Pinochet e a força
do direito
por José Zalaquett
"Mas se ele os
ajudou na guerra das Malvinas!", disse Fidel Castro,
estranhando a prisão de Pinochet em Londres. Não lhe passou pela
cabeça que os juízes britânicos pudessem atuar com alguma
independência. Não pensam de outro modo os partidários do
ex-general, que consideram sua prisão não como um assunto
judicial, mas como uma mera armação política.
Esse modo de
entender a lei, somente através da lente do poder e da força,
esteve no centro do drama político chileno. Setores da esquerda
chilena de antanho não acreditavam em outra lei que o seu direito
à revolução. Do seu lado, os militares chilenos se ergueram
contra Allende, dizendo-se obrigados a agir para proteger a
democracia e a lei ameaçadas. Mas logo, em nome da defesa do
direito, os agentes do governo violaram, secretamente, as mais
sagradas leis do mundo civilizado.
Muitos partidários
do regime militar não souberam superar esta fundamental contradição
de consciência. Temem que admitir os fatos desate um processo que
acabaria por minar a obra do atual governo chileno. Como tampouco
podem desconhecer os valores transgredidos, optam por negar ou
confundir a verdade.
Esse temores se
tornam mais fortes quando se toca a figura de Pinochet. É ele
quem chegou a simbolizar a obra do governo militar e ao mesmo
tempo quem manteve o mando supremo durante os anos de violações
dos direitos humanos.
É por tudo isso
que, ao desenhar a transição política, o governo militar impôs
elaboradas limitações políticas e legais a fim de não ter de
prestar contas pelo passado. Estas restrições, talvez inevitáveis,
têm gerado efeitos profundamente nocivos na alma do Chile. Dentro
do país, temos aprendido a suportá-los, como quem acaba por
tolerar altos graus de contaminação.
Contudo, a viagem
de Pinochet trasladou nossos dilemas políticos e morais à
Europa, que viveu seu próprio passado de horror, onde há
tratados que os obrigam a cooperar com o combate aos crimes mais
graves e onde não se entende bem a lógica torcida da nossa
esquizofrenia nacional. Sem dúvida, nos países europeus ainda há
tensões entre o poder político e a lei, mas o direito tem um
espaço de majestade e autonomia que no Chile ainda devemos
conquistar.
A lição deste
episódio não é a repetida arenga de que somos vítimas de
alguma conspiração internacional. A verdade é que não apenas a
economia do mundo se globalizou, mas também os direitos humanos.
Se a justiça de outros países se sentiu chamada a atuar, é em
parte porque dentro do nosso território não soubemos fazer o
ajuste moral que devemos a nós mesmos e que de nós espera a
opinião pública mundial.
José Zalaquett
advogado chileno, foi membro da Comisión Nacional de Verdad y
Reconciliación no Chile e membro do Comitê Executivo
Internacional da Anistia Internacional.
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