ONU
Comitê Contra a Tortura
1. Criação
1.1 Criação do Comité
O Comité Contra a Tortura (CCT ou Comité) foi criado ao abrigo do
disposto no art. 17º da Convenção
contra a Tortura e outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos e
Degradantes (adiante designada
por Convenção), adoptada a 10 de Dezembro de 1984 pela Assembleia
Geral das Nações Unidas e entrada em
vigor a 26 de Junho de 1987.
O Comité iniciou os seus trabalhos a 1 de Janeiro de 1988, tendo
reunido pela primeira vez em Genebra, no mês
de Abril de 1988. Com algumas importantes excepções, as suas
atribuições, competência e regras
procedimentais foram definidas tendo por base o modelo dos restantes
comités de controlo de tratados das
Nações Unidas em matéria de direitos humanos (Treaty Monitoring
Bodies), particularmente do Comité dos
Direitos dos Homem, criado pelo Pacto Internacional sobre os Direitos
Civis e Políticos (cfr. art. 28º deste
instrumento internacional).
1.2 Objectivos prosseguidos pela Convenção
A erradicação da prática da tortura no mundo constitui um dos
principais objectivos que as Nações Unidas se
propuseram prosseguir, desde a sua fundação. Com esta finalidade,
foram estabelecidos diversos princípios de
aplicação universal, os quais viriam a ser transpostos para diferentes
Convenções e Declarações Internacionais. A
presente Convenção representou um esforço de codificação e
uniformização de todas essas normas e princípios,
até então dispersos por vários instrumentos de Direito Internacional.
1.3 Relatórios Estaduais
É importante notar, porém, que esta Convenção não se limitou a
compilar toda esta série de normas e princípios,
sem se preocupar com a sua aplicação efectiva. Criou, pelo contrário,
ao abrigo do seu art. 7º, o Comité contra a
Tortura, organismo cujos objectivos são precisamente os de garantir a
observância e aplicação do disposto na
Convenção pelos Estados Membros seus destinatários. Assim, tendo os
Estados partes, nos termos dos arts. 2º
a 16º da Convenção, aceite a obrigação de prevenir e punir a
prática da tortura, estão os mesmos sujeitos à
obrigação de apresentar, perante o Comité, relatórios periódicos
acerca das medidas por si tomadas para levar à
prática o disposto na Convenção. As competências do CCT neste
âmbito são melhor desenvolvidas nos pontos
4 e 5, infra.
1.4 Apresentação de queixas
O CCT tem também competência para apreciar queixas individuais ou
interestaduais, apresentadas contra
Estados membros que hajam previamente reconhecido a competência do
Comité para este efeito.
O mecanismo de apreciação de queixas individuais permite às pessoas
que reclamem haver sido vítimas da
violação de algum dos direitos consagrados na Convenção fazer com
que o Estado, alegadamente responsável,
responda pelas suas acções. Uma análise mais detalhada deste
mecanismo será feita nos pontos 8 e 9, infra.
1.5 Estados partes
No dia 8 de Abril de 1999, a Convenção tinha 113 Estados Partes. Onze
outros Estados haviam já procedido à
respectiva ?????assinatura, sem que no entanto tivesse havido depósito
do respectivo instrumento de ratificação.
No âmbito dos países membros da Comunidade dos Países de Língua
Portuguesa (CPLP), acederam ou
ratificaram a Convenção, para além de Portugal, o Brasil (a 23 de
Setembro de 1985) e Cabo Verde (a 4 de
Junho de 1992).
1.6 Ratificação da Convenção por Portugal
Portugal assinou a Convenção a 4 de Fevereiro de 1985, sendo a mesma
aprovada para ratificação pela
Resolução da Assembleia da República nº 11/88, de 1 de Março,
publicada na Série I-A do Diário da República
n.º 118/88, de 21 de Maio. Foi ratificada a 9 de Junho de 1988 pelo
Decreto do Presidente da República n.º
57/88, publicado na Série I-A do Diário da República n.º 166/88, de
20 de Julho. O respectivo instrumento de
ratificação foi depositado junto do Secretário Geral das Nações
Unidas a 9 de Fevereiro de 1989, tendo a
Convenção entrado em vigor na ordem jurídica interna portuguesa a 11
de Março de 1989.
1.7 Conceito de tortura
A Convenção define “tortura” do seguinte modo:
“qualquer acto por meio do qual uma dor ou sofrimentos agudos,
físicos ou mentais, são
intencionalmente causados a uma pessoa com os fins de, nomeadamente,
obter dela ou de
uma terceira pessoa informações ou confissões, a punir por um acto
que ela ou uma terceira
pessoa cometeu ou se suspeita que tenha cometido, intimidar essa ou uma
terceira pessoa, ou
por qualquer outro motivo baseado numa forma de discriminação, desde
que essa dor ou
esses sofrimentos sejam infligidos por um agente público ou qualquer
pessoa agindo a título
oficial, a sua instigação ou com o seu consentimento expresso ou
tácito”.
Apesar de a história demonstrar que a Convenção foi essencialmente
concebida para ser aplicável a casos de
prisão, detenção ou reclusão em estabelecimentos públicos, nada
parece impedir que o Comité possa igualmente
considerar a admissibilidade de comunicações respeitantes a outros
casos de maus tratos, designadamente:
mutilação genital levada a cabo em hospitais ou serviços de saúde
públicos ou de gestão pública; assédio sexual
perpetrado por funcionários públicos no desempenho das suas funções
ou maus tratos sobre crianças por parte
de agentes de serviço social.
1.8 Proibição absoluta da prática da tortura
É de sublinhar a disposição do nº. 2 do art. 2º da Convenção, que
estabelece a inderrogabilidade da proibição
da prática da tortura em qualquer situação excepcional, seja ela de
guerra ou ameaça de guerra, de instabilidade
política interna ou outro estado de excepção - esta norma tem
paralelo, na ordem jurídica interna portuguesa,
com o disposto no art. 19º nº 6 da CRP, que estabelece que, entre
outros, o direito à integridade física (onde se
compreende, como vimos, a proibição da prática da tortura) não pode
em caso algum ser prejudicado pela
declaração de Estado de sítio ou de emergência.
Os estados de sítio ou de emergência são situações de excepção,
cuja declaração se justifica em alturas de crise,
admitindo a suspensão do exercício de alguns direitos. A proibição
da prática da tortura faz, porém, parte de um
núcleo essencial de direitos que nem nessas situações podem ser
suspensos.
1.9 Obrigações para os Estados
Estabelece a Convenção importantes obrigações, a que os Estados
partes se encontram adstritos, com vista à
eliminação da prática da tortura no âmbito das respectivas áreas de
jurisdição:
1.a adopção de medidas legislativas, administrativas, judiciais ou
outras, que se revelem adequadas a cumprir
este objectivo (art. 2º nº 1);
2.a proibição de expulsão, entrega ou extradição para Estado onde
existam motivos sérios para crer que a
pessoa possa ser sujeita à prática de tortura (art. 3º nº 1);
3.a previsão de qualquer acto de tortura como infracção criminal, no
âmbito das respectivas legislações
internas (art. 4º nº 1);
4.o estabelecimento da competência internacional(1) de cada Estado
quando esteja em causa a prática de
actos qualificados como de tortura (art. 5º), sempre que:
a) a infracção seja cometida em qualquer território sob a
jurisdição do Estado parte ou a
bordo de navio ou aeronave aí registado,
b) que o presumível autor seja nacional de um Estado parte,
c) a vítima seja nacional de um Estado parte e este o considere
adequado;
d) as pessoas suspeitas da prática de actos de tortura se encontrem em
qualquer território
sob a jurisdição do Estado parte e não sejam extraditadas para um dos
Estados partes
mencionados nas 3 alíneas anteriores;
5.a inclusão de normas aplicáveis a crimes de tortura em qualquer
tratado de extradição celebrado entre os
Estados partes (art. 8º), para efeitos de concessão da
extradição;
6.a colaboração judiciária internacional no âmbito da instrução de
processos criminais emergentes da prática
de actos de tortura (art. 9º);
7.a adequada formação e informação de quaisquer agentes públicos ou
privados encarregues da aplicação
da lei, do pessoal médico ou militar e de quaisquer pessoas que possam
intervir na guarda, interrogatório
ou tratamento de indivíduos sujeitos a prisão, detenção ou
encarceramento (art. 10º);
8.a vigilância sistemática da aplicação de normas, instruções,
métodos e práticas de interrogatório, bem
como das disposições aplicáveis à guarda e tratamento de pessoas
sujeitas a prisão, detenção ou
encarceramento (art. 11º);
9.a instauração de inquérito rigoroso sempre que existam motivos
razoáveis para crer que um acto de tortura
foi praticado em qualquer território sob a jurisdição de um Estado
parte (art. 12º);
10.a garantia do direito de apresentar queixa por parte de qualquer
pessoa que alegue haver sido submetida a
tortura e o exame rigoroso do seu caso (art. 13º);
11.o direito da vítima de tortura a obter uma adequada indemnização,
com vista à reparação do dano sofrido
e à sua completa reabilitação (art. 14º); e
12.a proibição da utilização de declarações obtidas mediante
recurso à prática da tortura como elemento de
prova num processo (art. 15º).
1.10 A tortura na Constituição da República Portuguesa
A proibição da prática da tortura tem, entre nós, a dignidade de
protecção constitucional, encontrando-se
expressamente prevista no art. 25º nº2 da Constituição da República
Portuguesa (CRP) (subordinado à
epígrafe “Direito à integridade pessoal”, o qual se enquadra no
Capítulo I: “ Direitos, liberdades e garantias
pessoais”, do Título II : “ Direitos, Liberdades e garantias”, da
Parte I da CRP: “Direitos e Deveres
fundamentais”), que estabelece o seguinte:
“Ninguém pode ser submetido a tortura, nem a tratos ou penas cruéis,
degradantes ou
desumanos.”
1.11 A tortura no Código Penal português
A legislação portuguesa incrimina a prática de actos de tortura, nos
termos do disposto nos arts. 243º e seguintes
do Código Penal Português (CP). É interessante notar que estas normas
se inserem no capítulo II (“Dos crimes
contra a Humanidade”) do Título III (“Dos crimes contra a paz e a
Humanidade”) da parte especial do Código.
Está prevista uma pena de 1 a 5 anos para a prática de tortura
simples, que será elevada para uma pena de 3 a
12 anos em caso de crime qualificado - ou seja, quando do acto de
tortura resultar ofensa grave à integridade
física da vítima, quando os meios empregues sejam especialmente
gravosos ou quando o agente pratique
habitualmente actos de tortura. Se do acto resultar o suicídio ou a
morte da vítima, a pena será de 8 a 16 anos.
Estas normas incriminatórias, que não tinham correspondente na versão
originária do Código, de 1982,
constituíram um dos poucos casos de verdadeira neo-criminalização
introduzida pela revisão a que o mesmo foi
sujeito, por efeito da aprovação do Decreto-Lei nº 48/95, de 15 de
Março. Este mesmo diploma introduziu ainda
um crime de omissão de denúncia (art. 245º CP), punindo com pena de
prisão de 6 meses a 3 anos os superiores
hierárquicos que, tendo conhecimento da prática, por subordinado, de
actos de tortura, o não denunciarem no
prazo máximo de 3 dias após esse conhecimento.
Foram precisamente os compromissos internacionais assumidos com a
ratificação da Convenção que
determinaram a inclusão destas normas no sistema penal português.
1.12 A tortura no Código de Processo Penal português
Por outro lado, o actual Código de Processo Penal Português (CPP), de
1998, no seu art. 126º, reafirma a
proibição, já prevista nas anteriores versões deste diploma, de
utilização das provas obtidas mediante o recurso à
tortura, decretando a nulidade das mesmas, excepto quando utilizadas com
o fim exclusivo de perseguir
criminalmente as pessoas acusadas da prática destes actos. Estas normas
representam um importante esforço do
Estado português no cumprimento das obrigações a que está adstrito
por força da Convenção, transpondo
directamente para a sua ordem jurídica interna disposições de
prevenção e combate à prática da tortura no
âmbito da sua jurisdição.
1.13 Outras normas internacionais sobre a tortura
De realçar que, no âmbito do Conselho da Europa, foi adoptada, a 26 de
Novembro de 1987, a Convenção
Europeia para a Prevenção da Tortura e de Tratamentos ou penas
Desumanos ou Degradantes ,
prevendo a criação de um outro comité que, por meio de visitas a
pessoas privadas de liberdade, possa
conferir-lhes protecção contra a prática de actos de tortura.
Esta Convenção, de âmbito regional necessariamente mais restrito, uma
vez que se circunscreve aos países
membros do Conselho da Europa, institui um mecanismo de fiscalização
de carácter sobretudo preventivo. As
visitas a locais de detenção efectuadas por este Comité, denominado
Comité para a Prevenção da Tortura -
CPT, visam obter a colaboração das autoridades do Estado parte
interessado, mais do que o confronto com ele.
O objectivo do CPT consiste em ajudar a prevenir os maus tratos,
incluindo aqueles que resultam de deficientes
condições de detenção; e, com este fim, efectua visitas aos locais
de detenção e envia relatórios às autoridades
do respectivo Estado, formulando as recomendações que considere
apropriadas. Os Estados, por seu turno,
deverão dar resposta às observações e sugestões do Comité.
Não sendo uma autoridade judicial, o CPT desenvolveu, porém, um
conjunto de modelos ou “padrões de
medida”, que utiliza no decurso das suas visitas, com o fim de o
ajudar a avaliar os procedimentos adoptados e
de encorajar os Estados a satisfazerem os seus critérios de situações
e condições aceitáveis. Estes padrões são,
na sua maioria, mais detalhados e mais exigentes do que aqueles que
constam de outras obrigações
internacionais.
A proibição da prática de actos de tortura decorre também de outros
instrumentos de Direito Internacional,
designadamente:
A) No âmbito das Nações Unidas
a) a Carta das Nações Unidas, de forma indirecta, ao proclamar, no seu
art. 55º, que incumbe aos Estados, em
virtude da Carta, promover o respeito universal e a observância dos
direitos do homem e das liberdades
fundamentais;
b) a Declaração Universal dos Direitos do Homem (DUDH) que, no seu
art. 5º, proclama “Ninguém será
submetido a tortura nem a penas ou tratamentos cruéis, desumanos ou
degradantes”;
c) o Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos (PIDCP),
no seu art. 7º, que vai mais longe que
a DUDH, ao especificar: “Em particular, é interdito submeter uma
pessoa a uma experiência médica ou
científica sem o seu livre consentimento”;
d) a Declaração sobre a Protecção de Todas as Pessoas contra a
Tortura e outras penas ou
Tratamentos Cruéis, Desumanos ou Degradantes, adoptada pela Assembleia
Geral das Nações Unidas na
sua resolução 3452 (XXX), de 9 de Dezembro de 1975, segundo a qual tal
acto constitui “uma ofensa contra a
dignidade humana e será condenado como uma negação aos propósitos da
Carta das Nações Unidas e
como uma violação aos direitos e liberdades fundamentais afirmados na
Declaração Universal dos
Direitos do Homem (e noutros instrumentos internacionais sobre direitos
do Homem)”;
e) a Resolução 37/194 da Assembleia Geral das Nações Unidas,
adoptada em 18 de Dezembro de 1982, que
estabelece Princípios de Deontologia Médica aplicáveis à actuação
do pessoal dos serviços de saúde,
especialmente aos médicos, para a protecção de pessoas presas ou
detidas contra a tortura e outras
penas ou tratamentos cruéis, desumanos ou degradantes;
f) A Resolução 43/173 da Assembleia Geral das Nações Unidas, de 9 de
Dezembro de 1988, que adopta um
Conjunto de Princípios para a Protecção de Todas as Pessoas Sujeitas
a Qualquer forma de Detenção
ou Prisão, e cujo Princípio 6 estabelece não só a proibição de
sujeição de tais pessoas a actos de tortura, mas
também que “Nenhuma circunstância, seja ela qual for, poderá ser
invocada para justificar a tortura ou
outras penas ou tratamentos cruéis, desumanos ou degradantes”;
g) o Código de Conduta para os Funcionários Responsáveis pela
Aplicação da Lei, aprovado pela
Assembleia Geral das Nações Unidas através da sua resolução 34/169,
de 17 de Dezembro de 1979 (art. 5º);
B) No âmbito do Conselho da Europa
a) a Convenção para Protecção dos Direitos Humanos e das Liberdades
Fundamentais, adoptada em
Roma, a 4 de Novembro de 1950, no âmbito do Conselho da Europa (art.
3º);
b) a Convenção Europeia para a Prevenção da Tortura e de Tratamentos
ou Penas Desumanos ou
Degradantes, já anteriormente referida, adoptada em Estrasburgo a 26 de
Novembro de 1987.
_________________________
(1) Determinação do Estado a quem cabe julgar da prática do crime, em
casos que envolvam mais do que uma ordem jurídica (p.
ex., quando o crime seja cometido no território de um Estado e o agente
seja detido num outro país).
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