A
PRISÃO DE PINOCHET E A EXTRATERRITORIALIDADE DA LEI
PENAL: QUANDO A VÍTIMA É A HUMANIDADE
Aury
Celso Lima Lopes Junior
Professor de Direito Penal e Processual Penal da
Universidade do Rio Grande/RS
Doutorando em Direito Processual na Universidade
Complutense de Madri/Espanha
.
.
Como tem sido amplamente noticiado, o ex - ditador e
atual Senador vitalício de Chile Augusto Pinochet, foi
detido em Londres em virtude do pedido de um juiz
espanhol, Baltazar Garzón, aceito pelo juiz inglés
Nicholas Evans. Em um primeiro momento, podem surgir dúvidas
acerca da legalidade de tal prisão, em se tratando de
um ex - presidente chileno, preso em Inglaterra a pedido
de um juiz espanhol. O problema é complexo e deve ser
analizado a partir de três enfoques: jurídico, político
e moral.
A regra geral é que a lei penal de um país somente
seja aplicada no território em que esse país exerce
sua soberania, é o denominado Principio da
Territorialidade da lei penal. Sem embargo, essa regra
possui exceções. Tomando como exemplo o Brasil,
existem exceções previstas no art. 7º do CP, que
permitem à lei penal brasileira, ser aplicada a delitos
cometidos fora do Brasil. Essas exceções constituem o
Principio da Extraterritorialidade da lei penal, pois
permite, em determinados casos expressamente previstos,
que o poder punitivo de um Estado se extenda para punir
as condutas praticadas em outro. Como exemplo de
extraterritorialidade, citamos os delitos que o Brasil,
por tratado ou convenção, se obrigou a reprimir como o
genocídio (de que se acusa a Pinochet). Esse Principio
da Extraterritorialidade, pode ser subdivido, conforme o
caso, em outros principios. No caso do genocidio (Lei
2889/56), se aplica o chamado "Principio da Justiça
Universal" que, visando a cooperação
internacional na luta contra o crime, obriga a que os países
que firmaram o tratado ou convenção, persigam e punam
a todo fato criminoso, independente da nacionalidade do
autor e o local em que ocorreram. Para isso, também é
necessário a presença de determinadas condições,
previstas no art. 7º,§ 2º, do CP, entre elas está o
ingresso do autor no território nacional.
Na Espanha existe similar tratamento jurídico, mas com
uma base muito mais sólida. O Estado espanhol está
interessado em perseguir e punir a estes crimes contra a
humanidade porque é membro de uma comunidade
internacional que foi lesada pelo delito. Espanha não só
pode como deve perseguir, julgar e condenar os culpáveis,
com base na sentença do Tribunal de Nuremberg sobre a
repressão dos crimes contra a humanidade; do Convênio
de Genebra de 1949 que estabeleceu o Principio da Justiça
Universal; do Convênio sobre a Tortura de 1984 e, por
fim, do Pacto Internacional de Direitos Civis e
Politicos de 1966 (Pacto de Nova York).
Na prática, a eficácia da pena depende do ingresso em
território espanhol, e certamente, em nenhum caso,
Chile permitiria a extradição de un nacional e muito
menos com essas prerrogativas. Mas ao sair dessa esfera
de proteção, Pinochet permitiu a rápida intervenção
do juiz instrutor, que já está elaborando o pedido de
extradição que Espanha poderá apresentar (dependerá
agora do Poder Executivo) a Inglaterra. Ao sair do
Chile, Pinochet deu uma mostra do sentimento de
impunidade e de desprezo à comunidade internacional que
lhe está custando caro. Entre as vítimas da ditadura
chilena estão cerca de 94 espanhóis, o que reforçaria
a legitimidade punitiva espanhola frente a mais completa
inércia do governo chileno em punir os delitos
cometidos. Como fundamenta o juiz Baltazar Garzón em
sua decisão, os crimes contra a humanidade são
imprescritíveis, perseguíveis em qualquer Estado e a
qualquer momento. Para esses delitos, não existe asilo
politico, imunidade diplomática nem qualquer lei
interna que impeça a perseguição, julgamento e punição,
pois a vitima é a própria humanidade.
No plano político e das relações internacionais, o
tema apresenta graves problemas. Como explica W.Goldschmidt,
nos "assuntos vitais" como os de Direito
Internacional Público, o Estado actúa como juiz, como
parte e também como legislador. Isso compromete a
imparcialidade, porque quem julga não está
extra-partes, senão que é parte. O maior obstáculo ao
bom funcionamento do Direito penal e processual penal
está na contaminação politica da atividade
jurisdiccional. Sempre que o processo está frente a uma
"Causa de Estado", sua eficácia é
prejudicada pela perda da imparcialidade de quem julga.
Também pode ser considerado como uma intromissão na
soberania do Estado chileno. Em palavras simples, muitas
são as vozes que defendem que cada Estado deve resolver
seus problemas e, se for o caso, conviver com seus
proprios fantasmas. Assim ocorreu em outras ditaduras
como a argentina e a brasileira. Esse é o fundamento básico.
Sem embargo, os tratados e convenções internacionais são
exatamente um instrumento que ameniza o rigor da
soberania estatal, pois representa a submissão do país
aos interesses da comunidade internacional em um
determinado tema. Argumentam os defensores de Pinochet,
que existe uma lei interna de anistia e que o ditador
goza das prerrogativas de Senador vitalício. O tema é
complexo, mas entendemos que se deve levar em consideração
que a lei de anistia foi feita pelo próprio Pinochet,
que obviamente criou uma estrutura que assegurasse sua
impunidade. Não satisfeito, se auto-elegeu como Senador
vitalício para ter ainda mais segurança. A democracia
chilena é frágil e prova disso é o medo que ainda
existe em relação às forças armadas, que ainda estão
sob o mando "efetivo" do ditador e que
periodicamente dão demonstrações de que a
"democracia" é aparente e limitada. Trata-se
de um aparente Estado de Derecho. Sobre a soberania que
protege a impunidade de um criminoso, pairam sérias dúvidas
acerca de sua respeitabilidade. Tampouco se pode aceitar
que leis internas de tal natureza sejam respeitadas pela
comunidade internacional, principalmente nos crimes
contra a humanidade.
O último fundamento, intimamente relacionado com o
anterior, é a legitimidade moral. E sobre a
legitimidade moral da Espanha, realmente pesam sérias dúvidas.
Os mais de 40 anos da ditadura do general Franco e as inúmeras
atrocidades cometidas nesse período - como a pena de
morte por garrote vil em plena década de 70 - levaram
algumas autoridades chilenas a criticar seriamente a
conduta da Espanha, que primeiro deveria resolver seu
problemático passado para ter legitimidade de cobrar de
outros Estados uma postura que ela propria não teve.
Dentro da Espanha também existe alguma resistência, não
só de uma minoritária ala de extrema direita, que
ainda cultua ao ex - ditador Franco, como também do
Ministério Público. Com um frágil argumento jurídico
que mascara divergências de outras naturezas, o
Procurador Geral do Ministério Público interpos um
recurso contra a decisão interlocutória do juiz
instrutor, alegando incompetência e nulidade por ausência
de intimação do MP do pedido de prisão. É uma resistência
interna que também deverá ser resolvida,
principalmente tendo em vista o futuro processo penal
que irá ser instaurado se Pinochet chegar a ser
extraditado.
Esta perseguição internacional a Pinochet não é um
caso isolado. Outros ditadores e militares que apoiaram
a tirania (porque sem o apoio do exército não se mantém
uma ditadura), receberam o aviso vindo da Espanha. Nessa
situação, outros dez ex - militares não se arriscam a
sair de Argentina por medo de serem detidos e julgados
em outros países.
O ex - almirante Eduardo Emilio Massera, mesmo indultado
pelo Presidente Carlos Menem, leva um ano sem poder sair
da Argentina porque existe uma ordem de prisão expedida
pelo mesmo juiz Baltasar Garzón, e que está em poder
da Interpol para ser cumprida tão logo o ex - militar
saia de seu país.
Um total de 152 generais e oficiais integram uma lista
de imputados na instrução preliminar de 16.000 páginas
que o juiz instrutor Baltazar Garzón leva a cabo em
Madri.
Como noticia o jornal espanhol "El País", além
da Espanha, outros países também perseguem aos
ditadores que durante décadas torturaram e mataram na
América Latina. Na França, o Capitão da Marinha
argentina Alfredo de Astiz, foi julgado e condenado a
revelia em Paris, e se abandonar seu país, certamente
será extraditado para cumprir a pena que lhe impôs a
justiça pelo sequestro e desaparecimento de duas monjas
francesas. Na Itália, tramita um processo contra o
General argentino Guillermo Suaréz Mason pelo
desaparecimento de oito italianos. Também existe um
processo contra militares argentinos tramitando em
Alemanha, pelo desaparecimento de oitenta pessoas. O
governo de Suécia estuda a possibilidade de processar a
militares argentinos pelo desaparecimento
de uma jovem sueca na época da ditadura.
O Brasil também possui uma dívida pendente, pelos
muitos anos de ditadura militar, que não será paga por
meio de indenizações, senão em "moeda justiça",
quando os militares que torturam e mataram começarem a
ser julgados. Isso nunca irá ocorrer na ordem interna e
os torturadores de outrora, infelizmente, podem ficar
tranquilos, pois a ausência de um líder passivel de
ser individualizado, lhes concede o anonimato e a
impunidade também na esfera internacional. A chamada
"Operação Condor" que uniu a repressão de
Chile, Argentina, Paraguai, Uruguai e Brasil, é uma
triste recordação que mostra que a integração para
sequestrar, torturar e matar é muito mais sólida e
eficaz que o alardeado "Mercosul". Até hoje,
a verdadeira liberdade de trânsito só existiu para que
militares intercambiassem os passageiros do vôo da
morte.
Concluindo, a conduta do juiz espanhol e que até o
momento vem sendo apoiada pelas autoridades inglesas, têm
suporte legal válido e suficiente. No plano político,
deve prevalecer o interesse da comunidade internacional
em punir e a não pactuar com a impunidade que goza o
ditador chileno (entre muitos outros) às custas da
imunidade como senador vitalício, uma construção técnica
artificial que só se sustenta porque a democracia
chilena é ainda mais frágil que a artimanha do
ditador. A falta de atividade do governo chileno
autoriza a que se fale em "perda da legitimidade
democrática" para se opôr a que outros Estados
levem a cabo a justiça que Chile não teve condições
de realizar. No plano moral, realmente Espanha possui
"esqueletos no guarda-roupa", mas isso
tampouco pode, por sí só, impedir que a comunidade
internacional apóie essa iniciativa, que diga-se de
passagem, não existe só em Espanha, senão que está
se tornando uma rotina seguida por países como
Alemanha, Itália, e França.
Em última análise, a uma globalização econômica
também se está dando mostras de que existe uma saudável
globalização da justiça, para impedir que as barbáries
de outrora gozem da mais completa impunidade. É um sério
aviso aos antigos ditadores em situação de
"retiro".
É possível que Pinochet nunca ingresse em território
espanhol e que jamais seja julgado pelas atrocidades que
cometeu, mas sem dúvida, os defensores dos direitos
humanos, as vítimas da ditadura chilena, os defensores
da legalidade e do Estado Democrático de Direito, estão
vivendo um momento de satisfação único. Nada mais
agradável que ver a um símbolo da prepotência descer
do pedestal. O medo pode se impor na ordem interna, mas
a comunidade internacional não pode ser cúmplice do
terror.
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