Painel
II – A incorporação ao Direito interno de
instrumentos
jurídicos de Direito Internacional Humanitário
e Direito Internacional dos Direitos Humanos
Jorge
Miranda*
Texto
baseado nas notas taquigráficas de conferência proferida
no Seminário Internacional “O Tribunal Penal
Internacional e a Constituição Brasileira”, promovido
pelo Centro de Estudos Judiciários do Conselho da Justiça
Federal, em 30 de setembro de 1999, no auditório do
Superior Tribunal de Justiça, em Brasília-DF.
Naturalmente,
não poderia interferir no debate brasileiro sobre a
ratificação do Estatuto do Tribunal Penal Internacional,
mas julgo que os problemas em Portugal são quase todos
semelhantes àqueles suscitados no Brasil e, por
conseguinte, aquilo que puder dizer a esse propósito
poderá ser também uma pequena contribuição para o
debate brasileiro.
Farei
referência ao caso de Timor Leste porque é,
precisamente, um caso flagrante de violação de direitos
fundamentais da pessoa humana, de crimes contra a
humanidade, um caso que, dentre vários, torna cada vez
mais necessária a criação de uma Justiça Penal
Internacional.
Como
será, pois, aludir ao contexto em que surge esse Tribunal
Penal Internacional? O contexto do Direito Internacional
em transição, atual, vindo da Carta das Nações Unidas,
da Declaração Universal e de todo um conjunto de
instrumentos e práticas que remontam a cinqüenta anos.
Um Direito Internacional que acusa agora algumas tendências,
umas certamente positivas para alguns, outras, porventura,
menos positivas para outros, mas tendências que
consideraria irreversíveis, apesar de também haver
sinais contraditórios. Essas tendências do atual Direito
Internacional, seriam oito, na minha maneira de ver: a
universalização; a regionalização; a institucionalização;
a funcionalização; a humanização; a objetivação; a
codificação; e a jurisdicionalização.
Em
primeiro lugar, a universalização, que está, antes de
mais nada, ligada ao Direito, à autodeterminação, ao
excesso de todas as comunidades humanas, à autodeterminação
quase sempre voltada à independência; à desagregação,
primeiramente dos impérios marítimos europeus, depois do
império continental soviético e, mais recentemente, a
alguns movimentos de independência – o último é
justamente o de Timor Leste. Hoje o Direito Internacional
não é mais um Direito euro-americano, mas sim um Direito
universal.
Em
segundo lugar, atenuando a primeira tendência, a
regionalização. É a criação de espaços regionais por
razões econômicas, políticas, estratégicas ou
culturais, dentro dos quais as várias comunidades políticas,
os vários Estados encontram formas de solidariedade e de
cooperação qualificadas. O exemplo mais avançado é o
da União Européia. Mas o Mercosul é também um bom
exemplo.
Em
terceiro lugar, a institucionalização. O Direito
Internacional deixou de ser um Direito das relações
bilaterais ou multilaterais entre os Estados. É um
Direito presente cada vez mais nos organismos
internacionais, na Organização das Nações Unidas e nas
agências especializadas, antes de mais nada.
Depois,
a funcionalização, relacionada com a institucionalização,
num duplo sentido. Por um lado, o Direito Internacional
extravasa cada vez mais o âmbito das meras relações
externas e entre os Estados e penetra cada vez mais, em
quaisquer matérias. Em nível interno, assume tarefas de
regulamentação e de solução de problemas, como a saúde,
o trabalho, o ambiente etc. Em segundo lugar, essa
funcionalização acompanha a criação de organismos
internacionais capazes de permitir essa solução, uma espécie
de ministérios internacionais que fazem o complemento dos
ministérios nacionais.
Em
quinto lugar – e é isso que nos interessa mais – a
humanização. O Direito Internacional torna-se, também,
um Direito Internacional dos Direitos do Homem. O Direito
Humanitário, vindo desde o século XIX, recebe um grande
impulso com as Convenções de Genebra, de 1949, e com os
seus protocolos subseqüentes, surgindo um Direito
Internacional dos Direitos do Homem, distinto do Direito
Internacional, que se traduz na idéia de que a pessoa
humana pode e deve ser defendida, não só em relação
aos estrangeiros – a proteção diplomática –, mas
também em relação ao próprio Estado, de que é
nacional, de que é cidadão. A soberania do Estado não
pode prevalecer contra os direitos fundamentais da pessoa
humana.
Podemos
citar três fases na criação e no desenvolvimento desse
Direito Internacional dos Direitos do Homem.
A
primeira fase é a da definição internacional ou da
consagração internacional dos direitos do homem. A
Declaração Universal, hoje, é considerada, pelo menos
em parte, um conjunto de princípios: os pactos
internacionais, as grandes convenções, os documentos e
os textos especializados das Nações Unidas e das agências
especializadas. A consagração internacional dos direitos
rege também a ordem interna dos Estados.
A
segunda fase, iniciada com a Convenção Européia dos
Direitos do Homem e passada para a Convenção
Interamericana, é a consagração de um direito de
queixa, ou de um direito de recurso, ou de comunicação
dos cidadãos contra o seu Estado perante as instâncias
internacionais; é a necessária sujeição de órgãos do
Estado a decisões provenientes de órgãos jurisdicionais
internacionais ainda crescentes em tratados também
subscritos pelos mesmos Estados de que são cidadãos os
queixosos.
A
terceira fase é a criação da Justiça Penal
Internacional com origem nos Tribunais de Nuremberg e Tóquio,
recentemente manifestada nos Tribunais da Iugoslávia e de
Ruanda. Com a criação do Tribunal Penal Internacional, o
Direito Internacional dos Direitos do Homem desenvolve-se,
concretiza-se, enriquece-se, alarga-se cada vez mais.
Uma
sexta tendência é a objetivação do Direito
Internacional, a superação do dogma voluntarista. O
Direito Internacional é o Direito da comunidade
internacional; é um conjunto de princípios, sem a observância
dos quais não são possíveis: a convivência
internacional; a proteção objetivista das normas dos
tratados internacionais na linha da Convenção de Viena
sobre Direitos e Tratados de 1969; o crescente papel dos
tratados multilaterais; e o desenvolvimento de todo um
regime dos tratados internacionais, particularmente no que
tange às reservas em que a vontade dos Estados é cada
vez de menor importância perante a função objetiva das
normas do Direito Internacional.
Uma
sétima característica é a codificação do Direito
Internacional, obra importantíssima da Comissão de
Direito Internacional, traduzida em inúmeros textos.
Finalmente,
a jurisdicionalização. É a conseqüência natural de
todos esses aspectos. O Direito Internacional dota-se de
tribunais de variada natureza para resolverem as mais
variadas questões. O Direito Internacional procura
superar os regimes de cláusula facultativa, tende a
evoluir para impor a jurisdição obrigatória.
A
partir desse ponto pode ser compreendida a criação do
Tribunal Penal Internacional. Muito haveria a dizer, em
particular, acerca do Direito Internacional dos Direitos
do Homem, mas julgo que o essencial já foi dito e, por
isso, passo adiante.
Entro
agora no problema suscitado pelo Estatuto do Tribunal
Penal Internacional em face da Constituição portuguesa.
Parece-me que essa questão poderá ter algum interesse,
pelo menos comparativo, para os estudiosos brasileiros.
A
Constituição portuguesa é amiga do Direito
Internacional, em homenagem a uma larga tradição histórica
do Direito português, que remonta ao tempo dos
descobrimentos, e também é amiga do Direito
Internacional por reação ao regime ditatorial de 1926 a
1974, que procurava, na expressão de Antônio Oliveira
Salazar, que ficou célebre, afirmar-se orgulhosamente só,
e cuja Constituição expressamente afirmava um princípio
voluntarista no que tange às relações internacionais.
As constituições, como se sabe – o caso brasileiro
também é significativo –, são feitas sempre com uma
certa dialética em relação ao imediatamente passado;
foi o que aconteceu conosco. A Constituição de 1976 é
amiga do Direito Internacional, assim como é fortemente
preocupada com os direitos fundamentais, por reação àquilo
que havia sido o momento imediatamente anterior; é amiga
do Direito Internacional por situar-se em uma linha –
diria pelo menos universal – de abertura ao Direito
Internacional.
E
assim, muito resumidamente, a Constituição consagra no
art. 7º um conjunto de princípios gerais que presidem as
relações internacionais do Estado português, que
correspondem, a grosso modo, aos grandes princípios
constantes do art. 2º da Carta das Nações Unidas. Um
dos princípios expressamente consignado no art. 7º da
Constituição é aquele do respeito aos direitos do
homem, semelhante à preferência ou à prevalência dos
direitos humanos que aparecem no art. 4º da Constituição
de 1988. O respeito aos direitos do homem é uma regra
imperativa a que deve estar sujeito o Estado na condução
das suas relações exteriores.
O
art. 8º da Constituição contém três cláusulas de
recessão geral plena do Direito Internacional geral ou
comum, que expressamente fazem parte integrante do Direito
português e do Direito Internacional convencional
vinculativo do Estado português, entendendo-se a doutrina
portuguesa toda. O Tribunal Constitucional entende que
essa regra envolve o primado do Direito Internacional
convencional sobre o Direito ordinário interno. Há mesmo
na Lei do Tribunal Constitucional uma norma dando competência
aos tribunais, em geral, e ao Tribunal Constitucional, em
particular, para conhecer de qualquer contradição entre
norma interna e tratado internacional.
Finalmente,
consagra-se a recessão do Direito Internacional derivado
de organizações internacionais. Essa regra tem,
sobretudo, aplicação em relação ao Direito Comunitário
europeu, mas tem também aplicação em relação ao
Direito derivado das Nações Unidas. As resoluções do
Conselho de Segurança, que criaram os tribunais criminais
especiais para a Iugoslávia e para a Ruanda, foram
publicadas no Jornal Oficial Português, e entende-se que
fazem parte do Direito interno português, obrigando não
só o Estado e as entidades públicas, mas também as
entidades privadas. Portanto, trata-se de uma cláusula
aberta ao Direito Internacional. Há outro conjunto de
normas que traduz essa idéia de abertura. A Declaração
Universal é considerada um critério de interpretação e
de integração das normas constitucionais sobre os
direitos fundamentais. A Constituição consagra o princípio
da equiparação de direitos de cidadãos portugueses e de
cidadãos de outros países, embora com restrições. Como
é sabido, com o regime particular, esse princípio
refere-se apenas aos cidadãos dos países de língua
portuguesa, quer dizer, apenas em relação aos
brasileiros, na base da Convenção do Brasil.
É,
pois, favorável o contexto da Constituição relativo ao
Tribunal Penal Internacional. No entanto, podem ser
levantados alguns problemas quanto à ratificação do
Estatuto do Tribunal pelo Estado português. Em Portugal
esses problemas têm sido debatidos. Alguns, suponho, são
idênticos aos que têm sido levantados também aqui no
Brasil. São oito problemas.
O
primeiro é a existência de um Tribunal com competência
para certas categorias de crimes, quando, pelo contrário,
a Constituição proíbe a existência de tribunais com
competência específica para o julgamento de determinadas
categorias de crimes.
O
segundo é a dependência da intervenção do Tribunal na
verificação da falta de disposição ou de interesse do
Estado para exercer a Justiça Penal; uma apreciação
duradoura do princípio da soberania.
O
terceiro, e o mais grave, é a previsão de crimes
eventualmente não contemplados na Lei Penal portuguesa; a
violação do princípio da legalidade.
O quarto é
a definição dos elementos constitutivos dos crimes
previstos nos arts. 6º, 7º e 8º do Estatuto por meio da
Assembléia e dos Estados-partes; isso significa violação
ao princípio da tipicidade criminal ou inadmissibilidade
de tal poder de definição à margem da lei e do Tratado.
O
quinto é a não-exclusão dos cargos políticos à
jurisdição do Tribunal, preterindo as imunidades que a
Constituição garante ao presidente da República, aos
deputados e aos membros do Governo.
O
sexto é a imprescritibilidade dos crimes de competência
do Tribunal, não havendo nada de comparável na Constituição
e na lei e, pelo contrário, sendo diferente da tradição
portuguesa.
O
sétimo é a previsão da prisão perpétua, pena
expressamente vedada pela Constituição portuguesa.
O
oitavo é a possibilidade da entrega de pessoas ao
Tribunal, sendo certo que a Constituição proíbe a
extradição de cidadãos portugueses.
Julgo
que quase todos esses problemas podem ser ultrapassados,
alguns nem têm grande importância.
A
primeira dificuldade é a própria existência do Tribunal
por violação ao princípio da proibição dos tribunais
dessa ação. Essa proibição, como é sabido, surgiu em
Portugal, como em outros países, devido ao aparecimento
de tribunais políticos. Conhecemos também tribunais
dessa natureza no regime anterior a 25 de abril de 1974.
Essa proibição não me parece que possa valer para a
ordem internacional. O sentido do preceito constitucional
diz respeito à organização interna do Estado português,
não ao Direito Internacional. No entanto, julgo
conveniente que a Constituição expressamente consagre a
jurisdição do Tribunal Penal Internacional. Poderá fazê-lo
a propósito das normas sobre o Direito Internacional, ou
a respeito do Poder Judiciário, ou em disposição final,
um pouco na linha do que já acontece no Brasil no tocante
à idéia de um Tribunal Internacional dos Direitos
Humanos nas Disposições Transitórias de sua Constituição.
A
segunda dificuldade diz respeito à violação do princípio
da soberania, mas, como se tem verificado, esse princípio
hoje não pode ser, de jeito algum, comparado ao que era há
duzentos ou mesmo há cem anos. O princípio da soberania
está a par de outros princípios, mais do que qualquer idéia
de intangibilidade da soberania, do poder próprio de cada
Estado. O essencial é garantir a igualdade dos Estados,
um em relação aos outros. A soberania hoje significa
essencialmente que os Estados são iguais e não que os
Estados excluem qualquer poder proveniente da ordem jurídica
internacional.
Mal
se compreenderia que, em uma fase em que a globalização
ou a regionalização do Direito Internacional leva a
diminuições crescentes da soberania na ordem econômica;
no momento em que Portugal faz parte de uma União Européia
de onde provém normas aplicáveis na ordem interna e que
hoje já regem a grande maioria das matérias de Direito
Econômico ou de Direito Ambiental, pudesse-se invocar o
princípio da soberania contra a defesa dos direitos
humanos. Seria uma contradição totalmente inadmissível
que, em matérias econômicas, admitissem-se limitações
da soberania e que, em matéria de garantia dos direitos
da pessoa humana, não se admitissem tais limitações.
O
problema do princípio da legalidade também não deve ser
levantado, uma vez que os tratados internacionais fazem
parte integrante da ordem jurídica portuguesa. O que se
diz do princípio da legalidade é o que se pode dizer do
princípio da tipicidade em matéria criminal. Tanto é
respeitado por meio de uma lei ordinária interna, quanto
por um tratado internacional vinculativo do Estado,
devidamente aprovado e ratificado.
O
problema relativo à não-exclusão dos cargos políticos
é um pouco mais grave e porventura merecerá uma
consideração também mediante revisão constitucional.
Mas é um problema que na prática não se põe no Estado
democrático de Direito. Neste é totalmente impensável
que um presidente da República, que um ministro cometa um
crime contra a humanidade ou crimes de genocídio. Se isso
acontecer, as pessoas em nível interno sem punição,
como acontece em tais crimes, estariam completamente
subvertidas ao Estado democrático de Direito e à ordem
constitucional. É algo que me choca, mas compreendo a
dificuldade de se incluir qualquer norma dizendo que as
imunidades do presidente da República, ou dos deputados,
ou dos ministros sofrem as restrições decorrentes de um
Tribunal Penal Internacional, porque esse Tribunal é
complementar das jurisdições nacionais em um Estado de
Direito democrático. Seria completamente impensável que
houvesse violações desse gênero. Só os Estados
ditatoriais é que cometem violações aos direitos
humanos. Em Portugal temos uma Lei de Responsabilidade
Criminal dos Cargos Políticos por crimes cometidos no
exercício de suas funções, e eles respondem
criminalmente.
Admito
que possa ser necessária uma fórmula constitucional para
calcular a dificuldade que qualquer jurista mais precioso
ou mais formalista queira suscitar.
Quanto
à questão da imprescritibilidade, é uma tradição
portuguesa, mas não é uma garantia constitucional.
Na
privação à previsão da prisão perpétua, há uma
dificuldade dupla: por um lado a Constituição proíbe a
prisão perpétua, mesmo com relação à extradição;
admite a extradição em caso de prisão perpétua, mas
como garantia da não-aplicação dessa pena. Por outro
lado, poderá dizer-se que a proibição da prisão perpétua
entra nos limites materiais da revisão constitucional nas
cláusulas pétreas como se diz no Brasil, e que,
portanto, nem sequer uma revisão constitucional seria
capaz de ultrapassar esse problema. Será necessária uma
revisão constitucional para se admitir uma ressalva no
que diz respeito à jurisdição penal internacional, mas
não me parece de jeito algum que a proibição da prisão
perpétua seja um limite material da revisão que se possa
entender no sentido de uma cláusula pétrea em termos rígidos
e rigorosos.
A
matéria das cláusulas pétreas é extremamente complexa.
Já tive ocasião de várias vezes, aqui no Brasil, falar
sobre esse tema. O meu entendimento é o de que, para
garantirmos a eficácia e a efetividade das cláusulas pétreas,
teremos de fazer uma interpretação maleável, flexível,
distinguindo o que é essencial daquilo que não é
essencial. Por que a Constituição brasileira tem o art.
60, § 4º ? Por que a Constituição portuguesa tem o
art. 288? Porque elas querem preservar os grandes princípios
fundamentais que dão estrutura e sentido à ordem
constitucional; querem preservar a sua identidade;
estabelecer limites ao poder de emenda, auto-reforma,
auto-revisão; estabelecer uma divisa entre poder
constituinte e poder constituído.
No
caso português, há alguns direitos expressamente
enunciados no art. 19 e que aparecem como os mais
fundamentais dos direitos, insuscetíveis de serem
suspensos, mesmo em estado de necessidade. São os
seguintes: o direito à vida; à integridade pessoal; à
identidade pessoal; à capacidade civil; à cidadania; à
não-retroatividade da lei criminal; o direito de defesa
dos argüidos; e à liberdade de consciência e de religião.
Esses direitos são intangíveis por revisão
constitucional.
Em
Portugal, não poderia ser restaurada a pena de morte, mas
com a prisão perpétua é diferente. Portanto, entendo,
abreviando razões, que será possível uma revisão nesse
domínio sem se entrar em uma problemática de limites
materiais ou de cláusulas pétreas.
Finalmente,
a possibilidade de entregar pessoas é diferente da
extradição. O entendimento que me parece correto, que
também tenho visto no Brasil, é o de que a extradição
pressupõe reciprocidade, relações entre os Estados.
Essa entrega, quer sendo eventualmente de lei
regulamentadora, de concretização, de protocolos
adicionais ao Estatuto, não corresponde à figura
constitucional da extradição.
Gostaria
de salientar que a Constituição portuguesa, desde 1976,
tem uma norma extremamente importante. Depois de dizer, em
geral, que ninguém pode ser sentenciado senão em virtude
de lei anterior que declare punível a ação ou omissão,
ela acrescenta o disposto no número anterior: (...) não
impede a punição nos limites da lei interna por ação
ou omissão que, no momento da sua prática, seja
considerada criminosa, segundo os princípios gerais
de Direito Internacional comumente reconhecidos. Há princípios
gerais de Direito Internacional que não são princípios
de Direito Penal.
Julgo
que há, pois, todo um contexto na Constituição
portuguesa, sem prejuízo de algumas dificuldades, que
poderão obrigar pequenas emendas à adoção desse
Estatuto do Tribunal Internacional Penal.
Chamo
a atenção para o caso do Timor Leste, que tem emocionado
profundamente Portugal – ainda que tão longe, tão
afastado, um pequeno povo, oitocentas mil pessoas –, não
só devido aos laços históricos, culturais e religiosos
entre Timor Leste e Portugal, mas também devido à
circunstância de a Indonésia não ter respeitado o
acordo que estabeleceu em 05 de maio, tendente à garantia
do direito à auto-determinação. O Timor Leste foi um
território português e, em 1975, aproveitando-se da
revolução em Portugal, a Indonésia ocupou-o. Ninguém
pensaria que o povo timorense, tão pequeno, conseguisse
resistir à poderosa Indonésia, mas resistiu. Houve
depois um apoio internacional importantíssimo, traduzido
no Prêmio Nobel da Paz. E, por fim, a Indonésia, em uma
fase de transição da ditadura para a democracia,
acabaria por admitir o exercício do direito à
auto-determinação; mas acabaria também por se
comprometer a garantir a segurança em Timor Leste, o que
se verificou, já com antecedentes, no momento que
precedeu o plebiscito e depois a partir do momento em que
80% dos timorenses votaram pela independência. As tropas
indonésias não só não garantiram a segurança como
contribuíram, direta e indiretamente, com soldados disfarçados
em milícias, para a destruição física do território,
para a expulsão de suas casas de centenas de milhares de
pessoas e para o assassinato de dezenas, ou talvez,
centenas de pessoas.
A
comunidade internacional reagiu. Conseguiu-se, em
relativamente poucos dias – ao contrário do que tem
acontecido em Ruanda, em Kosovo e em outras partes do
mundo –, que a comunidade internacional reagisse, que as
Nações Unidas abrissem mão de uma operação que iria
conduzir a garantia da independência. É extremamente
positivo que o Brasil esteja contribuindo para essa operação.
Julgo
que o caso Timor Leste é também paradigmático de duas
coisas. Primeiro, de como é necessária a Justiça Penal
Internacional. A existência de uma Justiça Penal
Internacional poupará, certamente, muitas vidas, muitos
sacrifícios, muitos sofrimentos. A existência dela será
um elemento dissuasor, assim como o caso de Pinochet
servirá para muitos ditadores, ex-candidatos ou
candidatos a ditadores para que tenham mais cuidado. A
existência da Justiça Penal Internacional terá uma função
preventiva de crimes contra a humanidade.
Segundo,
e mais positivamente, a opinião pública mundial – os
aspectos positivos da globalização e da comunicação
social – forçou os governos, principalmente o dos
Estados Unidos, aliados estratégicos da Indonésia, e a
Austrália, que tinha aceito a própria anexação do
Timor Leste, e as Nações Unidas a intervirem.
Julgo
que, no meio da imensa desgraça do povo timorense,
há sinais positivos, e é cada vez mais necessária
a criação dessa Jurisdição Penal Internacional.
Jorge
Miranda é
Professor da Universidade de Lisboa, em Portugal.
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