A
incorporação ao Direito interno de instrumentos
jurídicos de Direito Internacional Humanitário
e Direito Internacional dos Direitos Humanos
Geraldo
Eulálio do Nascimento e Silva*
Texto
baseado nas notas taquigráficas de conferência proferida
no Seminário Internacional “O Tribunal Penal
Internacional e a Constituição Brasileira”, promovido
pelo Centro de Estudos Judiciários do Conselho da Justiça
Federal, em 30 de setembro de 1999, no auditório do
Superior Tribunal de Justiça, em Brasília-DF.
O
Tribunal Penal Internacional (TPI) tem o mérito de ser
criado com antecedência, não conforme ocorreu com todos
os outros tribunais penais dessa natureza, ou seja,
tribunais criados a
posteriori; criados para julgar, em alguns casos, os
vencidos; ou então, como no caso, agora, da Iugoslávia,
um tribunal que adota normas nas quais a parte talvez não
tenha participado.
Nota-se
esta grande novidade do TPI: ele adotou essa tese,
realmente nova, da compatibilidade, segundo a qual
coloca-se em primeiro lugar a legislação e a prática
legislativa dos Estados, que será complementada por uma série
de instituições internacionais. Essa tese da
compatibilidade é muito importante e figura não só no
primeiro artigo, mas também pode ser encontrada no preâmbulo,
o qual, em matéria de Direito Internacional, tem uma
importância fundamental – baseado em qualquer
interpretação, deve-se levar em consideração o que está
no mesmo. Nesse Tratado, a lei interna sempre tem
prioridade, havendo uma questão de conflito.
Estamos
no domínio daquilo que se chama “o primado do Direito
Internacional”, que deve superar o Direito interno,
embora com dificuldades, sobretudo em matéria
constitucional. O grande Jurista Francisco Campos, na
exposição de motivos do nosso Código Penal, salientou
que o Código silenciava no tocante a problemas de Direito
Internacional, pois enviava esses problemas aos tratados e
ao Direito Internacional existentes. A nossa adição à
matéria penal confere muita importância à parte
internacional.
Em
conseqüência desse primado do Direito Internacional, há
algumas discussões e dificuldades, como, por exemplo, o
conflito entre um tratado internacional e uma lei interna
e, nesse particular, o tratado sempre, no caso brasileiro,
passa pelo Congresso Nacional, é promulgado e então
passa a ser lei. Isso se aplica tanto em matéria de
direitos humanos como de Direito Ambiental. Todas essas
convenções sobre Direito Ambiental, em muitos casos, ao
serem ratificadas pelo Brasil, passam a integrar o nosso
Direito interno, são legislações brasileiras e não há
problema de conflito. Pode acontecer que um tratado desses
vá um pouco mais longe do que uma legislação
preexistente. Mas, nesse caso, o País, ao assinar e
ratificar uma convenção – e essa ratificação se
processa depois da aprovação do Congresso Nacional –,
automaticamente, está aceitando o que está naquele
tratado internacional. Não há diminuição de soberania,
ao contrário, o País, ao ratificar uma convenção,
pratica ato de soberania, e o faz de acordo com sua
Constituição. Isso pode, por vezes, provocar conflitos
mais delicados.
No
art. 5º do Estatuto de Roma, talvez um dos seus artigos
mais importantes, estão enumeradas as seguintes instituições:
genocídio, crimes contra a humanidade, crimes contra as
leis de guerra e agressão.
Quanto
ao genocídio, a Convenção sobre o Genocídio, objeto de
muito estudo, foi assinada, ratificada pelo Brasil e
promulgada; é lei neste País. Nela está prevista, também,
a criação de um Tribunal para julgar os casos; não se
trata, portanto, de uma novidade.
Quanto
aos direitos humanos – sua a violação e os crimes
contra a humanidade – trata-se de um campo muito
interessante e delicado, objeto de muitas ponderações.
Quando se falava em direitos humanos, a violação desses
direitos contra a humanidade era um pouco esquecida. Mas,
ultimamente, houve um marco na história do Direito
Internacional, além do Tratado de Paz, que é o caso do
Presidente Augusto Pinochet. A primeira decisão da Câmara
dos Lordes criou um precedente inédito na história do
Direito inglês e foi de grande importância, pois pela
primeira vez se admitiu que um antigo Chefe de Estado
pudesse ser submetido a julgamento. Posteriormente, isso
foi anulado pela própria Câmara. Um dos juízes,
Hoffmann, era vinculado a várias instituições de
direitos humanos – se fosse num tribunal brasileiro, o
juiz, provavelmente, teria declinado de sua competência e
não teria julgado –; foi extra voto, três a dois, o
que acabou por anular a decisão. A questão continuou na
Câmara dos Lordes, houve uma tentativa de melhorar a
situação, mas o importante é ressaltar que houve uma
novidade, ou seja, a possibilidade do julgamento de crimes
anteriores. Agora, também, recentemente, a Promotora do
Tribunal Penal Internacional para crimes na Iugoslávia
indiciou o Presidente daquele país, no exercício de suas
funções. Sua decisão talvez seja susceptível de críticas.
Em
relação aos crimes contra a humanidade e aos crimes de
guerra, o Estatuto retroage, ou melhor, não vai tão
adiante como já se admitia. O Direito Internacional, na
Convenção de Viena sobre Direitos dos Tratados, já
havia adotado uma regra importantíssima, a do jus
cogens, que
talvez tenha servido de base ao julgamento de Nuremberg.
Segundo ela, há certos crimes tão hediondos que existem
independentemente de estarem numa lei. Quando o Estatuto
menciona aquela regra nullum
crime sine lege, talvez esteja agindo mal, porque o
crime existe, mesmo que tenha sido anterior ao Estatuto. O
Estatuto prevê que a Corte só poderá julgar casos
ocorridos depois da sua entrada em vigor, mas não se pode
dizer que não há um crime, pois ele existe. Aliás, o
nosso Presidente, na celebração do sesquicentenário de
Joaquim Nabuco, lembrou uma peculiaridade da nossa história:
o Brasil, no passado – sobretudo na primeira metade do século
– revoltou-se contra as medidas tomadas contra as
embarcações brasileiras, incluindo os navios de guerra,
pelos ingleses, para evitar o tráfico de escravos.
Aquilo, na ocasião, era considerado uma violação ao
Direito Internacional. Hoje em dia, ao contrário, já ser
reconhece que, naquela época, aquele tráfico já era um
crime contra a humanidade, contra os conceitos morais de
justiça. O Embaixador Sabóia ressaltou esses aspectos: o
certo e o errado, o moral e o imoral, que o próprio
Grossius salientava, de que o Direito Internacional tinha
sempre que levar em consideração o que era certo e o que
era errado.
Portanto,
há certos crimes que existem, independentemente de haver
uma lei ou norma internacional e que podem ser puníveis
de maneira retroativa. Esse princípio foi defendido e
aceito pelo Tribunal de Nuremberg, que baseou as suas
deliberações num crime até então não consignado em
tratado ou convenção e, portanto, de efeito retroativo.
Esse é um terreno delicado e difícil.
Quanto
às leis de guerra, estamos no campo das convenções de
Haia, do início do século. Há quatro convenções
assinadas em Genebra, que foram não só praticadas pelo
Brasil, mas devidamente promulgadas oito anos depois de
sua assinatura, a saber: a Convenção sobre tratamento da
sorte de feridos e enfermos dos exércitos em campanha;
aquela que trata da sorte dos feridos, enfermos e náufragos
ocorridos em operações de guerra; a que disciplina o
tratamento e a proteção dos prisioneiros de guerra e,
finalmente; a que prevê a proteção da população civil
em caso de guerra. Essas convenções foram ratificadas
pelo Brasil.
O
Direito Internacional é, dentre todos os ramos do
Direito, aquele que evolui mais rapidamente. As modificações
são permanentes. Neste ano, tivemos o próprio Tratado do
Tribunal Penal Internacional, o caso Pinochet e o
Milosevic. Quando Santos Dumont contornou a Torre Eiffel e
ganhou o prêmio, estava criando um novo Direito
Internacional, tanto assim que o Institut
du Droit International – a maior instituição jurídica
internacional da época – adotou, logo depois, uma
resolução, em Paris, provavelmente influenciada por suas
proezas, que se tornou Direito Internacional. Ou seja, o
Direito Internacional, que era bidimensional – porque só
se ocupava do mar e da terra –, passou a ocupar-se também
do ar. Hoje, temos também o espaço ultraterrestre e
fundos do mar. O Direito Internacional está evoluindo e,
com ele, os direitos humanos. Como exemplo dessa evolução,
cito o livro Manual
de Direito Internacional Público, de Hildebrando
Accioly, de 1933, que silenciava a respeito. A Carta das
Nações Unidas, no preâmbulo, fazia uma pequena menção
aos direitos humanos, o que já foi uma grande conquista,
porque o projeto submetido ao Departamento de Estado também
silenciava a respeito. Aliás, silenciava sobre os
direitos humanos e sobre o Direito Internacional, quer
dizer, o projeto preparado no Departamento de Estado
ignorava essas duas instituições. Aqueles princípios
previstos no preâmbulo, a fim de proteger as gerações
futuras dos flagelos da guerra, foram posteriormente
examinados em Paris, pela Unesco, surgindo daí a Declaração
Universal dos Direitos Humanos. Houve também a preocupação
de "sabotar", minimizar a importância da
Declaração, tanto assim que a Presidenta da Conferência,
a Sra. Eleanor Roosevelt, ao terminá-la, fez questão de
salientar que aquilo era apenas uma resolução e não
comprometia os Estados. Mas essa interpretação tem sido
combatida e, hoje em dia, mesmo nos Estados Unidos, vários
autores destacam que alguns dos direitos humanos ali
consignados são Direito Internacional. Mais ainda:
Jimenez Aretigga, um dos maiores juristas da América
Latina, ressaltou que a Carta das Nações Unidas é de
cumprimento obrigatório. Já que aquele trecho não era
satisfatório, era necessário o seu desenvolvimento, que
foi precisamente aquela Declaração Universal, que está
perfeitamente em harmonia com a filosofia geral; mas, como
havia essa restrição, posteriormente foi possível
assinar protocolos sobre direitos públicos e civis e
sobre direitos econômicos e sociais, que também vieram
dar maior força aos direitos humanos. Além disso, temos
documentos internacionais, de natureza interamericana, e a
Convenção Européia sobre os Direitos Humanos; todos
garantidos.
Não
há nenhum óbice no caso brasileiro. Na Constituição, há
setenta e sete parágrafos só sobre direitos humanos. Além
disso, temos a enumeração de direitos sociais, econômicos,
políticos, ou seja, a relação é superior a cento e
vinte. Há uma possibilidade de se encontrar, facilmente,
na nossa Constituição, qualquer direito humano. O que se
discute é sobre a possibilidade de um direito humano da
nossa Constituição estar em conflito com uma resolução
internacional de direitos humanos, como é o caso das
extradições de nacionais.
Resta-me
discorrer sobre a agressão, mencionada no art. 5º. Não
foi uma idéia feliz inclui-la no Estatuto. Isso vem se
arrastando desde a assinatura da Carta das Nações
Unidas; evitou-se falar, definir o que era essa agressão.
Contudo, diante de um pedido de esclarecimento, houve uma
série de reuniões de comissões ad
hoc para procurar uma definição elucidativa com
exemplos. Finalmente, foi adotada uma resolução, mas que
não teve maior aceitação. Aliás, quase todos esses
trabalhos sobre definição de agressão tinham um triste
resultado porque, se fossem aplicados à realidade da
Segunda Guerra Mundial, verificar-se-ia que o agressor
teria sido sempre a Grã-Bretanha e a França, nunca a
Alemanha ou a Rússia.
No
caso de Kosovo, houve, nos termos da Carta, uma agressão
praticada pela OTAN, ou melhor dito, praticada por uma série
de países. Verificou-se aí a dificuldade de se aplicar
aquela idéia básica desse Estatuto, de que a
responsabilidade penal é do indivíduo. No caso de uma
agressão, quem é o responsável? É o Congresso, que
vota o direito de guerra? É o Presidente da República, o
Chefe de Estado ou são os militares? A questão é bem
delicada.
Com
o exame desse Estatuto, deseja chegar-se à conclusão de
que o Brasil deve ou não ratificá-lo. Não vejo nenhum
inconveniente na ratificação. Quanto ao processo futuro,
tradução e envio ao Congresso Nacional, existirão os
seguintes óbices: a extradição de nacionais e a pena de
prisão perpétua. Em relação à extradição de
nacionais, sempre fui contra esse princípio; não vejo
motivo pelo qual um brasileiro que, no exterior, tenha
cometido um crime hediondo, tenha envergonhado o País,
cuja presença não queremos mais, goze de uma proteção
constitucional. O direito humano, nesse caso, é
exatamente o contrário. Talvez não devêssemos extraditá-lo
porque a maior pena seria ficar em uma prisão brasileira.
Não vamos dar a ele a "colher da chá" de pegar
uma prisão com todas as vantagens. Aliás, quando há
essa questão de conflito entre direitos humanos, como,
por exemplo, num caso de seqüestro, quem seria a vítima?
Reconhecem-se os direitos humanos dos seqüestradores ou
dos seqüestrados? Quem tem a prioridade? Quem merece a
maior proteção? Obviamente, o seqüestrado. Falo isso de
cátedra.
Declaro-me
francamente favorável à ratificação do Estatuto de
Roma, mas isso não pode ser feito a toque de caixa. É
necessário que seja estudado com maturidade e que penetre
em nossa consciência jurídica. É necessário que o tema
seja enviado ao Congresso, onde certamente será estudado
em profundidade para, eventualmente, o País ratificá-lo
e promulgá-lo. Devemos fazer isso com muito cuidado para
que estas noções e conceitos não se desintegrem.
Essa
Convenção é um grande progresso, um passo importante na
evolução do Direito Internacional. Devemos ratificá-la,
mas não com pressa; devemos examiná-la com todo o
cuidado, pois não há vantagem de estarmos entre os
primeiros. Lembro a experiência do Direito do Mar, em que
todo o ônus financeiro caiu para o Brasil, por ter sido
um dos primeiros países a ratificar, e os outros, que
simplesmente ratificaram, pagaram uma contribuição simbólica.
E nesse Estatuto está previsto: as despesas correrão por
conta daqueles que ratificarem. Portanto, inclusive do
ponto de vista financeiro, também não é vantajoso.
Contudo, juridicamente, para manter alto o nome do Brasil
na comunidade internacional, de acordo com as nossas tradições
em matéria de defesa da arbitragem, temos, realmente,
todo o interesse em ratificar esse Estatuto.
Geraldo
Eulálio do Nascimento e Silva
é Presidente da Sociedade Brasileira de Direito
Internacional e Presidente de Honra do Ramo Brasileiro da International
Law Association.
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