Pinochet e
a encruzilhada dos direitos
A possibilidade de extradição do general Pinochet para a Espanha
e a enorme repercussão desse fato na opinião pública mundial
podem ser interpretadas num duplo sentido. Por um lado, marcam a
coexistência no cenário internacional de dois modelos distintos
de ordem mundial e, por outro, sugerem uma possível transformação
nas relações internacionais.
Aqueles que
se opõem à extradição do ditador sustentam a sua imunidade na
qualidade de ex-chefe de estado e defendem a falta de jurisdição
tanto da Inglaterra quanto da Espanha para julgar os crimes em
questão, com base no princípio da não-intervenção e em noções
como "razão de Estado", "atos de Estado",
"autonomia" e "soberania" do Chile.
Os
defensores da extradição, por sua vez, alegam que Pinochet
chegou ao poder ilegitimamente através de golpe e lá se manteve
pela força, não devendo, portanto, estar coberto pela imunidade
soberana. Sustentam ainda que crimes contra a humanidade
praticados pela ditadura de Pinochet são reconhecidos como
imprescritíveis pelas Convenções Internacionais e a sua punição
possui caráter obrigatório que não pode ser afastado por
nenhuma imunidade. Lembram que não há nenhuma possibilidade jurídica
de Pinochet ser julgado no Chile, diante da Lei de Anistia de 1978
e da Constituição de 1980, que lhe concedeu uma cadeira vitalícia
no Senado com imunidade parlamentar.
Seja qual
for seu desenlace, o episódio ilustra com clareza o embate de
duas lógicas distintas que correspondem a modelos diferentes de
ordem política mundial. Por um lado, denota a crise da ordem
internacional baseada no equilíbrio de forças entre Estados-Nação
e consagradora dos princípios da territorialidade, soberania,
autonomia e legalidade. De outro, acena para a possibilidade de
uma nova ordem, baseada em uma cidadania planetária e na
universalização dos direitos humanos, refletindo tanto a
persistente influência dos Estados como a ação de movimentos
sociais e associações transnacionais da sociedade civil.
O modelo tradicional de ordem mundial, criado pelo tratado de
Westfalia em 1648, pressupõe a autonomia do Estado territorial,
que, movido exclusivamente pela sua raison d'état, celebra
acordos com outros Estados igualmente soberanos. As relações
entre eles são regidas por um direito internacional, em que
apenas os Estados são sujeitos de direito.
Importa
ressaltar que a ideologia do Estado incluía a pretensão de que
tal sistema de distintas soberanias garantiria o bem-estar da
humanidade. No entanto, o princípio da territorialidade está
fracassando como critério para uma ordem mundial que se pretenda
guardiã do bem-estar da humanidade. Como se constata facilmente
diante da realidade. As causas desse fracasso são diversas. Em
primeiro lugar, a vulnerabilidade do Estado, que perde a
capacidade de garantir isoladamente a segurança em face da ameaça
nuclear e de armas de longo alcance. Em segundo lugar, a proteção
ao meio ambiente: o Estado não consegue resguardar seu território
dos efeitos adversos do comportamento extra-territorial e nem
mesmo proteger autonomamente os chamados global commons (oceanos,
atmosfera). Por fim, a viabilidade econômica do Estado não pode
mais ser assegurada com base apenas em esforço próprio,
prevalecendo cada vez mais regimes regionais e globais. Nessas três
dimensões, o bem-estar da humanidade requer uma lei que seja
operativa também no âmbito supranacional, requer um direito da
humanidade.
Negar a
transição entre esses dois modelos de ordem política mundial, o
de Westfalia e este outro que se prenuncia, é acreditar na permanência
do Estado-Nação, tal como o entendemos hoje, como única
alternativa viável para as relações internacionais. Perde-se de
vista o fato de que ele é uma criação histórica determinada
por circunstâncias que não mais existem diante da globalização
e das mudanças ocorridas no leste europeu.
Vivemos uma
fase de transição entre uma velha ordem, que já apresenta
sinais de decadência., e uma nova que ainda não teve força para
implantar-se. Quis o destino que Pinochet fosse colhido nas malhas
dessa encruzilhada do direito internacional e se tornasse o
primeiro caso exemplar do novo paradigma.
Responsável direto pela tortura e assassinato de dezenas de
milhares de cidadãos que lutavam pela democracia, inclusive de
seu colega de armas, o ex-chefe do Exército chileno, general
Pratts, assassinado em Buenos Aires, e o ex-ministro do Exterior
Orlando Letelier, assassinado em Washington, com a possível conivência
da CIA, Pinochet encarna como ninguém a figura jurídica do crime
contra a humanidade, cujo julgamento transcende hoje a soberania
nacional.
Os direitos
individuais da pessoa humana deixaram de ser apenas uma questão
interna de cada nação, passando a encontrar proteção
internacional contra o vandalismo e as violações do despotismo e
da tirania. O novo julgamento da Câmara dos Lordes pode até ser
favorável a Pinochet, mas as luzes da ordem futura já projetam
alguma esperança em relação às sombras do arbítrio passado.
Márcia
Bernardes, Mestranda de direito da PUC - Rio e Liszt Vieira,
Defensor Público e doutorando do Iuperj.
Jornal do Brasil, 18/02/1999
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