Métodos
Se, por um lado, os meios de
combate consistem nas armas utilizadas, já os métodos visam a
utilização destas armas. Convém distinguir os procedimentos e
os ataques na conduta das operações militares.
1.PROCEDIMENTOS
Combater o inimigo não constitui
uma violação do DIH, desde que esteja em causa um combatente
habilitado cuja participação nas hostilidades se traduz em actos
lícitos. Exis-tem, com efeito, actos de guerra ilícitos e
existem quatro procedimentos que consti-tuem infracções graves:
a perfídia, a recusa de quartel, o recrutamento forçado e a
deporta-ção da população civil.
Perfídia
Na conduta das hostilidades os
beligerantes esforçam-se por camuflar as suas intenções e.acções,
a fim de incitar o adversário a reagir de forma prejudicial aos
seus interesses. Assim, os estratagemas de guerra que visam
indu-zir o inimigo em erro ou fazê-lo cometer imprudências são
permi-tidos, já que não apelam à boa fé do adversário, no que
diz respeito à protecção prevista pelo DIH. Os ataques
surpresa, as emboscadas, a utilização de camuflagem natural ou
não, os chamarizes (por exemplo tanques falsos blindados ou
campos de minas fictícios), os disfarces, as demonstrações ou
operações simuladas, as campanhas de desinformação e as
informações falsas constituem, assim, práti-cas perfeitamente
lícitas .
Em contrapartida, a proibição da
perfídia (e igualmente a respectiva tentativa) consiste numa
regra fundamental da conduta das hostili-dades, já que acarreta
uma ruptura da confiança, uma deslealdade e uma falta de honra. A
perfídia, designada por traição no Direito da Haia 2 , consiste
num acto que apela à boa fé do adversário, com a intenção de
o enganar, e que pretende fazê-lo crer que tem direito de receber
ou a obrigação de conceder a protecção prevista pelo DIH.
A perfídia pressupõe a presença
de actos hostis – matar, ferir ou cap-turar – cometidos ao
abrigo de uma protecção reconhecida pelo DIH. Existem, assim,
dois elementos constitutivos da perfídia: a intenção dolosa de
matar, ferir ou capturar um adversário e uma aposta na boa fé
deste último. Desta forma, a simulação da morte para salvar a
sua vida seguida de uma fuga não constitui perfídia, já que a
protecção 3 devida aos mortos não é utilizada aqui para fins
hostis. Em contra-partida, os seguintes exemplos constituem casos
de perfídia: o facto de simular uma rendição ou a intenção de
negociar a coberto da ban-deira parlamentar, simular a
incapacidade causada por ferimentos ou doença, simular o estatuto
de civil, de não combatente ou pro-tegido, utilizando sinais,
emblemas ou uni-formes das Nações Unidas, Estados neutros ou de
Estados terceiros 4 . É ainda proibido utili-zar, de forma
indevida, os emblemas protec-tores da Cruz Vermelha, de bens
culturais e
82 Direito Internacional umanitário
Artigo 37.o §2 P I.
2 Artigo 23.o b)do Regulamento de
1907.
3 Artigos 17.o C I e 19.o e 20.o C
II.
4 Artigo 37.o P I
..o pavilhão parlamentar, mesmo
que nestas hipóteses a perfídia não esteja em causa, visto que
a utilização dos emblemas protetores para fins hostis é
ilícita, a partir do momento em que existe um abuso da
protecção específica.
Quando o acto pérfido origina a
morte ou atentados graves à integridade física do adversário,
estamos perante um crime de guerra 6 .
Recusa de quartel
A proibição de extermínio
inicialmente com a redução à escravatura dos soldados
capturados e posteriormente com o pedido de um res-gate, foi
formalizada no Regulamento da Haia de 1907 7 , e poste-riormente
alargada nos Protocolos Adicionais, sob a denominação de recusa
de quartel. Trata-se aqui de proteger o combatente que cai no
poder do adversário proibindo que este seja morto.
A proibição de não ordenar
quartel visa os seguintes comporta-mentos: ordenar que não haja
sobreviventes, ameaçar o adversá-rio com tal prática ou
conduzir as hostilidades em função dessa decisão.
Trata-se aqui de proteger qualquer
pessoa reconhecida como estando fora de combate. O período
durante o qual um combatente cai ou vai cair no poder do inimigo
é frequentemente muito breve e sempre cru-cial, porque o
combatente é nesse momento totalmente vulnerável, já que por um
lado não pode combater livremente e por outro ainda não recebeu
o estatuto de prisioneiro de guerra. O artigo 41. o do pri-meiro
Protocolo proíbe qualquer ataque contra as pessoas fora de
com-bate, a saber aquelas que se encontram no poder do inimigo,
que exprimem claramente a sua intenção de se render, que
perderam os sentidos ou que estão por qualquer outra forma em
estado de inca-pacidade devido a ferimentos ou doença, desde que,
em qualquer caso, se abstenham de actos de hostilidade e não
tentem evadir-se.
Duas disposições do primeiro
Protocolo vêm completar a proibição da recusa de quartel. A
primeira diz respeito à hipótese em que, na
6 Artigo 85.o §3,f)P I.
7 Artigo 23.o d)
. .impossibilidade de evacuar
os prisioneiros de guerra 10 que se prenda com condições
desabituais de combate (patrulhas a longa distância ou
guerrilha), for conveniente libertá-los no local e tomar todas as
pre-cauções possíveis a fim de assegurar a sua segurança,
nomeadamente em matéria de aprovisionamento 11 . A segunda
aplica-se aos pára-que-distas 12 : apesar de as tropas
aerotransportadas não serem protegidas, a pessoa que salta de
pára-quedas de uma aeronave em perigo não deve ser objecto de
ataque durante a descida e, se tocar o solo de um território
controlado por uma Parte adversa, a pessoa que saltou de
pára-quedas de uma aeronave em perigo deve ter a possibilidade de
se render antes de ser objecto de ataque.
Recrutamento forçado
O facto de constranger um
prisioneiro de guerra ou uma pessoa pro-tegida a servir nas
forças armadas ou auxiliares da Potência inimiga consiste num
delito sui generis constitutivo de uma infracção grave 13
.
Trata-se de uma proibição, já
reconhecida no Direito da Haia, de for-çar os sujeitos inimigos a
tomar as armas contra a sua pátria ou mesmo de exercer qualquer
tipo de pressão ou propaganda com vista à obten-ção de
alistamentos voluntários. Esta proibição, que tem um carác-ter
imperativo e não é alvo de qualquer derrogação, visa tanto o
recrutamento nas forças militares, como a utilização de
prisionei-ros de guerra ou de habitantes de um território ocupado
em traba-lhos que contribuam para o esforço de guerra 14 .
Deportação
É o artigo 49. o da terceira
Convenção, colmatando assim uma grave lacuna do Direito da Haia,
que proíbe as transferências forçadas e as deportações de
pessoas protegidas fora do território ocupado, sendo que só as
necessidades militares impe-riosas ou a segurança da população
poderão autorizar ransferências excepcionais e
Direito Internacional umanitário
11 Artigo 41.o §3 P I.
12 Artigo 42.o P I.
13 Vide respectivamente os artigos
130.o C III e 147.o C IV.
14 Respectivamente artigos 50.o C
III e 51.o §2 C IV
..porárias. As práticas desumanas
da Segunda Guerra Mundial expli-cam que esta disposição tenha
sido adoptada por unanimidade pelos autores da Convenção e
incluída entre os crimes de guerra, sendo sujeita às mais duras
sanções penais. O primeiro Protocolo incriminou 15 igualmente a
deportação pela Potência ocupante de uma parte da sua
população no território ocupado.
Doravante, todas as formas de
transferência forçada de populações são proibidas,
independentemente da natureza do conflito (quer este seja
internacional ou não).
Esta qualificação cobre a limpeza
étnica, que constitui uma «forma de genocídio». Assim, incutir
o medo com recurso à violação, ao homicídio ou à tortura para
provocar a fuga de civis, tornou-se um procedimento na conduta das
hostilidades.
2.OS ATAQUES
A fim de que as pessoas e bens
protegidos sejam efectivamente poupados, o comportamento dos
combatentes nas operações mili-tares está sujeito a
restrições. Em consequência da distinção entre combatentes e
civis, estes últimos não devem ser objecto de ataques 18 .
Entende-se por ataques todos os
actos de violência contra o adver-sário, quer sejam ofensivos ou
defensivos.
Os ataques indiscriminados
A interdição dos ataques capazes
de atingir indistintamente objectivos militares e civis, prevista
apenas para os conflitos internacionais, diz respeito a três
tipos de situações: os ataques não dirigidos contra um
objectivo militar determinado, os ata-ques em que sejam utilizados
métodos ou meios de combate que não possam ser dirigidos contra
um objectivo militar determi-nado (minas terrestres ou marítimas)
ou cujos efeitos não pos-sam ser limitados (prática dos tapetes
de minas), e os ataques que acarretem danos excessivos para
apopulação civil relativamente à vantagem militar global.
Métodos 85
15 Artigo 85.o §4,alínea a).
18 Artigos 51.o ,§2 PI e art.13.o
, §2 P II
..Estas duas últimas hipóteses
são, infelizmente, as mais frequen-tes e os bombardeamentos
contra Dresden, Hiroshima, Nagasaki, Beirute, Bagdad ou Sarajevo
são a dramática ilustração destes danos excessivos infligidos
contra civis em relação à vantagem militar adquirida, vantagem
essa que deveria consistir unicamente na des-truição de um
objectivo militar. Ora, as guerras modernas come-çam e são
ganhas, desde o início, nos ares, antes de se iniciarem as
operações terrestres; e, a este propósito, é importante
desmis-tificar o conceito jornalístico-militar da guerra
cirúrgica, nomea-damente o que foi apresentado durante a guerra
«televisiva» no Iraque em Janeiro de 1991. Os mega bombardeiros
americanos B52 lançaram cerca de 90 000 toneladas de bombas sobre
o Iraque, das quais pouco mais de 7000 eram armas teleguiadas.
Mais de 90% eram armas «cegas»! As ditas guerras limpas, sem
efeitos colate-rais, que poupam pessoas e bens civis, são
«fantasias tecnológi-cas»19 .
As destruições sem necessidade
militar
A destruição e a apropriação de
bens não justificadas por necessi-dades militares são
incriminadas pelas Convenções de Genebra 20 . Fala-mos da
destruição de bens mobiliários e imobiliários ou da
apropriação de bens (proibição da pilhagem) em poder do
inimigo, em território ocupado.
Esta interdição acresce à
proibição de atacar bens de carácter civil e, quanto a este
aspecto, o interesse militar deveria coincidir com os imperativos
humanitários, uma vez que existe perda de tempo e de material sem
vantagem operacional correspondente.
Os actos terroristas
Trata-se de actos ou ameaças de
violência que, sem apresentarem valor militar impor-tante, têm
por principal finalidade espalhar o terror entre a população
civil. A interdição
86 Direito Internacional umanitário
19 Delpech (Th.):«La guerre
parfaite »(em português:«A guerra perfeita »),Flammarion,1998,p.146.
20 Artigos 50.o CI e 50.o CII e
147.o CIV.O Protocolo II interdita apenas a pilhagem (artigo 4.o
§2,alínea g)
..diz
apenas respeito aos actos que provocam intencionalmente o ter-ror
entre a população civil 21 , excluindo outros actos de
violência tais como os bombardeamentos que podem igualmente ter
efeitos ater-rorizantes.
A tomada de reféns
A interdição, que incide sobre a
tomada de reféns por parte das auto-ridades do Estado
beligerante, e não pelos indivíduos, apresenta um carácter
absoluto e aplica-se a todas as pessoas protegidas,
inde-pendentemente do local e do tipo de conflito 22 . Num
conflito armado internacional, a tomada de reféns constitui uma
infracção grave.
As represálias armadas
Podem ser definidas como uma
infracção ao DIH em resposta a uma outra infracção a este
direito cometida pelo inimigo e com o objec-tivo de fazer cessar
esta última. Embora a maior parte dos Estados ocidentais as
defendam, a pretexto de que o direito de recorrer a repre-sálias
terá um efeito dissuasor sobre os beligerantes que se sintam
tentados a violar o Direito Humanitário, são contudo proibidas
pelo primeiro Protocolo 23 , confirmando e completando as normas
constantes das Convenções 24 . Mas trata-se de uma
interdição sectorial e não de uma interdição geral. Por outro
lado, por razões jurídicas e políticas, o princípio da
proibição das represálias não foi introdu-zido no âmbito dos
conflitos armados não internacionais, nem pelo artigo 3. o comum
ou pelo segundo Protocolo e apenas a interdição das punições
colectivas 25 equivale a proibir represálias contra as pes-soas
protegidas.
Num conflito armado internacional,
é também proibido atacar a título de represálias pessoas e
bens civis, feridos, doentes e náufragos, bens culturais e locais
de culto, bens indis-pensáveis à sobrevivência da população
civil, obras e instalações contendo forças perigosas
Métodos 87
21 Artigos 51.o §2 P I e 13.o §2
PII
22 Artigos 3.o comum,34.o CIV,75.o
, §2,alínea c)P I e 4.o §2 alínea c)P II.
23 Artigos 20.o e 51.o -56.o
24 Artigos 46.o CI,47.o CII,13.o
§3 CIII e 33.o §3 CIV.
25 Artigo 4.o §2 b)PII
..e o meio ambiente. De forma
correcta, o direito consuetodinário e a jurisprudência
internacional no caso Naulila 26 subordinam o exer-cício lícito
do direito de represália a determinadas condições: exis-tência
de uma violação prévia, proporcionalidade das represálias,
inutilidade das advertências, subsidiaridade das represálias.
Mas se o Direito Internacional Público não condena as
represálias, as coi-sas passam-se de forma diferente no campo de
aplicação do Direito Humanitário. Tal procedimento revela-se,
em primeiro lugar, arbi-trário e bárbaro, exterminando tanto
civis como combatentes ino-centes, punidos pelos erros dos seus
compatriotas; em segundo lugar, ineficaz, uma vez que é fonte de
ameaças e acusações, hipó-crita no fundo, porque as
represálias permitem a um beligerante escu-sar- se ao cumprimento
de uma norma de Direito Humanitário cujo respeito exige da parte
contrária.
Finalmente, o autor das
represálias comporta-se como o autor da violação inicial e o
que os distingue é apenas a «cronologia das violações»27 .
Em definitivo, apenas são
permitidas as retaliações que não implicam a violação do
direito, mas esta é, na prática, uma hipótese mera-mente
académica: apenas poderá abranger uma Parte num conflito armado
que tenha concedido um tratamento mais favorável do que o exigido
pelos textos e que, em retaliação, possa retirar tais
benefícios.
As precauções no ataque
Tanto no que diz respeito aos
procedimentos como aos ataques, o objectivo das diferentes
proibições consiste em garantir a imunidade das populações
civis. Em complemento, o primeiro Protocolo con-vida as Partes no
conflito a tomarem medidas de precaução. Estas dizem respeito,
por um lado, às precauções no ataque e, por outro, às
precauções contra os efeitos do mesmo.
As precauções a tomar pelo
atacante 28 obrigam os beligerantes a identificar o objectivo
mili-tar visado, a optar pelos métodos e meios de
88 Direito Internacional umanitário
26 Sentença arbitral de 31 de
Julho de 1928,R.S.A.,II,pp.1012 ss.
27 Vide Dadid
(E.),op.cit.,pág.335.
28 Artigo 57.o P I
. .combate capazes de
minimizar os danos colaterais sobre civis, a abs-ter-se – ou
interromper – um ataque que implique danos excessivos sobre
civis, a advertir na medida do possível a população no caso de
um ataque que a possa afectar e a optar pelo objectivo militar que
seja susceptível de afectar menos as pessoas e bens protegidos
para obter um resultado estratégico equivalente. A
identificação do objec-tivo militar, mais difícil nos ataques a
longa distância 29 , é indis-pensável, pois nada impede o
inimigo de camuflar os seus objectivos militares e de utilizar
engodos. Compreende-se, assim, que esta obrigação de identificar
os objectivos, cuja finalidade principal é de carácter
humanitário, associa-se ao interesse militar de não perder tempo
nem forças com alvos cuja destruição não trará qualquer
vantagem táctica. Estas precauções a tomar pelo atacante
reduzem-- se no essencial aos conceitos da proporcionalidade e do
mal menor, conceitos esses que visam encontrar o justo equilíbrio
entre as necessidades militares e os imperativos humanitários.
Este equilí-brio é difícil de atingir, pois os critérios da
proporcionalidade estão subordinados a interpretações muito
subjectivas 30 . Ainda assim, as precauções no ataque têm o
mérito de impor algumas restrições ao arbítrio.
Mas para a protecção geral
conferida aos civis, a par da obrigação negativa nas relações
entre adversários e populações civis, existe uma obrigação
positiva nas relações entre uma Parte e a sua própria
população. Com efeito, se o atacante tem de escolher o mal
menor, o atacado contribui para a imunidade da sua população
tomando três medidas de precau-ção 31 na defesa: deverá
esforçar-se por afastar as pessoas e bens de carácter civil da
proxi-midade dos objectivos militares, evitar colo-car objectivos
militares na proximidade de zonas fortemente povoadas e colocar à
dis-posição de tais pessoas abrigos eficazes con-tra os efeitos
das armas. Repare-se, contudo,
Métodos 89
29 Contudo possível através de
reconhecimentos aéreos e da acção dos serviços de
informação.
30 Recordemos que os
bombardeamentos de Hiroshima e Nagasaki tiveram por objectivo
obter a rendição do Japão ao menor custo …para os Aliados.
31 Artigo 58.o P I.Vide igualmente
artigos 12.o §4 P I (para as unidades sanitárias)e 56.o §5 P I
(para as obras e instalações que contenham forças perigosas)
..nas expressões limitativas da
obrigação («na medida do que for praticamente possível», «os
Estados esforçar-se-ão», «as precau-ções razoáveis»): cada
Estado é de facto livre de organizar a sua defesa nacional, e o
DIH apenas formula recomen-dações, sabendo que uma obrigação
imposta poderá não ser aplicada 32 .
Mesmo mencionando «as Partes no
conflito», este artigo refere medidas a adoptar pelos Estados em
tempo de paz.
32 Simples recomendação como
estas podem também ser encontradas relativamente às precauções
a tomar na condução das operações militares no mar e nos
ares,a fim de evitar a perda de vidas humanas entre a população
civil e danos nos bens de carácter civil (artigo 57.o §4 PI).
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