Combatentes
Certas
pessoas não podem ser implicadas nas
hostilidades, da mesma forma aliás que também
não podem nelas participar. As limitações rationae personae explicam-se
pelo facto de serem os Estados que fazem a guerra em função das suas necessidades
político-estratégicas e não as pessoas,
geral-mente vítimas dos seus
efeitos. Desta forma, só os
combatentes têm direito de atacar o inimigo
ou de lhe resistir; enquanto atacantes estão
submetidos a proibições e enquanto
vítimas de um ataque têm certas obrigações.
1.DEFINIÇÃO DOS
COMBATENTES
Noção
A definição
legal de combatentes é rela-tivamente recente.
Num primeiro tempo, as Convenções
de Genebra determinaram as categorias
de pessoas pertencentes a formações
armadas com direito de parti-cipar directamente
nas hostilidades e de combater, sendo
enunciadas seis categorias: os membros das forças
armadas de uma parte no conflito, incluindo as milícias e
os corpos de voluntários; os membros dos movimentos de
resistência que respeitam certas
condições (ter no seu comando uma
pessoa responsável, usar abertamente as armas, usar um sinal
distintivo fixo e identificável à distância, respeitar as leis e costumes da guerra nas suas operações);
os membros de uma força regular que
reclamam uma autoridade não reconhecida pela
Potência detentora; as pessoas que seguem as forças armadas sem delas fazerem directamente parte
(correspondentes de guerra, membros
civis da tripulação de aviões militares, entre outros);
os membros das tripulações da marinha mercante e da aviação
civil das partes no conflito; os indivíduos da população de um território não ocupado que se
levantam em massa para evitar o
avanço do inimigo e sob condição de usarem abertamente
as armas e respeitarem as leis e costumes da guerra.
O sistema
estabelecido no artigo 43. o do primeiro Protocolo já não
fixa a pertença a categorias de formações armadas como
condição sine qua non para a
atribuição do estatuto de combatente, mas
unicamente a pertença a «forças armadas», isto é a qualquer grupo ou unidade armada e organizada
colocada sob um comando responsável
pela conduta dos subordinados face a uma
parte no conflito. Doravante não mais existe uma distin-ção entre forças regulares e irregulares,
exércitos profissionais e milícias,
voluntários e movimentos de resistência. Existe um único
regime ligado à noção de forças armadas do qual qual-quer membro, excepção feita ao pessoal
sanitário e religioso, é um
combatente.
Contudo,
apesar de qualquer membro das forças armadas ser um combatente,
deverá respeitar duas obrigações 2 para não ser despro-vido do seu estatuto: ter um uniforme ou
sinal
distintivo e usar as armas abertamente.
54 Direito
Internacional umanitário
2 Salvo o
guerrilheiro.Vide infra..Extensões
Apesar de
terem sido feitas extensões a fim de permitir um acesso facilitado
ao estatuto de prisioneiro de guerra (nacionais neutros
incor-porados nas forças armadas,
pessoal militar da protecção civil), o esta-tuto de
combatente foi expressamente concedido pelo primeiro Protocolo
aos principais actores das guerras dos finais do século vinte:
o guerrilheiro e a
criança.
a)Guerrilheiros
O primeiro
Protocolo legitimou o guerrilheiro na sequência do pedido dos
Estados socialistas e do terceiro mundo, que reclamavam o
direito ao estatuto de prisioneiro de guerra em caso de captura
des-tes «combatentes da liberdade»,
que não usam uniforme nem sinal distintivo
e se misturam com os civis para surpreenderem o adver-sário. O guerrilheiro consiste hoje em dia num
combatente regular quando participa
num conflito armado internacional 4 . Apesar de não se
distinguir da população civil, conserva o seu estatuto de
comba-tente se usar abertamente as
armas durante cada ofensiva militar e durante
o tempo em que está exposto à vista do inimigo, enquanto participar
numa acção militar 5 .
b)Crianças
Estima-se
actualmente em mais de 200 000 o número de crianças menores
de 15 anos utilizadas como soldados (nas zonas de con-fli to, tais como a Etiópia, o Salvador, a
Nicarágua, o Camboja e o Ex-Zaire);
as crianças tornam-se soldados para obterem alimen-tação, por paixão ideológica ou fruto de
recrutamentos forçados.
As crianças
são recrutadas e doutrinadas para
caminharem sobre campos de minas, protegerem
os combatentes adultos com maior
experiência de segunda linha e alia-rem à
causa as famílias refractárias destes jovens
mártires 6 . As crianças soldados,
Combatentes 55
4 Artigo 44.o §3 P
I.
5 Veythey (Michaël):«Guérilla
et Droit humanitaire »,CICV,1983 (em português:«Guerrilha e Direito
Humanitário
»).
6 Brissot
(C.),Le Monde diplomatique,Janeiro
1986
..demasiado
felizes por serem úteis, mas inconscientes da sua uti-lização, tornam-se uma presa fácil para os agentes
responsáveis pelo recrutamento nos
exércitos em guerra. A participação de crianças
–
discípulos da guerra – nas hostilidades apresenta
evidente-mente um perigo mortal tanto
para as próprias crianças, como ainda para
as pessoas que se tornam alvos das suas ações irreflectidas.
Teria sido
irrealista adoptar uma proibição absoluta da participação de crianças em conflitos armados, já que
muitas delas participam nas guerras
do terceiro mundo. Igualmente, através das reservas colocadas
no artigo 77. o , n.o 2, do primeiro Protocolo, as crianças com idades compreendidas entre os 15 e os 18
anos, recrutadas pelas forças
armadas ou que participem num levantamento em massa,
têm a qualidade de combatentes 7 , beneficiando do estatuto de prisioneiro de guerra de pleno direito,
em caso de captura 8 .
Quando se
tratar de crianças menores de 15 anos, e apesar das regras do artigo 77. o do primeiro Protocolo, estas
terão igualmente a qualidade de
combatentes quando são recrutadas ou quando inte-gram voluntariamente
as forças armadas, e em caso de captura ser-- lhes-á
reconhecido o estatuto de prisioneiro de guerra. A idade consiste
neste contexto um factor que só poderá justificar um trata-mento
privilegiado.
No que
concerne esta questão, a Convenção das Nações Unidas sobre
os Direitos da Criança parece marcar uma regressão. Com efeito,
o artigo 38. o , n.o 2, in fine autoriza
por um lado implicitamente uma
participação indirecta de crianças menores de quinze anos nas hostilidades; por outro lado este artigo
comporta termos que vêm limi-tar o
alcance desta proibição («as medidas possíveis»). Na melhor das hipóteses são aqui retomadas as
disposições dos dois Protoco-los, e
no cenário mais negativo existe um risco
de enfraquecimento do DIH por dispo-sições ambíguas
e restritivas. A nova redacção destes
direitos não constituiu uma melho-ria, embora
seja verdade que a sua omissão
56 Direito
Internacional umanitário
7 Artigo 43.o
§2 do primeiro Protocolo e artigo
2.o do Regulamento relativo às leis e costumes da guerra de campanha
anexado
à Convenção da Haia de 8 de
Outubro de 1907.
8 Artigo 4.o -A §1
e 6 C II
I..numa
convenção sobre os direitos da criança equivaleria ao
esquecimento de que a criança
beneficia destes direitos 10 N.T . .
Exclusões
Há duas
categorias de pessoas que podem não ser consideradas como
combatentes legítimos: o espião e o mercenário.
a)Espiões
A procura de
informações sobre o inimigo não é proibida pelo DIH (nem
o é aliás em tempo de paz pelo Direito Internacional Público, desde que não haja uma violação de
soberania), no entanto os Esta-dos têm
a possibilidade de reprimir a espionagem em função da «qualidade»
de espião. Na hipótese de os espiões serem civis, é evi-dente que em caso de captura, não lhes será
reconhecido o esta-tuto de
prisioneiro de guerra, podendo estes ser detidos, processados e julgados desde que seja respeitado o
artigo 75. o do primeiro Pro-tocolo e,
nos casos dos artigos 64. o a 78. o da quarta Convenção, se a actividade de espionagem for cometida num
território ocupado.
Na hipótese
de o espião ser um combatente, agindo de uniforme ou
com uma indumentária que o distinga dos não combatentes, deve beneficiar do estatuto de prisioneiro de
guerra, sendo que quem age sem se
distin-guir dos não combatentes pode
ser tratado como espião, a menos que
seja somente cap-turado após ter
regressado às forças a que per-tencia
11 .
b)Mercenários
O mercenário
consiste numa pessoa que par-ticipa voluntariamente
e a troco de uma remuneração
pecuniária ao serviço de um Estado
do qual não é nacional. O artigo 47. o do
primeiro Protocolo avança, no entanto,
Combatentes 57
10 Encontra-se actualmente em preparação
um Protocolo Facultativo à
Convenção sobre os Direitos de
Criança (nomeadamente relativo a
crianças em situação de conflito armado),vide
capítulo 13 §1.
N.T .Os trabalhos de negociação do
Protocolo Facultativo à Convenção sobre
os Direitos da Criança chegaram
finalmente ao fim,tendo o
respectivo texto final sido aprovado pela
Assembleia Geral das Nações
Unidas a 25 de
Maio de 2000 por consenso.O
Protocolo encontra-se actualmente
aberto à assinatura e
ratificação pelos Estados Partes ou
signatários da Convenção sobre os
Direitos da Criança.
11 Artigos 29.o e 31.o do
Regulamento de Haia e 46.o §2 e 4 do
primeiro Protocolo
..uma
definição mais precisa (demasiado precisa?) do conceito.
Devem ser
preenchidas cumulativamente seis condições para que uma
pessoa seja qualificada como mercenário: ser especialmente recrutado para combater num conflito armado;
participar directa-mente nas
hostilidades com vista à obtenção de uma remuneração material
superior àquela que é prometida a um combatente de uma graduação
análoga; não ser nacional de uma das partes no conflito, nem
ser residente de um território ocupado; não ser membro das forças armadas de uma das partes no
conflito; e não ser enviado numa missão
oficial por um Estado terceiro 12 . Esta definição exclui os
mem-bros da Legião Estrangeira ou os
Gurkkas nepaleses, os instrutores ou
técnicos e os voluntários que participam num conflito por
moti-vos distintos do chamariz do
ganho. Nestas condições, o artigo 47. o prevê
que, em caso de captura, o mercenário não poderá invocar o seu estatuto de nacional neutro e não terá
direito ao estatuto de com-batente ou
de prisioneiro de guerra. O mercenário será assim pro-cessado e condenado unicamente pela sua
participação nas hostilidades 13 .
Desta forma,
só os combatentes definidos como tais podem legiti-mamente levar a cabo actos de violência de guerra,
existindo con-tudo outras
limitações rationae personae.
2.PROIBIÇÕES DO
ATACANTE
Estas proibições
podem ser resumidas de acordo com duas vertentes:
Proibição de
atacar pessoas que não combatem
É bastante
claro que qualquer guerra faz com que
a população civil corra perigo. O objec-tivo desta
regra consiste em reduzir ao máximo
os riscos quer através da proibição de ataques
contra a população civil e contra as pessoas
civis – individualmente considera-das –,
mesmo a título de represálias, quer de
58 Direito
Internacional umanitário
12 David
(E.):«Le mercenaire en droit
international »;Rev.belge dr. int,1977,p.197-238
(em português: «O mercenário em
Direito Internacional »).
13 Devemos
porém notar que a repressão
internacional do mercenariato
(estabelecida pela Convenção contra o Recrutamento,Utilização,
Financiamento
e Instrução de Mercenários,de 4 de
Dezembro de 1989)não é
incompatível com as regras mínimas
de protecção do mercenário
..actos ou
ameaças de violência cujo objectivo principal consiste em espalhar o terror no seio da população
civil 14 . Em resumo, a popu-lação civil
não deverá nunca constituir um objecto táctico, no entanto
a proibição de atacar civis 15 é alvo de duas excepções:
quando os
civis participam nas hostilidades e durante esta partici-pação, quando os civis são colocados ao lado de
objectivos militares com um pequeno
intervalo entre ambos e quando os danos colate-rais não
são demasiado excessivos em relação à vantagem militar
con-creta e directa esperada.
Esta
proibição de atacar aplica-se igualmente às pessoas que
asse-guram assistência médica,
sanitária, civil e religiosa às vítimas de conflitos
armados. A protecção destas pessoas, prevista originaria-mente pela Convenção de Genebra de 1864, foi
ampliada pelas Con-venções de 1949
e sobretudo pelo primeiro Protocolo que estendeu a
proibição de atacar em benefício do conjunto do pessoal militar
e civil especialmente afectado pelos
beligerantes a missões medicas, de
assistência religiosa e de protecção civil.
Proibição de
atacar as pessoas que já não combatem
Esta regra
encontra-se inscrita implicitamente nas três primeiras Convenções
de Genebra 16 quando se afirma que estas pessoas – feri-dos, doentes, náufragos e prisioneiros de guerra
– devem ser res-peitadas e
protegidas, não podendo ser objecto de ataques, já que o combatente
se torna uma vítima no momento em que é colocado fora de
combate ou quando se rende. Esta regra encontra igualmente um prolongamento na proibição da recusa de
quartel 17 .
3.OBRIGAÇÕES DA
VÍTIMA DE ATAQUE
São em
número de dois as obrigações da vítima
de ataque, que consistem nos corolá-rios da
protecção reconhecida ao não com-batente.
Combatentes 59
14 Artigo 51.o §1
–2 P I.
15 Turpin
(D.):«La protection de la population
civile contre les effets des hostilités
»,Etudes internationales, 1992,p.797-817
(em português: «A protecção da
população civil contra os efeitos
das hostilidades »).
16 Respectivamente
nos artigos
12.o /12.o e 13.o .
17 Vide
capítulo 9 §1..60 Direito
Internacional umanitário
Obrigação de não
utilização de não combatentes para fins militares
Trata-se aqui
da protecção de objectivos militares ou do favorecimento da
condução das hostilidades através da presença de não
comba-tentes 18 , havendo uma
condenação inequívoca da utilização dos escudos
humanos. Deve-se entender por não combatentes a popu-lação civil e as pessoas civis, os prisioneiros de
guerra e as pessoas protegidas pela
quarta Convenção. A este elenco de pessoas prote-gidas contra
os ataques dever-se-á acrescentar o pessoal sanitário,
reli-gioso e de protecção civil;
como contrapartida da imunidade que lhes é
concedida estas pessoas devem abster-se de qualquer acto hostil, de qualquer ingerência directa ou indirecta
nas operações militares.
Precauções contra
os efeitos dos ataques
As partes no
conflito devem esforçar-se por afastar as pessoas e os bens
civis dos locais de operações e dos objectivos militares e de
não colocar tais objectivos na
proximidade de zonas com uma forte con-centração civil
19 . Esta regra tem por objectivo a protecção da popu-lação civil dos países inimigos a partir de
medidas que cada beligerante deve
tomar no seu próprio território ou em território ocu-pado, a favor das pessoas que ali se encontram.
Além disso,
quando as posições de defesa da vítima de um ataque possam
afectar as pessoas civis, deve ser feito um aviso em tempo útil
e por meios eficazes se a situação táctica o permitir 20 . Esta
mesma preocupação explica igualmente a
regra de acordo com a qual os
movimentos das formações militares e o seu estacionamento devem ser feitos de preferência no exterior
de zonas habitadas, e no caso destas
formações se situarem no interior ou nas proximidades destas
zonas, devem actuar de forma a causar o menor perigo pos-sível às pessoas civis.
Esta
obrigação positiva da vítima de um ata-que corresponde
às precauções que devem ser encaradas
pelos dirigentes desde os tempos de
paz, quando são adoptadas medidas de
18 Artigo 51.o §7
P I.
19 Artigos 57.o e
58.o P I.
20 Artigo 57.o
§2,alínea c),P I
..organização
da defesa nacional: por exemplo, não construir uma caserna
ou um depósito de munições numa cidade, não colocar tro-pas ou meios de transporte militar em zonas
altamente populosas, construir
abrigos eficazes contra os efeitos dos bombardeamentos ou organizar
serviços de protecção civil.
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