Chupa que a
cana é doce, Pinochet
por
Gustavo Ioschpe
Desde que o
marido/guarda-costas da princesa Stephanie foi pego com a
boca na botija e a mão na massa, sendo cuspido do seio da
família real de Mônaco, que eu não fico tão feliz com
a desgraça alheia (a esperança é a última que morre,
malandro).
A prisão
do general Augusto Pinochet é um dos poucos casos daquilo
que pode se chamar de Justiça. Se não me falha a memória,
seria a primeira vez desde Eichmann que um monstro dessa
estatura vai a julgamento, ainda que o resultado de ambas
as empreitadas deva ser diferente (Eichmann, um dos
principais artífices da política da "solução
Final" nazista durante a Segunda Guerra, foi seqüestrado
e levado à julgamento em Jerusalém, tendo sido condenado
e executado por crime contra a humanidade).
Durante
quatro décadas, de 1973 a 1990, Pinochet foi a encarnação
daquilo que costuma se chamar de "o Mal" nas
histórias infantis. Governou o Chile com mão de titânio,
matando e torturando milhares de pessoas, causando o exílio
de milhares de outras mais e, talvez, sufocando por muitas
décadas, qualquer resquício de vida democrática daquele
país. Recapitulando: em 1973, o governo democraticamente
eleito do socialista Salvador Allende começa a ser visto
como esquerdista demais por setores reacionários chilenos
e pelos americanos. As direitas locais, ajudadas pela CIA,
criam um clima de agitação e desordem no país, a ponto
de justificar a idéia de que se está indo em direção a
uma guerra civil (qualquer semelhança com a história
brasileira não terá sido mera coincidência).
Os
militares chilenos, mui patrióticos, evitam a "catástrofe"
retirando do poder aquele socialista degenerado. Durante
horas, as tropas do general Pinochet bombardeiam o palácio
presidencial de La Moneda, onde se refugiava Allende.
Allende, acuado, se mata. Pinochet e sua junta militar
tomam o poder e começam a montar seu bote inflável, a
deslizar sobre o rio de sangue de seu regime. A ditadura
Chilena foi particularmente brutal. O terrorismo estatal
foi ao mesmo tempo crônico e agudo, caprichando na
intensidade da repressão e mantendo-a por muitos anos.
Fica na história universal da infâmia o episódio do
Estado Nacional de Santiago, quando milhares de opositores
do regime foram confinados ao gramado central e, então,
brutalmente espancados e assassinados, numa carnificina
monumental.
O tempo
passou, Pinochet manteve-se inabalável, até que saiu do
poder em 1990, para virar chefe do Exército e, depois de
mexer na Constituição, garantiu a vaga de senador vitalício,
cargo que lhe assegura im(p)unidade. Assim ia se safando,
espertamente, esse homem, creditando seus múltiplos
abusos a uma "guerra" entre o regime e seus
oposicionistas, a qual nunca existiu. O que houve foi um
grupo de bravos a resistir a uma ditadura bestial, e por
isso pagaram com a própria vida.
O governo
Pinochet foi repulsivo, assassino. Que esse homem virasse
um senador e nunca respondesse por seus crimes seria uma
afronta à decência humana, uma mancha indelével,
carregada não só pelos chilenos, mas por qualquer ser
humano.
Pinochet
ofendeu a humanidade e, apesar de seus crimes não terem
punição adequada, o fato de ter sido preso e interrogado
lava a alma. Com essa exibição pública de repúdio a um
dos crápulas do século, mostra-se aos que sob ele
pereceram que a luta destes não foi em vão. Saem, assim,
do véu negro do esquecimento, que assassina o único
patrimônio que lhes resta: a memória.
Gustavo
Ioschpe, 21,
é escritor e estuda administração na Wharton School
e ciência política na University of Pennsylvania, EUA
(Folha de São Paulo - 26/10/98).
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