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Imunidades de jurisdição e 
foro por prerrogativa de função

Oscar Vilhena Vieira*

 

* Texto baseado nas notas taquigráficas de conferência proferida no Seminário Internacional “O Tribunal Penal Internacional e a Constituição Brasileira”, promovido pelo Centro de Estudos Judiciários do Conselho da Justiça Federal, em 30 de setembro de 1999, no auditório do Superior Tribunal de Justiça, em Brasília-DF.

1 INTRODUÇÃO

 A adoção do Estatuto da Corte Penal Internacional de Roma, aprovado em 17 de julho de 1998, pela Conferência de Plenipotenciários das Nações Unidas, constitui mais um importante passo rumo à consolidação do sistema internacional de direitos humanos e uma conseqüente relativização do conceito tradicional de soberania. O instrumental de proteção dos direitos humanos arquitetado na esfera das Nações Unidas carecia, até a Corte de Roma, de uma instância judicial que pudesse lhe dar eficácia. A história da Comissão de Direitos Humanos e dos diversos Comitês derivados dos tratados de direitos humanos no âmbito da ONU é frustrante. O sistema tem funcionado muito mais como representação da vontade dos Estados, do que como instrumento de fiscalização da implementação dos direitos humanos. Dessa forma, a decisão de se criar uma corte internacional voltada a punir os que violem sistematicamente os direitos humanos deve ser saudada pelos cidadão do mundo.

O objetivo dessa exposição é verificar se a adesão do Brasil a esse tratado internacional, que não admite reservas (art. 120), é compatível com a nossa ordem constitucional. Embora a Constituição de 1988 propugne pela criação de um tribunal internacional de direitos humanos, por força do art. 7º do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT), há diversos outros dispositivos do texto que, lidos isoladamente, contrapõem-se a algumas das prerrogativas conferidas à Corte de Roma. Pretendo, portanto, analisar essas tensões, buscando, por intermédio de um esforço interpretativo, harmonizar as demandas do Estatuto aos imperativos da Constituição.

Darei atenção a duas questões que, ao meu ver, apresentam-se como mais problemáticas. A primeira refere-se a própria essência da Corte de Roma. Trata-se de uma jurisdição internacional penal, que elide qualquer possibilidade de invocação de imunidade de jurisdição por parte daquele que cometer crimes contra a humanidade, genocídio, crimes de guerra ou de agressão. Em que medida essa nova jurisdição pode conviver com o pressuposto da soberania dos Estados, assegurada pela própria carta da ONU, art. 2º, e fundamento de nossa ordem constitucional, conforme o art. 1º, I, do texto constitucional? Outra questão, mais específica, também se apresenta como problema para que o Brasil venha a se submeter à jurisdição da Corte Penal Internacional. Como se sabe, o art. 77, b, do Tratado de Roma prevê a possibilidade de prisão perpétua, punição expressamente proibida pelo art. 5º , XLVII, a. Também ocorre uma tensão entre o instituto da entrega, previsto no art. 89 do Estatuto, e o art. 5º, LI, da Constituição, que proíbe a extradição de brasileiros. Essa questão, porém, será deixada de lado nesta apresentação.

O que torna a tensão entre o Tratado e a Constituição ainda mais dramática é o fato de o direito de não ser punido com a pena de prisão perpétua constituir cláusula super-constitucional, ou pétrea, por força do art. 60, § 4º, IV, da Constituição Federal. Se esse direito não pode ser abolido sequer por uma emenda constitucional, o que dizer por um decreto legislativo, que autorize a adesão do Brasil a um tratado internacional. O mesmo se diga em relação a delegação de soberania. Embora a soberania não constitua cláusula super-constitucional explícita, é evidente que a soberania popular não pode ser delegada pelo legislador.

Ao meu ver, no entanto, a Constituição jamais deve ser interpretada de forma mecânica. Sendo a Constituição um instrumento que serve como elo de ligação entre o mundo da ética-política com o mundo do direito, a sua adequada compreensão não pode dispensar um olhar mais abrangente sobre o significado de seus dispositivos. Se é correto afirmar que a Constituição brasileira e o Tratado de Roma têm uma finalidade comum, que é a proteção da dignidade humana, embora discordem em relação a alguns dos meios para atingir seus objetivos, é nossa obrigação como intérpretes do Direito buscar verificar em que medida esses dois instrumentos podem ser harmonizados.

 

2 REGRAS E PRINCÍPIOS

 

Como a eventual adesão do Brasil ao Tratado que estabelece a Corte Penal Internacional desperta uma tensão entre diversas regras e princípios reconhecidos pela Constituição de 1988, é fundamental que se tenha maior clareza sobre como lidar com conflitos e colisões de normas dentro da Constituição. Daí se iniciar com um tópico sobre regras e princípios.

A Constituição, como o Direito em geral, é composta por regras e princípios. As regras, normalmente, são diretivas, que determinm a conduta dos sujeitos, deixando pouquíssimo espaço de discricionariedade àquele que deve aplicar a norma. As regras são normas dotadas de um enunciado com grande concretude. Se uma pessoa cometeu um homicídio e esse fato é indisputável, ela deve ser punida em conformidade com o disposto no art. 121 de nosso Código Penal. Evidente que há circunstâncias excepcionais, previstas pela própria regra, que podem bloquear a punição. Mesmo assim a diretiva e as exceções são previstas na própria regra, não reduzindo a sua concretude. Nesse caso, o trabalho do intérprete será bastante reduzido. As regras são ainda aplicadas num tudo ou nada. Quando se encontram em conflito umas com as outras, devem ser integralmente aplicadas ou simplesmente desaplicadas, em conformidade com alguma outra regra voltada a solução de conflitos, como: regra posterior revoga regra anterior; regra superior prevalece sobre inferior; regra específica sobre a mais genérica. Portanto, se uma for aplicável, isso significa que a outra ou é inválida ou não se aplica àquele caso concreto.

Os princípios, por sua vez, têm um conteúdo mais aberto e, geralmente, uma carga de abstração maior que as regras. Portanto, cabe ao intérprete trabalhar para um adequado preenchimento do conteúdo semanticamente aberto dessas normas. No entanto, não é apenas o caráter morfológico que distingue regras e princípios. Os princípios constitucionais são aqueles que estabelecem o código ético, a referência de justiça de uma Constituição. Ao incorporar idéias como igualdade, liberdade, dignidade humana, democracia etc., a Constituição traz para dentro de si princípios de justiça de difícil determinação. O fato de terem se tornado Direito positivo não elimina o conteúdo ético desses dispositivos. Mais do que isso, para a sua determinabilidade, não basta uma mera compreensão técnica do Direito. Diferentemente de termos que vêm sendo lapidados por séculos pela ciência jurídica, os princípios de justiça de uma constituição são marcados por séculos de disputas a respeito do seu sentido. A sua positivação, ao invés de por fim a um conflito em relação a esses valores, instaura esse conflito no cerne do Direito, especificamente na tarefa de interpretação e aplicação do Direito.

 Do ponto de vista jurídico, o que significa falarmos da dignidade humana? Não é claro. Temos, assim, de buscar o conteúdo dessa expressão fora do Direito, seja na filosofia política, na teoria moral, no consenso político da realidade, ou em alguma forma de argumentação racional. O fato é que a Constituição criou dispositivos abertos à interpretação e à argumentação e, para que possamos aplicá-lo, temos de dar um passo além da própria Constituição.

Outra diferença em relação aos princípios é que quando estes entram em conflito com outras normas, sejam elas princípios ou regras, não buscam a simples exclusão da pretensão normativa dos demais dispositivos. Quando ocorre a colisão entre dois princípios, ambos continuam tendo validade e buscando determinar a conduta daquele que estiver obrigado pela norma. Ao invés de um excluir o outro, ambos devem harmonizar-se, ainda que, em cada situação, um princípio possa ganhar mais peso que os demais. Da mesma maneira, quanto uma regra entra em conflito com um princípio, temos de buscar outra forma de solucionar este conflito, que não o modelo tradicional para a solução de conflitos entre regras acima exposto. A aplicação de uma regra a um caso concreto jamais pode desprezar a também aplicação de um princípio pertinente, pois um dos objetivos dos princípios é exatamente permear o conteúdo das regras e orientar a sua aplicação.

Dito isso, vejamos como enfrentar e buscar superar as tensões referentes à imunidade de jurisdição e ao princípio da soberania e a questão da prisão perpétua.

 

3 IMUNIDADE DE JURISDIÇÃO E SOBERANIA

 

A Constituição estabelece, no caput do seu art. 1º, que o Brasil é um "Estado democrático de Direito", que tem por fundamento, entre outros, o princípio da "soberania" e da "dignidade humana". Creio que o ordenamento jurídico dos Estados democráticos de Direito, fundados na dignidade humana, devam ter necessariamente repúdio a todos os crimes que encontram-se sob a jurisdição da Corte de Roma. Portanto, esses princípios levam-me a achar que o que está estabelecido no Estatuto deve, em princípio, ser incorporado ao nosso sistema jurídico. Mais do que isso, há uma determinação expressa no sentido de que o Brasil propugne pela criação de um tribunal internacional de direitos humanos (art. 70 do ADCT). O princípio da soberania, no entanto, poderia apresentar alguns problemas para a adesão do Brasil a esse tratado, como se verá a seguir.

A imunidade de jurisdição, reconhecida pelo Direito Internacional Público, é aquela voltada à proteção da soberania dos Estados e de seus representantes, sem a qual não há lugar para as relações diplomáticas. A idéia original de absoluta imunidade de jurisdição deriva de um conceito hobbesiano-maquiavélico, ex parte principe, de soberania. O princípio da soberania vem, no entanto, passando por um processo, se não de erosão, pelo menos de transformação. Os direitos humanos, nos últimos 50 anos, constituem um dos elementos que vêm pressionando o conceito tradicional de soberania. Isso ocorre na medida em que se estabelece uma série de limitações ao poder dos Estados, que se vêem obrigados a prestar contas de suas relações com os seus cidadãos a organismos internacionais.

O sistema internacional de direitos humanos, somado ao atual estágio de desenvolvimento das democracias constitucionais, abre espaço para uma perspectiva mais rousseau-kantiano de soberania, ex parte popoli. A soberania, dessa perspectiva ética, passa a ter uma razão fundamental, que é a proteção de série de direitos das pessoas sob sua jurisdição. Aliás, como apregoam os contratualistas. Ao Estado só é legítimo o exercício do poder, enquanto este exercício estiver voltado à proteção dos direitos. À medida que o Estado deixa de realizar as tarefas para as quais foi constituído, deixa também de ser protegido pelas prerrogativas da soberania.

Na esfera doméstica, a prevalência da soberania no sentido rousseau-kantiano sobre a soberania de inspiração maquiavel-hobbesiana, não causa surpresa. A derrubada de um regime autoritário, ou mesmo a fragmentação de um Estado, em nome da autodeterminação dos povos, são reconhecidamente atos legítimos do povo, contra governantes tirânicos. Na esfera internacional, no entanto, por mais que tenhamos progredido nas últimas décadas, a política e o Direito Internacional continuam a ser vistos como esferas predominantemente estatais.

O Estatuto da Corte Penal Internacional de Roma vem, assim, introduzir mais pressão sobre o conceito tradicional de soberania. Ao estabelecer uma jurisdição internacional permanente para julgar os crimes contra a humanidade, os crimes de guerra e o genocídio, a esfera de ação dos Estados e de suas autoridades fica ainda mais regulada pelo Direito Internacional Público. Soma-se, dessa forma, uma esfera penal/individual, à regulamentação decorrente dos demais tratados de direitos humanos.

No que se refere particularmente à imunidade de jurisdição, o Estatuto de Roma impõe um avanço muito grande. Destaque-se, em primeiro lugar, que, no caso da Corte de Roma, a imunidade de jurisdição também não se apresenta de forma clássica, uma vez que não temos um Estado e suas autoridades sendo julgados por outro Estado, à revelia de sua vontade, mas sim autoridades de um Estado sendo julgadas por um organismo internacional, ao qual se submeteram voluntariamente os Estados.

Para ilustrar a questão desse conceito mais kantiano de soberania aqui defendido, buscarei trazer os principais argumentos levados a cabo pelos magistrados da Corte Judiciária da Câmara dos Lordes do Reino Unidos, no caso Pinochet, ao discutirem a questão da imunidade de jurisdição.

O fato de Pinochet ser mantido sob custódia em território inglês, aguardando a decisão da procedência ou não do pedido de extradição formulado pela Justiça espanhola, pôs em debate o alcance da imunidade diplomática em contraposição à prática de violações sistemáticas dos direitos humanos. Tratava-se de verificar se Pinochet tinha ou não direito a gozar do instituto jurídico da imunidade de jurisdição, na forma diplomática, conforme anunciou o Lorde Slynn of Hadley, na abertura da primeira decisão, em 25 de novembro de 1998: The sole question is whether he is entitled to immunity as a former Head of State from arrest and extradition proceedings in the United Kingdom in respect of acts alleged to have been committed whilst he was Head of State.

No caso em questão, a legislação britânica, decorrente de uma série de tratados diplomáticos firmados no decorrer do tempo, parece não deixar dúvida de que chefes de Estado e ex-chefes de Estado gozam da referida imunidade quando em solo britânico. Mesmo assim o tribunal resolveu conhecer do pedido de extradição formulado pelo governo espanhol. Conforme ficou demonstrado pelo voto da maioria dos magistrados, a questão sobre a imunidade “proteger ou não o ex-ditador”, não era tão simples como poderia sugerir uma rápida leitura do texto legal. O silogismo: a lei garante imunidade aos ex-chefes de Estado – Pinochet é um ex-chefe de Estado; logo, deverá ter sua imunidade garantida – foi posto à prova, no que se refere a sua premissa.

Para os votos vencedores, antes de se declarar a imunidade do ex-ditador, era necessário verificar se os atos de violação dos direitos humanos de responsabilidade do general, como amplamente demonstrado pelo conjunto probatório, eram compatíveis com a função de chefe de Estado ou não. Anteciparam-se a eventuais críticas, questionando-se se seria uma atribuição de um tribunal estrangeiro determinar se o comportamento A ou B de um governante era ou não digno de um chefe de Estado. Concluíram que isso estaria fora de sua alçada legal e portanto seria uma interferência na soberania do Estado estrangeiro. Mais do que isso, seria muito arriscado para qualquer tribunal se arvorar em guardião último do que devem ou não fazer os chefes de Estado.

Antes porém de dar o caso por encerrado, lembraram que se não há um estabelecimento preciso do que constitui a função de chefe de Estado, há, pelo menos, restrições sobre o que não é admitido ao Estado, no que se refere a sua relação com os seus nacionais. Se um Estado não pode torturar ou liqüidar arbitrariamente os seus inimigos e se isto constitui um crime internacional, evidente que ao cometer atos que constituíram graves violações de direitos humanos, o General Augusto Pinochet estava violando frontalmente o Direito Internacional. Nesse sentido, os atos contrários a lei internacional não podem ser considerados atos do Estado chileno, mas sim das pessoas que se encontravam no exercício do poder. Dessa forma, aquela imunidade que deveria salvaguardar as pessoas, para não colocar em risco a soberania nacional, perde totalmente o seu sentido. Não pode o Direito Internacional ser utilizado como escusa para sua própria implementação. Em outros termos, não podemos invocar os tratados diplomáticos sobre imunidade para não aplicar os tratados internacionais de direitos humanos.

De acordo com o tribunal, ao praticarem atos de violação sistemática de direitos humanos, como os praticados pelo ex-ditador e seu asseclas, estes se despiram da condição de agentes de Estado e agiram na condição de delinqüentes comuns, pois par o Direito Internacional a prática de violação de direitos humanos não é compatível com a posição de agente de Estado, quanto mais de chefe de Estado. Dessa forma a imunidade prevista na lei inglesa não deveria beneficiar o ex-ditador.

Como dito, o impacto dessa decisão foi enorme, especialmente por concluir pela necessidade de se estabelecer parâmetros éticos legais para o exercício da função de chefia de Estado. O resultado do julgamento foi mais surpreendente pois articulado a partir de uma densa e sólida construção jurisprudencial e não de uma simples argumentação jurídica voltada a justificar interesses políticos subalternos. Caso os demais tribunais do mundo tenham a intenção de levar a sério o complexo instrumental de direitos humanos posto a sua disposição, nas últimas décadas, dificilmente conseguirão desprezar a lógica que imperou na primeira decisão da Câmara dos Lordes.

O Estatuto de Roma vem reforçar essa lógica que dominou a argumentação dos magistrados no caso Pinochet, ou seja, no que diz respeito à sistemática violação de direitos humanos, o conceito tradicional de soberania deve ceder espaço, como esfera de proteção de atos arbitrários dos governantes.

Se aceitarmos que o princípio da soberania deve harmonizar-se ao da dignidade humana, encontrando-se por esse limitado, não se poderá admitir qualquer dúvida em relação à necessidade de se compreender a soberania brasileira como um instrumento de realização da dignidade humana. Aliás, qualquer constituição democrática, que respeite os direitos humanos, estará obrigada a organizar a soberania do Estado de forma instrumental.

Mais que isso, do ponto de vista normativo, temos muita clareza de que a Constituição brasileira dirige o político brasileiro, seja o Executivo ou o Legislativo, para a criação de um Tribunal Internacional, como o de Roma. O art. 7º do ADCT não é uma norma meramente programática. Não está na Constituição à toa; trata-se de uma diretiva aos nossos diplomatas e legisladores.

Analisadas essas premissas, não pode restar dúvida da compatibilidade do nosso ordenamento constitucional e a intenção de se estabelecer uma Corte Internacional voltada a coibir atos tão bárbaros como o genocídio, os crimes contra a humanidade, os crimes de guerra e agressão. Passemos então para a questão relativa à prisão perpétua.

 

4 PRISÃO PERPÉTUA

 

Conforme já mencionado, o art. 77, b, do Estatuto de Roma, estabelece a possibilidade de (...) reclusão perpétua quando o justifique a extrema gravidade do crime e as circunstância pessoais do condenado, o que colide com o disposto no art. 5º, LXVII, b, da Constituição Federal, segundo o qual (...) não haverá penas (...) de caráter perpétuo. Como também já dito, os direitos e garantias fundamentais constituem parte do cerne super-rígido da Constituição brasileira, ou seja, não podem ser abolidos sequer por força de emenda à Constituição, quanto mais por ato infraconstitucionais, como o que autoriza o Executivo a assumir compromissos internacionais. Visto nesse plano, a previsão da pena de prisão perpétua no Estatuto simplesmente inviabilizaria a adesão do Brasil a este tratado; lembrando sempre da vedação prevista pelo Estatuto à possibilidade de reservas. Adotar essa interpretação mecânica da Constituição, no entanto, não me parece adequado, pois afastaria a possibilidade de se ampliar a esfera de proteção da dignidade dos brasileiros, por intermédio de mais um mecanismo de direitos humanos, que é a Corte Penal Internacional.

Antes de avançar os argumentos sobre o sentido das cláusulas superconstitucionais, é necessário destacar que o Supremo Tribunal Federal não tem tido nenhum problema em autorizar a extradição para países onde há a pena de prisão perpétua, mesmo quando o réu concretamente corre o risco de ser encarcerado perpetuamente. Diga-se, aliás, que em mais de uma ocasião o Supremo Tribunal Federal autorizou a extradição para Estados que admitem a pena de morte, com a condição de que houvesse a comutação desta pena pela de prisão perpétua. Isso se justifica pelo fato de que a Lei n. 6.815/80, que regula a extradição no Brasil, por força do seu art. 91, não restringe a extradição em função da prisão perpétua. Há, assim, uma duplicidade no ordenamento jurídico brasileiro: domesticamente não se admite, entre outras, a pena de prisão perpétua, mas, para efeitos de extradição, essa pena não constitui uma restrição. Nesse passo a previsão da prisão perpétua pela jurisdição da Corte de Roma não constituiria nenhum obstáculo para o ordenamento jurídico brasileiro, em termos de adesão.

A seguinte objeção poderia ser erguida contra esse argumento: o referido art. 91 da lei que regula a extradição não é compatível com o art. 5º, XLVII, b, da Constituição de 1988, e que, portanto, as decisões do Supremo que aplicam a lei são também inconstitucionais. A essa primeira objeção poder-se-ia argumentar que a Constituição, ao proibir determinadas penas, não pretendeu estender esses limites para os casos de extradição. De fato, quando a Constituição cuida da extradição, estabelecendo regras e limitações para a sua concessão, não inclui entre essas limitações aquelas estampadas no art. 5º , XLVII.

Caso essa argumentação preliminar não satisfaça a todos, é possível, ao meu ver, buscar harmonizar os imperativos da Constituição às exigências da Corte, de forma mais substantiva. Ao estabelecer um rol de princípios e direitos que não podem ser abolidos sequer por emenda constitucional, o objetivo do constituinte foi posicionar esses direitos e princípios acima da possibilidade de deliberação do sistema político. O reconhecimento de cláusulas intangíveis constitui, sem sobra de dúvida, um instrumento antimajoritário, porém justificável democraticamente se os dispositivos entrincheirados estiverem voltados à própria manutenção da democracia e a preservação da dignidade humana, razão de ser de nosso sistema constitucional (Vieira: 1999). Ao vedar a possibilidade de prisão perpétua, entre outras penas como a de morte e as cruéis, o objetivo do constituinte foi restringir a ação do Estado, no exercício do seu poder coercitivo. Se o fundamento do poder do Estado que decorre da Constituição é a dignidade humana, a sua violação não pode ser um instrumento de ação do Estado. É evidente que mesmo as penas admitidas pela Constituição podem ser consideradas uma infringência à dignidade human, porém são infringências autorizadas. Partindo-se do princípio que os direitos não são absolutos, mas que podem ser limitados em função da realização dos direitos dos outros, qualquer ordem jurídica é obrigada a aceitar sanções que se contrapõem à plena realização da dignidade de cada um. Ao autorizar uma pena de reclusão, a Constituição está permitindo que se infrinja o direito à liberdade, que é parte nuclear do princípio da dignidade humana. Essa limitação, no entanto, é legítima, pois faz parte da própria gramática dos direitos, que só podem ter a pretensão de mútua realização se admitirem restrições, uns em função dos outros.

Exemplo do não absolutismo dos direitos é o direito à vida. Embora reconhecido pelo caput do art. 5º da Constituição e reforçado pelo inc. XLVII, a, que proíbe a pena de morte, a própria Constituição prevê que a pena capital pode vir a ser aplicada em caso de guerra declarada. Ou seja, em circunstâncias excepcionais, a vida deixa de ser um direito absoluto. No que se refere à prisão perpétua, no entanto, o constituinte não estabeleceu nenhuma cláusula excepcionando hipóteses em que a restrição constitucional pode ser deixada de lado. Ou seja, nosso ordenamento permite excepcionalmente a retirada da vida mas não o encarceramento perpétuo. Certamente essa decisão parece fazer pouco sentido, pois se permite o mal maior porque não permitir o menor. Porém, a função do intérprete não é reescrever a Constituição, mas tentar compreendê-la, para que essa possa ser aplicada adequadamente. Ou seja, o dispositivo que proíbe a prisão perpétua aparentemente não pode ser confrontado, pois não há permissão explícita para a sua limitação. Digo aparentemente, pois a Constituição não pode ser interpretada aos pedaços. Ler apenas um de seus artigos e tirar conclusões peremptórias constitui um erro primário, pois a Constituição é um todo sistemático, em que as regras não só devem ser lidas em conjunto com outras regras, mas, principalmente, à luz dos princípios que informam todo o sistema.

No caso em tela temos uma regra clara que impede a prisão perpétua, e que, portanto, nos deveria afastar do reconhecimento da Corte de Roma. Por outro lado temos o art. 7º do ADCT, que determina que o Brasil se engaje na criação de uma Corte como a de Roma. Mais do que essas duas diretrizes em sentidos contrários, temos uma série de princípios, como o da dignidade human, o da soberania e o da prevalência dos direitos humanos, que devem ser levados em consideração na tomada de uma decisão como essa. Quando temos um conflito de normas da mesma hierarquia, sendo todas elas pertinentes ao caso e produzidas no mesmo momento, como o art. 7º do ADCT e o art. 5º, XLVII, b, temos de buscar nesses outros princípios um meio de solucionar esse conflito.

O que justifica a proibição da prisão perpétua? Ao meu ver, o pressuposto de que toda a pessoa humana é capaz, em função de ser dotada de razão e qualidades éticas, portanto de dignidade, de se regenerar, constitui a melhor justificativa para se impedir o encarceramento perpétuo. Assim, ao estabelecer que a pena tem um fim, o condenado poderá, durante o tempo de seu cumprimento, “pagar” pelo mal praticado (caráter retributivo da pena), sem, porém, perder de vista a sua condição de ser moral, capaz de arrependimento e conseqüente ressocialização.

Se a dignidade humana é, portanto, a razão pela qual não aceitamos a pena de prisão perpétua, o dispositivo que expressa tal determinação deve ser de alguma maneira reconciliável com a possibilidade de se aderir ao tratado de criação da Corte Penal Internacional, uma vez que o objetivo dessa Corte também é a preservação da dignidade humana. Ao buscar coibir os crimes de genocídio, crimes contra a humanidade, crimes de guerra e crimes de agressão, o objetivo do Estatuto não é outro que não o de buscar preservar a dignidade humana. Temos assim duas normas com mesmo objetivo, sendo que discordam, entre si, quanto aos meios para se atingir esse fim. Enquanto para o Estatuto a prisão perpétua é um meio legítimo, ainda que excepcional, para punir os seus réus, para a Constituição esse meio é inadequado, ainda que para essa mesma Constituição a pena de morte seja eventualmente aceitável, enquanto para o Estatuto a pena capital não é admitida.

O que me parece relevante discutir é qual a norma mais protetiva da dignidade humana: o dispositivo constitucional que veda a prisão perpétua, ou o Estatuto que se utiliza da prisão perpétua como meio para se coibir a violação à dignidade? Ao meu ver, o estabelecimento da prisão perpétua pelo Estatuto de Roma foi um erro, pois, como em Nuremberg, violam-se direitos com o objetivo de proteger direitos. Esta não é um boa prática, do ponto de vista ético. Melhor seria se pudéssemos conciliar a necessidade de punição, com humanidade da pena. Isso porém não foi feito e o tratado não admite reservas. Mesmo assim, o ganho de se contar com um sistema internacional voltado a coibir crimes tão graves como o genocídio, crimes contra a humanidade, crimes de guerra e crimes de agressão, é muito grande, pois a prática de qualquer um desses crimes gera uma violação dos direitos de milhares de pessoas. Porém, na esfera dos direitos de conteúdo moral, como temos nesse caso, os cálculos quantitativos não devem prevalecer.

Há que se ressaltar, no entanto, que de acordo com o Estatuto, a prisão perpétua não deve constituir a regra, mas uma exceção, como se lê no art. 77, b. Mais do que isso, mesmo quando o réu tiver sido condenado à prisão perpétua, essa decisão deverá (não simplesmente poderá) ser revista pela Corte depois de cumpridos 25 anos de pena, conforme dispõe o art. 110, 3, do Estatuto. Portanto, a prisão perpétua não é um imperativo, mas uma possibilidade, que, mesmo se concretizada, deverá ser revista.

Assim, rejeitar a Corte, que pode ser um mecanismo importante para coibir atrocidades, em função da proibição da prisão perpétua estabelecida pela Constituição, pode ser um erro que favoreça a violação da dignidade humana. Trata-se, portanto, de um resultado interpretativo inaceitável. Como então proceder?

Se o Estado brasileiro não pode ratificar o Estatuto fazendo uma reserva; deixar de ratificá-lo viola o princípio da dignidade humana, além de contrariar diversos dispositivos da Constituição; ratificá-lo sem condições, por outro lado, também contraria um dispositivo específico da Constituição. Assim, encontramo-nos frente a um dilema. Nossa única alternativa é buscar encontrar uma interpretação que favoreça, em maior grau, a dignidade humana. Ao meu ver, essa interpretação nos obriga aderir ao Tratado de forma qualificada. Do ponto de vista prático, embora o Brasil não possa fazer reservas, nada obsta que se faça considerações ou declarações interpretativas condicionais no instrumento de ratificação, que busquem a harmonização dos ordenamentos interno e internacional. Essa é uma prática discutível do ponto de vista do Direito Internacional, mas muito utilizada, vide os instrumentos de ratificação depositados pelos Estados Unidos relativos a tratados de direitos humanos. Ao estabelecer considerações e declarações interpretativas condicionais, mas que tecnicamente não constituem reservas, o país adere ao Tratado lançando eventuais dúvidas para o futuro, para uma situação concreta, em que o instrumento de ratificação seja eventualmente questionado. Trata-se de um modelo de adesão condicional, que tradicionalmente não tem sido rejeitado na esfera internacional.

Logicamente que uma opção como essa pode também ser refutada domesticamente. O decreto legislativo que autorize essas obrigações internacionais pode ter sua constitucionalidade questionada frente ao Supremo. Ainda que se aprove a idéia avançada no projeto de reforma do Judiciário, que estabelece um § 6º ao art. 109, com a seguinte dicção: O Brasil se submete à jurisdição de Tribunal Penal Internacional a cuja criação tenha manifestado adesão, esta emenda pode ser declarada inconstitucional.

Há um caso interessante que talvez nos ajude a compreender essa situação. O Tribunal Federal Constitucional alemão deu uma decisão, no mínimo, inovadora no caso do "Tratado da União Européia” (BervfGE, 1993). Alguns juristas alegavam que a emenda à Constituição que autorizou a adesão ao "Tratado de Maastrich" violava vários preceitos da Constituição alemã, dentre eles o princípio democrático e o da soberania popular, uma vez que uma série de atribuições de governo passavam para órgãos da União Européia, que não têm representação popular. O Tribunal alemão, cioso do seu papel, mas consciente da importância da União, proferiu uma decisão pela qual o ato de adesão foi considerado condicionalmente constitucional. O que significa isso? Pareceu-lhes que a razão de ser da União Européia era compatível com os princípios da Lei Fundamental. Dessa forma, enquanto a União agisse em conformidade com os princípios da Lei Fundamental, ou seja, de acordo com os parâmetros da democracia constitucional alemã, o ato de adesão seria considerado constitucional. O Tribunal, no entanto, a qualquer momento poderá rever a sua decisão em face de uma mudança de postura da União Européia, que venha a violar os princípios da Lei Fundamental. A decisão da Corte Alemã, embora tenha gerado uma certa insegurança quanto à posição da Alemanha na União, impôs mais demanda democrática à União, que padece de um reconhecido deficit democrático (Vieira: 1999, 156 e ss).

A constitucionalidade de nossa eventual adesão também pode ficar sujeita ao cumprimento das condições estabelecidas pelo Brasil no seu instrumento de ratificação. Caso a Corte de Roma, num caso específico, não venha a respeitar tais limitações, a adesão do Brasil pode ser declarada inconstitucional, perdendo os seus efeitos.

 

CONCLUSÃO

 

A criação de um Tribunal Internacional, voltado à responsabilização de altas autoridades envolvidas em gravíssimas violações aos direitos humanos, vem preencher uma grande lacuna no sistema internacional de proteção de direitos. Evidente que o surgimento dessa nova ordem exige uma flexibilização dos padrões pelos quais o conceito de soberania é compreendido. Penso, no entanto, que não estamos frente a um momento de ruptura, mas sim de um processo evolutivo iniciado no final da Segunda Guerra. A idéia de que a soberania não se justifica a si mesma e de que a legitimidade do Estado deriva do respeito aos direitos fundamentais e do exercício da democracia, constitui mais um avanço no nosso processo civilizatório. Nesse sentido a Corte de Roma poderá dar uma contribuição importante para a construção de um estado internacional de direito.

Infelizmente há uma tensão entre alguns dispositivos do Estatuto da Corte e da Constituição brasileira. Não podemos permitir, no entanto, que essa tensão se sobreponha à coincidência de princípios entre essas duas ordens. Embora constitua uma jurisdição subsidiária, a Corte de Roma ocupa um espaço na aplicação da lei que dificilmente pode ser ocupado pelos órgãos estatais. Espaço esse voltado a coibir violações massivas de direitos humanos. Assim, vejo a adesão do Brasil a esse tratado como condizente com os princípios básicos que informa nossa Constituição, desde que feitas as ressalvas interpretativas necessárias no documento de ratificação. 

Oscar Vilhena Vieira é Professor de Direitos Humanos da PUC-SP, Diretor Executivo do Instituto Latino Americano das Nações Unidas para a Prevenção do Delito e Tratamento do Delinqüente e Procurador do Estado-SP (afastado).

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