GLOBALIZAÇÃO,
PINOCHET E O
TRIBUNAL PENAL INTERNACIONAL
Bruno S. Paranhos
servidor do MPDFT em
Brasília,
acadêmico de Direito do UniCEUB-DF
Introdução
Vivemos em um
mundo globalizado. É fato. Quer queiramos ou não esta é a
realidade.
Globalização
deriva da palavra globo, obviamente entendida aqui como planeta,
especificamente o nosso planeta Terra. Poderíamos falar então em
"planetarização" ou "terrarização", porém
a "intelligentsia" preferiu globalização e, mal
ou bem, cá estamos.
Pelo
"peixe" que se vende, entenderíamos globalização como
uma espécie de extinção das fronteiras nacionais, ou, para não
ser tão radical, uma diminuição considerável de suas
barreiras. Afinal, somos todos humanos.
Os benefícios de
tal importante processo são tão óbvios que nem precisariam ser
expostos, porém, se assim o fazem, é para simplesmente alcançar
aqueles menos privilegiados que nem o óbvio conseguem atingir:
será o fim das diferenças econômicas, ocorrerá uma maior
aproximação das diversas culturas, haverá uma grande melhoria
de qualidade de vida dos nacionais pelo acesso a produtos de
"ponta", fantástico melhoramento das relações
comerciais, aumento considerável do fluxo de recursos financeiros
e tecnológicos aos países menos desenvolvidos, a supressão,
enfim, de inimizades históricas, o fim de todos conflitos e, quem
sabe, um dia, o fim de todas as guerras. O paraíso será aqui.
E para levar a cabo
tamanha revolução, nenhuma gota de sangue deverá ser derramada.
Basta que os representantes das diversas nações, homens
íntegros e iluminados, sentem à mesa, conversem seriamente por
algumas horas, assinem tratados, obedeçam a algumas poucas regras
comunitariamente estabelecidas e necessárias ao bom funcionamento
do futuro sistema (regras que nem ao menos estipulam, dada sua
distinta natureza, sanções ao seu descumprimento) e pronto: da
mistura mágica nascerá uma nova raça, habitando um novo mundo,
o "homo globalizatus".
A realidade, no
entanto, apresenta diversas outras faces, cada uma delas bem menos
brilhante do que a descrita acima.
Um pouco de Ciência
Política
Não vamos aqui nos
perder em um emaranhado de conceitos, contra-conceitos,
polêmicas, críticas, etc. Vamos ao básico, vamos àquilo que
b nos é necessário para melhor entendermos o que aqui se pretende
responder, sem nenhuma necessidade de grandes debates. Entende-se
por Poder a qualidade que um indivíduo ou um grupo de indivíduos
possui para impor a outrem ou a outro grupo a sua vontade,
mediante coação real ou potencial. Surge o Estado, na medida em
que um indivíduo ou um grupo de indivíduos assume perante a
sociedade o controle deste poder, poder este suficiente para
resolver questões que a todos afetam, assegurando a imposição
de sua vontade através de um conjunto de regras
pré-estabelecidas, executadas e fiscalizadas por uma organizada
rede de instituições – o Governo. Porém, sob o aspecto que
aqui nos interessa, falta-lhe ainda um elemento essencial: a
Soberania; a qualidade de que, naquele determinado território,
este poder – o poder do Estado - não se submeta a nenhum outro.
Neste momento, a
promessa inicial do parágrafo acima de não polemizar será
quebrada; porém por motivos relevantes. Ao introduzir o Estado na
realidade social, a nossa grande e esquecida mestra, "a
História", rompeu com uma ditadura absoluta: a ditadura do
poder privado. Foi criada uma dicotomia eterna e, até agora,
insuperável, que dada a sua complexidade, se apresenta sob
diversas formas. Recorramos ao portentoso Norberto Bobbio em seu
"Estado, Governo e Sociedade. Para uma teoria geral da
política" e analisemos esta grande cisão. Para o
professor italiano, a oposição público/privado pode gerar
outras tantas dicotomias:
- sobciedades de iguais e
sociedades de desiguais;
- lei e contrato;
- justiça comutativa e justiça
distributiva;
- política e economia.
Quebrando de vez a
promessa de evitar o debate, faz-se mister ressaltar as duas
soluções históricas, e antagônicas, apresentadas por Bobbio
aos dilemas acima propostos: uma primeira solução que ressalta a
supremacia do privado sobre o público – pensamento que se
impõe, principalmente, através da difusão do Direito Romano no
Ocidente -; a segunda solução, "a contrario sensu",
confirmava a primazia do público sobre o privado – que surge
como forte reação, desde o final do século passado, à
concepção liberal do Estado (não obstante o poderoso golpe
liberalizante desferido pelo Consenso de Washington, um século
mais tarde). Os ventos globalizantes tentam levar para longe a
idéia de um Estado grande e economicamente ativo. Limitá-lo, sob
qualquer aspecto, é o objetivo a ser atingido.
Há limites internos
ao Poder do Estado?
Sim,
e não precisamos ir muito distante para descobri-los.
Após uma ditadura
militar de 20 anos, o Brasil encerra a década de 80 com um
governo democraticamente eleito e uma Constituição também
democraticamente promulgada em 5 de outubro de 1988, chamada por
muitos de a "Constituição-Cidadã". A falta de
liberdade durante os anos do regime de exceção provocou uma
violenta reação por parte da sociedade. Apesar de elaborada com
fortes traços estatizantes, bem a gosto da cultura nacional, a
Carta Magna estabeleceu amplas e, tal como consideradas por
vários juristas, inaplicáveis garantias individuais e sociais.
Exemplo para todo o mundo jurídico, os artigos 5º, 6º e 7º, de
nossa Lei Maior, estabelecem um rol fenomenal de garantias,
princípios e remédios constitucionais, que visam a uma só meta:
frear o poderoso "Leviatã", estabelecendo um
limite claro ao poder público, preservando o indivíduo em seus
direitos fundamentais: igualdade, liberdade de expressão,
inviolabilidade de sua casa, liberdade religiosa, devido processo
legal, trabalho e salário dignos, para dizer o mínimo.
A Constituição de
88, em seu primeiro artigo, em seu primeiro inciso, impõe como
fundamento da República Federativa do Brasil a soberania. Sim, o
Brasil é uma nação soberana. Nenhum outro ordenamento jurídico
(em uma visão bastante "kelsiana" leia-se, no lugar de
ordenamento jurídico, "Estado") poderá impor suas
regras de conduta em nosso território; não obstante o desejo de
"cooperação entre povos para o progresso da humanidade"
(CF/88, art. 4º, IX) e a previsão expressa de que outros
direitos e garantias poderão surgir "(...) dos tratados
internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte"
(CF/88, art. 5º, §2º). O Congresso Constituinte mantém em
níveis absolutos a soberania nacional, subordinando grande parte
dos tratados e acordos realizados entre o Brasil e outros países
ao crivo do Congresso Nacional (CF, art. 49, I) e, principalmente,
estabelecendo uma rígida pirâmide hierárquica, com nossa
Constituição em seu ápice, agindo em conjunto com uma fé cega
e inabalável no Princípio da Legalidade (CF, art. 5º, II "ninguém
será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em
virtude de lei").
Contudo, já se
vão quase 12 anos desde a promulgação de nossa
"Carta-Cidadã" e para seu azar, o sonho da
globalização, naqueles anos, era ainda...um "sonho".
Envelheceu, tornou-se obsoleta. Não, porém, sem submeter-se a
uma grande "cirurgia plástica", onde podemos incluir
uma grande Revisão Constitucional de 1993, prevista no art. 3º
dos ADCT, e 26 "modificações" de tamanhos variados:
desde a minúscula EC n.º 26, "moradia...", até
a vultosa EC n.º 19, "Reforma Administrativa".
Modificações que, em sua maior parte, são frutos da árvore da
tal Globalização.
Nossa Soberania
permanece intacta. A Nação Brasileira não se curvará jamais
frente a qualquer "ameaça" legiferante internacional.
Nossa lei é nosso credo, nossa fé; é algo quase mítico, o Mito
da Lei. Sem ela mergulharíamos em um caos tão profundo que toda
a sociedade se desmoronaria. Como então permitir que uma lei
feita no estrangeiro, longe de nossas casas, de nossos costumes,
de nossa vida, possa ser uma boa lei? Nossos constituintes
derivados, representantes deste sentimento, assim não permitiram.
O Direito
Internacional
À luz do Direito
Internacional, ainda temos uma Constituição não globalizada e,
portanto, ultrapassada. Vamos às provas.
Viremos levemente
nossos pescoços para a esquerda e prestemos todos atenção no
que diz a Lei Maior de nossa vizinha Argentina: desde 1994, com a
reforma constitucional, está positivada a supremacia do tratado
em relação ao ordenamento jurídico interno (art. 75, incisos 22
e 24). Nas palavras do Prof. Dr. Jorge Fontoura, em recente
artigo, tal fato "constitui formidável exemplo de
superação dogmática, em que a hegemonia das idéias e a
necessidade de abertura e inserção internacionais prevaleceram
em relação ao anacrônico e insustentável isolamento jurídico".
Conclui nosso Professor, no mesmo artigo, mas agora virando-se
para o Brasil: "No momento em que ainda avaliamos se a
famosa convenção dos tratados, tramitando desde os anos 60 no
Congresso Nacional, é compatível ou não com o nosso ordenamento
jurídico – como também o fazemos em relação à Lei de
Arbitragem, argüida no STF – já que não dilucidamos certos
mistérios pétreos de nossa Lei Maior, os ventos que sopram do
Rio da Prata são sempre benfazejos".
No entanto, data
maxima venia, como iniciante do assunto que sou, prefiro olhar
com olhos um pouco mais tímidos do que o faz meu caro Professor.
Acredito que, para ter tamanha certeza da necessidade de tão
profundas modificações em nosso ordenamento jurídico, é
preciso acreditar em algumas conclusões inevitáveis:
- é necessário, ao Estado, abrir
mão de certa porção de sua soberania (uma visão bastante
"hobbesiana" do Direito Internacional);
- caso isto não ocorra, o país
poderá vir a ser bastante prejudicado, já que tornar-se-á
um país, na âmbito da sociedade internacional, isolado;
- nenhum país consegue superar
suas dificuldades isoladamente em um mundo globalizado;
- a inexorabilidade de um Direito
"realmente" Internacional como regra de conduta em
face da globalização, obrigando seus membros – Estados –
à cessão de parte de sua soberania. Fecha-se o círculo.
A linha de
raciocínio apresentada acima, nos dias atuais, parece-nos
absolutamente verdadeira. Basta olharmos as dificuldades
enfrentadas por países que não aderem razoavelmente a este
sistema de relações internacionais (Cuba e Iraque por motivos
políticos, os países extremamente pobres, que não possuem
sequer condições para se desenvolver como parceiros de
relações internacionais de comércio). Em pólo oposto, vemos o
enorme esforço empreendido pela China que, mesmo sob a égide de
um fechado regime marxista-maoísta, procura aperfeiçoar seus
mecanismos de trocas e relações internacionais.
Contudo, em minha
modestíssima opinião, parece que escapa um pequeno detalhe às
irrefutáveis conclusões: salvo raras exceções, e acentuo o
"raras", não há nenhum país que tenha atingido um
índice razoável de melhorias internas, principalmente no que diz
respeito às condições de vida de suas populações, por efeito
de uma maior "abertura" – em um sentido
verdadeiramente amplo – às regras de Direito Internacional. Ao
contrário, somente notamos tal linearidade em países que já
possuem um nível de vida de seus nacionais bastante desenvolvido,
ou de alguns países europeus, como Espanha e Portugal, por
exemplo, que têm experimentado grandes mudanças
sócio-econômicas, assumindo um novo papel no cenário
internacional (principalmente os espanhóis, vide Telefónica). Do
resto, nada de novo.
Mas é o caso
espanhol o que parece melhor espelhar e propagar o seu reflexo
para os demais Estados. Após 40 anos de ditadura franquista, ao
final dos anos setenta, a Espanha era, junto com seu vizinho
ibérico e a Grécia (para ficarmos fora da Cortina de Ferro), um
país extremamente pobre e desigual. Como pôde superar tamanhas
dificuldades em tão pouco tempo? A resposta não é simples, mas
os passos dados estão bem registrados: 1º) restabelecimento da
democracia, através de uma monarquia parlamentar, com eleições
diretas e livres; 2º) o Pacto Social de Moncloa; 3º)
estabilidade/continuidade do grupo político dominante no poder
(foram 15 anos de governo socialista); 4º) sua entrada para o
então MCE, posteriormente CEE, hoje União Européia. Estes foram
alguns dos "pequenos" passos dados pela Espanha antes de
aderir de maneira aberta à globalização. Podemos, em síntese,
esquematizar o processo: primeiro o fortalecimento político
interno, depois um fortalecimento político localizado ou regional
e, somente então, o pote de ouro.
A pergunta a ser
feita é: haverá condições para um país que não tenha dado
nenhum desses passos aderir incondicionalmente às regras
liberalizantes do Direito Internacional atual, com um forte viés
redutor da soberania do Estado? Poderia o Brasil simplesmente
confiando na capacidade de seus atuais dirigentes entregar-se
pacificamente às praticas e costumes de uma sociedade
internacional que se apresenta extremamente desigual? Alguns
países assim fizeram, e.g. os chamados Tigres Asiáticos,
porém, ao final de 1997 vieram à tona todas as suas enormes
fragilidades. Sua aparente recuperação agora dá-se quase que
exclusivamente em função de aporte de recursos norte-americanos,
fruto de um fantástico desempenho da economia dos E.U.A. no
últimos anos.
O Caso Pinochet
O Direito
Internacional se apresenta, sob muitos aspectos, substancialmente
diferente do Direito Interno. Existe algo que o torna bastante
característico: é supor um Direito que não possua a sanção
como algo necessário, como elemento inerente ao seu
funcionamento. Pois assim é, ou deveria ser, o Direito
Internacional.
Para nós
estudantes, seres praticamente leigos na Ciência Jurídica, algo
se apresenta bem mais ilógico: imaginar um Direito sem Justiça.
As decisões
arbitrais, típicas do Direito Internacional, são em sua grande
maioria decisões que primam pela técnica quase matemática, são
resultados de um caráter marcadamente comercial do moderno
Direito Internacional. Como conciliar interesses
comerciais/financeiros com Justiça?
Recentemente surgiu
uma "luz no fim do túnel", ou melhor, parecia que era
um verdadeiro "holofote". Tudo agora ficava mais claro.
Recordemos os fatos passo a passo:
- 16/10/98: o ex-ditador chileno
Augusto Pinochet é detido em Londres, para onde tinha ido
realizar uma operação nas costas. A detenção é feita a
pedido da Justiça Espanhola, que solicitou ao Reino Unido sua
extradição para julgá-lo por crimes durante o seu governo
(1973-1990);
- 25/11/98: a comissão jurídica
da Câmara dos Lordes decide que Pinochet não tem direito à
imunidade por ser senador vitalício em seu país;
- 09/12/98: o ministro do Interior
britânico, Jack Straw, rejeita os pedidos de libertação do
governo chileno;
- 24/03/99: a Câmara dos Lordes
decide que Pinochet não tem direito à imunidade e será
julgado por crimes cometidos após 1988, quando o Reino Unido
aderiu a uma convenção internacional sobre tortura;
- Setembro/99: a Espanha rejeita
um pedido do Chile para que haja uma arbitragem internacional
no caso. Pinochet envia uma carta ao Senado chileno pedindo
desculpas pelas morte ocorridas durante o seu governo;
- 08/10/99: a Justiça autoriza a
extradição. A defesa recorre;
- 11/01/00: exames médicos
indicam que Pinochet não teria condições físicas de
enfrentar um processo prolongado na Espanha;
- 24/01/00: entidades de direitos
humanos e a Bélgica entram com recurso pedindo novos exames;
- 15/02/00: a Alta Corte ordena
que o governo britânico apresente o resultados à Bélgica,
França, Espanha e Suíça; os países têm uma semana para
apresentar recursos;
- 02/03/00: o ministro do Interior
britânico decidiu que Pinochet não seria extraditado. O
ex-ditador embarca de volta ao Chile;
- 03/03/00: Pinochet desembarca no
Chile, é recebido com festa pelas Forças Armadas chilenas.
Não se queria
puni-lo por crimes contra a humanidade, ou crimes de guerra, ou de
genocídio. A acusação contra Pinochet baseava-se nas mortes de
nacionais espanhóis ocorridas nos "estádios nacionais"
da ditadura chilena. Pesava sobre o ex-ditador a responsabilidade
sobre estes homicídios. A questão, portanto, não envolveria a
princípio atos contrários à soberania do Estado chileno. Tal
seria verdade não fosse um pequeno detalhe: Pinhochet era Senador
vitalício, membro do Poder Legislativo chileno, um agente
político, pairava sobre sua cabeça o véu da imunidade. É aqui
que entra o Direito Internacional.
O Juiz espanhol
Baltazar Garzón queria vingança, digo Justiça. A Bélgica, a
França e a Suíça também a queriam. Milhares de pessoas por
todo o mundo também. Desejava-se que o Direito Internacional
assumisse o seu lado "Direito" e colocasse o criminoso
na cadeia, pois lá era o seu lugar. Afinal foram 3.085 pessoas
mortas, dentre elas 1.102 ainda desaparecidas. Havia necessidade
não de uma decisão técnica, necessitava-se de uma decisão
justa. Seria uma espécie de aviso a ex-ditadores "de
plantão", que ainda habitam este, agora, novo mundo,
globalizado e justo. Além de decisões sobre práticas de dumping,
disputa sobre ilhas perdidas no meio de oceanos, ou sobre quem
recebeu mais dinheiro público para fazer aviões, os operadores
do Direito Internacional agora avisavam aos quatro cantos do mundo
que se iria fazer justiça.
Corroborando esta
idéia, há poucos meses da detenção de Pinochet foi criado, aos
17 dias do mês de julho de 1998, o Tribunal Penal Internacional,
como instituição permanente, com jurisdição sobre indivíduos
e tendo por missão punir crimes mais graves, de transcendência
internacional. Criado pela Conferência de Roma, figurando o
Brasil como país signatário, é, nas palavras de nossa ilustre
representante em sua Comissão Preparatória na ONU, a
Desembargadora. Federal Dr.ª Sylvia Helena Steiner, "fruto
da evolução do sistema internacional de proteção e repressão
a crimes de guerra, crimes de genocídio, crimes contra a
humanidade e crimes de agressão". Mas não será assim
tão simples. Existem particularmente dois pontos que, de plano,
tornam uma adesão incondicional, para o Brasil, juridicamente
inaceitável: a) há previsão em seu estatuto da pena de prisão
perpétua; expressamente proibida – condição esta imutável -
em nossa Lei Magna, art. 5º, XLVII; b) há previsão em seu
estatuto de que os Estados serão obrigados a proceder a entrega
de pessoas à Corte, contra às quais haja ordem de prisão
emanada do próprio TPI; ora, também claro está na CF/88, mais
uma vez em seu art. 5º, agora em se inciso LI, que "nenhum
brasileiro será extraditado, salvo o naturalizado, em caso de
crime comum, praticado antes da naturalização, ou de comprovado
envolvimento em tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins,
na forma da lei". Ficam aí as polêmicas e suas
soluções para nossos grandes doutrinadores.
A detenção de
Pinochet e a criação do TPI são indícios da derrota final do
Direito Internacional como o conhecemos atualmente? Enfim a
Justiça se juntará a este ramo "bastardo" do Direito e
triunfará? A essas regras de comportamento comercial e questões
protocolares serão agregados elementos jurídicos tradicionais:
tipo, tipicidade, sanção, processo, decisão, sentença
condenatória, reparação, vingança. Enfim, a Panacéia.
São limites claros que se impõem agora. É preciso proteger a
humanidade de seus filhos ingratos. A abstração "Sociedade
Mundial", a exemplo do que ocorre nas sociedades nacionais,
demanda a punição daqueles que a agridem de maneira tão vil.
Pinochet foi um
desses filhos. Instaurou uma sangrenta ditadura militar da qual,
em 27 de junho de 1974, se tornou o principal responsável. Em
1980, após um plebiscito, visto como "fraudulento", fez
aprovar uma Constituição com previsão expressa que os Chefes
das Forças Armadas não podiam ser destituídos, além de abrir
para si próprio a possibilidade de tornar-se senador vitalício
no dia em que deixasse de ser chefe de Estado e comandante do
Exército (o que ocorreu efetivamente após o "Não" do
referendo de 05/10/98).
Como seria o
julgamento do General: Jurídico ou Político?
Há algumas linhas,
escrevi que a criação do TPI significava uma tentativa de se
transpor soluções de uma sociedade interna, regida basicamente
pelo princípio da submissão de todos à lei, para uma realidade
internacional, onde seus membros não são regidos por um
ordenamento que se assente sobre este pilar: seus membros são
Estados soberanos e sua principal fonte legislativa é o costume e
os acordos. Não obstante esta primeira observação, faço uma
outra que talvez seja mais contundente: sabemos da falibilidade do
sistema penal como ordenador de condutas futuras, pelo singelo
argumento de que a repressão aos atos ilícitos, mesmo em níveis
absurdos como se observa hoje em países ditos desenvolvidos, não
fez diminuir sua ocorrência.
Vamos recorrer a um
famoso penalista argentino, Raúl Zaffaroni, que tem feito
verdadeiros "estragos" na elite jurídica brasileira com
suas idéias bastantes reformistas: "é indiscutível que
em toda sociedade existe uma estrutura de poder e segmentos ou
setores mais próximos – ou hegemônicos – e outros mais
alijados – marginalizados do poder. Obviamente, esta estrutura
tende a sustentar-se através do controle social e de sua parte
punitiva, denominada sistema penal. Uma das formas mais violentas
de sustentação é o sistema penal, na conformidade da
comprovação dos resultados que este produz sobre as pessoas que
sofrem os seus efeitos e sobre aquelas que participam nos seus
segmentos estáveis. Em parte, o sistema penal cumpre esta
função, fazendo-o mediante a criminalização seletiva dos
marginalizados. E também em parte, quando os outros meios de
controle social fracassam, o sistema não tem dúvidas em criminalizar
pessoas dos próprios setores hegemônicos, para que estes
sejam mantidos e reafirmados no seu rol, e não desenvolvam
condutas prejudiciais à hegemonia dos grupos a que pertencem".
Conclui, mais adiante, nosso mestre: "Em síntese, o
sistema penal cumpre uma função substancialmente simbólica
frente aos marginalizados ou aos próprios setores hegemônicos. A
sustentação da estrutura do poder social através da via
punitiva é fundamentalmente simbólica".
Qual é a garantia
de que a escolha de tal via não viria a reproduzir, em níveis
internacionais, esta mesma estrutura de manutenção de poder e
marginalização de segmentos sociais (poderíamos substituir,
para fins de nossa análise, "segmentos sociais" por
"grupos específicos de nações") observada nos
ordenamentos jurídicos internos? Afinal, quando o assunto é
crime contra a humanidade, quais os criminosos que serão
julgados? Todos eles? Acredito que não. Podem ficar tranqüilos
os líderes das grandes potências mundiais, pois genocidas,
cruéis generais e seus prepostos são espécies nativas de
nações subdesenvolvidas. Nada terão a temer futuros oficiais
estadunidenses, franceses, ingleses, canadenses, russos,
japoneses; poderão eles derramar suas bombas onde quiserem, pois
a "Justiça" sempre estará ao seu lado. Tirante a
trágica ironia, não tenhamos dúvidas de que assim ocorrerá.
Em recente artigo
publicado em site da World Wide Web "Jus
Navigandi", o Prof. Ives Gandra Martins nos coloca a seguinte
pergunta: "Pode um membro do poder legislativo de um país
ser julgado, num país estrangeiro, por fatos ocorridos em seu
país de origem, sem que a soberania seja atingida?". A
resposta dada pelo ilustre professor é negativa. Não percamos de
vista que Pinochet seria julgado por homicídio cometido contra
cidadãos espanhóis no Chile, portanto é o pedido juridicamente
possível. Porém romper com a imunidade parlamentar do ex-ditador
e sobrepujar as barreiras impostas pelo próprio Direito
Internacional é quase como um retorno ao imperialismo imposto à
toda a banda latino-americana durante séculos de colonização.
Nas palavras do Prof. Gandra Martins: "Estou convencido de
que o preconceito aristocrático dos países europeus em relação
à América do Sul permanece, apesar de seu desumano colonialismo,
praticado do século XVI ao começo do século XX, já não ter
espaço nos dias atuais. Continuam, todavia, agindo como se o
mundo fosse dividido entre raça superior, que são os europeus e
os norte-americanos, e a plebe inferior que reside na América do
Sul, na África e na Ásia".
Observem a
semelhança entre as palavras de Zaffaroni e os fatos narrados
acima. São assustadoras.
Sim, teríamos um
julgamento político de Pinochet. Seria reafirmada a supremacia
européia sobre os pobres latino-americanos, tão dependentes da
Justiça desses povos tão sábios...
Conclusão
Apesar da aparente
vitória do general Pinochet quando do seu retorno ao Chile, não
obstante um certo trunfo também dos governos inglês e espanhol,
que do alto da suas complacências "libertaram" o doente
ex-ditador, algumas discussões devem ser trazidas à tona,
principalmente no que concerne à redefinição do conceito de
soberania nacional.
Primeiramente
deverá ser estabelecido em que termos se dará tal redefinição,
isto é, em que foro, jurídico ou político, serão estabelecidas
suas novas bases. Se juridicamente, não haverá diferenças entre
as nações; ex-ditadores ou criminosos não possuirão
nacionalidade, serão julgados e punidos. Esta talvez seja a
versão globalizada (e fictícia) desta nossa história.
Politicamente,
teremos outra solução. As grandes potências mundiais ditarão o
ritmo e o rumo desta "nova justiça". Cabe lembrar que
os E.U.A. não são signatários do Pacto de Roma. Cabe lembrar
que os E.U.A. são a maior potência bélica do mundo. Cabe
lembrar que revendo as soluções adotadas pelos norte-americanos
nos últimos 40 anos (Vietnã, Granada, Panamá, Irã, Iraque,
Iugoslávia) não restam muitas esperanças de submissão daquele
país a decisões de organismos internacionais. Talvez as nações
européias se mostrem um pouco mais "civilizadas". Mas,
não serão menos autoritárias.
Cabe lembrar que
nenhum destes países, nos últimos 100 anos, fez qualquer coisa
para vivermos em um mundo um pouco menos desigual. Cabe lembrar
que nenhum destes países, nos últimos 100 anos, fez qualquer
coisa para vivermos em um mundo com menos fome. Cabe lembrar que
nenhum destes países, nos últimos 100 anos, fez qualquer coisa
para vivermos em um mundo um pouco mais justo.
Não parece-me ser
o meio escolhido, o mais indicado para atingir todos estes
objetivos.
Bibliografia
Bastos, Celso Ribeiro. "Curso de
Direito Constitucional". Editora Saraiva. São Paulo. 1999;
Bobbio, Norberto. "Estado,
Governo e Sociedade. Para uma teoria geral da política".
Editora Paz e Terra. São Paulo. 1999;
Constituição da República
Federativa do Brasil. Coleção Saraiva de Legislação;
Fausto, Boris. "O general
venceu?". Artigo publicado no jornal Folha de São Paulo, de
13/03/00;
Folha de São Paulo. Diversas
matérias. Caderno Mundo, 13/03/00, página 13;
Fontoura, Jorge. "O avanço
constitucional argentino e o Brasil". Artigo publicado no
jornal Correio Braziliense, Caderno Direito&Justiça, de
06/03/00, página 5;
Martins, Ives Gandra da S. "A
soberania da América do Sul e Pinochet". Texto publicado no
site jurídico "www.jus.com.br";
Mello, Celso D. de Albuquerque.
"Direito Internacional Público". Editora Livraria
Freitas Bastos S.A., Rio de Janeiro e São Paulo;
Steiner, Sylvia Helena F. "O
Tribunal Penal Internacional". Artigo bpublicado no IBCCrim,
Outubro/1997, n.º 83, Ano 7, página 12;
Souza, Carlos Fernando M. "O
Tribunal Penal Internacional". Artigo publicado no jornal
Correio Braziliense, Caderno Direito&Justiça de 29/11/99,
página 6;
Zaffaroni, Eugenio Raúl e
Pierangelli, José Henrique. "Manual de Direito Penal
Brasileiro – Parte Geral". Editora RT. São Paulo.
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