Apresentação
Os conflitos armados, as guerras
internacionais ou as guerras civis constituem a mais cruel
realidade da nossa época. O balanço dos mor-tos, sofrimentos,
ferimentos e deslocamentos de pessoas, atentados ao meio ambiente,
destruições de bens que conduzem inevitavelmente a guerras, é
aterrador.
Apesar de todos os esforços
desenvolvidos no período do pós-guerra (uma qualificação
aliás bastante eurocentrista!) para substituir o recurso à
força pela resolução pacífica dos diferendos, existiram em
pouco mais de 50 anos cerca de 170 conflitos armados e, desde os
anos 80, 90% das vítimas são … civis, mortas ou mutiladas nos
combates, quer acidentalmente quer de forma deliberada para cobrir
actividades militares. Não podemos deixar de nos chocar pela
precariedade crescente dos civis nas guerras contemporâneas que,
na sua maioria, são pudicamente qualificadas pelos estrategas
como «conflitos de baixa intensidade», sem dúvida para fazer
eco do famoso «mortes zero» dos militares!
É evidente que a prevenção dos
conflitos deve permanecer como o objectivo primeiro da
cooperação internacional, tal constituindo mesmo uma obrigação
urgente face à violência extrema ocasionada pelas armas com
poderes de destruição continuamente crescentes. Não nos devemos
contentar em afirmar que a guerra constitui um crime e
ilegalizá-la internacionalmente. É verdade que a guerra deve ser
prevenida e punida, mas tal não nos pode eximir de tratar
Apresentação 11.dos males que ela
causa, devendo o nosso objectivo consistir em sal-vaguardar a
humanidade da realidade da guerra. É precisamente este o
objectivo do Direito Internacional Humanitário (DIH): em nome dos
princípios de humanidade e de dignidade reconhecidos por todas as
formas de civilização, proteger a pessoa que se encontra numa
situa-ção perigosa devido à violência causada pela guerra.
Nas origens da humanidade, a guerra
caracterizava-se pela ausência de qualquer regra para além da
lei do mais forte ou do mais desleal.
Vae victis,
vencer ou morrer implacavelmente: em Roma, a lei das Doze Tábuas
menciona que tudo é permitido contra o inimigo.
Na Antiguidade apareceram os
primeiros esboços do Direito Humanitário, começando o Código
de Hammourabi com as seguintes palavras: «decreto estas leis a
fim de evitar que o forte oprima o fraco».
Todas as sociedades ou
civilizações sentiram a necessidade de humanidade: na China (Lao-Tseu
e Confúcio), na Índia (o Mahab-harata), na Pérsia (Zoroastra),
na Grécia (Homero e Polibo) e no mundo muçulmano (Viqaet).
Na Idade Média, os princípios de
cavalaria (que surtiam efeitos muito limitados, já que respondiam
antes a uma solidariedade de classe, a dos nobres, não
beneficiando as massas, independentemente do facto de estarem
armadas ou não) e sobretudo o cristianismo, per-mitiram a
criação das primeiras instituições humanitárias: a Paz de
Deus proclamava a inviolabilidade das igrejas, dos mosteiros, dos
pobres, do clero, dos mercadores, dos peregrinos, dos agricultores
e dos seus bens e as Tréguas de Deus proibiam os combates durante
certos períodos do calendário litúrgico, sendo prevista a
excomunhão como sanção para os casos de violação destes
princípios. Porém, os fins humanitários destas instituições
não eram nem exclusivos, nem predominantes, sobretudo com o
surgimento do conceito de guerra justa que reservava a protecção
unicamente às vítimas do Estado que conduzia uma guerra dessa
índole. O Concílio de Latrão, de 1139, aboliu a besta por se
tratar de uma «arma odiosa para o Senhor», mas precisou que ela
já poderia ser utilizada contra os
12 Direito Internacional umanitário.infiéis!
Tratavam-se de meros esboços e Grócio, em «De juri belli ac
pacis» (1625) não hesitava em escrever que, apesar dos
seus famo-sos «temperamenta belli» inspirados na fé
católica, o massacre das mulheres e crianças está incluído no
direito da guerra!
Foi necessário esperar pelo
século das Luzes para que uma doutrina humanista afirmasse
claramente que a guerra se deve limitar aos mili-tares e poupar a
população civil: Jean Jacques Rousseau (O Contrato Social,
1762) e Emeric de Vattel (Direito das Gentes, 1758) foram
os seus principais autores, tendo ambos posto um fim à tese da
guerra justa e à sua justificação decorrente da razão soberana
dos Estados.
Os dois autores lançaram assim os
fundamentos do moderno direito da guerra.
Este ramo do direito nasceu a 24 de
Junho de 1859 em Solferino.
A batalha travada nesta cidade
entre as forças armadas franco-ita-liana e prussa causou cerca de
40 000 mortos, dos quais 60% morreram no seguimento de ferimentos
que os serviços sanitários das forças armadas – constituídos
por um médico para cada 500 feridos – não puderam tratar.
Henry Dunant, jovem homem de negócios suíço, que estava por
casualidade presente no campo de batalha, regressou transtornado a
casa. Em 1862 redigiu «Uma Recordação de Solferino», um livro
no qual formula um duplo desejo: por um lado, que em cada país
fosse constituída em tempo de paz uma sociedade voluntária de
socorros; e por outro, que os Estados ratificassem um princípio
internacional convencional e sagrado que assegurasse uma
protec-ção jurídica aos serviços sanitários. Esta obra,
publicada às custas do autor, teve uma tiragem de 1600 exemplares
e continha na primeira página a inscrição: «Não se vende»
.
O livro esteve na origem imediata
da instituição da Cruz Vermelha, através da criação em 1863
de um Comité composto por cinco pessoas (Dunant, os médicos
Appia e Maunoir, Moynier e o General Dufour) que solicitou às
autoridades helvéticas a convocação de uma Conferência
Diplomática. No dia 22 de Agosto de 1864, a primeira Convenção
«para melhorar
Apresentação 13 Sobre o destino
deste livro e do seu autor,cf.Boissier (Pierre):
«Henry Dunant »;Institut Henry- -Dunant,1974,pp.1-23..a
situação dos militares feridos nas forças armadas em campanha»
foi assinada em Genebra pelos
representantes de 12 Estados N.T. . Na sua origem, o DIH
representa a expressão jurídica do sentimento de humanidade que
corresponde à benevolência e à compaixão que nutrimos pelos
nossos semelhantes. Porém, só sentimos compaixão por aqueles
que reconhecemos como fazendo parte da humanidade e este conceito,
com a abertura dos espaços e a interpenetração das culturas
sofreu uma evolução, que se encontra hoje ainda por ter-minar.
Partindo de uma acepção restrita
que confinava o «semelhante» ao círculo limitado das pessoas
que partilhavam um mesmo sistema de valores e a mesma identidade,
a humanidade foi encarada de forma universal sendo todos os seres
humanos reconhecidos como «próximos», independentemente da sua
raça, nacionalidade, etnia, opiniões políticas ou religiosas ou
qualquer outro critério desfavorável.
O Direito Internacional
Humanitário não impõe uma visão da humanidade (tal como alguns
julgam vislumbrar em certos instrumentos internacionais de
direitos humanos), propondo-se simplesmente a manter o indivíduo
na sua integridade física e dignidade quando de conflitos
armados. Se é verdade que um ser humano se move por vezes por
sentimentos de crueldade, também é certo que ele se comove
perante a dor e o sentimento de humanidade, que à seme-lhança do
sofrimento, é também universal. Sendo impossível fazer com que
o ser humano renuncie à guerra, é o sentido de humanidade que o
leva a opor-se aos seus efeitos.
Desta forma, o Direito
Internacional Humanitário enuncia as regras aplicáveis durante
os conflitos armados, internacionais ou não, que visam um duplo
objectivo: restringir os direitos dos combatentes através da
limitação dos métodos e meios de guerra e proteger os direitos
dos não combatentes, civis e militares fora de combate.
O seu campo de aplicação,
inicialmente limitado à protecção dos militares feridos nas
forças armadas em campanha, foi alargado de
14 Direito Internacional umanitário
N.T.Os seguintes Estados assinaram a referida Convenção a 22 de
Agosto de 1864:Baden,Bélgica,Dinamarca,
Espanha,França,Hesse,Itália, Países Baixos,Portugal,Prússia e
Suíça.Portugal ratificou este instrumento a 9 de Agosto de
1866..
forma considerável à medida que o
círculo de vítimas dos conflitos armados se alargava. Estes
tipos de violência dizem respeito aos dois principais actores com
que nos deparamos no teatro de guerra: o combatente e a vítima,
podendo uma mesma pessoa, de acordo com as circunstâncias,
assumir ambos os papéis. Do lado do combatente, o Direito
Internacional Humanitário prevê restrições na conduta das
hostilidades; do lado da vítima, este ramo de direito, enuncia os
meca-nismos de protecção das pessoas que caíram no poder do
inimigo.
Trata-se assim de regulamentar as
hostilidades a fim de atenuar as suas circunstâncias, através da
limitação da utilização da violência, desde que tal seja
compatível com as necessidades militares e tendo em vista
respeitar a dignidade da pessoa, mesmo quando inimiga na máxima
medida possível.
Apesar de as Nações Unidas
utilizarem preferencialmente a expressão sinónima de «Direito
dos Conflitos Armados», a designação de Direito Internacional
Humanitário é a mais adequada, já que as disposições que
integram esta disciplina constituem precisamente uma
transposição para o Direito das preocupações de ordem moral e
humanitária 2 . A expressão direito da guerra encontra-se
actualmente abandonada a partir do momento em que caducou o
conceito do estado de beligerância, ou pelo menos desde a
adopção do princípio da proibição do recurso à força.
O DIH pretende humanizar a guerra,
disciplinando os seres humanos nos seus actos de violência armada
e da protecção daqueles que se encontram em situação perigosa.
Mas será tal possível, perguntam aqueles que consideram que a
guerra consiste na substituição do direito pela violência? Não
existirá um aparente atentado à lógica no facto de a
aplicação de um direito ser condicionada à prévia violação
do direito? Será tal desejável, defendem aqueles, como
Clausewitz, que julgam que a bondade da alma é uma fonte de erros
perniciosos e que não se pode introduzir um princípio moderador
na filosofia da guerra
Apresentação 15
2 Pictet (Jean):«Développements
et principes du Droit international humanitaire »,Institut Henry-
-Dunant,Genève,1983,p.7 (em português:«Desenvolvimentos e
princípios do Direito Internacional Humanitário »)
..sem incorrer numa absurdidade? O
cepticismo que envolve o Direito Internacional Humanitário parece
justificar-se simultaneamente pela ferocidade da guerra e pela
fragilidade deste ramo do Direito.
Por um lado, a ferocidade dos
combates, já que em 5000 anos de his-tória, podemos registar
cerca de 14 000 guerras que terão morto mais de 5 mil milhões de
seres humanos! Por outro, a fragilidade do Direito Internacional
Humanitário face às guerras actuais que são quer
hipertecnológicas, utilizando armas silenciosas e aviões
furtivos, quer hipotecnológicas utilizando machados e catanas. O
cepticismo prende-se igualmente com a denúncia do compromisso
impossível entre a eficácia das operações militares (objectivo
concreto) e o respeito por certos imperativos de ordem
humanitária (exigência abs-tracta) e com o facto de se ver neste
ramo de Direito o ponto de fuga do Direito.
É verdade que na luta entre a
força e o Direito, este último perde terreno em duas frentes 3 .
Por um lado, as regras jurídicas internacionais só parcialmente
travam a violência armada, já que não impõem proibições
eficazes às formas mais perigosas de violência.
Por outro lado, mesmo quando
existem limites jurídicos, estes podem ser colocados em cheque
pelos Estados-Nação auto-suficientes e narci-sistas que, com
demasiada frequência, têm tendência a servir-se do Direito e a
não considerar aquele que é o seu propósito, isto é, o de ser
uma arma para os fracos.
Afirmar que este ramo do Direito
foi e será violado, não constitui uma razão válida para o
menosprezar, tanto mais que as violações estão em parte ligadas
à ignorância do mesmo. De forma mais realista, e sem querer
soçobrar à ingenuidade, devemos esperar que o DIH possa temperar
as manifestações mais assustadoras da guerra. Se por um lado o jus
contra bellum é proclamado e o jus ad bellum proibido,
por outro lado o jus in bello é regulamentado.
Apesar de a guerra ter sido
ilegalizada pelo direito internacional, existem regras
inter-nacionais que vigoram em tempo de confli-
Direito Internacional umanitário
3 Cassese (A.):«Le droit international dans un monde divisé »,
Berger-Levrault,1986,p.231 (em português:«O Direito
Internacional num mundo dividido »)
..tos. Não devemos esquecer que as
Convenções de Genebra foram una-nimemente ratificadas 4N.T. , e
que o Direito Internacional Humanitário visa acima de tudo os
indivíduos, e não os Estados, visto tratar-se verdadeiramente
de um Direito das Gentes. O objectivo deste ramo do Direito é
assim exclusivamente humanitário, já que pretende simplesmente
tornar menos desumanas as consequências de qualquer guerra
declarada, iniciada licitamente ou mesmo em violação de uma
obrigação internacional. A velha ficção medieval da guerra
justa que alguns viram reaparecer com o Pacto BriandKellog, a
Carta das Nações Unidas e a definição de agressão deve ser
definitivamente abandonada, já que o DIH se deve aplicar sem que
tenha de ser feito qualquer julgamento sobre a legitimidade do
conflito.
Contudo, a problemática actual do
DIH consiste, antes de mais, no facto de possuir uma imagem
mediática e de ser alvo de aproveita-mento político.
Um dos problemas consiste no facto
de as imagens mediáticas, como sabemos, serem caracterizadas pela
selectividade, a repetição e o voyeurismo 5 , e se
limitarem a mostrar violações do direito, e não o seu respeito.
Em termos de audiência nos meios de comunicação social, um
soldado poupado não se reveste de qualquer interesse em
comparação com um civil ensan-guentado, e os meios de
comunicação social só retêm as violações, sendo assim mais
fácil, em matéria de DIH, contabilizar os fracassos do que os
sucessos. Verifica-se neste contexto igualmente um aproveitamento
político das situações, devendo-se pôr fim à confusão entre
o Direito e a acção humanitária 6 , os objectivos mediáticos e
político em nome dos quais o adjectivo – humanitário –
sufoca o substantivo – direito –, dando uma visão mutilada
(ou enganosa?) do humanitá-rio.
Na melhor das hipóteses,
confunde-se o humanitário com a urgência social e a soli-
17 4 Vide anexo. N.T.Portugal
assinou as quatro Convenções de Genebra a 11 de Fevereiro de
1950,tendo procedido à respectiva ratificação a 14 de Março de
1961.Portugal apôs ainda,no momento da ratificação,uma reserva
ao artigo 10.o /10.o /10.o /11.o das referidas Convenções. 5
Hollenfer (O.):«Ethique et images de l ’humanitaire »,RICR,1997,
p.655-659 (em português:«Ética e imagens do princípio
humanitário »).
6 Russbach (Olivier):«ONU contre
ONU.Le droit international confisqué »,éd.La Découverte,
Paris,1994,designadamente p.22 e seguintes (em português:«A ONU
contra a ONU.O Direito Internacional confiscado »)
..dariedade internacional, e no
pior dos casos, ele é reduzido ao humanitarismo
selectivo dos defensores do alegado direito de ingerência humanitária.
A acção humanitária limita-se frequentemente a
traduzir o fracasso da diplomacia ou o desrespeito pelo Direito.
O Direito Internacional
Humanitário que, antes de mais, consiste num direito
de assistência e de protecção das vítimas dos conflitos
arma-dos, é também o direito
que autoriza o combatente a atentar contra a
vida ou a integridade física de uma pessoa. É este o ramo do
direito que regulamenta a actividade
humana, por muito desumana que
ela seja, determinando como matar, ferir, capturar e sequestrar.
Mesmo se, por vezes, é difícil
libertarmo-nos da abstracção do Direito,
devemos relembrar que o seu objectivo é de ultrapassar os grandes
princípios para os tornar operacionais; estes princípios foram
assim transformados numa multiplicidade de regras (400 artigos
para o Direito da Haia e 600 para o Direito de Genebra) que
vão seguramente regulamentar a
violência, mas também a assistência.
As regras humanitárias permanecem
as únicas armas das vítimas.
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