Quem
tem medo da Europa?
Slavenka Drakulic
Vivo na Suécia, na
Croácia e na Áustria. A Europa é pois a minha casa. Recordo-me
de como, ainda há apenas um par de anos, quando havia
desaparecido já o controlo na fronteira entre a Áustria e a Itália,
a cruzámos perto de Klagenfurt sem conseguir acreditar que a polícia
não iria mandar-nos parar. Porque agora não existia polícia
alguma, mas apenas umas quantas cabinas vazias. Que sensação de
liberdade! Sobretudo porque recordava aquilo que sentira no
momento em que cruzara pela primeira vez a recém-construída alfândega
que, no ano de 1991, passara a separar a Eslovénia da Croácia.
Como sou uma europeia de Leste, sei também o que se sente, num
aeroporto, quando se está na fila do posto de controlo para
"não comunitários", ou, por vezes mais secamente,
reservada a "outros".
Vivo em ambos os lados
das fronteiras reais e imaginárias da Europa, cruzando-as
constantemente numa e noutra direcção, e devo dizer que há
apenas um ano acreditava, muito mais do que hoje, no projecto de
construção de uma Europa unida. Claro que isso foi antes ainda
das eleições na Áustria, na Noruega, na Suiça ou na cidade de
Anvers, antes do referendo sobre o Euro na Dinamarca, ou de
incidentes como os de El Ejido, no qual um grupo de pessoas,
mobilizado por uma página web neonazi, atacou trabalhadores
magrebinos durante três dias. A lista de acontecimentos
inquietantes sucedidos em toda a Europa é muito maior. É como se
de repente tivesse aparecido o desenho de uma outra Europa diante
dos meus olhos; uma Europa que, quando reparo nela, me faz pele de
galinha. E não se trata de um dejà vu, porque pertenço a
uma geração que não conheceu o fascismo, mas que de hoje em dia
depara por todo o lado com uma xenofobia, um nacionalismo e um
racismo crescentes. Além disso, como venho de onde venho, sei
quando o medo do outro se converte em algo ao qual se deve começar
a prestar atenção. E pergunto-me se se trata de acontecimentos
isolados ou se constituem antes sinais de que o projecto de
integração europeia se encontra em vias de perder impulso.
Nasci depois da
Segunda Guerra Mundial e cresci num continente adormecido e
dividido pela cortina de ferro, no qual se insistia
permanentemente na eventualidade de uma guerra mundial. Quando estávamos
na escola, treinávamos aquilo que deveríamos fazer em caso de
ataque nuclear. Apreendemos de memória como reconhecê-lo:
primeiro apareceria no horizonte uma nuvem em forma de seta,
seguida de uma explosão de calor e de cinza. Deveríamos
esconder-nos por detrás de uma qualquer parede, apertar a máscara
anti-gás contra a cara e não beber água em circunstância
alguma (a parte da água impressionava-nos especialmente e queríamos
sempre saber porquê). Ainda que fossemos apenas crianças, sabíamos
que aquelas precauções iriam proteger-nos pouco se aquele horror
descrito nos livros chegasse mesmo a acontecer. Mas, apesar disso,
treinávamos abnegadamente. Não nos serviu para nada. Quando a
guerra seguinte, a guerra dos Balcãs, eclodiu, apanhou-nos de
surpresa. Jamais suspeitáramos, nos finais dos anos cinquenta,
que a guerra da qual seríamos testemunhas seria de âmbito local,
limitada e de média intensidade: uma guerra que nos apanharia
completamente de improviso.
A minha geração
cresceu com a ideia de que uma guerra deste tipo, com campos de
concentração genocidas e o repovoamento forçado de cidades
inteiras, seria completamente impossível após a Segunda Guerra
Mundial. A Europa tinha aprendido a lição, diziam-nos os
professores de história, e tais horrores não poderiam voltar a
suceder. Hoje, depois da guerra no meu país, na Bósnia e no
Kosovo, já não acredito que Europa tenha aprendido a lição.
Mas talvez me equivoque. No fim de contas, a última guerra não
teve lugar em toda a Europa, mas apenas nos Balcãs. E serão os
Balcãs Europa? Assim parece agora, mas amanhã poderá dizer-se
precisamente o contrário. Para o caso de assim vir a acontecer, o
que é então a Europa e onde termina ela?
Indefinição
europeia
Naquele tempo, nos
meus anos de escola, tudo parecia meridianamente claro. A Europa
era o lugar no qual a União Soviética não se encontrava
presente. A enorme transformação política sucedida durante os
últimos dez anos deitou por terra essa certeza pueril. A Europa
de hoje já não é uma questão de geopolítica e de fronteiras
definidas no seu lado oriental, nem mesmo de unidade económica,
mas sim de atitudes, de definições, de instituições, de uma
determinada paisagem mental. Já não existe nenhuma cortina de
ferro que torne fáceis as definições. Durante os últimos dez
anos, os povos da Europa foram testemunhas do colapso do comunismo
e do desaparecimento do inimigo comum, da aceleração do processo
de integração no seio da União Europeia, do seu alargamento
planificado para Leste e da guerra dos Balcãs. Simultaneamente, o
processo de globalização parece ter-se alargado a todo o mundo.
Mas estas mudanças ocorreram com uma rapidez demasiado grande
para que possamos compreendê-las, para que possamos assimilá-las
por completo. E as pessoas reagiram como sempre se reage diante do
desconhecido, com uma sensação de incerteza e de medo. Mesmo que
o mundo conhecido se dissolva diante dos nossos olhos, o novo, que
apenas começa a tomar forma, não é ainda compreensível. O que
é na verdade a Europa e até que ponto poderá então ampliar-se
para Leste continuando a ser Europa? Será a Turquia Europa? E,
neste caso, o que se passará com a situação da Rússia?
Estas perguntas não são
abstractas. A questão de fundo é saber como estas transformações
influenciarão a vida dos europeus, o seu trabalho, rendimentos,
educação, língua, etc. Um cada vez maior número de pessoas tem
conhecido a sensação de deixar de poder controlar a sua própria
vida. Trata-se de um sentimento de ansiedade que não se encontra
totalmente identificado ou definido, e que em muitas ocasiões nem
sequer é considerado como tal, mas que existe à nossa volta, é
palpável, medido nos inquéritos de opinião, referendos,
resultados de eleições, articulado sob a forma de dúvidas sobre
o Leste, sobre a necessidade da unidade monetária, da integração
e da ampliação, ou sobre a livre circulação de mão-de-obra.
Quer dizer: apesar de ser tão vaga, esta ansiedade já produz
efeitos sobre a vida política de diversos países e poderá vir a
provocar mudanças substanciais no panorama político europeu.
O mecanismo para
explorar o medo é simples e conhecido. Como indivíduo, qualquer
um pode sentir-se perdido e confuso, ultrapassado pela velocidade
e pelo alcance dos acontecimentos históricos. De repente, alguém
te oferece um refúgio, um sentimento de pertença, uma garantia
de segurança. Temos o mesmo sangue, vivemos no mesmo território,
os nossos devem estar em primeiro lugar, assim reza o discurso.
Para os ouvidos assustados, palavras tão diferentes como sangue,
pátria, território, nós, eles, tornam-se reconfortantes. Ao
ouvi-las, sentem-se mais fortes, deixam de estar sozinhos,
afirmam-se diante do outro. Diante dos imigrantes – muçulmanos,
turcos, refugiados, africanos, sem-abrigo, ciganos – ou da
burocracia continental, que pretende controlar as suas vidas a
partir de Bruxelas. Quando se descobre o prazer de pertencer a um
grupo, o outro já não nos faz tanto medo. Desde o medo do
desconhecido à invenção do inimigo conhecido vai um pequeníssimo
passo. Não é preciso muito mais do que essa vaga sensação de
ansiedade e um líder político que saiba como tirar partido dela.
Os meios de comunicação se encarregarão de fazer o resto.
Medo do
desconhecido
Parece que esta nova e
mais obscura cara da Europa começou a vislumbrar-se com a vitória
do Partido da Liberdade de Jörg Haider, na Áustria. A verdade,
porém, é que este triunfo eleitoral apenas tornou mais visível
a tal ansiedade. Haider foi aquele que obteve maior êxito, mas
existem outros, como Umberto Bossi, Christoph Blocher, Karl Hagen,
Edmund Stoiber, Filip Dewinter, Pia Kjesgaard ou Jean-Marie LePen,
que apenas esperam pela sua vez. Recentemente, o
ultra-nacionalista Bloco Flamengo da Bélgica celebrou a maior vitória
da extrema-direita na Europa desde a entrada do Partido da
Liberdade no governo de coligação austríaco. Obteve 10% dos
votos nas eleições gerais. Em Anvers fez subir a sua percentagem
de votos de 18% até aos 33%, nos últimos doze anos, explorando
os sentimentos xenófobos. O seu enérgico líder, o jovem Filip
Dewinter, confessou que "nem sequer me atrevera a sonhar
isto". A Liga do Norte italiana conseguiu uns 10% nas
eleições gerais de 1996, outro êxito fundado numa política xenófoba
para com os imigrantes. O Partido do Povo Dinamarquês alcançou
cerca de 18% nas últimas votações graças a uma propaganda xenófoba
muito agressiva. Pia Kjersgaad afirma abertamente que os
imigrantes, especialmente os muçulmanos, ameaçam a segurança de
famílias e os valores cristãos dos dinamarqueses genuínos, "a
sua verdadeira dinamarquesidade", segundo afirma. Chegou
mesmo a comparar a pluralidade cultural com o holocausto. Em
consequência, o resultado do recente referendo dinamarquês, no
qual se rejeitou o Euro, não deve surpreender-nos. A Frente
Nacional francesa não está agora tão forte quanto esteve no
passado, mas obtém ainda uns 15% dos votos. Por outro lado, o
primeiro-ministro alemão Gerhard Schröeder sofreu na primavera
passada uma descida nas sondagens de opinião após ter sugerido a
importação de 10.000 peritos em informática, vindos
principalmente da Índia. Apesar de se considerar que a Alemanha
necessita de 70.000 peritos informáticos para alcançar um nível
de desenvolvimento internacional no campo da tecnologia da informação,
56% da população opôs-se a esse plano. Numa outra sondagem, só
4% dos alemães se mostraram entusiasmados com a livre circulação
de mão-de-obra no interior da União Europeia. O aumento da
popularidade do Partido do Progresso norueguês é parte da mesma
tendência para fechar as fronteiras e construir novos muros. Tal
como acontece com Blocher, do Partido do Povo Suíço, que alcançou
uns 22,6% nas eleições federais de Outubro (após haver obtido
14,95% em 1995). Outro caso suíço é igualmente revelador: os
votantes de Emmen, um subúrbio industrial de Luzern, utilizaram
as urnas para recusar as petições de cidadania dos estrangeiros.
Apenas aceitaram concedê-la a quatro famílias italianas. Blocher
propõe agora uma votação popular sobre a cidadania como modelo
para todo o país. "As pessoas sentem-se inseguras no novo
mundo globalizado e têm a opinião de que o isolamento lhes
confere uma maior segurança", explicou o porta-voz de
uma organização Suiça de apoio aos estrangeiros.
Apogeu da
extrema-direita
Este resumo parcial
aponta para o crescente êxito dos partidos de extrema-direita em
toda a Europa. Este resultado não resulta da afirmação de uma
nova vaga de camisas castanhas e negras, mas exprime a ansiedade
diante do aumento da população. Os partidos de direita,
estimulando o medo das pessoas através de uma retórica
populista, utilizam esta ansiedade. Em qualquer caso, a verdade da
questão é que os partidos de direita são os únicos que
exprimem um sentimento popular, que reconhecem esse sentimento de
ansiedade. É evidente que o utilizam em benefício do seu
objectivo: aproximar-se do poder. Mas não se pode dizer que essa
ansiedade tenha sido criada ou inventada por esses partidos. Afirmá-lo
seria ignorar a própria ansiedade da maneira mais estúpida.
Estes partidos, com a generosa ajuda dos meios de comunicação,
apenas transmitem uma vaga ideia do grau de insatisfação.
Dirigi-la para a xenofobia é fácil, porque o outro existe em
todas as sociedades. Mesmo que esta xenofobia se exprima de
maneira polémica diante desta ou daquela proposta legal acerca da
cidadania dos imigrantes (como na Alemanha em 1998), não se trata
de nada de alarmante. Mas já o é que a sondagem de opinião
aparecida no Der Spiegel no Verão passado mostre que uma
maioria de alemães está de acordo com algumas opiniões da
extrema-direita, especialmente no que se refere aos imigrantes. E
também o é que este tipo de retórica tenha produzido resultados
políticos concretos em diferentes eleições, especialmente
durante o último ano. Depois disto, parece difícil negar este
fenómeno ou conferir-lhe um carácter meramente marginal.
A ansiedade está a
alastrar também por toda a Europa pós-comunista. O entusiasmo
que reinou durante os primeiros anos posteriores à queda do
comunismo foi substituído pela decepção. Uma vez mais, a Europa
unida parece distante, existem muros distintos do muro de Berlim,
as condições de integração na União Europeia são difíceis
de obter e a data vai sendo mais e mais adiada para um futuro. O
que permite a nacionalistas e anti-europeus afirmar que não se
deveria renunciar à soberania conseguida. Exprimem o medo de que
as empresas multinacionais comprem o país, entregando-o à
americanização da sua cultura ou à globalização. Não deverá
surpreender-nos que alguém como Slobodan Milosevic tenha
utilizado este tipo de linguagem. Mas também democratas como
Vaclav Klaus, antigo primeiro-ministro checo, falem contra a União
Europeia: "A Europa está, fundamentalmente, a separar o
estado da nação, particularmente no que respeita à sua
soberania", afirmou, na Áustria, em Junho de 2000. Tem
razão, pois é justamente esta a ideia da Europa integrada. Klaus
fala, além disso, de assimilação e de perda da identidade
nacional. "Não queremos ser eurochecos!". O
primeiro-ministro húngaro Viktor Orbán é também céptico em
relação à União, para não falar do populista eslovaco
Vladimir Meciar ou do nacionalista húngaro e anti-semita István
Csurka. A Europa do leste pós-comunista está muito longe de ser
uma Europa unida também num outro sentido: uns 67% dos polacos,
por exemplo, consideram que quando o seu país se unir à União
serão convertidos em cidadãos de segunda classe.
Nacionalismo e
xenofobia
O êxito dos partidos
nacionalistas de extrema-direita, xenófobos e anti-europeus e o
dos líderes populistas é tão perigoso na Europa Oriental como
na Ocidental. Alargando a sua influência sobretudo através de
uma exploração da ansiedade e dos medos nos quais mais ninguém
deseja tocar, podem minar o processo de integração. Os seus líderes
dizem ao povo que perderá a soberania nacional, a cultura, a língua,
etc. Que a sua identidade nacional, cultural e social corre
perigo. Que os estrangeiros não só ficarão com todos os
empregos, como, além disso, e mais importante ainda, a própria
sociedade se transformará até ficar irreconhecível. Na
linguagem da extrema-direita, a sociedade multicultural comporta a
desintegração cultural. Isto aparece de facto, aos ouvidos das
pessoas, como ameaçador. Podemos chamar-lhe egocentrismo político,
nacionalismo regional ou novo regionalismo, que o resultado é o
mesmo em todas as partes: homogeneização, mobilização de
mecanismos defensivos e políticas isolacionistas.
Numa investigação
realizada durante o mês de Março de 2000 (no Institut fur
Demoskopie Allensbach) acerca do medo da perda de identidade
numa Europa unida, cerca de 50% dos alemães respondeu
afirmativamente: consideravam que se perderia de facto a
identidade alemã (para 35% em 1994). Mas que identidade é essa
que tantos pretendem defender? Na realidade, ninguém se encontra
sequer em condições de colocar a pergunta, uma vez que não
existe a necessidade de fazê-la até ao momento em que a mesma
identidade seja limitada ou de alguma maneira pareça estar ameaçada.
Do ponto de vista de
um indivíduo, a identidade nacional parece algo dado e definido,
algo tão natural como a cor dos olhos. A cultura, a história, a
língua, o mito, a memória, a mentalidade, os valores, a
comida... Tudo isso faz parte da identidade nacional, e a
identidade nacional domina fortemente a nossa percepção da
identidade pessoal. Na pequena cidade francesa de Millau, um homem
foi preso por destruir um restaurante local da McDonald's. Mas o
processo acabaria por converter-se numa manifestação de apoio a
José Bové. Este transformou-se assim num herói nacional, porque
exprimiu o medo francês diante da dominação americana. Neste
caso as pessoas manifestam-se contra a globalização do gosto: os
franceses estão contra a fast food da McDonald's ao mesmo
tempo que defendem o seu direito a fazer queijo com leite não
pasteurizado. Nada ameaça mais a sua identidade nacional. Não se
pode pedir aos alemães que deixem de beber a sua cerveja ou aos
holandeses que deixem de cultivar tulipas. Quando negoceiam a sua
entrada na União Europeia, os suecos mostram-se particularmente
atentos a que não se lhes proíba o tabaco de mascar: trata-se da
sua própria identidade nacional. Por outro lado, nos estados de
recente criação, como, por exemplo, a Croácia, pode ver-se como
vem sendo construída uma identidade nacional e se inventam símbolos
identificativos, especialmente a partir de mitos e de reinterpretações
da história. Isso apenas demonstra aquilo que propõe a
antropologia moderna: que as identidades nacionais não
representam uma série de características culturais, históricas
ou sociais pré-estabelecidas e eternas. Por outras palavras, o
que consideramos um suporte fundamental para o indivíduo não é
mais do que uma construção cultural, quer dizer, de carácter
inventado e não natural. Mas a retórica arcaica e populista de
Franjo Tudjman não quis saber se a identidade se constrói sempre
em relação aos outros, quando apenas pretendeu excluir esses
outros, neste caso os sérvios. No caso dos emigrantes, dos
casamentos mistos e dos cidadãos que vivem perto das fronteiras,
os antropólogos têm demonstrado, sem qualquer margem para dúvidas,
que é possível as pessoas identificarem-se com mais do que uma
nação e uma cultura.
Quando conheci um
emigrante turco num comboio que se dirigia para a Alemanha, este
lamentou que "quando estou na Alemanha, sou considerado um
turco, mas quando visito a Turquia, não me consideram um dos seus
mas antes um estrangeiro, um alemão. Sinto-me sempre forçado a
escolher entre os dois, o que me aborrece". "Mas
tu como te sentes, o que é que pensas que és?",
perguntei-lhe eu. "Sou ambas as coisas",
respondeu. Ele não tinha problema algum acerca da sua identidade,
quem o tinha eram os outros. Na realidade, numa cultura
nacionalista, a identidade está construída a partir de
fronteiras, territorialidade e sangue, e cada um sente-se obrigado
a optar por uma nação. Mas obrigar uma pessoa a escolher leva
por vezes a resultados inesperados. Há alguns anos, duas pequenas
aldeias da Ístria foram objecto de uma disputa entre dois estados
de recente criação, a Croácia e a Eslovénia. Quando os
jornalistas eslovenos perguntavam aos naturais se eram eslovenos,
respondiam afirmativamente. Mas quando os jornalistas croatas lhes
perguntavam se eram croatas, também respondiam que sim. Esta
atitude confundia, naturalmente, os jornalistas que procuraram então
uma explicação. Por fim, alguém lhes disse que a formulação
"ou isto ou aquilo" era, naquele caso, uma pergunta
inadequada. Os aldeão possuíam um forte sentimento de
identidade, todavia não o definiam em termos nacionais, mas
regionais: eram istrianos. De facto, num censo de 1991 cerca de
20% da população do lugar declarava-se istriana, embora, de
acordo com as normas de preenchimento, devessem ser considerados
como "outros". Foi uma espécie de manifestação
anti-nacionalista contra o governo de Franjo Tudjman. A sua
mensagem era clara: a nacionalidade e a identidade não tinham
necessariamente de coincidir. A nação, como categoria política,
é apenas um aspecto da sua identidade. Para eles, a identidade
regional transnacional era mais forte do que a nacional. Os
istrianos não se mostravam dispostos a escolher uma nacionalidade
acima de outra, mas a experimentar a sua identidade como soma de
identidades culturais, nacionais, políticas e outras,
representadas na sua região. "A União apenas terá uma sólida
base de legitimidade quando os europeus aceitarem uma identidade
política europeia. Tal não implica que já não devam sentir-se
suecos, finlandeses, franceses, portugueses, checos, polacos ou húngaros,
mas que este princípio de um destino europeu comum se sobreporá
a essas identidades", escreveu Ingmar Karlsson.
Identidades
nacionais
Recordo o anterior
recenseamento, de 1981, da Jugoslávia, no qual apenas cerca de
10% da população se declarou jugoslava. Análises posteriores
demonstraram que aquela era a voz da geração do pós-guerra, da
população urbana e jovem. Significava esse número o nascimento
da nação jugoslava? Não acredito. Considero que a população
estava antes muito consciente das suas identidades étnicas. Com
base na minha própria experiência, creio tratar-se da adição
de uma identidade a outra: uma identidade comum jugoslava tinha
sido somada à sérvia, à croata ou à bósnia. Se as nações não
são eternas e as identidades nacionais e pessoais são construídas,
também podem ser reconstruídas. Pode criar-se outro tipo de
comunidade imaginada. Talvez este seja o momento adequado para
pensar num novo paradigma de compreensão identificativa que possa
contrariar a crescente ansiedade que percorre a Europa. Na vez de
utilizar mecanismos de exclusão cultural, será possível criar
identidades mediante a soma de elementos identificativos étnicos,
regionais, nacionais ou transnacionais? Se a identidade pode ser
reconstruída em termos de identidade múltipla, poderá ser esta
a forma de estabelecer uma entidade europeia? Não sob a forma de
uma comunidade estandardizada e globalizada, mas como uma
comunidade não hierárquica de diversas culturas. As pessoas
sentir-se-iam parte de uma cultura específica mas não de um
estado, tal como aconteceu com os istrianos. Poderá o
trans-regionalismo colaborar na superação da ansiedade que a
cidadania sente a propósito da integração?
Trad. Manuel
Balsa
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