É justamente nesse contexto
que a proposta de introdução da pena de morte na legislação
penal brasileira deve ser avaliada: o estado de criminalidade
e da violência no Brasil; quem são as vítimas da violência no
Brasil; quais os remédios judiciais disponíveis. A
justificativa simplista apresentada pelos defensores da pena
de morte, que encontra largo respaldo por parte da população é
que a pena de morte seria um instrumento válido para lutar
contra a criminalidade e a violência ilegal. Ao contrário
dessas expectativas, como aqui veremos, a pena de morte, sem
solucionar nenhum dos problemas que a população quer ver
resolvidos, contribuiria para agravar ainda o arbítrio contra
a população pobre e sua insegurança.
Criminalidade e
violência
Para entendermos a violência
que se abate sobre esses contingentes específicos da
população, devemos lembrar que o Brasil tem uma das mais altas
taxas de homicídios do mundo. Toda vez que se discute a pena
de morte ou a violência, essa manifestação da violência ganha
relevo. Mas é preciso ir além dos clichês sobre a
criminalidade violenta e examinar com mais precisão o perfil
dos criminosos e das vítimas.
Se forem levados em conta os
estudos sobre a criminalidade em algumas metrópoles
brasileiras, como Belo Horizonte, Rio de Janeiro e São Paulo –
na falta de dados oficiais e confiáveis para a totalidade do
país – é possível constatar que as percepções da população em
relação ao aumento da criminalidade violenta de certa maneira
parecem estar próximas dos fatos. Com efeito, a chamada
“criminalidade urbana e organizada” naquelas três cidades, tem
crescido se forem considerados os índices e tráfico de drogas.
A participação dos crimes violentos (assaltos, homicídios
dolosos, estrupos, latrocínios, sequestros) na cidade de São
Paulo, por exemplo, cresceu de 20% em 1981 para 30% em 1987.
No entanto, esse crescimento é menor do que o aumento
demográfico da população.
Os autores desses delitos são
recrutados de preferência entre grupos de trabalhadores
urbanos de baixos salários. Quanto à carreira da
delinquência,
os dados disponíveis mostram uma larga contribuição dos crimes
contra o patrimônio. Desde 1983, os roubos passaram a
representar na cidade de São Paulo cerca de 50% do total de
ocorrências. Enfim, o perfil da população delinquente nas
grandes cidades poderia ser descrito aproximadamente como
constituído de cidadãos do sexo masculino, solteiros, com
baixo grau de instrução, jovens, com alguma ocupação
declarada. Trata-se de um perfil muito próximo do perfil das
vítimas em potencial: a maioria das vítimas é recrutada em
grupos idênticos (sobretudo nos casos de homicídios dolosos,
de modo geral as ocorrências envolvem pessoas conhecidas ou
que mantinham algum tipo de relacionamento). Esses grupos
estão localizados nos contingentes da população de mais baixa
renda: as principais vítimas da violência são exatamente os
alvos preferenciais do arbítrio e da discriminação. Não
estamos dizendo que os pobres são as classes criminosas, mas
que o sistema repressivo e judicial criminaliza
preferencialmente os pobres e que as vítimas dos crimes
violentos – ao contrário das imagens das classes dominantes e
médias sob cerco do crime – são majoritariamente pobres. Essa
população pobre, de mais de cem milhões de habitantes, em
consequência da violência e do arbítrio está relegada a um
virtual “regime de exceção” onde a segurança e as garantias
constitucionais inexistem.
Discriminação e
violência: negros, mulheres e crianças
Alguns contingentes da
população, como os dados da criminalidade indicam, mais do que
outros, são diretamente afetados pela violência. Os mais
econômicos e socialmente discriminados são os mais
vitimizados. Entre esses grupos estão os negros. O mito da
democracia racial ainda sobrevive no Brasil. Mas todos os
indicadores sociais e econômicos – trabalho, educação,
habitação, renda – demonstram que a população negra e mestiça,
cem anos após a abolição da escravidão, enfrenta as mesmas
dificuldades da segregação racial. Os casos de discriminação
dos negros no cotidiano continuam a ser frequentes, apesar da
criminalização do racismo na Constituição de 1988. Todos os
governos republicanos se omitiram e foram incapazes de colocar
em prática políticas afirmativas contra a marginalidade e a
discriminação. O sistema jurídico brasileiro, apesar de não
ter consagrado o apartheid, nunca consagrou para os negros o
princípio da não-discriminação. E essa ausência de garantia se
faz sentir no funcionamento da justiça em relação aos próprios
negros – tanto como todo preferencial de repressão como na
falta de proteção legal. Além das práticas discriminatórias
dos aparelhos repressivos do Estado, os negros e pardos são
agredidos pela polícia em porcentagens superiores à sua
participação na população.
Há também uma grande
discrepância entre a participação da mulher na população e sua
participação na economia. As mulheres brasileiras constituem
50% da população, mas apenas 35,6% delas estão empregadas,
recebendo remuneração em média inferior à remuneração dos
homens nas mesmas funções. Uma grande proporção das mulheres
empregadas não tem seu trabalho legalizado: apenas 44,9% têm
carteira assinada. No que diz respeito à violência, as
estatísticas indicam que 70% dos casos de violência contra
mulheres ocorrem dentro de casa e em muitos desses casos o
agressor é o marido ou o amante. Muitos homens que cometem
crimes passionais não são processados; apesar das estatísticas
nacionais de homicídios não incluírem informações por gênero,
as investigações disponíveis indicam que o assassinato de
esposas é comum.
Hoje no Brasil há mais de 58
milhões de crianças e adolescentes com idade de até dezoito
anos, ou seja, 43% da população. Há fatores especificamente
sociais e econômicos a agravam as condições de existência
dessas crianças e adolescentes: a evasão escolar, a
maternidade precose, a crise de habitação nas grandes cidades.
Grandes contingentes dos chamados “meninos de rua” vivem
literalmente nas ruas, sem lar, sem família, sem pais, sem
escolas. Essas crianças e jovens passam a viver de pequenos
trabalhos informais e tendem a ser enquadrados por bandos
criminais. Sua enorme fragilidade os torna ao mesmo tempo
disponível para o crime e alvos fáceis para a repressão, legal
ou ilegal. O fracasso dos sistemas de internação para crianças
carentes e de instituições para infratores contribui para
agravar o problema.
Durante os últimos dois anos a
questão dos assassinatos de crianças e adolescentes ganhou
grande visibilidade. Uma pesquisa do Núcleo de Estudos da
Violência, do Ibase e do Movimento Nacional de Meninos e
Meninas de Rua indicou que em 1989, 457 crianças e
adolescentes foram assassinados em São Paulo, Rio de Janeiro e
Recife. A metade dessas mortes teria sido de autoria de
esquadrões da morte e a maioria das vítimas era negra e do
sexo masculino. Em São Paulo, entre setembro de 1990 e agosto
de 1991, segundo o mesmo Núcleo, foram registrados pela
imprensa 171 assassinatos. De janeiro a maio, uma criança ou
jovem foi assassinado a cada dois dias.
Vítimas seletivas da
violência no campo e na cidade
Não há dúvida que muitos
homicídios podem ser explicados pelos altos níveis de
criminalidade comum, pela violência que organiza as relações
pessoais na sociedade brasileira, pelos crimes passionais ou
pelos altíssimos níveis de mortes no trânsito (mais de
cinquenta mil em 1990). Mas um expressivo número de homicídios
é resultado de ações sistemáticas de grupos organizados
(contra grupos preferenciais), que até há pouco tiveram
garantida a impunidade para suas ações. Desde 1988 são
inúmeros os registros de assassinatos e massacres de
trabalhadores rurais em áreas de conflito rural como a
Amazônia, o sul do Pará, e a Bahia, visando a expulsão de
posseiros, sem que na maior parte dos casos tenham havido
ações judiciais. Esses homicídios seletivos também são
praticados contra advogados de trabalhadores rurais,
sacerdotes e religiosos, assessores que trabalham em apoio a
sindicatos e associações rurais. Nesses casos o aparelho
policial é muito lento e raramente consegue prender os
criminosos. Entre os 1586 assassinatos de trabalhadores
rurais, índios, advogados, religiosos, sacerdotes e outros
profissionais ligados a conflitos de terra entre 1964 e 1989,
foram abertos somente dezessete processos (nove absolvições e
oito condenações).
Na periferia das grandes
cidades, milhares de brasileiros pobres e miseráveis, adultos,
crianças e adolescentes, são sistematicamente vítimas de
assassinatos e massacres. Muitas dessas mortes têm como
pretexto limpar as
comunidades de delinquentes. Bandos criminosos matam antigos
membros como castigo ou executam rivais. Ao lado desses fatos,
há uma prática rotineira de execuções que articula vários
elementos dessas mortes: são os linchamentos. O motivo
aparente é o desespero da população, em face da ineficiência
da justiça. Na realidade, sob a espontaneidade dos
linchamentos há uma estrutura dissimulada onde sempre atuam
figuras de autoridade – um fazendeiro ou seu preposto,
comerciantes, funcionários públicos, policiais – que de certa
maneira organizam a multidão para invadir delegacias de
polícia ou prisões.
Em seu conjunto essas mortes
têm um sentido de “pedagogia do medo” que procura enquadrar e
submeter a população pelo terror. Para alcançar esse objetivo
há uma cumplicidade efetiva entre os cidadãos particulares e
funcionários do Estado, policiais militares ou civis. Entre
esses investigadores particulares estão os grandes
proprietários, seus empregados, os grupos de extermínio, os
esquadrões da morte, os justiceiros. Na cidade sua atuação
frequentemente tem grande legitimidade nas comunidades pobres
e até mesmo nas classes médias, que vêm com grande tolerância
os assassinatos de criminosos ou suspeitos.
Em menos de uma década os
conflitos entre a polícia militar e os civis (supostamente
delinquentes) na cidade de São Paulo provocaram a morte de
3.563 civis e 359 policiais. Durante o ano de 1992, policiais
militares em São Paulo mataram 47 cidadãos, a taxa mais alta
de morte sem conflitos com a polícia entre todos os países com
organização democrática. Apesar desses números, os principais
contingentes atingidos demonstram pouca capacidade de protesto
contra essas mortes, que se caracterizam, em sua maioria, como
execuções extralegais toleradas pelo poder público.
Áreas de terror e
pena de morte
O sistema democrático, em uma
sociedade com tradições culturais tão autoritárias, não
elimina automaticamente as interações violentas na sociedade,
nem as práticas ilegais dos aparelhos estatais. Especialmente
porque esses aparelhos não são estruturas neutras, mas
correspondem à ilegalidade das práticas generalizadas numa
sociedade desigual e hierarquizada onde a regra é o arbítrio.
Em todos os estados do Brasil a polícia civil emprega a
tortura na investigação dos crimes contra a propriedade: todos
os suspeitos pobres que não disponham de recursos para um
arranjo passam sistematicamente pelo pau-de-arara, o
afogamento e os choques elétricos – apesar de a tortura ter
sido criminalizada na Constituição de 1988. Ainda que a
democracia seja a forma de governo, continuam implantadas
“áreas de terror”, mantidas e reproduzidas contra grupos
específicos de cidadãos.
Diante desse quadro de
originalidade e violência, a proposta de introdução da pena de
morte é um instrumento a mais para a manutenção dessas “áreas
de terror” em relação aos grandes contingentes da população
sem meios econômicos, sem acesso à educação, à cultura e, numa
palavra, desprovidos de poder. Nesse quadro deve ser situada
toda a argumentação contra a pena de morte, assumindo sua
introdução o caráter de perversa inutilidade para controlar o
crime.
A pena de morte não é mais
eficiente em dissuadir a prática de crimes violentos do que as
longas penas. Na verdade, nos Estados Unidos, os estados que
adotam a pena de morte têm quase o dobro das taxas de
homicídios daqueles que não a adotam. No Brasil, o grande
número de execuções extralegais de criminosos e suspeitos não
tem tido nenhum efeito sobre a criminalidade. Nada indica que
a instauração da pena de morte possa diminuir aqui a taxa de
criminalidade. Mesmo que os dados estatísticos quanto à
relação entre pena de morte e criminalidade sejam limitados,
está comprovado o fato de que a presença da pena de morte tem
um efeito de brutalização nas relações sociais, contribuindo
para que crimes violentos como o homicídio sejam estimulados
ao invés de evitados. Essa brutalização reforçaria a
desumanização que já caracteriza as relações da sociedade
brasileira com os criminosos e suspeitos, vistos como bestas
selvagens a serem abatidas, ao arrepio de qualquer provimento
legal. A pena de morte não viria substituir mas subsidiar
essas práticas. Numa sociedade tão desigual como a brasileira,
em termos de renda e de raça, onde a população negra e pobre é
percebida como parte das “classes perigosas” capazes de
cometer crimes, os negros e os pobres, além das dramáticas
limitações do judiciário na maioria do país (especialmente
naqueles estados do Norte e Nordeste onde o arbítrio é maior),
os discriminados terão maior probabilidade de serem
executados, inocentes ou culpados.
Diante dessas extraordinárias
carências da sociedade brasileira e do altíssimo nível de
violência endêmica, sistêmica, a existência da pena de morte
desvia recursos que poderiam beneficiar diretamente a
população (por exemplo, em políticas de controle do crime,
como aumento da força policial, tratamento de consumidores de
drogas e de doentes mentais) e salvar vidas. Os processos de
pena de morte são muito dispendiosos, tornando mais cara pena
de morte, mais cara até mesmo que a prisão
perpétua.
Enfim, tendo em conta o estado
de violência no Brasil, além de não contribuir para diminuir a
insegurança, a pena de morte iria agravar a situação. E,
contraditoriamente, daqueles contingentes da população que
ainda continuam demonstrando apoio à proposta sairão aqueles
que serão atingidos pelo cadafalso, cadeira elétrica, gás ou
injeção de veneno: os sem poder no Brasil. Esse paradoxal
apoio é a última manifestação da extraordinária longevidade da
cultura autoritária no Brasil, que faz com que os torturados
subscrevam as propostas de seus próprios torturadores, como os
escravos que beijavam respeitosamente as mãos de seus senhores
(e algozes).
Para que essa doce submissão
começasse a ser rompida, os senhores congressistas,
representantes dos povo, dos torturados, dos assassinados,
deveriam sem compelidos, pela força dos argumentos aqui
apresentados, a rechaçarem de vez esse instrumento de terror,
a pena de morte, recusando a proposta demagógica de plebiscito
sobre a pena de morte. Para evitar que o Brasil incorra no
vexame de denunciar o Pacto de San José da Costa Rica, a
Convenção Americana de Direitos Humanos, ratificada pelo
Congresso Nacional em setembro de 1992, que impede a
introdução da pena de morte. Se quiserem proteger de fato seus
eleitores pobres, lutar contra a violência, aprofundar a
democracia e fortalecer o estado de direito.
*
As idéias desenvolvidas neste artigo se fundam em reflexões
que venho desenvolvendo no último ano, apresentadas em um
texto em vias de publicação “Democracia, Direitos e
Desenvolvimento do Brasil”, apresentado no Seminário
Latinoamericano Derechos Humanos, Democracia, Desarollo
Economico y Social, Santiago do Chile, 10-13/12/1991,
organizado pelo Centro de Direitos Humanos da ONU, com o
governo do Chile. Quanto aos dados sobre criminalidade
violenta, devo a Sérgio Adorno, “A Criminalidade Urbana
Violenta no Brasil. O Ponto de Vista dos Cientistas Sociais”,
Segunda Conferência sobre a Segurança, as Drogas e a Prevenção
da Criminalidade no Meio Urbano, Grupo Europeu da Pesquisa
sobre as Normatividades, GERN, Paris, 30-31/05/1991; e aos
dados fornecidos por Sérgio Adorno e Myriam Mesquita, do
Núcleo de Estudos da Violência, USP, aos quais sou muito
grato.