A
aplicação do Direito Internacional Humanitário em tempo de paz
O direito e a guerra são objecto de três tipos de
relações: direito contra a guerra com o princípio
geral da interdição do uso da força como
meio de resolução de litígios entre Esta-dos, direito
à guerra apenas nas hipóteses de legítima
defesa ou de acção coerciva inter-posta pelas
Nações Unidas com base no capí-tulo VII
da Carta e direito da guerra, que a maior
parte das vezes se aplica a partir do momento
em que o direito internacional público
tenha já sido violado.
O Direito Humanitário
é, ipso
facto e ipso
jure, um revelador da
falibilidade recorrente do direito internacional
público. Logo, se a ratificação ou
adesão às convenções humanitárias é mera-mente uma
faculdade dos Estados, estes têm, após
tal aceitação, a obrigação de divulgar e aplicar
esses instrumentos.
1.A RATIFICAÇÃO
As Convenções e seus Protocolos instam os Estados
a procederem à respectiva ratificação «logo
que possível» . A entrada em vigor tem lugar três meses após o depósito dos
instrumentos de ratificação ou de adesão, mas estabelece-se que
as Convenções de Genebra 2 entrarão em
vigor imediatamente a
partir do momento em que um conflito armado afete um
Estado que as tenha ratificado ou a elas haja aderido.
O cumprimento por parte dos Estados das suas obrigações
convencionais tem,
no entanto, duas condicionantes.
A denúncia
Embora se encontre expressamente prevista, não foi jamais
utilizada e,
de resto, a sua amplitude é limitada. Com efeito, a denúncia 3 apenas
se
torna efectiva após notificação ao Conselho Federal da Suíça,
Estado depositário;
e, se nesse momento, o Estado que faz a denúncia estiver
envolvido num conflito armado, internacional ou não, o efeito
desta será suspenso até ao fim das hostilidades e enquanto as operações de
libertação definitiva e repatriamento dos prisioneiros de
guerra não estiverem concluídas. Por outro lado, a denúncia
não afasta a
aplicação da cláusula de Martens.
As reservas e declarações interpretativas
Podem ser formuladas no momento da assinatura, da ratificação
ou da adesão,
de acordo com as normas do direito dos tratados. Entre estas, convém referir: as
reservas ao artigo 68. o da quarta
Convenção, ao abrigo das
quais numerosos Estados (nomeadamente a Austrália, os Estados Unidos e o
Paquistão) se reservam o direito de aplicar a pena de morte a civis, espiões,
sabotadores ou autores de actos hostis
contra si cometidos, enquanto Potência ocupante;
as declarações interpretativas das Potências
nucleares (Estados Unidos, França, Reino
Unido) ou não nucleares (Alemanha, Canadá,
Bélgica, Espanha, Itália, Holanda) segundo
as quais as disposições constantes do primeiro
Protocolo relativamente ao uso de
130 Direito
Internacional umanitário
Respectivamente,artigos comuns
57.o /56.o /137.o /152 das Convenções e artigos
comuns 93.o e 21.o dos
Protocolos.Esta exigência foi
mais rigorosamente respeitada quanto
às Convenções do
que quanto aos Protocolos.
2 Artigos comuns 62.o
/61.o /141.o /157.o .
3 Artigos
comuns 63.o
/62.o /142.o /158.o das Convenções e
artigos comuns 99.o P I e 25.o P II
..armas
foram concebidas para aplicação exclusiva às armas
convencio-nais, pelo
que não regulamentam nem interditam o emprego de armas nucleares
4 ;
as declarações (da Coreia do Sul, Estados Unidos, Itália, Nova Zelândia e Reino
Unido), que interpretam de forma restritiva o artigo 44. o , n.o
3, do mesmo
Protocolo, relativo ao estatuto do guerrilheiro.
2.A DIFUSÃO
A difusão é uma obrigação convencional 5 que deve ser
cumprida mesmo
em tempo de paz, a fim de que cada indivíduo esteja preparado
para agir em conformidade com este direito, caso seja confrontado com uma situação
que exija a sua aplicação. O
CICV elegeu oito categorias de público 6 como
principais destina-tários desta
difusão: as Sociedades Nacionais da Cruz Vermelha e do Crescente
Vermelho, os serviços governamentais dos ministérios
directamente interessados
na aplicação do Direito Internacional Humanitário em
caso de conflito (nomeadamente Defesa, Negócios Estrangeiros,
Justiça e Saúde), os meios universitários, o ensino primário
e secundário, as profissões médicas, os meios de comunicação social, o público em
geral; mas o público mais importante são, naturalmente,
os militares. Os comandantes militares
devem garantir que as forças armadas conheçam as obrigações
enunciadas nas Convenções
e seus Protocolos: exige-se que as autoridades
militares (por exemplo, futuros responsáveis
por campos de prisioneiros de guerra)
tenham um «pleno conhecimento» das disposições
da Convenção, devendo informações mais
específicas ser fornecidas aos simples
soldados – infelizmente, os mais susceptíveis de violar o
Direito Humanitário – sob a
forma de um código de conduta e de claras regras
de comportamento e actuação 7 . A
operacionalidade do Direito Internacional
A aplicação do Direito Internacional Humanitário em tempo de
paz 131
4 No momento da ratificação do
primeiro Protocolo,a 28 de Janeiro de
1998,o Reino Unido precisou que, se
um ataque (nuclear)fosse lançado contra
a população civil britânica, se
reservaria um direito de resposta passível
de afectar a população civil do
atacante.
5 Artigos comuns 47.o
/48.o /127.o /144.o das Convenções, 83.o
P I e 19.o P II.
6 RICV,«Diffusion:faire connaître
les
règles humanitaires »(em português:«Difusão:fazer
conhecer as
regras humanitárias »),1997, pp.379-487.
7 De Mulinen,F.,«Manuel sur le Droit
de la guerre pour les forces armées
»(em português:«Manual sobre
o Direito da guerra para as forças
armadas »),CICV,1989, 242
pp
..Humanitário
assenta na sua simplicidade e no fato de o seu respeito pelas
Partes não tornar cada uma delas vulnerável, provocando um desequilíbrio
estratégico ou táctico. Nesta óptica, o primeiro Protocolo exige que as Partes
contratantes procedam à formação de pessoal qualificado
e, uma vez que tal esteja feito, que coloquem conselheiros
jurídicos junto das forças armadas 8 para
aconselhar os comandantes
militares, ao nível adequado, quanto à aplicação do Direito
Internacional Humanitário e à formação a ministrar às forças
armadas.
A difusão funciona, evidentemente, como um fator de proteção
de caráter
preventivo, mas é também um meio de relativizar o impacto das violações do
Direito Internacional Humanitário, forçosamente acentuadas
pelo tipo de informações veiculadas pelos meios de comunicação
social, que põem em destaque os falhanços e não os sucessos
na aplicação do direito.
No entanto, esta obrigação de difusão encontra certos
limites, nomeadamente no
que diz respeito aos conflitos armados não internacio-nais, e o segundo Protocolo
prevê apenas que os Estados se comprometem
a divulgá-lo «o mais amplamente possível», uma vez
que a maioria dos Estados entendeu que a sua divulgação pode-ria
incitar à rebelião.
Apesar disso, o CICV tem vindo a promover a
difusão das normas relativas aos conflitos internos, dirigindo-a,
não apenas
às forças armadas, mas também aos potenciais portadores de armas no seio da
população civil e baseando a sua mensagem na cultura
local 9 .
3.A APLICAÇÃO
A melhor garantia do empenho efectivo dos Estados
no respeito do Direito Humanitário reside
na norma pacta
sunt servanda.
Não obstante
tratar-se de um princípio em evi-dência no
domínio do direito internacional público
10 ,
que pretende que os tratados cons-
Direito Internacional umanitário
8 Artigos 6.o e 82.o P I.
9 Pfanner,T.,«Le rôle du CICR dans
la mise en œuvre du DIH » (em
português:«O papel do CICV na
aplicação do DIH »),in Le droit face
aux crises humanitaires, C.E.,vol.1,pp.204
e 205.
10 Convenção de Viena sobre o Direito
dos Tratados,artigo 26.o )
..tituam
a lei entre as partes, ele foi sublinhado nas Convenções e no primeiro Protocolo 11
, instrumentos
que as Altas Partes Contratan-tes se
comprometem «a respeitar e a fazer respeitar […em
todas as
circunstâncias». Os Estados têm assim uma dupla
responsabili-dade na
aplicação do DIH: uma responsabilidade individual de tomar as medidas de
aplicação que lhes dizem respeito; uma responsabi-lidade colectiva
de zelar pelo seu cumprimento por parte dos outros
Estados.
A obrigação de respeitar
Esta obrigação, que não está sujeita a qualquer cláusula
de recipro-cidade, é
independente da legitimidade do conflito e não se limita a
uma obrigação de resultado, uma vez que os Estados deverão adoptar sem demora
medidas de aplicação nos planos legislativo, administrativo
e outros. Os Estados deverão transpor os textos para o
seu ordenamento jurídico interno, de acordo com as regras do seu sistema
constitucional e tomar medidas de aplicação concreta. Só no Protocolo I, mais
de cinquenta disposições obrigam os Estados a tomar
medidas de execução: por exemplo, as relativas à protecção das unidades
sanitárias, regimes disciplinares das forças armadas, precauções
contra os efeitos dos ataques, legislação aplicável em tempo
de conflito armado e divulgação.
O DIH é
transposto de diferentes formas consoante os Estados e com níveis
de integração diferenciados. Estes níveis são mais elevados para alguns Estados,
que sancionam, através de leis específicas, todas
as infracções graves enumeradas nas Convenções de Genebra:
é o caso,
nomeadamente, da Bélgica 12 , da Espanha 13 , da Suíça e
da Grã-Bretanha;
menos elevados para outros, que apenas prevêem algumas
das infracções – por vezes redefi-nindo-as – ou que
recusaram claramente alte-rara
sua lei nacional, entendendo que as disposições
ordinárias das respectivas leis penais
são suficientes para garantir a aplica-
aplicação do Direito Internacional Humanitário em tempo de
paz 133
11 Respectivamente,artigo 1.o comum
e artigo 80.o P I.
12 Lei de 16 de Junho de 1993.
13 Novo Código Penal,23 de Outubro
de
1995
..ção
do Direito Humanitário: é este o caso da Alemanha, Estados
Uni-dos, França,
Holanda e Rússia.
A obrigação de fazer respeitar
Os Estados devem, não só cumprir as disposições das
Convenções e
Protocolos que tenham ratificado, mas igualmente zelar para que os outros Estados as
cumpram também. Esta obrigação de fazer res-peitar significa,
no mínimo, ajudar os outros Estados a respeitar o Direito
Humanitário, especialmente em tempo de paz; no máximo, restabelecer
o seu cumprimento por parte dos Estados que o violam. Este
último aspecto relaciona-se com os mecanismos de controlo.
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