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 Julgamento
              de Milosevic em Haia já faz parte da História foto publicada pela Folha de São Paulo (France Presse)Conheça o texto
              especialmente elaborado pelo historianet sobre o ex-ditador
              Slobodan Milosevic: desde sua militância comunista, passando pelo
              nacionalismo que alimenta o racismo étnico-religioso nos Bálcãs,
              até asua extradição e o histórico julgamento pela ONU, o
              primeiro desde que o Tribunal de Nuremberg condenou lideranças
              nazistas em 1946.
 
 INTRODUÇÃO
 
 No dia 23 de junho de 2001 o governo da Iugoslávia autorizou a
              colaboração do país com um tribunal internacional criado em
              1993 pelo Conselho de Segurança da ONU para crimes ocorridos nos
              territórios da ex-Iugoslávia. Cinco dias depois, o ex-ditador
              Slobodan Milosevic era extraditado para sede do tribunal, em Haia,
              na Holanda, para ser julgado por crimes contra a humanidade.
 Além de se fazer justiça sobre os crimes racistas, promovidos há
              cerca de dez anos por Milosevic, sua extradição torna-se um
              acontecimento histórico marcante nesse começo de século, por
              tratar-se do primeiro líder europeu a ser julgado por crimes de
              guerra desde que os tribunais de Nuremberg (Alemanha) e Tóquio
              (Japão) foram instalados após a Segunda Guerra Mundial. Naquela
              ocasião, entre 20 de novembro de 1945 e 1 de outubro de 1946, um
              tribunal militar internacional instalado em Nuremberg julgou 24
              membros do partido e do governo nazista e oito organizações
              acusadas de crime de guerra. O veredicto permitiu à ONU definir o
              crime como genocídio, resultando na condenação de doze acusados
              à morte por enforcamento, sete à prisão, além da condenação
              de quatro organizações.
 
 O TRIBUNAL PENAL INTERNACIONAL PARA EX-IUGOSLÁVIA
 
 O Tribunal Penal Internacional para Ex-Iugoslávia foi criado em
              maio de 1993 pela resolução 827 do Conselho de Segurança da
              ONU. Sediado na cidade de Haia, na Holanda, trata-se do primeiro
              organismo internacional para crimes de guerra desde o tribunal de
              Nuremberg.
 Segundo a resolução 827 do Conselho de Segurança da ONU, todos
              os Estados são totalmente obrigados a colaborar com o tribunal,
              que tem jurisdição sobre indivíduos responsáveis por crimes
              contra a humanidade, crimes de guerra e genocídio desde 1 de
              janeiro de 1991 em todo território da ex-Iugoslávia, o que
              corresponde hoje aos Estados da Eslovênia, Croácia, Bósnia,
              Macedônia e a atual Iugoslávia, formada por Sérvia e
              Montenegro.
 Atualmente 39 pessoas indiciadas encontram-se no centro de detenção
              do tribunal. Porém, ainda continuam foragidos 37 suspeitos de
              crime de guerra sendo que 19 já foram considerados culpados e
              dois inocentados.
 
 AS ACUSAÇÕES
 A ONU vem denunciando as atrocidades de Milosevic desde maio de
              1999, acusando-o e de expulsar os kosovares de origem albanesa da
              Província sérvia de Kosovo e de assassinatos em massa ocorridos
              nos vilarejos de Racak, Bela Crkva e Velika Krusa.
 Segundo Carla Del Ponte, principal promotora do tribunal da ONU,
              existe ainda uma nova acusação por crimes autorizados pelo
              ex-ditador na Croácia e principalmente na Bósnia, na primeira
              metade da década de 1990, onde a política sérvia de “faxina
              étnica” assassinou milhares de pessoas no bombardeio de
              Serajevo e em massacres como o de Srbrenica. A promotora, também
              vem insistindo na prisão de outros 38 criminosos de guerra, entre
              os quais estão quatro ex-assessores de Milosevic e os líderes sérvios
              da Bósnia Radovan Karadzic e Ratko Mladic, que indiciados pela
              primeira vez há seis anos e agora também acusados de genocídio,
              encontram-se foragidos. Karadzic desloca-se constantemente e está
              muito bem protegido na República Srpska, a República Sérvia da
              Bósnia, onde o premiê Mladen Ivanic, afirmou estar disposto a
              colaborar com o tribunal da ONU no sentido de prendê-los, para
              que também sejam enviados para Haia.
 
 
 As denúncias poderão levar Milosevic à prisão perpétua, pois
              segundo um alto funcionário do tribunal de Haia, as acusações
              incluem o ato de genocídio, o mais grave crime investigado pelo
              tribunal. No dia seguinte à extradição, foram exumados 74
              corpos de duas valas comuns no leste da Sérvia, tratando-se
              possivelmente de mais um crime ordenado por Milosevic.
 Se os crimes na Bósnia e Croácia forem acrescentados à acusação
              original que diz respeito a Kosovo, o julgamento deverá durar
              cerca de dois anos. O termo definitivo das acusações sobre a Bósnia
              e a Croácia deve ser apresentado no máximo até outubro.
 
 
 QUEM É SLOBODAN MILOSEVIC ?
 
 Ex-funcionário do Partido Comunista na ex-Iugoslávia, Milosevic
              começou a adquirir poder em seu país, com a lacuna política
              deixada pela morte do carismático líder comunista Josip Broz
              Tito em 1980. Assim, Milosevic tornou-se líder do Partido
              Comunista sérvio em 1986, e nos 13 anos seguintes o mais poderoso
              homem da Sérvia.
 Ao discursar para mais de 1 milhão de sérvios em 1989, no
              aniversário de seis séculos da batalha do Kosovo contra os
              turcos, Milosevic já disseminava uma onda de ódio étnico-religioso
              pela Península Balcânica. Através de um nacionalismo
              irracional, permaneceu alimentando um revanchismo cego após seis
              séculos de história, ocasião em que os cristãos foram
              derrotados pelos turcos otomanos, que estendiam seu império sobre
              os Bálcãs. Apesar da vitória dos turcos (muçulmanos), o
              islamismo permaneceu predominante apenas na Bósnia e no Kosovo.
 Muito popular no início de seu governo, Milosevic foi eleito
              presidente da Sérvia em 1990 e reeleito em 1992, para após mudanças
              constitucionais, tornar-se presidente da Iugoslávia em 1997.
 Onze anos depois, visando manter o “tirano dos Bálcãs” no
              poder, a contagem de votos foi manipulada pelo governo, que
              anunciou a vitória oposicionista, porém com menos de 50% dos
              votos. Portanto, haveria um segundo turno marcado para dia 8 de
              outubro. A oposição reagiu, denunciando a fraude e negando-se a
              participar do turno final, concedendo um prazo de 24 horas para
              Milosevic aceitar a derrota. Vendo-se encurralado por uma
              manifestação que lembrava cenas de uma verdadeira revolução, o
              Milosevic foi obrigado a reconhecer sua derrota nas eleições
              presidenciais.
 Foram 13 anos de ditadura, que deixaram em quatro guerras, um
              saldo de mais de 200 mil mortos, dois milhões de refugiados e
              faxinas étnicas típicas do antigo nazismo.
 
 AS REPERCUSSÕES INTERNAS E EXTERNAS
 
 A pressa das autoridades iugoslavas para extraditar Milosevic,
              explica-se pela resistência da Corte Constitucional Iugoslava em
              entregar o ex-ditador, e principalmente pela reunião de doadores
              internacionais de fundos que, liderada pelos Estados Unidos e pela
              União Européia, condicionou uma ajuda financeira para Iugoslávia
              de 1,3 bilhão de dólares, à total colaboração do governo de
              Belgrado com o tribunal de Haia.
 A crise política sobre o governo iugoslavo foi imediata. Apesar
              de inicialmente posicionar-se contra a extradição de Milosevic,
              o atual presidente iugoslavo, Vojislav Kosturnica, acabou cedendo
              às pressões internacionais após o conhecimento de outras
              atrocidades, como a descoberta de dezenas de valas comuns no
              Kosovo, supostamente ordenadas pelo ex-ditador. Kosturnica
              entretanto, tentou agradar um pouco os nacionalistas sérvios,
              afirmando num segundo momento que a extradição de Milosevic “não
              podia ser considerada legal nem constitucional”. Enquanto o
              presidente criticava a decisão tomada pelas autoridades
              reformistas da Sérvia, o primeiro-ministro sérvio Zoran Djindjic,
              defendeu a entrega de Milosevic, como sendo “o melhor para o país”,
              já que além de punir atrocidades racistas, a Iugoslávia,
              isolada e sem dinheiro receberia uma vultuosa ajuda financeira de
              1,3 bilhão de dólares.
 
 
 
 
 
 A situação política da Iugoslávia agravou-se no dia seguinte
              à entrega de Milosevic, com a renúncia do primeiro-ministro da
              Iugoslávia e líder dos socialistas de Montenegro Zoran Zizic, o
              que provocou a queda do governo federal em protesto à entrega do
              ex-ditador.
 
 
 As reações externas também foram polarizadas, pois enquanto a Rússia
              acusava o Ocidente de usar a ajuda financeira para “obter seus
              fins”, o chanceler alemão, Gerhard Schoröder, afirmava que a
              Iugoslávia precisava de ajuda internacional.
 
 
 A SECESSÃO DA ANTIGA IUGOSLÁVIA
 
 A queda de Milosevic representa o apogeu do processo de crise
              nacionalista que se instalou nos Bálcãs iugoslavos desde a falência
              do socialismo no leste europeu. Nessa conjuntura reinicia-se uma
              onda de movimentos separatistas nas repúblicas que desde o fim da
              Primeira Guerra Mundial formavam a frágil Iugoslávia, sob
              liderança da Sérvia.
 Em 1990 Croácia e Eslovênia decidiram abandonar a Federação,
              iniciando o longo processo de guerra civil devido à resistência
              sérvia ao separatismo. Dois anos depois era a vez da Bósnia-Herzegovínia,
              majoritariamente muçulmana e por isso, odiada pelos nacionalistas
              sérvios, que haviam sofrido os horrores do imperialismo otomano
              (muçulmano) entre os séculos XIV e XIX. O separatismo bósnio,
              foi o mais violento no processo de esfacelamento do país. Somente
              no massacre de Srebrenica em 1995, cerca de 10 mil civis muçulmanos
              foram mortos por soldados sérvios. Mas o pior capítulo ainda
              estava por acontecer.
 Entre 1998 e 1999, o separatismo
              kosovar provocava a mais violenta reação dos sérvios,
              responsável por centenas de milhares de mortos, em sua maioria muçulmanos
              kosovares de origem albanesa. A delicada situação somente foi
              contornada com a intervenção da OTAN que expulsou os sérvios do
              Kosovo. Liderada pelos Estados Unidos, a ofensiva durou 78 dias e
              deixou um saldo de 8 mil mortos, além de prejuízos que somaram
              mais de US$ 100 milhões.
 
 BÉLGICA PODE JULGAR SADDAM HUSSEIN E ARIEL SHARON
 
 A Bélgica está se tornando uma esperança para atrocidades
              “esquecidas” pela ONU. Uma lei de 1993 permite que o país
              julgue crimes internacionais, não importando a nacionalidade dos
              acusados e nem o local em que os crimes foram cometidos. O
              massacre de tutsis em Ruanda (1994), já levou duas freiras à
              condenação em Bruxelas. O ditador iraquiano Saddam Hussein pode
              ser o próximo, já que em 30 de junho de 2001, um juiz belga
              iniciou investigações acatando denúncias feitas por seis
              sobreviventes entre as centenas de curdos massacrados após a
              Guerra do Golfo (1991).
 O mesmo pode acontecer com o líder de extrema direita e atual
              primeiro-ministro de Israel, Ariel
              Sharon, o principal responsável pelo massacre de mais de 2000
              civis palestinos em Beirute nos campos de refugiados de Sabra e
              Chatila em 1982. Na época, ministro da defesa, Sharon
              que, três dias antes do massacre, havia assumido o controle da
              parte oeste da capital libanesa onde se encontravam os
              acampamentos, liberou o avanço das milícias cristãs aliadas de
              Israel no Líbano, contra os campos palestinos. Em Israel a
              indignação foi considerável, promovendo manifestações de rua
              seguidas da criação de uma Comissão de Inquérito que atribuiu
              responsabilidade apenas indireta de Sharon nos massacres, o que
              entretanto, o induziu a abandonar o ministério em fevereiro do
              ano seguinte. Em 1984 porém, Sharon passa a ocupar o cargo de
              ministro do Comércio, sendo eleito primeiro ministro de Israel em
              fevereiro de 2001.
 
 
 
 Sobreviventes de uma família dizimada pela chacina já
              encaminharam um pedido de denúncia contra Sharon, que deve ser
              aceito pela justiça belga.
 
 
 QUAL O CRITÉRIO ?
 
 Qual o critério estabelecido para que um ato seja considerado
              crime contra a humanidade ou uma prática de genocídio? É o critério
              da “história dos vencedores”, das potências hegemônicas.
 Os vários episódios que envolvem os Estados Unidos são claros
              nesse sentido. Se por um lado, a política interna norte-americana
              é marcada pela transparência, chegando até a condenar e
              derrubar presidentes, na política externa a história é bem
              diferente.
 Até hoje o mundo fica estarrecido com a lembrança das bombas
              atômicas de Hiroxima e Nagasaki. Como devemos considerar
              esse ato insano dos Estados Unidos no final da Segunda Guerra
              Mundial que provocou a morte indiscriminada de pelo menos 180 mil
              japoneses, quando era de conhecimento que as vítimas seriam
              majoritariamente civis, cidadãos comuns, já que nenhuma das duas
              cidades era alvo militar muito importante?
 Se na época o tribunal de Nuremberg condenou lideranças nazistas
              por prática de genocídio, porque posteriormente não foram
              instalados outros tribunais, para outros crimes tão repulsivos?
 A resposta não é tão difícil. Quando os interesses das potências
              dominantes do cenário histórico mundial estão em jogo é
              encontrada uma forma de camuflar, esquecer ou distorcer a verdade
              histórica.
 Por quantas vezes os Estados Unidos utilizaram o famigerado poder
              de veto no Conselho de Segurança da ONU para encobrir atrocidades
              cometidas por seus aliados conjunturais ou estratégicos, como as
              ditaduras militares da América Latina entre os anos 1960 e 1980 e
              Israel?
 Infelizmente, na história mais recente da segunda metade do século
              XX, encontramos uma série de outros atos que, com o aval ou no mínimo
              conivência de governos supostamente democráticos, podem ser
              considerados como crimes contra a humanidade e prática de genocídio,
              encaixando-se nas mesmas acusações que recaem sobre Milosevic.
 Torna-se assim, extremamente relevante, que num momento como esse,
              todos aqueles que repudiam esse tipo de ato medonho, não permaneçam
              insensíveis frente a tantos outros crimes. Não se trata de
              retaliação, mas apenas de regatar a memória histórica naquilo
              em que a mesma foi amputada: a verdade a justiça e a transparência
              dos fatos, em favor de um mundo mais democrático e pluralista com
              respeito à autodeterminação dos governos e dos povos.
 
 
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