"Haider
é acusado de intimidar imprensa"
"Fato
excepcional: a organização Repórteres Sem Fronteiras (RSF) está
preocupada com a liberdade de imprensa num país da União Européia.
Até agora, isso só havia ocorrido uma vez, em razão das agressões
contra jornalistas do País Basco. Embora os casos não sejam
comparáveis, a entidade decidiu publicar, na última
quarta-feira, 21 de fevereiro, um relatório sobre a situação na
Áustria desde a chegada ao poder, um ano atrás, de uma coalizão
de direita que une os cristãos conservadores do PP (Partido
Popular) e o PL (Partido da Liberdade) de Joerg Haider, partido
populista conhecido por sua retórica xenófoba e antieuropéia.
A RSF lembra como
essa virada suscitou reações hostis, tanto na imprensa
internacional quanto na Áustria. Embora o regime permaneça sob
observação, mesmo após o levantamento oficial das ‘sanções’
européias, desde setembro de 2000, a RSF analisa as consequências
para a liberdade de imprensa da entrada no governo de um partido
‘pouco acostumado às práticas democráticas’.
A denúncia contra
meios de informação é uma constante no discurso de Haider desde
que assumiu a liderança do partido, em 1986. A RSF registra várias
declarações do líder populista, convencido de que existe uma
‘Internacional’ das mídias tendentes à esquerda que retratam
o PL como ‘uma força política radical, extremista e
perigosa’. Vêm daí as reiteradas promessas de ‘limpar as
redações’ e cortar subvenções a jornalistas insubmissos:
‘Quando dou de comer a um cão e ele me morde, paro de lhe dar
de comer, para que ele pare de me morder’, declarou Haider. Em
janeiro passado, num comício, ele ameaçou procurar o ‘ninho de
resistentes’ escondido no coração da TV estatal, a ORF.
Apesar disso, a
chegada ao poder da direita populista não se traduziu em demissões
em massa. A única dispensa por motivos políticos, a de um
jornalista de um periódico regional, é frequentemente
interpretada hoje como excesso de zelo de um editor-chefe
oportunista. Mas o PL enfrentou a resistência acirrada dos meios
profissionais quando, em novembro, desafiou o chefe da sucursal da
agência austríaca de notícias ‘APA’ em Klagenfurt -o reduto
de Haider-, acusado de ter ‘perdido seus pontos de referência e
escrito um despacho repleto de absurdos e mentiras’.
Mesmo não se
furtando a recorrer a ataques pessoais contra jornalistas (uma das
especialidades de Haider em programas de TV ao vivo), é sobretudo
por meio de uma avalancha de processos que o PL procura intimidar
seus adversários e lhes fazer moderar o tom, sob pena de
incorrerem em pesadas consequências financeiras. Contam-se às
dezenas os processos abertos contra os semanários ‘News’, ‘Falter’,
‘Profil’ e ‘Format’ e o diário liberal ‘Standard’.
Esse recurso sistemático
aos tribunais, apontado no relatório, suscita um mal-estar na
magistratura, especialmente porque o juiz que é chamado a
decidir, em segunda instância, os processos contra a imprensa
envolvendo o PL integra a direção da TV pública. Fonte
principal de informação sobre assuntos de política interna (as
duas emissoras públicas difundem o mesmo jornal às 19h30), a TV
estatal tem sido objeto de todas as atenções do novo regime. A
RSF destaca que a Áustria é ‘o último país da Europa a ainda
não ter liberado suas ondas’, sendo que as rádios privadas
existentes estão longe de concorrer seriamente com o setor público.
A reforma indispensável da ORF será complicada.
O intervencionismo
político se concentrou na televisão desde a ‘virada’ de
fevereiro de 2000. Em outubro, a associação de redatores da ORF
denunciou ‘a extensão insuportável da pressão exercida pelos
partidos do governo’, que chega ao ponto de incluir
‘tentativas disfarçadas de intimidar jornalistas’. Para
impedir o jornal da TV de mencionar um escândalo que causaria
constrangimento ao PL, o líder da ala parlamentar populista,
Peter Westenthaler, interveio 22 vezes num único dia, enquanto
seu colega conservador enviou um fax de várias páginas
enumerando os supostos erros cometidos nos boletins de informação
e exigindo retificação imediata.
O consenso geral é
que o tom geral mudou, conforme destaca a antiga editora da seção
de política do jornal conservador ‘Die Presse’, Anneliese
Rohrer : ‘O que me surpreende é a intolerância com relação
à crítica. Isso já existia antes, mas não dessa maneira. Os
dois partidos (PL e PP) se unem nessa atitude pouco saudável em
relação à imprensa’.
Principal base de
apoio da grande virada à direita, o jornal conservador se
assusta, como seus concorrentes de esquerda ‘Der Standard’ e
‘Falter’, com a fusão iminente dos grupos de imprensa
Mediaprint (‘Kronenzeitung’, ‘Kurier’ e ‘Profil’) e
News, apoiados respectivamente pelas gigantes alemãs WAZ e Gruner
und Jahr (Bertelsmann). Autorizado no final de janeiro, esse
‘casamento’ vai resultar numa dominação quase total sobre o
mercado das revistas e mais da metade dos jornais. Para a Repórteres
Sem Fronteiras, um governo ‘não destituído de tendências
autoritárias, o monopólio do Estado sobre a televisão e a
extrema concentração da imprensa escrita’ são os três
fatores que convergem na Áustria, apesar da inegável ‘base
democrática’ da sociedade, para favorecer a autocensura e
‘limitar potencialmente o pluralismo de informação’. (Tradução
de Clara Allain)"
ÁUSTRIA
Folha de S. Paulo / Le Monde
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