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GLOBALIZAÇÃO, PINOCHET E O
TRIBUNAL PENAL INTERNACIONAL

Bruno S. Paranhos
servidor do MPDFT em Brasília,
acadêmico de Direito do UniCEUB-DF

Introdução

 Vivemos em um mundo globalizado. É fato. Quer queiramos ou não esta é a realidade.

Globalização deriva da palavra globo, obviamente entendida aqui como planeta, especificamente o nosso planeta Terra. Poderíamos falar então em "planetarização" ou "terrarização", porém a "intelligentsia" preferiu globalização e, mal ou bem, cá estamos.

Pelo "peixe" que se vende, entenderíamos globalização como uma espécie de extinção das fronteiras nacionais, ou, para não ser tão radical, uma diminuição considerável de suas barreiras. Afinal, somos todos humanos.

Os benefícios de tal importante processo são tão óbvios que nem precisariam ser expostos, porém, se assim o fazem, é para simplesmente alcançar aqueles menos privilegiados que nem o óbvio conseguem atingir: será o fim das diferenças econômicas, ocorrerá uma maior aproximação das diversas culturas, haverá uma grande melhoria de qualidade de vida dos nacionais pelo acesso a produtos de "ponta", fantástico melhoramento das relações comerciais, aumento considerável do fluxo de recursos financeiros e tecnológicos aos países menos desenvolvidos, a supressão, enfim, de inimizades históricas, o fim de todos conflitos e, quem sabe, um dia, o fim de todas as guerras. O paraíso será aqui.

E para levar a cabo tamanha revolução, nenhuma gota de sangue deverá ser derramada. Basta que os representantes das diversas nações, homens íntegros e iluminados, sentem à mesa, conversem seriamente por algumas horas, assinem tratados, obedeçam a algumas poucas regras comunitariamente estabelecidas e necessárias ao bom funcionamento do futuro sistema (regras que nem ao menos estipulam, dada sua distinta natureza, sanções ao seu descumprimento) e pronto: da mistura mágica nascerá uma nova raça, habitando um novo mundo, o "homo globalizatus".

A realidade, no entanto, apresenta diversas outras faces, cada uma delas bem menos brilhante do que a descrita acima.


Um pouco de Ciência Política

Não vamos aqui nos perder em um emaranhado de conceitos, contra-conceitos, polêmicas, críticas, etc. Vamos ao básico, vamos àquilo que b nos é necessário para melhor entendermos o que aqui se pretende responder, sem nenhuma necessidade de grandes debates. Entende-se por Poder a qualidade que um indivíduo ou um grupo de indivíduos possui para impor a outrem ou a outro grupo a sua vontade, mediante coação real ou potencial. Surge o Estado, na medida em que um indivíduo ou um grupo de indivíduos assume perante a sociedade o controle deste poder, poder este suficiente para resolver questões que a todos afetam, assegurando a imposição de sua vontade através de um conjunto de regras pré-estabelecidas, executadas e fiscalizadas por uma organizada rede de instituições – o Governo. Porém, sob o aspecto que aqui nos interessa, falta-lhe ainda um elemento essencial: a Soberania; a qualidade de que, naquele determinado território, este poder – o poder do Estado - não se submeta a nenhum outro.

Neste momento, a promessa inicial do parágrafo acima de não polemizar será quebrada; porém por motivos relevantes. Ao introduzir o Estado na realidade social, a nossa grande e esquecida mestra, "a História", rompeu com uma ditadura absoluta: a ditadura do poder privado. Foi criada uma dicotomia eterna e, até agora, insuperável, que dada a sua complexidade, se apresenta sob diversas formas. Recorramos ao portentoso Norberto Bobbio em seu "Estado, Governo e Sociedade. Para uma teoria geral da política" e analisemos esta grande cisão. Para o professor italiano, a oposição público/privado pode gerar outras tantas dicotomias:

  1. sobciedades de iguais e sociedades de desiguais;
  2. lei e contrato;
  3. justiça comutativa e justiça distributiva;
  4. política e economia.

Quebrando de vez a promessa de evitar o debate, faz-se mister ressaltar as duas soluções históricas, e antagônicas, apresentadas por Bobbio aos dilemas acima propostos: uma primeira solução que ressalta a supremacia do privado sobre o público – pensamento que se impõe, principalmente, através da difusão do Direito Romano no Ocidente -; a segunda solução, "a contrario sensu", confirmava a primazia do público sobre o privado – que surge como forte reação, desde o final do século passado, à concepção liberal do Estado (não obstante o poderoso golpe liberalizante desferido pelo Consenso de Washington, um século mais tarde). Os ventos globalizantes tentam levar para longe a idéia de um Estado grande e economicamente ativo. Limitá-lo, sob qualquer aspecto, é o objetivo a ser atingido.


Há limites internos ao Poder do Estado?

          Sim, e não precisamos ir muito distante para descobri-los.

Após uma ditadura militar de 20 anos, o Brasil encerra a década de 80 com um governo democraticamente eleito e uma Constituição também democraticamente promulgada em 5 de outubro de 1988, chamada por muitos de a "Constituição-Cidadã". A falta de liberdade durante os anos do regime de exceção provocou uma violenta reação por parte da sociedade. Apesar de elaborada com fortes traços estatizantes, bem a gosto da cultura nacional, a Carta Magna estabeleceu amplas e, tal como consideradas por vários juristas, inaplicáveis garantias individuais e sociais. Exemplo para todo o mundo jurídico, os artigos 5º, 6º e 7º, de nossa Lei Maior, estabelecem um rol fenomenal de garantias, princípios e remédios constitucionais, que visam a uma só meta: frear o poderoso "Leviatã", estabelecendo um limite claro ao poder público, preservando o indivíduo em seus direitos fundamentais: igualdade, liberdade de expressão, inviolabilidade de sua casa, liberdade religiosa, devido processo legal, trabalho e salário dignos, para dizer o mínimo.

A Constituição de 88, em seu primeiro artigo, em seu primeiro inciso, impõe como fundamento da República Federativa do Brasil a soberania. Sim, o Brasil é uma nação soberana. Nenhum outro ordenamento jurídico (em uma visão bastante "kelsiana" leia-se, no lugar de ordenamento jurídico, "Estado") poderá impor suas regras de conduta em nosso território; não obstante o desejo de "cooperação entre povos para o progresso da humanidade" (CF/88, art. 4º, IX) e a previsão expressa de que outros direitos e garantias poderão surgir "(...) dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte" (CF/88, art. 5º, §2º). O Congresso Constituinte mantém em níveis absolutos a soberania nacional, subordinando grande parte dos tratados e acordos realizados entre o Brasil e outros países ao crivo do Congresso Nacional (CF, art. 49, I) e, principalmente, estabelecendo uma rígida pirâmide hierárquica, com nossa Constituição em seu ápice, agindo em conjunto com uma fé cega e inabalável no Princípio da Legalidade (CF, art. 5º, II "ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei").

Contudo, já se vão quase 12 anos desde a promulgação de nossa "Carta-Cidadã" e para seu azar, o sonho da globalização, naqueles anos, era ainda...um "sonho". Envelheceu, tornou-se obsoleta. Não, porém, sem submeter-se a uma grande "cirurgia plástica", onde podemos incluir uma grande Revisão Constitucional de 1993, prevista no art. 3º dos ADCT, e 26 "modificações" de tamanhos variados: desde a minúscula EC n.º 26, "moradia...", até a vultosa EC n.º 19, "Reforma Administrativa". Modificações que, em sua maior parte, são frutos da árvore da tal Globalização.

Nossa Soberania permanece intacta. A Nação Brasileira não se curvará jamais frente a qualquer "ameaça" legiferante internacional. Nossa lei é nosso credo, nossa fé; é algo quase mítico, o Mito da Lei. Sem ela mergulharíamos em um caos tão profundo que toda a sociedade se desmoronaria. Como então permitir que uma lei feita no estrangeiro, longe de nossas casas, de nossos costumes, de nossa vida, possa ser uma boa lei? Nossos constituintes derivados, representantes deste sentimento, assim não permitiram.


O Direito Internacional

À luz do Direito Internacional, ainda temos uma Constituição não globalizada e, portanto, ultrapassada. Vamos às provas.

Viremos levemente nossos pescoços para a esquerda e prestemos todos atenção no que diz a Lei Maior de nossa vizinha Argentina: desde 1994, com a reforma constitucional, está positivada a supremacia do tratado em relação ao ordenamento jurídico interno (art. 75, incisos 22 e 24). Nas palavras do Prof. Dr. Jorge Fontoura, em recente artigo, tal fato "constitui formidável exemplo de superação dogmática, em que a hegemonia das idéias e a necessidade de abertura e inserção internacionais prevaleceram em relação ao anacrônico e insustentável isolamento jurídico". Conclui nosso Professor, no mesmo artigo, mas agora virando-se para o Brasil: "No momento em que ainda avaliamos se a famosa convenção dos tratados, tramitando desde os anos 60 no Congresso Nacional, é compatível ou não com o nosso ordenamento jurídico – como também o fazemos em relação à Lei de Arbitragem, argüida no STF – já que não dilucidamos certos mistérios pétreos de nossa Lei Maior, os ventos que sopram do Rio da Prata são sempre benfazejos".

No entanto, data maxima venia, como iniciante do assunto que sou, prefiro olhar com olhos um pouco mais tímidos do que o faz meu caro Professor. Acredito que, para ter tamanha certeza da necessidade de tão profundas modificações em nosso ordenamento jurídico, é preciso acreditar em algumas conclusões inevitáveis:

  1. é necessário, ao Estado, abrir mão de certa porção de sua soberania (uma visão bastante "hobbesiana" do Direito Internacional);
  2. caso isto não ocorra, o país poderá vir a ser bastante prejudicado, já que tornar-se-á um país, na âmbito da sociedade internacional, isolado;
  3. nenhum país consegue superar suas dificuldades isoladamente em um mundo globalizado;
  4. a inexorabilidade de um Direito "realmente" Internacional como regra de conduta em face da globalização, obrigando seus membros – Estados – à cessão de parte de sua soberania. Fecha-se o círculo.

A linha de raciocínio apresentada acima, nos dias atuais, parece-nos absolutamente verdadeira. Basta olharmos as dificuldades enfrentadas por países que não aderem razoavelmente a este sistema de relações internacionais (Cuba e Iraque por motivos políticos, os países extremamente pobres, que não possuem sequer condições para se desenvolver como parceiros de relações internacionais de comércio). Em pólo oposto, vemos o enorme esforço empreendido pela China que, mesmo sob a égide de um fechado regime marxista-maoísta, procura aperfeiçoar seus mecanismos de trocas e relações internacionais.

Contudo, em minha modestíssima opinião, parece que escapa um pequeno detalhe às irrefutáveis conclusões: salvo raras exceções, e acentuo o "raras", não há nenhum país que tenha atingido um índice razoável de melhorias internas, principalmente no que diz respeito às condições de vida de suas populações, por efeito de uma maior "abertura" – em um sentido verdadeiramente amplo – às regras de Direito Internacional. Ao contrário, somente notamos tal linearidade em países que já possuem um nível de vida de seus nacionais bastante desenvolvido, ou de alguns países europeus, como Espanha e Portugal, por exemplo, que têm experimentado grandes mudanças sócio-econômicas, assumindo um novo papel no cenário internacional (principalmente os espanhóis, vide Telefónica). Do resto, nada de novo.

Mas é o caso espanhol o que parece melhor espelhar e propagar o seu reflexo para os demais Estados. Após 40 anos de ditadura franquista, ao final dos anos setenta, a Espanha era, junto com seu vizinho ibérico e a Grécia (para ficarmos fora da Cortina de Ferro), um país extremamente pobre e desigual. Como pôde superar tamanhas dificuldades em tão pouco tempo? A resposta não é simples, mas os passos dados estão bem registrados: 1º) restabelecimento da democracia, através de uma monarquia parlamentar, com eleições diretas e livres; 2º) o Pacto Social de Moncloa; 3º) estabilidade/continuidade do grupo político dominante no poder (foram 15 anos de governo socialista); 4º) sua entrada para o então MCE, posteriormente CEE, hoje União Européia. Estes foram alguns dos "pequenos" passos dados pela Espanha antes de aderir de maneira aberta à globalização. Podemos, em síntese, esquematizar o processo: primeiro o fortalecimento político interno, depois um fortalecimento político localizado ou regional e, somente então, o pote de ouro.

A pergunta a ser feita é: haverá condições para um país que não tenha dado nenhum desses passos aderir incondicionalmente às regras liberalizantes do Direito Internacional atual, com um forte viés redutor da soberania do Estado? Poderia o Brasil simplesmente confiando na capacidade de seus atuais dirigentes entregar-se pacificamente às praticas e costumes de uma sociedade internacional que se apresenta extremamente desigual? Alguns países assim fizeram, e.g. os chamados Tigres Asiáticos, porém, ao final de 1997 vieram à tona todas as suas enormes fragilidades. Sua aparente recuperação agora dá-se quase que exclusivamente em função de aporte de recursos norte-americanos, fruto de um fantástico desempenho da economia dos E.U.A. no últimos anos.


O Caso Pinochet

O Direito Internacional se apresenta, sob muitos aspectos, substancialmente diferente do Direito Interno. Existe algo que o torna bastante característico: é supor um Direito que não possua a sanção como algo necessário, como elemento inerente ao seu funcionamento. Pois assim é, ou deveria ser, o Direito Internacional.

Para nós estudantes, seres praticamente leigos na Ciência Jurídica, algo se apresenta bem mais ilógico: imaginar um Direito sem Justiça.

As decisões arbitrais, típicas do Direito Internacional, são em sua grande maioria decisões que primam pela técnica quase matemática, são resultados de um caráter marcadamente comercial do moderno Direito Internacional. Como conciliar interesses comerciais/financeiros com Justiça?

Recentemente surgiu uma "luz no fim do túnel", ou melhor, parecia que era um verdadeiro "holofote". Tudo agora ficava mais claro. Recordemos os fatos passo a passo:

  • 16/10/98: o ex-ditador chileno Augusto Pinochet é detido em Londres, para onde tinha ido realizar uma operação nas costas. A detenção é feita a pedido da Justiça Espanhola, que solicitou ao Reino Unido sua extradição para julgá-lo por crimes durante o seu governo (1973-1990);
  • 25/11/98: a comissão jurídica da Câmara dos Lordes decide que Pinochet não tem direito à imunidade por ser senador vitalício em seu país;
  • 09/12/98: o ministro do Interior britânico, Jack Straw, rejeita os pedidos de libertação do governo chileno;
  • 24/03/99: a Câmara dos Lordes decide que Pinochet não tem direito à imunidade e será julgado por crimes cometidos após 1988, quando o Reino Unido aderiu a uma convenção internacional sobre tortura;
  • Setembro/99: a Espanha rejeita um pedido do Chile para que haja uma arbitragem internacional no caso. Pinochet envia uma carta ao Senado chileno pedindo desculpas pelas morte ocorridas durante o seu governo;
  • 08/10/99: a Justiça autoriza a extradição. A defesa recorre;
  • 11/01/00: exames médicos indicam que Pinochet não teria condições físicas de enfrentar um processo prolongado na Espanha;
  • 24/01/00: entidades de direitos humanos e a Bélgica entram com recurso pedindo novos exames;
  • 15/02/00: a Alta Corte ordena que o governo britânico apresente o resultados à Bélgica, França, Espanha e Suíça; os países têm uma semana para apresentar recursos;
  • 02/03/00: o ministro do Interior britânico decidiu que Pinochet não seria extraditado. O ex-ditador embarca de volta ao Chile;
  • 03/03/00: Pinochet desembarca no Chile, é recebido com festa pelas Forças Armadas chilenas.

Não se queria puni-lo por crimes contra a humanidade, ou crimes de guerra, ou de genocídio. A acusação contra Pinochet baseava-se nas mortes de nacionais espanhóis ocorridas nos "estádios nacionais" da ditadura chilena. Pesava sobre o ex-ditador a responsabilidade sobre estes homicídios. A questão, portanto, não envolveria a princípio atos contrários à soberania do Estado chileno. Tal seria verdade não fosse um pequeno detalhe: Pinhochet era Senador vitalício, membro do Poder Legislativo chileno, um agente político, pairava sobre sua cabeça o véu da imunidade. É aqui que entra o Direito Internacional.

O Juiz espanhol Baltazar Garzón queria vingança, digo Justiça. A Bélgica, a França e a Suíça também a queriam. Milhares de pessoas por todo o mundo também. Desejava-se que o Direito Internacional assumisse o seu lado "Direito" e colocasse o criminoso na cadeia, pois lá era o seu lugar. Afinal foram 3.085 pessoas mortas, dentre elas 1.102 ainda desaparecidas. Havia necessidade não de uma decisão técnica, necessitava-se de uma decisão justa. Seria uma espécie de aviso a ex-ditadores "de plantão", que ainda habitam este, agora, novo mundo, globalizado e justo. Além de decisões sobre práticas de dumping, disputa sobre ilhas perdidas no meio de oceanos, ou sobre quem recebeu mais dinheiro público para fazer aviões, os operadores do Direito Internacional agora avisavam aos quatro cantos do mundo que se iria fazer justiça.

Corroborando esta idéia, há poucos meses da detenção de Pinochet foi criado, aos 17 dias do mês de julho de 1998, o Tribunal Penal Internacional, como instituição permanente, com jurisdição sobre indivíduos e tendo por missão punir crimes mais graves, de transcendência internacional. Criado pela Conferência de Roma, figurando o Brasil como país signatário, é, nas palavras de nossa ilustre representante em sua Comissão Preparatória na ONU, a Desembargadora. Federal Dr.ª Sylvia Helena Steiner, "fruto da evolução do sistema internacional de proteção e repressão a crimes de guerra, crimes de genocídio, crimes contra a humanidade e crimes de agressão". Mas não será assim tão simples. Existem particularmente dois pontos que, de plano, tornam uma adesão incondicional, para o Brasil, juridicamente inaceitável: a) há previsão em seu estatuto da pena de prisão perpétua; expressamente proibida – condição esta imutável - em nossa Lei Magna, art. 5º, XLVII; b) há previsão em seu estatuto de que os Estados serão obrigados a proceder a entrega de pessoas à Corte, contra às quais haja ordem de prisão emanada do próprio TPI; ora, também claro está na CF/88, mais uma vez em seu art. 5º, agora em se inciso LI, que "nenhum brasileiro será extraditado, salvo o naturalizado, em caso de crime comum, praticado antes da naturalização, ou de comprovado envolvimento em tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, na forma da lei". Ficam aí as polêmicas e suas soluções para nossos grandes doutrinadores.

A detenção de Pinochet e a criação do TPI são indícios da derrota final do Direito Internacional como o conhecemos atualmente? Enfim a Justiça se juntará a este ramo "bastardo" do Direito e triunfará? A essas regras de comportamento comercial e questões protocolares serão agregados elementos jurídicos tradicionais: tipo, tipicidade, sanção, processo, decisão, sentença condenatória, reparação, vingança. Enfim, a Panacéia.
São limites claros que se impõem agora. É preciso proteger a humanidade de seus filhos ingratos. A abstração "Sociedade Mundial", a exemplo do que ocorre nas sociedades nacionais, demanda a punição daqueles que a agridem de maneira tão vil.

Pinochet foi um desses filhos. Instaurou uma sangrenta ditadura militar da qual, em 27 de junho de 1974, se tornou o principal responsável. Em 1980, após um plebiscito, visto como "fraudulento", fez aprovar uma Constituição com previsão expressa que os Chefes das Forças Armadas não podiam ser destituídos, além de abrir para si próprio a possibilidade de tornar-se senador vitalício no dia em que deixasse de ser chefe de Estado e comandante do Exército (o que ocorreu efetivamente após o "Não" do referendo de 05/10/98).


Como seria o julgamento do General: Jurídico ou Político?

Há algumas linhas, escrevi que a criação do TPI significava uma tentativa de se transpor soluções de uma sociedade interna, regida basicamente pelo princípio da submissão de todos à lei, para uma realidade internacional, onde seus membros não são regidos por um ordenamento que se assente sobre este pilar: seus membros são Estados soberanos e sua principal fonte legislativa é o costume e os acordos. Não obstante esta primeira observação, faço uma outra que talvez seja mais contundente: sabemos da falibilidade do sistema penal como ordenador de condutas futuras, pelo singelo argumento de que a repressão aos atos ilícitos, mesmo em níveis absurdos como se observa hoje em países ditos desenvolvidos, não fez diminuir sua ocorrência.

Vamos recorrer a um famoso penalista argentino, Raúl Zaffaroni, que tem feito verdadeiros "estragos" na elite jurídica brasileira com suas idéias bastantes reformistas: "é indiscutível que em toda sociedade existe uma estrutura de poder e segmentos ou setores mais próximos – ou hegemônicos – e outros mais alijados – marginalizados do poder. Obviamente, esta estrutura tende a sustentar-se através do controle social e de sua parte punitiva, denominada sistema penal. Uma das formas mais violentas de sustentação é o sistema penal, na conformidade da comprovação dos resultados que este produz sobre as pessoas que sofrem os seus efeitos e sobre aquelas que participam nos seus segmentos estáveis. Em parte, o sistema penal cumpre esta função, fazendo-o mediante a criminalização seletiva dos marginalizados. E também em parte, quando os outros meios de controle social fracassam, o sistema não tem dúvidas em criminalizar pessoas dos próprios setores hegemônicos, para que estes sejam mantidos e reafirmados no seu rol, e não desenvolvam condutas prejudiciais à hegemonia dos grupos a que pertencem". Conclui, mais adiante, nosso mestre: "Em síntese, o sistema penal cumpre uma função substancialmente simbólica frente aos marginalizados ou aos próprios setores hegemônicos. A sustentação da estrutura do poder social através da via punitiva é fundamentalmente simbólica".

Qual é a garantia de que a escolha de tal via não viria a reproduzir, em níveis internacionais, esta mesma estrutura de manutenção de poder e marginalização de segmentos sociais (poderíamos substituir, para fins de nossa análise, "segmentos sociais" por "grupos específicos de nações") observada nos ordenamentos jurídicos internos? Afinal, quando o assunto é crime contra a humanidade, quais os criminosos que serão julgados? Todos eles? Acredito que não. Podem ficar tranqüilos os líderes das grandes potências mundiais, pois genocidas, cruéis generais e seus prepostos são espécies nativas de nações subdesenvolvidas. Nada terão a temer futuros oficiais estadunidenses, franceses, ingleses, canadenses, russos, japoneses; poderão eles derramar suas bombas onde quiserem, pois a "Justiça" sempre estará ao seu lado. Tirante a trágica ironia, não tenhamos dúvidas de que assim ocorrerá.

Em recente artigo publicado em site da World Wide Web "Jus Navigandi", o Prof. Ives Gandra Martins nos coloca a seguinte pergunta: "Pode um membro do poder legislativo de um país ser julgado, num país estrangeiro, por fatos ocorridos em seu país de origem, sem que a soberania seja atingida?". A resposta dada pelo ilustre professor é negativa. Não percamos de vista que Pinochet seria julgado por homicídio cometido contra cidadãos espanhóis no Chile, portanto é o pedido juridicamente possível. Porém romper com a imunidade parlamentar do ex-ditador e sobrepujar as barreiras impostas pelo próprio Direito Internacional é quase como um retorno ao imperialismo imposto à toda a banda latino-americana durante séculos de colonização. Nas palavras do Prof. Gandra Martins: "Estou convencido de que o preconceito aristocrático dos países europeus em relação à América do Sul permanece, apesar de seu desumano colonialismo, praticado do século XVI ao começo do século XX, já não ter espaço nos dias atuais. Continuam, todavia, agindo como se o mundo fosse dividido entre raça superior, que são os europeus e os norte-americanos, e a plebe inferior que reside na América do Sul, na África e na Ásia".

Observem a semelhança entre as palavras de Zaffaroni e os fatos narrados acima. São assustadoras.

Sim, teríamos um julgamento político de Pinochet. Seria reafirmada a supremacia européia sobre os pobres latino-americanos, tão dependentes da Justiça desses povos tão sábios...


Conclusão

Apesar da aparente vitória do general Pinochet quando do seu retorno ao Chile, não obstante um certo trunfo também dos governos inglês e espanhol, que do alto da suas complacências "libertaram" o doente ex-ditador, algumas discussões devem ser trazidas à tona, principalmente no que concerne à redefinição do conceito de soberania nacional.

Primeiramente deverá ser estabelecido em que termos se dará tal redefinição, isto é, em que foro, jurídico ou político, serão estabelecidas suas novas bases. Se juridicamente, não haverá diferenças entre as nações; ex-ditadores ou criminosos não possuirão nacionalidade, serão julgados e punidos. Esta talvez seja a versão globalizada (e fictícia) desta nossa história.

Politicamente, teremos outra solução. As grandes potências mundiais ditarão o ritmo e o rumo desta "nova justiça". Cabe lembrar que os E.U.A. não são signatários do Pacto de Roma. Cabe lembrar que os E.U.A. são a maior potência bélica do mundo. Cabe lembrar que revendo as soluções adotadas pelos norte-americanos nos últimos 40 anos (Vietnã, Granada, Panamá, Irã, Iraque, Iugoslávia) não restam muitas esperanças de submissão daquele país a decisões de organismos internacionais. Talvez as nações européias se mostrem um pouco mais "civilizadas". Mas, não serão menos autoritárias.

Cabe lembrar que nenhum destes países, nos últimos 100 anos, fez qualquer coisa para vivermos em um mundo um pouco menos desigual. Cabe lembrar que nenhum destes países, nos últimos 100 anos, fez qualquer coisa para vivermos em um mundo com menos fome. Cabe lembrar que nenhum destes países, nos últimos 100 anos, fez qualquer coisa para vivermos em um mundo um pouco mais justo.

Não parece-me ser o meio escolhido, o mais indicado para atingir todos estes objetivos.


Bibliografia

Bastos, Celso Ribeiro. "Curso de Direito Constitucional". Editora Saraiva. São Paulo. 1999;

Bobbio, Norberto. "Estado, Governo e Sociedade. Para uma teoria geral da política". Editora Paz e Terra. São Paulo. 1999;

Constituição da República Federativa do Brasil. Coleção Saraiva de Legislação;

Fausto, Boris. "O general venceu?". Artigo publicado no jornal Folha de São Paulo, de 13/03/00;

Folha de São Paulo. Diversas matérias. Caderno Mundo, 13/03/00, página 13;

Fontoura, Jorge. "O avanço constitucional argentino e o Brasil". Artigo publicado no jornal Correio Braziliense, Caderno Direito&Justiça, de 06/03/00, página 5;

Martins, Ives Gandra da S. "A soberania da América do Sul e Pinochet". Texto publicado no site jurídico "www.jus.com.br";

Mello, Celso D. de Albuquerque. "Direito Internacional Público". Editora Livraria Freitas Bastos S.A., Rio de Janeiro e São Paulo;

Steiner, Sylvia Helena F. "O Tribunal Penal Internacional". Artigo bpublicado no IBCCrim, Outubro/1997, n.º 83, Ano 7, página 12;

Souza, Carlos Fernando M. "O Tribunal Penal Internacional". Artigo publicado no jornal Correio Braziliense, Caderno Direito&Justiça de 29/11/99, página 6;

Zaffaroni, Eugenio Raúl e Pierangelli, José Henrique. "Manual de Direito Penal Brasileiro – Parte Geral". Editora RT. São Paulo.

 

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