o
TPI dar início ao exercício desta jurisdição num caso
concreto. Relacionada com esta questão acham-se a das relações
do TPI com o Conselho de Segurança e a do papel do Promotor.
Com relação à primeira questão,
a Conferência de Roma adotou o princípio da competência
automática ou inerente, isto é, determinou, em seu art. 12,
par.1, que o Estado que se torna parte do Estatuto aceita a
competência da Corte no que diz respeito aos crimes listados no
art.5 (recorde-se no entanto a propósito a possibilidade aberta
com o dispositivo transitório do art.124).
Foram assim afastadas as
alternativas que previam a possibilidade de condicionar a
aceitação da jurisdição a cláusulas facultativas, pelas quais
os Estados partes teriam a possibilidade de, por uma
manifestação separada, expressar sua aceitação da
jurisdição, excetuado o caso do crime de genocídio, cuja
respectiva convenção já previa o estabelecimento de um tribunal
penal internacional.
Cabe assinalar que eventuais
mecanismos facultativos teriam debilitado o papel e a autonomia do
TPI, já condicionados pelos princípios da complementaridade,
pelos limiares estabelecidos com relação às diferentes figuras
penais e pelas limitações previstas para o início das
investigações. Teriam acentuado a dependência em relação ao
Conselho de Segurança, que praticamente seria o único ator capaz
de, com eficácia, promover o início do exame de situações no
Tribunal.
Quanto às condições necessárias
para que o Tribunal possa dar início a investigações num caso
concreto, o estatuto prevê três hipóteses:
1)- o Conselho de Segurança pode,
agindo de acordo com o capítulo VII da Carta (rupturas e ameaças
à paz e segurança internacionais), referir uma situação ao TPI,
acionando assim sua jurisdição. Neste caso, como o Conselho tem
capacidade para adotar decisões mandatórias, a jurisdição não
está sujeita às mesmas precondições do que nos demais casos,
embora também se aplique o princípio da complementaridade e
portanto as regras sobre admissibilidade. Apesar da oposição de
algumas delegações, que invocavam o perigo de politização do
Tribunal e excessiva subordinação ao Conselho, este vínculo
jurisdicional era necessário, uma vez que, em grande número de
casos, a ocorrência dos mais graves crimes se verifica justamente
em situações sob exame do Conselho. Por outro lado, a
existência do TPI torna desnecessária a criação de outros
tribunais ad-hoc. Cabe ainda assinalar que, além dessa faculdade,
tem também o Conselho de Segurança da ONU a possibilidade de
determinar, mediante resolução adotada conforme o Capítulo VII
da Carta, a suspensão da consideração de uma situação pelo
TPI pelo prazo de doze meses, prorrogáveis
2) Um estado parte pode oferecer
denúncia ao promotor a respeito de situações em que considera
estarem sendo cometidos crimes sob a jurisdição do tribunal.
Esta denúncia, que deve ser acompanhada de elementos factuais que
a substanciem, dá início a investigações conforme o
procedimento adotado pelo tribunal.
3) O promotor pode, com base em
informações provenientes de diferentes fontes, iniciar
investigações a respeito da ocorrência de crimes sob a
jurisdição do Tribunal desde que obtenha, para tanto, a
aprovação da Câmara de Questões Preliminares do Tribunal.
A capacidade de iniciativa
autônoma do promotor foi um dos temas centrais da negociação. O
projeto elaborado pela CDI não previa esta faculdade, deixando ao
promotor apenas a capacidade de agir após a apresentação de
denúncia por parte de um estado ou de encaminhamento de
situação pelo Conselho de Segurança. No entanto, ao longo do
processo preparatório acentuou-se movimento em favor de atribuir
ao promotor do TPI a faculdade de dar início a investigações.
Esta tese, afinal vitoriosa, funda-se em primeiro lugar, na
experiência dos tribunais ad-hoc, em que a capacidade de ação
dos promotores, independente de iniciativa estatal, mostrou-se
fundamental. Não seria justificável atribuir menor grau de
iniciativa ao promotor do TPI, órgão cuja independência se
deseja assegurar, do que a já existente para os promotores dos
tribunais ad-hoc. Por outro lado, a eficácia do Tribunal poderia
se ver afetada por um sistema que apenas considerasse denúncias
de estado ou iniciativas provenientes do Conselho de Segurança.
Dadas as sensibilidades políticas, pode haver situações em que
nem o Conselho de Segurança nem um estado se disponha a tomar
iniciativa num caso concreto, não obstante a sua gravidade.
O argumento contrário era de que a
possibilidade de iniciativa autônoma do promotor poderia ser um
fator de politização de suas funções, ou poderia acarretar uma
sobrecarga de denúncias frívolas. Tais preocupações, em parte
legítimas, conduziram à adoção de garantias processuais que
subordinam a iniciativa do promotor ao exame da câmara de
questões preliminares, que deve confirmar a existência de base
adequada para dar prosseguimento às investigações.
Para que uma investigação possa
ser iniciada em casos trazidos ao TPI por estados ou que decorram
da iniciativa autônoma do promotor, é necessário que um ou mais
dos seguintes estados sejam partes do estatuto ou, não o sendo,
hajam voluntariamente aceito o exercício da jurisdição num caso
concreto: a) o estado em cujo território o crime houver sido
cometido; b) o estado de nacionalidade do acusado. Este tema foi
também dos mais controversos, uma vez que várias alternativas
haviam sido propostas, algumas tendentes a aproximar a
jurisdição do TPI ao princípio da jurisdição universal,
enquanto outras buscavam delimitar excessivamente a jurisdição
através de uma lista cumulativa de estados. O compromisso
alcançado representou uma solução equilibrada e cautelosa. Não
satisfez os que defendiam a tese da jurisdição universal,
optando por adotar bases de estabelecimento de mais generalizada
aceitação entre os estados, mas evitou uma vinculação
obrigatória ao princípio da nacionalidade do acusado, que
poderia paralisar o TPI justamente nas situações mais graves.
Em virtude do caráter não
cumulativo das precondições, pode ocorrer que o Tribunal se
torne competente para julgar nacionais que não são partes do
Estatuto, quando estes cometerem algum dos crimes previstos no
território de um estado parte ou de um estado não-parte que
tenha aceito a jurisdição por acordo especial. Essa
possibilidade não altera o princípio geral de que o estatuto
não obriga a responsabilidade dos estados não partes, em
primeiro lugar porque o Estado onde ocorre tal crime tem
indiscutivelmente a competência sobre o mesmo, qualquer que seja
a nacionalidade do acusado, e esta competência pode transferir-se
ao TPI, nas hipóteses previstas no estatuto. Por outro lado, são
as pessoas, em sua capacidade individual, e não os estados, que
serão julgados por crimes dentro da jurisdição do TPI.
Cooperação internacional e
assistência judiciária.
A cooperação internacional e a
assistência judiciária dos estados são essenciais para o eficaz
funcionamento do TPI em diferentes etapas da investigação e
processo, como o acesso a provas e documentos, a convocação de
testemunhas e coleta de depoimentos, e a detenção e
transferência de acusados. É também elemento crucial para que
as relações entre o sistema do TPI e os sistemas judiciais
nacionais sejam pautadas pelo respeito tanto ao princípio da
complementaridade quanto ao da independência do Tribunal e em
conformidade com os objetivos estabelecidos no estatuto.
Dado o caráter "sui
generis" do Tribunal, os regimes dos tribunais de Nuremberg e
Tóquio e dos tribunais ad hoc não apresentavam analogia
suficiente para servir de base ao novo órgão. No primeiro caso,
as potências aliadas dispensavam desse elemento, por terem a sua
disposição os aparatos executórios das forças de ocupação.
Quanto aos tribunais ad hoc, a cooperação e assistência
judiciárias tornaram-se obrigatórias para todos os estados, por
força do caráter mandatório das resoluções do Conselho de
Segurança que os estabeleceram.
Os modelos existentes de
cooperação internacional e assistência judiciária entre
estados, ao basear-se em regimes de paridade jurídica e política
entre legislações e esferas de competência nacionais são
dificilmente compatíveis com uma instância internacional cujo
principal objetivo deve ser combater a impunidade dos criminosos e
suprir casos flagrantes e graves de falência ou incapacidade de
sistemas nacionais na repressão dos mais sérios crimes de
natureza internacional.
A Conferência de Roma optou assim
pela criação de um regime "sui generis" para a
cooperação internacional e assistência judicial dos estados com
o TPI. Este regime estipula a obrigação geral dos estados partes
de cooperar plenamente com o Tribunal. Os estados partes devem
também assegurar-se de que as legislações nacionais estipulem
figuras processuais compatíveis com as formas de cooperação
previstas no estatuto. O Tribunal pode solicitar também
assistência aos Estados que não são partes, mediante a
conclusão de acordos ou entendimentos ad hoc.
A conferência decidiu rejeitar,
com a oposição de apenas um reduzido número de delegações,
regime análogo ao dos tratados bilaterais de cooperação
judiciária, que prevêem bases para a recusa de cooperação.
Isso ficou patente mesmo na questão mais delicada, referente à
obrigação de "entrega" ou "extradição" de
pessoas, na qual a grande maioria das delegações, inclusive de
países que consagram em suas constituições ou legislações a
não extradição de nacionais, favoreceu a utilização do termo
"entrega" para distinguí-la, expressamente da figura da
extradição, afastando assim a hipótese de recusa da entrega.
Prevaleceu assim o argumento de que
a jurisdição do TPI é uma extensão da jurisdição dos estados
partes que o estabeleceram, o que torna incompatível com o
objetivo principal do tribunal a recusa de entrega de nacionais.
Parece ainda relevante assinalar
que o dispositivo sobre a entrega de pessoas determina que o
cumprimento do pedido de entrega poderá ser suspenso caso esteja
sob consideração uma questão relacionada com a admissibilidade
do caso. Estabelece assim uma clara vinculação com o princípio
da complementaridade, que prevê que o TPI não exercerá
jurisdição em casos que houverem sido ou estiverem sob exame de
jurisdições nacionais.
Penas
O estatuto de Roma prevê a
imposição de penas de prisão por um número determinado de
anos, até o máximo de 30 anos, ou em casos justificados pela
extrema gravidade dos delitos e as características individuais
dos criminosos, a pena de prisão perpétua.
Cabe também assinalar a respeito a
existência de dispositivo que prevê processo de revisão da
duração de sentenças, após decurso de dois terços do tempo de
prisão ou 25 anos no caso de sentença de prisão perpétua.
Princípios gerais de direito penal
O estatuto consagra um capítulo
aos princípios gerais de direito penal. Embora não seja
possível nos limites deste trabalho tratar extensamente deste
aspecto, convém mencionar que estão consagrados no estatuto
princípios como o da não retroatividade, da legalidade, da não
duplicação dos processos (ne bis in idem), assim como garantias
processuais dos acusados a terem um processo justo e imparcial.
III- Conclusões
Deve recordar-se, ao iniciar-se
este seminário, que buscará encontrar respostas para a
incorporação do Estatuto de Roma ao direito brasileiro, a
histórica contribuição do Brasil ao desenvolvimento do direito
internacional. A tradição de nosso país sempre encarou o
direito internacional como garantia de uma ordem baseada na
concertação e na justiça, uma limitação ao unilateralismo e
ao arbítrio. Evoquemos o papel de Rui Barbosa nas conferências
de paz da Haia, a defesa por Rio Branco do respeito às normas dos
tratados e das formas pacíficas de solução de controvérsias, e
a cruzada de Joaquim Nabuco para que o Brasil se libertasse de
chaga da escravidão, repelindo para tanto usar a soberania como
escudo para a manutenção do tráfico.
A política e o direito brasileiros
, em atendimento aos sentimentos da nação e orientados pela
prevalência que a Constituição atribui aos direitos humanos
como princípio orientador das relações internacionais,
promoveram a adesão plena do Brasil aos tratados internacionais
sobre direitos humanos e o reconhecimento da competência da Corte
Interamericana para julgar sobre casos individuais de violações
de direitos humanos.
Parece relevante assinalar,
igualmente, que os legisladores e magistrados brasileiros têm
contribuído, de forma marcante, para que o Brasil possa
incorporar, acompanhando tendência generalizada do ordenamento
jurídico internacional, tratados internacionais que regulam
esferas importantes das relações econômicas, políticas e
estratégicas. Vários destes tratados incorporam regras
obrigatórias e não condicionadas sobre aceitação da
jurisdição e a respeito de solução vinculante de
controvérsias. Particularmente relevante, neste particular, é o
caso da Organização Mundial do Comércio assim como os de alguns
tratados sobre limitação de armas de destruição em massa, como
a Convenção sobre Proibição de Armas Químicas, que contêm
normas obrigatórias sobre a verificação internacional do
cumprimento das obrigações assumidas.
No terreno específico do direito
internacional humanitário, o mais diretamente relevante para
nós, recorde-se que o Brasil é parte, sem reserva, de todos os
instrumentos fundamentais. Destaque-se particularmente nossa
adesão às Convenções de Genebra e aos dois protocolos de 1977,
o segundo dos quais consolida normas relativas aos conflitos
armados de caráter não-internacional. A Convenção contra o
Genocídio, há muitos anos incorporada ao ordenamento jurídico
brasileiro, é também um antecedente importante em relação ao
TPI, pois afirma o caráter internacional do crime, estabelece a
obrigação de processar ou extraditar, prevê o estabelecimento
de uma corte criminal internacional e estipula a não
aplicabilidade de imunidades de jurisdição para os acusados.
O Estatuto de Roma, que cria o
Tribunal Penal Internacional, apresenta, sem dúvida, complexas e
difíceis questões aos legisladores, magistrados e responsáveis
políticos brasileiros, dadas as características inovadoras de
muitos de seus dispositivos e a necessidade de examinar em que
medida será necessário efetuar alterações na legislação
nacional a fim de capacitar o país a aceder, de forma eficaz e
responsável, ao estatuto.
Ao longo dos trabalhos de
preparação das posições brasileiras e da participação da
delegação do Brasil na conferência de Roma essas dificuldades
foram levadas em conta. O resultado alcançado apresenta um
conjunto equilibrado, onde se podem identificar salvaguardas
adequadas para um país, como o Brasil, cuja organização
judiciária funciona dentro dos parâmetros de um estado de
direito.
O cuidadoso articulado dos
dispositivos sobre acionamento, definição da jurisdição
substantiva, procedimentos de admissibilidade e cooperação
internacional contribuem para assegurar a legitimidade e eficácia
do Tribunal, ao mesmo tempo que respeitam a soberania dos Estados.
Ao vincular o exercício da jurisdição aos princípios da
territorialidade e da nacionalidade, o estatuto acentuou o nexo
entre o Tribunal e as jurisdições nacionais dos Estados partes.
O estabelecimento do TPI virá
preencher uma lacuna e atender a inequívoca necessidade da ordem
política e jurídica internacional, confrontada pela
multiplicação de conflitos internos onde as vítimas civis e
inocentes predominam e onde os atentados contra os princípios
mais básicos da humanidade deixam de ser um efeito colateral das
hostilidades para ser um instrumento estratégico para a
obtenção de fins políticos.
Esperemos assim que o presente
seminário, iluminado pela visão esclarecida dos seus
participantes, possa indicar caminhos para que o Brasil se
habilite a contribuir, conforme suas melhores tradições, para
este importante desenvolvimento do direito internacional.
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