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A Carta Africana dos Direitos do Homem e dos Povos

* A versão da Carta Africana dos Direitos do Homem e dos Povos foi publicada em português na colectânea do Prof. Jorge Miranda, intitulada Direitos do Homem ­ Principais Textos Interna- cionais, 2.ª ed., Lisboa, Petrony, 1989, pág. 299 e seguintes. Neste trabalho é apenas feita a descrição dos direitos enunciados na Carta Africana, faltando a apreciação dos trabalhos da Comissão Africana dos Direitos do Homem e dos Povos nela insti- tuída, a qual já produziu alguns relatórios e decisões. Dada a falta de informação em língua portuguesa relativamente à Carta (da qual são parte os cinco Estados africanos lusófonos), optá- mos, numa primeira fase, por "apresentar" o seu catálogo de direitos, deixando para momento posterior a análise da actividade da Comissão

INTRODUÇÃO


A protecção dos direitos do homem no continente africano decorre de
circunstâncias históricas específicas, relacionadas com a descolonização e o
direito à autodeterminação dos povos, que dominaram os trabalhos da Organização de Unidade Africana, desde 1963 (data da sua criação) até ao final da década de 70. Com efeito,?????? a questão dos direitos do homem apenas surge formalmente no Preâmbulo da Carta da OUA, nas referências à adesão aos princípios da Declaração Universal dos Direitos do Homem, ao direito dos povos a disporem do seu próprio destino, bem como a cooperação em matéria de respeito pelos direitos do homem. Tratava-se de uma abordagem "avara" 1 e "tímida" 2 , que resultava mais da interpretação dos seus princípios gerais do que da letra do respectivo articulado.

Após o processo de independência dos Estados africanos, foi adoptada pela Conferência dos Chefes de Estado e de Governo da OUA, em 28 de Junho de 1981, em Nairobi, a Carta Africana dos Direitos do Homem e dos Povos, também conhecida como Carta de Banjul. Entrou em vigor em 1986 1 M'Baye, Kéba ­ "A Organização de Unidade Africana", in
As Dimensões Internacionais dos
Direitos do Homem
, Manual Unesco, Lisboa, 1983, págs. 615 a 633. Ainda em língua portuguesa,
vide Gonçalves Pereira / Quadros, Fausto de ­
Manual de Direito Internacional Público
, 3.ª ed.,
Coimbra, 1994, págs. 641 e seguintes.
2
Ndiaye, Birame ­ "Lugar dos Direitos do Homem na Carta da Organização de Unidade Africana",
in
As Dimensões Internacionais dos Direitos do Homem,
Manual Unesco, Lisboa, 1983,
págs. 633 a 648.

 

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P??????l??age 1
MARIA JOSÉ MORAIS PIRES
Mestre em Direito Público
Conselheira de Embaixada
CARTA AFRICANA
DOS DIREITOS HUMANOS E DOS POVOS
*
* A versão da Carta Africana dos Direitos do Homem e dos Povos foi publicada em português na
colectânea do Prof. Jorge Miranda, intitulada
Direitos do Homem ­ Principais Textos Interna-
cionais,
2.ª ed., Lisboa, Petrony, 1989, pág. 299 e seguintes.
Neste trabalho é apenas feita a descrição dos direitos enunciados na Carta Africana, faltando a
apreciação dos trabalhos da Comissão Africana dos Direitos do Homem e dos Povos nela insti-
tuída, a qual já produziu alguns relatórios e decisões. Dada a falta de informação em língua
portuguesa relativamente à Carta (da qual são parte os cinco Estados africanos lusófonos), optá-
mos, numa primeira fase, por "apresentar" o seu catálogo de direitos, deixando para momento
posterior a análise da actividade da Comissão.

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INTRODUÇÃO
A protecção dos direitos do homem no continente africano decorre de
circunstâncias históricas específicas, relacionadas com a descolonização e o
??????l?? direito à autodeterminação dos povos, que dominaram os trabalhos da Organi-
zação de Unidade Africana, desde 1963 (data da sua criação) até ao final da
década de 70. Com efeito, a questão dos direitos do homem apenas surge
formalmente no Preâmbulo da Carta da OUA, nas referências à adesão aos
princípios da Declaração Universal dos Direitos do Homem, ao direito dos
povos a disporem do seu próprio destino, bem como a cooperação em matéria
de respeito pelos direitos do homem. Tratava-se de uma abordagem "avara"
1
e "tímida"
2
, que resultava mais da interpretação dos seus princípios gerais do
que da letra do respectivo articulado.
Após o processo de independência dos Estados africanos, foi adoptada
pela Conferência dos Chefes de Estado e de Governo da OUA, em 28 de
Junho de 1981, em Nairobi, a Carta Africana dos Direitos do Homem e dos
Povos, também conhecida como Carta de Banjul. Entrou em vigor em 1986
1
M'Baye, Kéba ­ "A Organização de Unidade Africana", in
As Dimensões Internacionais dos
Direitos do Homem
, Manual Unesco, Lisboa, 1983, págs. 615 a 633. Ainda em língua portuguesa,
vide Gonçalves Pereira / Quadros, Fausto de ­
Manual de Direito Internacional Público
, 3.ª ed.,
Coimbra, 1994, págs. 641 e seguintes.
2
Ndiaye, Birame ­ "Lugar dos Direitos do Homem na Carta da ??????>??´p?? Organização de Unidade Africana",
in
As Dimensões Internacionais dos Direitos do Homem,
Manual Unesco, Lisboa, 1983,
págs. 633 a 648.

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e está actualmente ratificada pela maioria dos Estados membros da OUA
3
com excepção da Etiópia e da Eritreia.
A Carta Africana constitui naturalmente um contributo importante para
o desenvolvimento do direito regional africano e preenche uma lacuna em
matéria de protecção dos direitos do homem. Trata-se de um progresso signi-
ficativo, resultante de um compromisso entre as concepções políticas e jurí-
dicas opostas, que veio trazer ao direito internacional dos direitos do homem a
consagração de uma relação dialéctica entre direitos e deveres, por um lado,
e a enunciação tanto de direitos do homem como de direitos dos povos, por
outro. As tradições históricas e os valores da civilização africana influenciaram
os Estados autores da Carta, a qual traduz, pelo menos no plano dos princípios,
uma especificidade africana do significado dos direitos do homem.
Uma outra inovação que merece relevo, consubstancia-se na ausência
de distinção entre direitos civis e políticos, por um lado, e direitos sociais
e económicos por outro, o que constitui aliás a consagração da mais recente
doutrina do direito internacional dos direitos do homem
4
. A Carta não distingue
a natureza dos direitos, atribui-lhes igual força jurídica e submete-os todos
à "jurisdição", ou melhor, ao controlo da Comissão Africana dos Direitos do
Homem. Assim, em teoria, a Comissão poderá ser chamada a apreciar a acti-
vidade dos Estados em matéria de acções destinadas a assegurar o exercício
dos direitos económicos e sociais.
A enunciação dos deveres revela-se também uma das originalidades da
Carta de Banjul. A referência aos deveres tinha já surgido num instrumento
jurídico não vinculativo ­ a Declaração Americana dos Direitos e Deveres do
Homem de 1948 ­ mas a Carta Africana revela-se o único tratado relativo
a direitos do homem que consagra, de forma desenvolvida, a noção de
deveres individuais não só em relação ao próximo, mas também em função da
comunidade, na linha da tradição africana. Este entendimento constitui uma
3
Em Setembro de 1999, eram os seguintes os Estados partes na
Carta Africana dos Direitos do
Homem e dos Povos
: África do Sul, Angola, Argélia, Benin, Botswana, Burkina Faso, Burundi,
Camarões, Cabo Verde, Chade, Comores, Congo, Costa do Marfim, Djibouti, Egipto, Gabão,
Gâmbia, Ghana, Guiné, Guiné-Bissau, Guiné Equatorial, Lesoto, Libéria, Líbia, Madagáscar, Malawi,
Mali, Mauritânia, Maurícias, Moçambique, Namíbia, Niger, Nigéria, Quénia, República Centro
Africana, República Democrática do Congo, República Árabe Sarawi, Ruanda, São Tomé e Prín-
cipe, Senegal, Serra Leoa, Seychelles, Somália, Sudão, Suazilândia, Tanzânia, Togo, Tunísia, Uganda,
Zâmbia, Zimbawe.
O Reino de Marrocos retirou-se da OUA em 1984, após o reconhecimento da República Árabe
Sarawi.
4
Pellonpää, Matti ­ "Economic, Social and Cultural Rights" in
The European System for the
Protection of Human Rights
, R. St. J. Macdonald, (eds.), Dordrecht, 1993, págs. 855-874.

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"ruptura"
5
com a concepção ocidental dos direitos do homem, que considera à
luz da doutrina positivista, a dialéctica direito-dever essencialmente baseada no
direito como um conjunto de prerrogativas, que originam por reciprocidade um
feixe de deveres ou obrigações. A "autonomização" dos deveres altera a natu-
reza deste conceito, embora não seja possível afirmar que a Carta estabelece
uma relação hierárquica entre direitos e deveres, nem tão-pouco uma prece-
dência dos direitos sobre os deveres. Determina apenas ­ com alguma impre-
cisão ­ o conteúdo dos deveres, bem como os seus beneficiários. Com efeito,
a Carta impõe várias obrigações ao indivíduo em relação à comunidade, as
quais não decorrem de um "direito subjectivo", no sentido kelseniano, pois
constituem verdadeiras obrigações autónomas, sem paralelo em outros instru-
mentos de direito internacional de direitos do homem.
Para além das inovações trazidas pela Carta Africana, importa ainda
assinalar algumas lacunas de natureza técnico-jurídica, do seu articulado.
Assim, a definição imprecisa dos direitos e a sua enunciação de forma ambígua
e insuficiente, bem como a ausência de limitações específicas, ou melhor, a
formulação de limitações que protegem o Estado, em detrimento do indivíduo,
reduzem o conteúdo dos direitos, por vezes abaixo do nível mínimo exigido pelo
direito internacional dos direitos do homem
6
. É certo, que no artigo 27.º, n.º 2,
surge, incluída no capítulo dos deveres, o que se poderá designar de "cláusula
geral de limitação"
7
, aplicável genericamente a todos os direitos. Assim, os
direitos e liberdades exercem-se no "respeito dos direitos de outrem, da segu-
rança colectiva, da moral e do interesse comum". Para além de uma objecção
de natureza sistemática ­ a sua inclusão no capítulo dos deveres ­ a imprecisão
dos conceitos, deixa ao Estado uma larguíssima margem de apreciação, dado
que será sempre possível encontrar um fim legítimo para justificar uma
ingerência nos direitos e liberdades dos indivíduos. Caberá naturalmente à
Comissão delimitar com rigor a aplicação desta norma, de forma a evitar inter-
pretações distorcidas daquele preceito.
Ao contrário das Convenções europeia e americana, a Carta de Banjul
omite uma cláusula derrogatória de certos direitos em situações de excepção,
facto que pode levantar problemas de ordem prática, mas pode também ser
5
Matringe, Jean ­
Tradition et Modernité dans la Charte Africaine des Droits de l'Homme et des
Peuples,
Bruxelas, 1996, pág. 43.
6
Idem,
pág. 40.
7
Kastanas, Elias ­
Unité et diversité: notions autonomes et marge d'appréciation des Etats dans la
jurisprudence de la Cour européenne des droits de l'homme,
Bruxelas, 1996, pág. 70 e seguinte.

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interpretado no sentido de um reforço de protecção dos direitos, que serão
todos inderrogáveis, mesmo em casos excepcionais
8
.
A ausência de uma cláusula de reservas constituiu também uma deficiên-
cia técnica da Carta Africana. Assim, ao aceitar implicitamente o regime das
reservas previsto na Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados, ou seja
ao deixar ao critério dos Estados, através de objecções às reservas, a aprecia-
ção da sua compatibilidade com o objecto e o fim da Carta, os seus autores
optaram implicitamente por uma solução que nos parece pouco compatível com
a efectiva protecção dos direitos nela enunciados
9
. Na realidade, apenas a
Zâmbia e o Egipto formularam reservas, sendo a primeira relativa à liber-
dade de circulação, restringindo-a a locais públicos. As reservas egípcias
referem-se à liberdade religiosa e aos direitos das mulheres, as quais estarão
sujeitas à lei islâmica, o que levanta sérias dúvidas de compatibilidade com
o próprio direito internacional.
A questão da garantia dos direitos e deveres enunciados na Carta afigu-
ra-se talvez o problema juridicamente mais complexo. Com efeito, institui-se
um órgão de tutela ­ a Comissão Africana dos Direitos do Homem ­ para
"promover os direitos do homem e assegurar a sua protecção em África",
como refere o artigo 30.º da Carta. A delimitação da competência da Comissão
inscrita no artigo 45.º permite-lhe organizar actividades destinadas a promover
os direitos do homem, bem como emitir pareceres ou recomendações aos
governos; tem ainda competência para interpretar todas as disposições da
Carta, e executar as tarefas solicitadas pela Conferência dos Chefes de Estado
e de Governo da OUA. O artigo 47.º prevê a apreciação das "comunicações"
apresentadas por um Estado parte contra outro Estado parte, à semelhança do
disposto no artigo 24.º da Convenção europeia. As "outras comunicações"
podem ser apresentadas por outras entidades que não os Estados partes, de
acordo com o artigo 55.º e seguintes. Esta indefinição da competência
rationae
personae
relativa ao requerente, não torna clara a aceitação de petições indi-
viduais, remetendo-se para a Comissão a decisão sobre o preenchimento dessa
lacuna
10
que alguns autores consideram não estar prevista no seu articulado
11
.
8
Gerin, Guido ­ "Présentation" in
La Charte Africaine des Droits de l'Homme et des Peuples ­
Actes du Colloque de Trieste, 30-31 de Outubro de 1987,
1990, págs. 12 e 13.
9
Morais Pires, Maria José ­
As reservas à Convenção Europeia dos Direitos do Homem
, Coimbra,
1997, págs. 103 e 104.
10
Mbaye, Kéba ­ "Les droits protégés et les procédures prévues par la Charte africaine des droits de
l'homme et des peuples" in
La Charte Africaine des Droits de l'Homme et des Peuples ­ Actes du
Colloque de Triestre, 30-31 de Outubro de 1987,
1990, pág. 53.
11
Miranda, Jorge ­
Manual de Direito Constitucional
, tomo IV, 1.ª ed., Coimbra, 1988, pág. 217.

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Outros interpretam a Carta no sentido da admissibilidade das comunicações
apresentadas por indivíduos, grupos de pessoas ou organizações
12
, conforta-
dos aliás pelo entendimento da própria Comissão africana, até ao final de
1996, apreciou 72 comunicações individuais, das quais 50 foram declaradas
inadmissíveis e 12 admissíveis
13
. As "outras comunicações" estão no entanto
sujeitas à conjugação de sete condições descritas no artigo 56.º da Carta, entre
as quais figura o clássico princípio da exaustão dos meios internos, como
princípio geral de direito internacional
14
. As outras condições para apresenta-
ção de comunicações revelam-se, em parte semelhantes a outros instrumentos
de direito internacional, salvo no que toca à condição de "compatibilidade" com
a Carta da OUA, que poderá restringir drasticamente a admissibilidade
das petições.
A actividade da Comissão, para além da escolha dos seus membros, está
sujeita à fiscalização da Conferência de Chefes de Estado e de Governo da
OUA, que deverá apreciar as recomendações que a Comissão entende dirigir
aos Estados e ainda autorizar os estudos sobre graves violações de direitos do
homem. A Comissão pode ainda mandatar "relatores especiais" para estudar
temas concretos, como foi o caso das condições nas prisões em África e dos
direitos das mulheres. Assim, o órgão supremo da OUA, de natureza
intergovernamental detém um papel fundamental no mecanismo de protecção
da Carta Africana. No entanto, como os seus próprios autores reconheceram,
entre os quais o juiz Mbaye, as dificuldades dos Estados africanos apenas per-
mitiram aceitar o actual conteúdo da Carta
15
, estando naturalmente em aberto
a possibilidade de se alterar o seu mecanismo de controlo.
Nesse sentido reuniu-se em 1995, um grupo de peritos governamentais,
mandatados pela Cimeira da OUA, que preparou um Projecto de Protocolo
que cria um Tribunal Africano de Direitos do Homem e dos Povos, com vista
a tornar vinculativas as "recomendações" da Comissão. O Protocolo foi apro-
vado e aberto à assinatura em Junho de 1998 e assinado por alguns Estados
membros da OUA, tendo sido já ratificado pelo Burkina Faso e o Senegal
(Dezembro de 1999).
12
Gerin,
op. cit.,
pág. 14.
13
Viljoen, Frans ­ "Review of African Commission on Human Rights and Peoples' Rights: 21
October 1986 to 1 January 1997" in Christof Heyns (ed.)
Human Rights in Africa 1997
, Hais,
1998.
14
Para o estudo do fundamento jurídico deste princípio, vide em língua portuguesa: Quadros, Fausto
­ "O Princípio da exaustão dos meios internos na Convenção Europeia dos Direitos do Homem e a ordem jurídica portuguesa" in
Revista da Ordem dos Advogados,
ano 50, I, Lisboa, Abril,
1990, págs. 119-157.
15
V. Rapport du rapporteur, Doc. OUA CAB/LEG/67/3, Draft-Rpt (II) 1, pág. 4, § 13.

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1. Os direitos protegidos
Ao longo do catálogo dos direitos inscritos na Carta Africana transparece
a influência da Declaração Universal dos Direitos do Homem. Sem entrar aqui
no debate da sua obrigatoriedade, cabe notar que a técnica jurídica usada, ou
seja uma enunciação declarativa, sem excessivas preocupações de limitações
e garantias, afigura-se análoga ao texto de 1948. Por outro lado, como é conhe-
cido, o sistema dos Pactos das Nações Unidas, prevê dois regimes diferencia-
dos consoante a natureza dos direitos, designadamente nos meios de garantia,
sendo que o Pacto relativo aos Direitos Económicos, Sociais e Culturais apenas
exige uma execução progressiva das acções necessárias ao exercício dos
direitos e o Pacto dos Direitos Civis e Políticos está submetido ao controlo de
um órgão para-jurisdicional, o Comité dos Direitos do Homem.
Neste contexto, na Carta de Banjul, a indistinção entre os direitos civis
e políticos de natureza perceptiva e os direitos económicos e sociais de natu-
reza programática
16
, tanto no que se refere à sistemática, como no respeitante
à sujeição à competência da Comissão, revela-se assim muito inovadora. Esta
identidade de regimes parece implicar que os Estados partes pretendem asse-
gurar de imediato o exercício de todos os direitos previstos na Carta e, em
última análise, sujeitam os Estados à respectiva apreciação pela Comissão.
A concepção individualista dos direitos do homem está naturalmente
presente na letra e no espírito das normas da Carta de Banjul, em parte por
influência da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, apesar da tradição
social africana incluir o indivíduo no grupo, num conjunto de relações familiares
e étnicas
17
. Por outro lado, a própria ideia de abstenção do Estado inerente
aos chamados direitos da "primeira geração" está hoje completamente ultra-
passada, tanto pela doutrina como pela jurisprudência. A exigência de acções
do Estado, tanto se verifica nos chamados direitos da "primeira" como da
"segunda geração", o que aliás decorre do espírito da Carta Africana. Os seus
autores quiseram claramente ultrapassar a dialéctica marxista, que rejeita os
direitos da "primeira geração", para impor uma relação de interdependência
e igualdade entre todos os direitos.
Uma observação que pode desde já ser feita à generalidade dos direitos
refere-se às cláusulas de limitações, as quais se revelam imprecisa, reme-
16
A distinção está longamente estudada na doutrina portuguesa: Miranda, Jorge ­
Manual de Direito
Constitucional
, tomo IV, 2.ª ed., Coimbra, 1993, pág. 92 e segs.; Gomes Canotilho, J. J. ­
Manual
de Direito Constitucional,
Coimbra, 1991, págs. 537 e 538.
17
Sudre, Frédéric ­
Droit international et européen des droits de l'homme,
Paris, 1989, pág. 82.

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tendo em alguns casos os limites dos direitos para a "lei", sem que se defina
o que se entende por lei. Ora, em regimes de partido único, afigura-se-nos que
a lei não tende a proteger os direitos e liberdades dos cidadãos, mas sim o poder
do Estado e das autoridades públicas. A ausência de cláusulas limitativas do
tipo europeu, como sejam as limitações necessárias a uma "sociedade demo-
crática" não se encontram nas disposições da Carta de Banjul.
Cabe ainda referir brevemente, os princípios gerais de igualdade e não
discriminação que se encontram inscritos nos artigos 2.º e 3.º da Carta
Africana, os quais, à semelhança dos Pactos e da Convenção Europeia, não
são disposições autónomas, só podendo ser invocadas em conjunto com a apli-
cação de um direito protegido no texto.
Apesar do Preâmbulo da Carta os considerar "indissociáveis", por razões
de ordem sistemática, distinguimos os direitos civis e políticos dos direitos
económicos e sociais, de forma a tornar mais clara a análise dos direitos.
1.1. Direitos civis e políticos
O catálogo dos chamados direitos da "primeira geração", inspirado na
Declaração Universal dos Direitos do Homem e na Convenção Europeia, está
descrito nos artigos 4.º a 14.º da Carta de Banjul.
Os artigos 4.º e 5.º protegem a integridade e dignidade humanas, embora
sem tomar posição explícita sobre a pena de morte
18
, nem definir a noção de
vida. Refere-se apenas que ninguém pode ser "arbitrariamente" privado do
direito à vida, sem delimitar com rigor o sentido do termo, o qual tanto pode
significar ilegalidade, como oportunidade por oposição a necessidade
19
. Rela-
tivamente à integridade física, a Carta parece proibir práticas tradicionais afri-
canas como por exemplo a excisão, pois tanto na letra, como no espírito do
Preâmbulo (§ 5) e articulado (artigo 61.º), prevalece o direito individual. No que
se refere à dignidade humana, a Carta, apesar de proibir a tortura e os trata-
mentos degradantes, bem como a escravatura, prevê no seu artigo 29.º o dever
de "servir a sua comunidade nacional" (n.º 2) e de "trabalhar na medida das
suas capacidades" (n.º 6). Esta contradição revela-se tanto mais grave quanto
a Carta não proíbe expressamente o chamado trabalho forçado.
O direito à liberdade e à segurança encontra-se enunciado no artigo 6.º de
modo algo simplista e sem menção às garantias dos detidos, facto que em
18
Note-se que
todas
as Constituições dos Estados Africanos de língua portuguesa proíbem expressa-
mente a pena de morte.
19
Matringe,
op. cit.,
pág. 35 e seguintes.

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sistemas penais pouco desenvolvidos, não permite proteger os indivíduos de
detenções sem motivo e indefinidas no tempo. O citado artigo refere apenas o
princípio da legalidade das penas, sem indicação de limitações, ao contrário do
previsto no Pacto dos Direitos Civis e Políticos das Nações Unidas. Na mesma
linha está o artigo 7.º relativo à administração da justiça, que consagra o direito
de acesso aos tribunais, a presunção de inocência, o direito à defesa, o direito
a ser julgado num prazo razoável, bem como o princípio da irretroactividade
da lei penal.
As liberdades de consciência e de profissão e prática religiosa previstas
no artigo 8.º estão consagradas de forma algo "lacónica"
20
, pois a Carta Africana apenas prevê uma reserva de ordem pública para eventualmente os Esta-
dos limitarem estas liberdades. Esta restrição revela-se ambígua e de larga
amplitude para o legislador dos Estados partes, dada a diferença das versões
francesa e inglesa. Esta última refere que as medidas restritivas estão
subject
to law and order,
sendo que o texto francês cita a
ordre public,
o que
dificulta a interpretação do preceito
21
, sujeitando as restrições a um vago
princípio da legalidade. Por outro lado, ao contrário do Pacto dos Direitos
Civis e Políticos, a possibilidade de mudar de religião está omitida no articu-
lado, facto que nas circunstâncias específicas do continente africano, não se
afigura muito benéfico ou protector dos direitos dos indivíduos.
O direito à informação e a liberdade de expressão estão contemplados no
artigo 9.º, de modo sucinto e sem limitações precisas, apenas enquadrados pelo
âmbito das "leis e regulamentos" citados no n.º 2 do mesmo artigo. Não se
referem os elementos constitutivos da liberdade de expressão, como sejam a
liberdade de procurar, difundir e receber livremente informações ou ideias,
escritas, orais ou por imagem, nem tão-pouco se faz referência à comunicação
social, liberdade distinta mas conexa com a liberdade de expressão
22
. Ora,
a liberdade de expressão revela-se um dos fundamentos essenciais de uma
sociedade democrática, susceptível de favorecer o multipartidarismo. No
entanto, o seu exercício facilmente colide com outros direitos e liberdades,
pelo que se torna necessário prever os seus limites com rigor.
O artigo 10.º enuncia o direito à liberdade de associação, bem como o
direito de recusar a dela fazer parte, de forma igualmente insuficiente, devido
20
Matringe,
op. cit.,
pág. 32.
21
É notória a dificuldade em transpor o conceito de "ordem pública" do direito continental,
v.g
. português e francês, para o direito anglo-saxónico, no qual
public order
respeita apenas à
segurança pública. Esta última não parece ser o sentido da norma da Carta Africana, dado que na
versão inglesa se refere a lei e a ordem.
22
Vide
na doutrina portuguesa, Miranda, J.,
op. cit.,
pág. 399 e seguintes.

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à falta de definição do conteúdo do direito e à imprecisão da cláusula de limita-
ção. Esta última remete simplesmente para a lei, acrescida da remissão para o
artigo 29.º da própria Carta, que enuncia deveres, entre os quais o dever de
solidariedade social e nacional, sobretudo quando elas estejam ameaçadas
(n.º 4). Naturalmente, que estas limitações diminuem fortemente o âmbito do
direito supostamente protegido, pois sugerem mesmo uma relação conflituosa
entre direito e dever, atribuindo ao Estado uma larga margem de apreciação
para restringir o direito em causa.
A liberdade de reunião surge consagrada no artigo 11.º, mas as restrições,
para além de estarem limitadas pela lei e regulamentos, devem ainda respeitar
a segurança nacional, a segurança dos outros, a saúde, a moral e os direitos
e liberdades das pessoas. Estas limitações draconianas tornam difícil deter-
minar o conteúdo do direito.
A liberdade de circulação enunciada no artigo 12.º traduz o artigo análogo
do Pacto dos Direitos Civis e Políticos, mas acrescenta-lhe um direito até aí
inédito no direito internacional dos direitos do homem ­ o direito ao asilo ­
que no continente africano assume particular importância, atendendo ao número
de conflitos armados que obrigam as populações a fugir dos seus países de
origem. No entanto, o n.º 3 do citado artigo limita drasticamente o âmbito deste
direito ao remeter para as legislações nacionais a aceitação do pedido de asilo,
bem como ao impor restrições relativas a segurança nacional, ordem pública,
saúde e moral públicas. O n.º 5 do mesmo artigo 12.º proíbe ainda a expulsão
colectiva de estrangeiros, para além de proceder à sua definição expressa,
técnica pouco usada no articulado da Carta.
Um outro direito inovador surge inscrito no artigo 13.º da Carta, o qual
consagra o direito da livre participação na direcção dos negócios públicos, acres-
cida do direito ao igual acesso aos bens e serviços públicos. A doutrina especia-
lizada considera que este direito traduz apenas uma obrigação de abstenção do
Estado, no sentido de não discriminar os cidadãos utentes dos seus bens e
serviços
23
. No contexto africano, tal interpretação afigura-se decerto a mais
adequada, sendo por isso uma variante do princípio da igualdade enunciado
no artigo 3.º
Finalmente, o direito de propriedade está consagrado no artigo 14.º, em
termos semelhantes à Convenção americana e ao Protocolo Adicional à
Convenção Europeia. Atendendo à sua omissão nos Pactos das Nações
Unidas, bem como à realidade africana tradicional, onde a noção de proprie-
23
Ouguergouz, M. ­
La Charte Africaine des Droits de l'Homme et des Peuples; une approche
juridique entre tradition et modernité
, Paris, 1993, pág. 122.

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344
dade privada era algo diferente da europeia, parece-nos inovadora e positiva
a consagração deste direito, que existe na realidade africana actual, herdado da
época colonial e decorrente das modernas relações económicas. No entanto,
alguma ambiguidade na sua definição surge agravada pela aceitação de possí-
veis restrições impostas pela lei, pela "necessidade pública" e pelo "interesse
geral da colectividade", sem referir expressamente a propriedade privada.
Alguns autores consideram-na resultante da conjugação das convenções
europeia e americana com as Resoluções da Assembleia Geral das Nações
Unidas, quando conjugado com o direito ao desenvolvimento e o direito dos
povos a disporem dos seus recursos naturais, designadamente no que diz
respeito à "soberania permanente sobre os recursos naturais"
24
. Assim, este
reconhecimento do direito de propriedade ao indivíduo parece-nos uma base de
trabalho, para a Comissão desenvolver na sua actividade futura.
1.2. Direitos económicos e sociais
Como acima referimos, a ausência de distinção entre os direitos e liber-
dades por um lado e direitos económicos e sociais por outro, revela-se uma das
mais interessantes inovações da Carta Africana. Assim, os escassos direitos
económicos, sociais e culturais surgem descritos nos artigos 15.º a 18.º de
forma sucinta.
O direito a trabalhar em condições justas e satisfatórias, bem como a
receber salário igual para trabalho igual, citado no artigo 15.º está apresentado
de forma lacónica e imprecisa
25
. Não é claro que o indivíduo beneficie de um
direito a um trabalho garantido e em condições de igualdade, higiene e segu-
rança à semelhança do Pacto dos Direitos Económicos Sociais e Culturais das
Nações Unidas.
Pelo contrário, o reconhecimento do direito à saúde no artigo 16.º impõe
aos Estados medidas necessárias à protecção da saúde das suas populações,
bem como assegurar a assistência médica em caso de doença. Trata-se de
uma inovação muito positiva, cujo âmbito mais político-declarativo, do que jurí-
dico, poderá no entanto ter influência benéfica nas medidas legislativas dos
Estados partes.
O direito à educação, o direito a participar na vida cultural no respeito
e promoção dos valores tradicionais da comunidade inscritos no artigo 17.º não
24
Quadros, Fausto de ­
A Protecção da Propriedade Privada pelo Direito Internacional Público,
Coimbra, 1998, pág. 170 e seguintes.
25
Matringe,
op. cit.,
págs. 30 e 31.

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impõem directamente obrigações aos Estados, nem permitem aos cidadãos exigir
acções das autoridades públicas para assegurar o seu exercício.
Finalmente, o artigo 18.º visa proteger a família, a mulher, a criança,
os idosos e os deficientes. As garantias visam não só a "discriminação posi-
tiva"
26
, mas também impõem obrigações ao Estado, apesar dos termos
genéricos e imprecisos.
2. Deveres enunciados
A consagração de deveres do indivíduo revela-se igualmente uma impor-
tante inovação da Carta de Banjul, sobretudo pela forma pormenorizada como
são descritos, ao arrepio da pura ortodoxia da doutrina dos direitos do homem,
que visa proteger os direitos e liberdades do indivíduo face ao Estado, sem
impor deveres. Com efeito, a Carta Africana vai para além da concepção indi-
vidualista dos direitos do homem, que aliás tinha já sido ultrapassada através
dos direitos económicos e sociais. A referência aos deveres surge em comple-
mento dos direitos, mas a sua enumeração apresenta-se em termos vagos, que
não nos parece possam ferir demasiado a protecção dos direitos do indivíduo.
Por outro lado, a sociedade africana tradicional assenta numa base comunitária
e não individualista, na qual o indivíduo tem alguns direitos, mas tem sobretudo
deveres em relação à família e à comunidade. Ao consagrar estas duas con-
cepções e considerando os deveres complementares dos direitos
27
, os quais já
existem implicitamente na dialéctica dos direitos do homem, a Carta vem
inovar o direito internacional dos direitos do homem ao criar normas jurídicas
positivas em matéria de deveres, dirigidas aos indivíduos.
Em termos concretos, os deveres visam em primeiro lugar a família
(artigo 27.º, n.º 1). Trata-se de uma obrigação moral, de conteúdo jurídico limi-
tado, pelas inerentes dificuldades de fiscalização e garantia. O dever de
alimentação e assistência aos ascendentes previsto no artigo 29.º, n.º 1, existe
na generalidade das ordens jurídicas. Assim, no que diz respeito à família, o
texto da Carta não se afigura muito inovador.
No que toca aos deveres com o próximo, ou melhor o respeito dos direitos
de outrem (artigos 27.º, n.º 2, e 28.º), afigura-se segundo alguma doutrina,
26
Morais Pires, Maria José ­ "A `Discriminação Positiva' no Direito Internacional e Europeu dos
Direitos do Homem" in
Boletim de Documentação e Direito Comparado ­
Procuradoria-Geral da
República, Lisboa, 1995, págs. 23 e 24.
27
Oppenheim's ­
International Law
­, 9.ª ed., vol. I, parte 2 a 4, Londres, 1992, pág. 1030.

--------------------------------------------------------------------------------
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algo "perigoso"
28
, pois poderá em teoria conduzir a situações de negação de
direitos individuais. Para outros autores, a norma do artigo 27.º, n.º 2, revela-se
uma cláusula geral de limitação de direitos
29
, como já atrás analisámos a pro-
pósito das limitações, mas que não impõe qualquer obrigação ao Estado.
Assim, trata-se de uma disposição que rege relações entre indivíduos, embora
possa ser teoricamente invocada pelo Estado para assegurar a protecção dos
direitos, na linha dos chamados
drittwirkung
da doutrina alemã
30
, sem no
entanto prever uma condição de legalidade. O artigo 28.º impõe aos indivíduos
o respeito do próximo, norma que traduz uma obrigação de respeito pelos direi-
tos alheios, prevista normalmente nos direitos internos com maior precisão.
Os deveres do indivíduo em relação à comunidade e ao Estado prescritos
no artigo 29.º revestem-se de carácter algo delicado. Assim, o dever de servir
a sua comunidade poderá em tese permitir situações de trabalho forçado,
sobretudo se se conjugarem os n.
os
2 e 6 do artigo 29.º
Os deveres específicos para com o Estado parecem redundar numa obri-
gação de
non facere,
ou seja, os indivíduos devem abster-se de comprometer
a segurança do Estado e a "unidade africana". Em rigor este tipo de deveres
suscita dúvidas em relação ao exercício de alguns direitos, designadamente os
dos partidos políticos, assim como o dever de solidariedade social e nacional
pode levantar dúvidas em relação à liberdade de associação.
No entanto, a autonomização do conceito de comunidade revela-se muito
inovadora em matéria de direitos do homem. Este novo "sujeito" de direito
internacional não impõe ainda verdadeiras obrigações jurídicas aos indivíduos
mas representa sem dúvida um aspecto importante da Carta Africana.
3. Direitos dos povos e direitos da "terceira geração"
A expressão "direitos dos povos" levanta desde logo problemas conceptuais
complexos, que reflectem as circunstâncias da descolonização em que se
defendia a autodeterminação dos povos, mas que perduraram na ideologia dos
novos Estados independentes.
Impõe-se em primeiro lugar notar que o conceito de "direitos dos povos"
não tem o mesmo significado, na filosofia africana, que os direitos colectivos na
28
Matringe,
op. cit
.
,
pág. 59.
29
Ouguergouz,
op. cit.,
pág. 373.
30
Vide: Clapham, Andrew ­ "The `Drittwirkung' of the Convention" in
The European System for
the Protection of Human Rights
, R. St. J. Macdonald, (eds.), Dordrecht, 1993, págs. 163-207.

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concepção socialista dos direitos do homem
31
. Para alguns autores, seguidores
de Vasak, eles correspondem aos chamados direitos da"terceira geração"
32
,
enquanto para outros, trata-se da consagração de uma "tradição africana
ancestral"
33
. A questão conceptual ultrapassa naturalmente o âmbito deste
trabalho
34
, mas não podemos deixar de observar a tendência para confundir
"direitos dos povos" com direitos dos Estados, por oposição aos direitos do
indivíduo. Relacionados com este conceito estão os chamados "direitos da
terceira geração" ou direitos de solidariedade, que se afastam também do es-
quema jurídico clássico do sujeito, objecto, oponibilidade a terceiros e garantia.
Ora, todos estes elementos da relação jurídica aparecem de forma muito inde-
finida, para que se possa falar de direitos em sentido próprio.
A referência aos "direitos dos povos" surge nos dois Pactos das Nações
Unidas relacionada com a autodeterminação e o desenvolvimento económico.
Na mesma linha, a Carta Africana, adoptada em 1981, proclama um conjunto
de "direitos dos povos" nos artigos 19.º a 24.º A interpretação destas disposi-
ções pode ser feita de várias formas, consoante se tenham ou não em conta as
circunstâncias históricas do final da década de 70, as quais eram bem diferen-
tes das actuais. Com efeito, a subsistência de um regime de discriminação
racial e situações coloniais deram origem a um conjunto de normas que visava
claramente condenar a persistência de tais circunstâncias. Passados que são
esses problemas, impõe-se uma interpretação jurídica actualista e desprovida
de carga ideológica.
Assim, no texto da Carta o princípio da igualdade entre os povos surge
no artigo 19.º de forma declarativa, mas em termos mais fortes que a própria
Carta das Nações Unidas. Os artigos 20.º e 21.º enunciam o direito dos povos
à existência e à autodeterminação e o direito dos povos à livre disposição das
suas riquezas e recursos naturais. Quanto ao primeiro, parece claramente en-
tendido, que o direito à autodeterminação não se aplica às minorias nacionais
ou étnicas, devendo restringir-se aos Estados resultantes das fronteiras colo-
niais, ou seja respeitando o princípio da integridade territorial e da intangibilidade
das fronteiras. O princípio contido no artigo 21.º inspira-se nos Pactos das
Nações Unidas, acrescido do direito à reparação em caso de expoliação dos
31
Huaraka, Tunguru ­ "Les fondements des droits de l'homme en Afrique", in
Les Dimensions
Universelles des Droits de l'Homme
, dirg. Lapeyre, Vasak, Bruxelas, 1990, pág. 244 e seguintes.
32
Östreich, Gabriele ­ "Le système de la protection des droits de l'homme en Afrique et en Europe:
échange d'expériences et perspectives" in
Rapport Général,
pág. 8
,
de

Actas do Colóquio afro-
-europeu, Estrasburgo, 26 a 31 de Março de 1990, organizado pela Fundação Friedrich Naumann.
33
Matringe,
op. cit.,
pág. 65 e seguintes.
34
Vide na doutrina portuguesa: Miranda, Jorge,
op. cit.,
pág. 62 e seguintes.

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bens "do povo". Tal direito tem um sujeito indefinido, pelo que nos parece que
terá apenas natureza programática.
O direito ao desenvolvimento económico inscrito no artigo 22.º suscita
grande controvérsia doutrinal, quanto à sua natureza individual ou colectiva
35
.
O entendimento das Nações Unidas, exposto aliás na Conferência de Viena de
1993 sobre Direitos do Homem, vai no sentido de lhe atribuir uma dimensão
individual. A determinação do seu objecto ­ o desenvolvimento económico,
social e cultural ­ parece-nos de uma tal ambiguidade e vastidão que se
torna difícil desenhar o seu contorno, aliás objecto de inúmeros documentos
elaborados em diversas organizações internacionais. Revela-se também, salvo
melhor opinião, uma norma de natureza programática e declarativa. Ainda no
artigo 22.º, refere-se o direito ao património comum da humanidade. Trata-se
de um direito pouco elaborado na doutrina, com excepção do domínio do direito
do mar, no qual tem sido muito debatido, mas ainda sem conclusões.
No artigo 23.º, a Carta Africana consagra o direito à paz e à segurança,
como forma de garantir a solidariedade e as relações amigáveis, proibindo
ainda as actividades subversivas dirigidas contra os povos de outros Estados,
facto que poderá permitir ao Estado violar direitos e liberdades individuais.
A Assembleia Geral das Nações Unidas considerou a paz como um direito,
tanto individual como colectivo. Com efeito, trata-se de uma norma com grande
significado no continente africano, no qual as guerras tem sido frequentes e
prolongadas. Os exemplos do Ruanda e do Sudão revelam infelizmente a inefi-
cácia actual desta norma e a dificuldade da comunidade internacional resolver
pacificamente os conflitos.
O direito a um ambiente "satisfatório e global" proclamado no artigo 24.º
revela-se de modo vago e impreciso. No entanto, a história deste direito é ainda
curta e pouco desenvolvida conceptualmente. Assim, embora redigido de modo
algo lapidar, não nos parece que os cidadãos possam exigir ao Estado qualquer
acção concreta, aliás à semelhança de outros instrumentos jurídicos sobre esta
matéria.
Conclusão
A catalogação dos direitos de forma pouco elaborada e imprecisa não é
exclusiva da Carta Africana. O caso vertente resultou do compromisso possível
35
Kamto, Maurice ­ "Retour sur le `droit au développement' au plan international: Droit au
dévelopement des Etats?" in
Revue Universelle des Droits de l'Homme,
vol. 11, n.
os
1-3, 1999,
pág. 1 e seguintes.

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no momento da sua redacção, mas o seu articulado poderá ser desenvolvido
através do trabalho da Comissão e do futuro Tribunal, aliás à semelhança de
outros instrumentos de direito internacional dos direitos do homem.
Surge no entanto esboçado um mecanismo institucional de protecção
regional dos direitos do homem, cuja eficácia está por enquanto em embrião.
O excessivo respeito pela soberania dos Estados, através da forte intervenção
da Conferência dos Chefes de Estado e de Governo da Organização de Unidade
Africana, diminui a credibilidade do sistema. Por outro lado, a Carta de Banjul
poderá ter um efeito perverso nas legislações internas dos Estados partes, pois
a natural tendência que os legisladores nacionais possam ter para se inspirar
nas normas internacionais, poderá levar a um resultado negativo, ou seja,
uma legislação "minimalista" e pouco protectora das garantias dos cidadãos, à
semelhança das disposições da Carta Africana. Cabe porém assinalar que
a maioria das Constituições africanas inclui já um considerável catálogo de
direitos, mais alargado do que o da Carta, pelo que a ordem interna de alguns
Estados encontra-se em certos casos mais habilitada a proteger os direitos do
cidadão que a ordem internacional, o que sucede aliás nos outros sistemas
regionais de protecção.
Por outro lado, no texto da Carta não existem referências à democracia,
como condição de desenvolvimento dos direitos do homem. Sem querer pôr
no mesmo estado de elaboração as ordens jurídicas europeia e africana,
parece-nos que o esforço de instauração de regimes democráticos nos Estados
do continente africano, será decerto uma forma concreta de proteger e desen-
volver os direitos do homem, que pressupõem naturalmente o princípio da
democracia política nos órgãos do poder. É certo que na última década
tiveram lugar várias eleições democráticas, mas subsistem Estados que
proíbem expressamente na sua lei interna a existência de partidos de oposição
e sindicatos.
O papel da Comissão Africana de Direitos do Homem poderá ser decisivo
na definição e delimitação dos conceitos, bem como na ajuda à elaboração de
normas legislativas destinadas a proteger os direitos e liberdades dos cidadãos,
embora seja de difícil concretização em relação aos conceitos de "comunidade"
ou "direitos dos povos". A actual prática de aceitar as petições de requerentes
individuais revela-se já um avanço em relação às disposições da Carta. O in-
cremento da sua actividade e uma interpretação teleológica da Carta, poderão
levar a uma "jurisprudência" mais adequada à realidade africana e que poderá
influenciar beneficamente a ordem jurídica dos Estados partes, que parecem
até agora mais inspiradas pela Convenção Europeia e pela prática dos seus

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órgãos de controlo
36
. No momento presente a Carta deve ser interpretada em
termos complementares ao direito internacional dos direitos do homem, e não
em sistemática comparação com os modelos europeu e americano, como aliás
defendem alguns dos seus próprios autores
37
.
Finalmente, a existência da Carta e o seu reconhecimento através das
ratificações da larga maioria dos Estados membros da OUA teve o mérito de
tornar os direitos do homem no continente africano uma questão internacional
comum a todas as ordens jurídicas e recusar o entendimento, muitas vezes
defendido no passado, de estarmos perante uma questão do domínio reservado
dos Estados.
36
Heyns, Christof ­ "African Human Rights Law and the European Convention", in
South African
Journal on Human Rights,
n.º 11, 1995, págs. 253-263.
37
Mbaye,
op. cit.,
págs. 40-53.

 

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