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Os direitos humanos numa era global:
Uma visão cosmopolita das relações internacionais

Giuseppe Tosi*
pinuccio@uol.com.br

1. O ESTADO DE DIREITO
2. AS RELACÕES INTERNACIONAIS
3. AS CONDIÇÕES PARA A REALIZAÇÃO DO PROJETO COSMOPOLITA
O mercado mundial e a economía-mundo
A Sociedade Civil Global (Global civil society)
As Instituições políticas e jurídicas globais
Os direitos humanos como ética global
4. COSMOPOLITISMO VERSUS REALISMO
CONCLUINDO

Quando perguntaram a Norberto Bobbio qual teria sido o acontecimento mais importante do século XX - que ele viveu por inteiro como atento e participe protagonista na sua longa existência de mais de 90 anos - ele declarou que o único evento que se podia salvar deste século terrível, atravessado por duas guerras mundiais, o extermínio racial em massa dos hebreus e de outras minorias, e a bomba atômica, era a Declaração Universal dos Direitos Humanos, proclamada pelas Nações Unidas em 11 de dezembro de 1948 em Paris.1
Bobbio não era acostumado a um fácil otimismo e não se fazia ilusões sobre a história, enxergava porém naquele acontecimento a possibilidade de uma virada epocal da história mundial que lhe relembrava a obra de um pensador que, duzentos anos antes, havia pressentido aquele momento: Immanuel Kant. Ao final, do que se tratava? Da formação do Estado de Direito e de sua projeção no âmbito das relações internacionais numa visão cosmopolita.

1. O ESTADO DE DIREITO
A doutrina do Estado de Direito encontra suas raízes no novo paradigma político introduzido por Hobbes (por isso, Bobbio o define como modelo hobbesiano contrapondo-o ao modelo aristotélico) no século XVII. As características principais deste modelo são muito conhecidas e vou resumi-las rapidamente.
Na base de todo o edifício está a concepção dos direitos subjetivos dos indivíduos. Na tradição antiga e medieval, o direito era definido como uma relação fundada não sobre a vontade dos sujeitos, mas sobre o que objetivamente era devido nas relações entre os sujeitos, a partir de uma ordem natural e social que governava o mundo e que era legitimada por Deus, ordem a qual os sujeitos deviam se conformar, cada um ocupando o próprio “lugar”, ao mesmo tempo social e natural.
O indivíduo tinha mais deveres e obrigações para com a sociedade do que propriamente direitos; titulares de direitos eram Deus, o Imperador, o Papa e as hierarquias eclesiásticas e temporais a eles associados, mas não os sujeitos, os indivíduos como tais, vistos sempre como partes, membros, de algo maior, numa concepção organicista da sociedade.2
A partir do fim da Idade Média e do início do Renascimento, esta concepção do direito começa a mudar acompanhando a “virada antropocêntrica” que investe todos os campos do saber humano.3 O direito tende, agora, a ser identificado com o domínio (dominium), que por sua vez é definido como uma faculdade (facultas) ou um poder (potestas) do sujeito sobre si mesmo e sobre as coisas. Nasce uma concepção subjetiva dos direitos naturais, que desvincula e liberta progressivamente o indivíduo da sujeição a uma ordem natural e divina objetiva e lhe confere uma dignidade e um poder próprio e original, limitado somente pelo poder igualmente próprio e original do outro indivíduo, sob a égide da lei e do contrato social. Inicia assim a transição do direito para os direitos.4
O segundo elemento é “soberania popular”: o povo, entendido “atomisticamente”, como diria Hegel, (e não mais “organicamente” como membro de um todo) como uma soma de indivíduos livres e iguais, é considerado a fonte última da legitimidade política, através do princípio da representação. O Estado civil nasce de um pacto entre os indivíduos livres e iguais para a garantia dos seus direitos naturais e a formação da sociedade civil que, desta maneira, supera o estado de natureza. Através deste pacto ou contrato os indivíduos, que viviam como multidão (multitudo) no estado de natureza, tornam-se um povo (populus) . O preço a pagar é a perda da liberdade absoluta que cada qual gozava no estado natural para entregá-la nas mãos do soberano. O pacto tem um caráter voluntário e artificial, e a sua função é garantir os direitos fundamentais do homem que, no estado de natureza, eram continuamente ameaçados pela falta de uma lei e de um poder com força suficiente para faze-los respeitar. O poder que se constitui a partir do pacto tem sua origem não mais em Deus ou na natureza, mas no “consenso” entre os indivíduos. Nasce a idéia do “povo” ou da “nação” como origem e fundamento do poder, que dará origem aos Estados modernos.5
Para garantir, ao mesmo tempo, que o Estado faça respeitar o pacto evitando porém os êxitos absolutistas da concepção hobbesiana, que garantia a ordem mas não a liberdade, o liberalismo político (a partir de Locke) introduziu o conceito de divisão dos poderes, inicialmente entre o Rei e o Parlamento (este último entendido como fonte principal do poder) e posteriormente com a canônica definição de Montesquieu entre o poder executivo, legislativo e judiciário. A divisão dos poderes era entendida como um check and balances, de tal foram que nenhum poder pudesse dominar o outro e se estabelecesse um controle reciproco, para evitar o absolutismo do anciene régime.
O Estado de direito encontra assim o seu fundamento na idéia de que os homens devem ser governados pelas leis e não pelo arbítrio de outros homens; idéia que já se encontrava na Política de Aristóteles.6 Por isso é chamado “de direito” porque deve garantir a legalidade e o respeito de alguns direitos fundamentais, os quais estão a fundamento do inteiro edifício e portanto não podem ser colocados em discussão, nem pela maioria da população. Aqui se introduz uma certa tensão (que nunca foi realmente resolvida) entre o principio democrático e a garantia dos direitos, entre liberalismo e democracia. Para que a democracia não se tornasse uma ditadura da maioria (como temia Tocqueville) era preciso resguardar, ou seja, tornar indisponíveis à maioria, um conjunto de direitos fundamentais (as “cláusulas pétreas” das Constituições) sem os quais não haveria Estado “de direito”.7
O conjunto de direitos a serem tutelados e garantidos mudou com a evolução das sociedades ocidentais. Inicialmente a lista era restrita aos chamados direitos de liberdade, que pertenciam à doutrina do liberalismo político clássico: vida, propriedade, segurança e igualdade perante a lei. Após a revolução francesa, os movimentos sociais inspirados no socialismo introduziram outros direitos estranhos à tradição liberal, que se referiam à igualdade não somente formal, mas substancial: a igualdade de condições econômicas e sociais. Aos direitos civis e políticos de primeira geração, se acrescentaram assim os direitos econômicos e sociais de segunda geração. A compatibilização entre as duas classes de direitos è outra questão que nunca encontrou uma solução clara entre as teorias liberalistas e socialistas que as fundamentam.
Na concepção liberal, o Estado nasce da agregação de indivíduos supostamente auto-suficientes e livres, com o objetivo de garantir a liberdade (negativa) de cada um em relação ao outro. Por isso, a realização histórica dos direitos não é confiada à intervenção positiva do Estado, mas é deixada ao livre jogo do mercado, partindo do pressuposto liberal que o pleno desdobramento dos interesses individuais de cada um - limitado somente pelo respeito formal dos interesses do outro - possa transformar-se em benefício público pela mediação da mão invisível do mercado. Na concepção socialista, ao contrário o homem è visto como um ser social ao qual o Estado deve garantir uma conjunto básico de direitos econômicos e sociais para que possa exercer plenamente a sua cidadania política, direitos que exigem uma forte intervenção do Estado na economia e na sociedade.8
Porém, se as democracias ocidentais encontraram dificuldades na realização do conjunto de direitos, as alternativas que apareceram historicamente - os totalitarismos de direita (fascismo e nazismo) e de esquerda (comunismo), que se inspiraram na doutrina do Estado Ético - foram bem piores. Ambas as concepções eliminaram (nazismo) ou limitaram fortemente (comunismo) os direitos civis e políticos dos cidadãos e, no final, não garantiram tampouco os direitos econômicos e sociais.9
Com a derrubada do nazismo e do fascismo na Segunda Guerra Mundial e o fim comunismo depois da queda do muro de Berlim na Europa Oriental, a idéia do Estado ético parece estar mais do que morta e sepultada, e o Estado de Direito se apresenta como a única possibilidade teórica e prática aberta à democracia, frente à qual podem somente existir regimes autoritários e liberticidas dos direitos individuais.
De fato, após a queda do muro de Berlim, temos que registrar um aumento significativo de nações que, de várias maneiras, se inspiram nos princípios básicos de Estado de direito, a partir obviamente de situações especificas típicas de sua condição histórica e social. Baste pensar aos regimes da antiga União Soviética que constituem um caso raro senão único de transformação radical (econômica, política e cultural) sem uma ruptura violenta de tipo revolucionário o insurrecional e de expansão de regimes democráticos, ainda que com forte traços de autocracia.
O que não significa que não haja diferentes concepções do que è um Estado de direito, que se referem as diferentes tradições políticas a jurídicas nacionais dos países ocidentais onde nasceu e se difundiu o modelo do Estado de Direito. Em particular há diferenças entre a tradição anglo-saxônica do rule of Law, e a concepção “continental” do Etát de Droit, Rechtstaat, Stato di diritto.10
Existem também diferentes concepções ideológicas: alguns autores preferem utilizar a expressão Estado Liberal, outros de Estado democrático de Direito, outros de Estado social-democrático de Direito. A concepção neo-liberal está mais acentuada nos Estados Unidos (e em parte no Reino Unido) enquanto que a tradição socialdemocrática é mais presente na Europa. Existem, porém, pelo menos nos países ocidentais, semelhanças significativas entre as diferentes concepções e realizações históricas com relação aos elementos básicos que constituem o Estado de Direito.
Ao contrário, diferencias e divergências bem maiores se encontram nas tradições não ocidentais. Aqui temos, pelo menos, dois grandes desafios: o modelo islâmico, que não diferencia claramente religião e Estado, lei religiosa e lei civil, como aconteceu no processo de secularização europeu depois das guerras de religião, e o modelo asiático que, a partir de una concepção orgânica, coletiva ou comunitária das relações sociais, defende una concepção autoritária e intervencionista do Estado na economia e na esfera das relaciones privadas dos cidadãos.

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2. AS RELACÕES INTERNACIONAIS
A constituição do Estado de direito na modernidade nos países ocidentais garantiu algumas das condições mínimas para a convivência civil previstas por Hobbes: a ordem e a segurança interna com o monopólio legitimo da força e a eliminação dos corpos intermediários e dos conflitos endêmicos que haviam marcado o longo período da Idade Media. Mas também garantiu, como pensavam os liberais e os socialistas, um conjunto de direitos básicos para a maioria dos seus cidadãos, tanto civis e políticos como econômicos, sociais e culturais. Por isso, o Estado de direito é a herança política mais importante que o Ocidente deixou para o resto do mundo.
O mesmo porém não aconteceu no âmbito das relações internacionais, onde, após a crise da respublica christiana medieval, e das duas sumas autoridades o Imperador e o Papa, os Estados nacionais modernos se relacionaram entre eles como os indivíduos soberanos do estado de natureza.
Sobre este assunto, do ponto de vista da filosofia política e da filosofia do direito, temos duas grande respostas ou propostas para o direito internacional.
De um lado, o modelo realista11 centrado no papel do Estado nacional como único sujeito do direito público inter-estatal, o que Carl Schmitt - um dos grandes defensores deste modelo no século XX – chamou de jus publicum europaeum.12 Hobbes, de certa foram descreve e prescreve o que será a constituição dos Estados modernos: enquanto internamente o soberano consegue impor o monopólio legítimo da força destruindo, assimilando e homogeneizando os antigos corpos intermediários feudais e criando assim as condições para uma ordem interna; do ponto de vista das relações internacionais continua existindo um estado de natureza entre as nações.13
Uma alternativa a esta concepção das relações internacionais está na tradição cosmopolita que remonta aos estóicos, mas que encontra o seu grande representante no Iluminismo e especialmente em Kant. Para o idealismo transcendental kantiano a política pertence ao âmbito das “idéias” ou “ideais” de razão; ela se ocupa com as condições de possibilidade da convivência humana apontando não simplesmente para “o que é”, mas para a indicação de como tais relações “deveriam ser”: ou seja, para um fim. Este telos é para Kant, no âmbito do direito interno a criação do Estado Civil Republicano e no âmbito direito externo, a realização do direito cosmopolita como garantia da paz perpetua entre as nações.14
O raciocínio cosmopolita, que se inspira em Kant encontra o seu ponto de força no que se costuma chamar de domestic analogy. Partindo dos pressupostos hobbesianos do estado de natureza, Kant detecta um vazio jurídico nas relações entre as nações que se comportam entre si como se continuassem num permanente estado de guerra, interrompido somente por períodos de trégua, mas não de verdadeira paz. Este vazio jurídico deve ser preenchido com um novo tipo de direito, superior ao direito público interno e ao direito público externo, que Kant chama de jus cosmopoliticum, um direito supranacional onde não somente os Estados, mas também os indivíduos seriam sujeitos de direito internacional no âmbito de uma instituição política mundial.
O “projeto filosófico” de Kant em “Para a Paz Perpétua” propõe a idéia de um Federação Mundial de Estados Nacionais livremente constituída regida pelo direito cosmopolita.15 As teorias kantianas encontraram em Kelsen um dos seus grandes seguidores, e inspiraram também as reflexões mais atuais de Rawls16 ou Habermas17 e do que costuma chamar de republicanismo.18

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3. AS CONDIÇÕES PARA A REALIZAÇÃO DO PROJETO COSMOPOLITA
Para que este projeto no seja una mera ilusão, mas corresponda a uma tendência real da sociedade mundial nesta época de globalização, é preciso que se realizem algumas condições fundamentais:
1. Una integração econômica e social mundial com fluxo de mercadorias e de pessoas e informações sempre mais estreita;
2. uma sociedade civil global;
3. instituições jurídicas e políticas globais;
4. um sistema de valores ético-políticos compartilhados tendencialmente universais.
Como indica o título sugestivo do livro do teólogo ecumênico Hans Kung, a pergunta central para nossa discussão é a seguinte: existe una economia mundial (weltwirtschaft), porém não há una política mundial (weltpolitik) que regule a economia, inspirada em princípios éticos universalmente compartilhados (weltethos).19
A tese que defenderemos neste ensaio, de modo sumário devido às limitações de espaço, è que a maioria destas condições estão se dando na atualidade, ainda que de forma desigual, e que a visão cosmopolita das relações internacionais constitui a alternativa mais promissora para o presente e o futuro das relações internacionais no mundo globalizado.

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O mercado mundial e a economía-mundo
A primeira consideração obvia é o reconhecimento do aprofundamento sempre maior dos laços que estreitam o mundo: aumentam todos os dias as redes econômicas, as comunicações, o fluxo comercial e financeiro, as migrações dos povos, a difusão das informações e dos modelos de comportamento ocidentais no mundo.
Este processo começou nos séculos XV e XVI com os grandes descobrimentos geográficos que proporcionaram as condiciones para a criação de uma historia mundial. No século XX, com as duas guerras mundiais, a Historia da Europa se converte efetivamente na historia do mundo e, na segunda metade do século, sobretudo depois do fim do comunismo e da aceleração dos processos de integração mundial, temos una economia mundial sempre mas interrelacionada.20
Um outro aspecto a ser considerado é que a aceleração do processo de globalização provocou um aumento das situações de risco a nível mundial. Vivemos, como afirma Ulrich Beck, numa sociedade de risco (risikogesellschaf).21 Há o risco de una catástrofe ecológica que pode subverter os equilibrios naturais do planeta; continua sempre ameaçador o risco de una destruição atômica da civilização;22 a instabilidade dos mercados financeiros pode provocar um colapso econômico inesperado com efeitos dominó sobre a economia mundial; há o risco do terrorismo, nome genérico e ambíguo para indicar um sistema complexo de formas de violência política a nível global (entre as quais deveríamos também incluir o terrorismo promovido pelos Estados). E poderíamos enumerar assim uma serie de riscos que tem em comum o fato de serem sempre fenômenos globais, como as "mafias internacionais" e o crime organizado em escala planetária. Questões que nem uma superpotência como os Estados Unidos podem resolver sozinha.23
O terceiro aspeto é a obvia insuficiência dos Estados Nacionais para encontrar soluções a problemas que passam “por cima” de sus fronteiras. O Estado moderno encontra sua razão de ser na delimitação clara de um território sobre o qual estabelecer seu domínio com fronteiras bem precisas que pode controlar e administrar. Com a crise e, em alguns casos, a abolição das fronteiras, por causa dos fenômenos da globalização, entra em crise e em declino também o Estado Nacional, até pouco tempo atrás todo-poderoso.
De fato, já existem várias organizações internacionais e supranacionais que decidem os principais assuntos da pauta, tanto governamentais (OIG) (como por exemplo o FMI e o Banco Mundial ou a OMC) como não governamentais (OING) com fines lucrativo como as empresas multinacionais. Tais instituições, porém, não atuam numa lógica “cosmopolita”, mas numa lógica de mercado e de lucro que não diminui as desigualdades econômicas e sociais provocadas pela globalização.

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A Sociedade Civil Global (Global civil society)
Uma outra condição indispensável para a realização do projeto cosmopolita é a conformação de uma sociedade civil global, composta por uma rede organizada verticalmente (porém não hierarquicamente) desde o bairro até as Nações Unidas e horizontalmente numa presença territorial capilar dentro as nações e entre as nações, num processo que é, ao mesmo tempo, local e global, numa perspectiva de “globalização alternativa” dos direitos. O conceito indica o outro lado da globalização, ou seja, a constituição de uma rede de entidades no governamentais (mas também em parte governamentais como as universidades), que denunciam os malefícios da globalização e procuram alternativas teóricas e práticas.
Este conceito somente de recente é entrado a fazer parte das ciências sociais, sobretudos por a influencia dos movimentos não governamentais no-global, e que começa a ser estudado e tematizado no meio acadêmico.24
O “Anuário das Organizações Internacionais” de 1998 calculava a existência de cerca de 5.580 OING, utilizando critérios restritivos, e de mais de 15.000 utilizando critérios mais amplos, presentes sobretudo no Ocidente, mas também em todos os continentes.25
Mereceria uma discussão a parte o papel que desenvolvem e podem desenvolver sempre mais as Universidades como elo de ligação entre Sociedade Civil e o Estado, como lugar de reflexão, de estudo, de pesquisa e de formação dos movimentos e dos militante na luta pelos direitos humanos. La necessidade de una integração sempre maior entre as universidades para criar una rede alternativa de ensino, pesquisa e intervenção em direitos humanos.

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As Instituições políticas e jurídicas globais
A constituição desta sociedade civil global é de fundamental importância para o projeto cosmopolita, porém não é suficiente, precisamos criar também as instituições políticas da globalização alternativa. É sempre más consensual a consideração de que os problemas suscitados pela globalização exigem una resposta global que não pode mais ser encontrada nos estreitos limites de os estados nacionais, mas que exige instituições globais que possam prover às deficiências dos estados nacionais. Este fato, não significa o fim de os estados nacionais, que ainda tem um papel importante a desempenhar, mas indica o predomínio da política internacional sobre a política interna, inspirado, quanto menos, no principio da subsidiariedade.26
El “Anuário das Organizações Internacionais” de 1998 calculava a existência de cerca de 258 Organizações Internacionais Governamentais (OIG), utilizando critérios restritivos, e de más de 1.800 utilizando critérios más amplos, presentes em todos os continentes.

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Os direitos humanos como ética global
Finalmente o processo constante de integração somente poderá ter êxito se se conseguir estabelecer um diálogo entre as civilizações evitando assim o choque de civilizações.27 Para tanto, necessitamos, no respeito das tradições e das identidades de cada cultura, encontrar um sistema de valores mínimos compartilhados (um overlapping consensus come diria Rawls) como premissa para uma convivência pacífica na terra.
Neste sentido, os direitos humanos constituem, se não propriamente um novo ethos mundial, certamente um progresso da "autoconsciência da humanidade" e podem converter-se no ponto de interseção e de consenso (um verdadeiro consensum gentium) entre diversas doutrinas filosóficas, crenças religiosas e costumes culturais. Os direitos humanos, entendidos em todas as suas dimensões, podem constituir "o contudo material” de una ética publica, o pelo menos, o terreno de discussão essencial para sua constituição.28
Afirmando isto, não queremos esquecer ou esconder os problemas e as contradições existentes na teoria dos direitos humanos, nem tampouco menosprezar as diferencias existente enorme entre as declarações de direitos e sua efetivação, e as necessidade de preservar a imensa variedade das diferenças culturais, mas reafirmar simplesmente que não existe, hoje, uma outra "tradição tão fértil e consolidada" para a construção de um presente e de um futuro que possam garantir um mínimo de paz e justiça para a humanidade.

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4. COSMOPOLITISMO VERSUS REALISMO
Não podemos certamente afirmar de que as condições para a realização do projeto cosmopolitas estejam se dando de forma satisfatória no panorama político internacional, nem que o cosmopolitismo seja a visão predominante ou exitosa nas relações internacionais e nas instituições políticas globais ou supranacionais. Por outro lado, é verdade também que uma visão meramente “realista” das relações internacionais não dá conta de todos os fenômenos complexos que a globalização tem provocado.
De fato, atualmente as duas lógicas, a “cosmopolita” e a “realista”, coexistem no cenário internacional sem que uma tenha a condição de prevalecer sobre a outra. Podemos dar, entre outros, dois exemplos que indicam esta situação.29
O primeiro è a ONU, o máximo organismo internacional, criado após a trágica e terrificante experiência de duas guerras mundiais com todos seus horrores e da nova era inaugurada pela bomba atômica. Por um lado parece a realização histórica do direito cosmopolita imaginado por Kant: a Carta da ONU, a Declaração Universal dos Direitos Humanos, os Pactos dos direitos civis e políticos e dos direitos econômicos, sociais e culturais, com os protocolos anexos constituem, de certa forma, um corpus de direito universal tendencialmente cosmopolita.
E os organismos internacionais que compõem o sistema das nações Unidas foram pensados nestas perspectiva, ou seja, como instituições capazes de dar força e efetividade a um direito internacional que tivesse como titulares não somente os Estados, mas também os cidadão, entendidos aqui como cidadãos do mundo. É a tentativa de realizar a proposta de Kelsen da superioridade do direito internacional para garantir a paz, em Peace Trough Law.30
Por outro lado, é fácil também constatar que o papel do Estados nacionais como sujeitos do direito internacional não diminuiu e que a “dialética” entre os povos, ou seja, a guerra, continua prevalecendo. A tentativa de impor uma ordem unilateral por parte do Estados Unidos, após a vitória do que eles consideram a 3ª guerra mundial, é um exemplo claro desta lógica hobbesiana que ainda governa o mundo.
A própria incapacidade da ONU de impedir a invasão e ocupação do Iraque por parte do Estados Unidos feita à revelia das normas do direito internacional e especificamente da carta das Nações Unidas e a divisão provocada na própria União Européia sobre a guerra, são um exemplo emblemático de um impasse entre duas contrastantes concepções das relações internacionais que convivem nos dias atuais.
E não podia se diferente uma vez que na sua própria essência constitutiva a ONU è fruto de uma compromisso entre as duas concepções, porque desde a sua criação, foi pensada no âmbito do sistema dos Estados soberanos e hegemônicos: são as nações vencedoras da II Guerra Mundial que criaram a Organização e que, através do Conselho de Segurança ainda a controlam, esvaziando de fato o seu poder real de intervenção. Os “poderes políticos e econômicos internacionais fortes” são outros e passam ao largo das Nações Unidas: são o G8, a OTAN, o Fundo Monetário Internacional, o Banco Mundial e as grandes corporações privadas que estão a serviço não de um projeto cosmopolita, democrático e republicano, mas dos interesses das grandes potências mundiais.
Um outro processo mais exitosos para uma visão cosmopolita é o da União Européia, que se assemelha à realização, quase que literal, do sonho kantiano de “À Paz perpétua”.31 Com efeito os três “artigos definitivos para o estabelecimento da paz perpétua entre as nações” parecem ter servido de guia para a formação da UE.
O primeiro artigo define que cada Estado tem que se dar uma constituição republicana, o que nós chamaríamos hoje de democrática: de fato para poder participar da EU é preciso respeitar e praticar os princípios fundamentais do Estado democrático de Direito (o que cria problemas para a entrada de países como a Turquia).
O segundo artigo prega a necessidade de uma Federação de Estados republicanos, criada por livre e espontânea vontade dos Estados soberanos, sem uma hegemonia de um país dominante; é o que aconteceu com a criação e a expansão dos Estados da UE através de uma adesão feita pelos governos e, em alguns casos, referendada pela população.
O terceiro artigo prega a necessidade de que as relações entre os Estados da Federação sejam reguladas por um direito cosmopolita; é o que está acontecendo paulatinamente, sobretudo a partir da criação de uma Constituição Européia que limita os poderes dos Estados soberanos (apesar dos empasses atuais que representam um momento de redefinição do projeto de constituição européia).
Apesar dos seus percalços e dificuldades, o processo de integração européia garantiu o mais longo período de paz que a Europa tenha vivido desde os tempo da pax augusta do Império Romano e criou as premissas para tornar a possibilidade de uma guerra intra-européia algo de sempre mais remoto.
Um outro processo que pode ter êxitos semelhantes é o recente projeto de integração regional dos países da América Latina, especialmente da América do Sul, lançado em Cuzco em dezembro de 2004 com o nome de Comunidade Sulamericana de Nações, que se inspira claramente na exitoso da União Européia e que tem todas as condições objetivas e subjetivas para se realizar nos próximos anos.
Sua realização constituiria, na nossa opinião, um grande passo estratégico que permitiria aos países sul-americanos uma inserção mais forte e soberana na globalização. Esperamos que este processo possa se fortalecer e estabelecer com firmeza: estaria assim se realizando não somente o sonho kantiano de uma Federação de Estados Republicanos governada por um direito cosmopolita garante de uma paz estável e duradoura, mas também o sonho bolivariano de “La Pátria Grande”.

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CONCLUINDO
O processo de globalização das relações internacionais parece ser algo de incontestável e talvez irreversível e pode ser enfrentado de duas maneiras:
- deixando sua regulamentação nas mãos invisíveis do mercado e, quando estas se mostram insuficientes entregá-las à luva de ferro da intervenção armada dos exércitos das nações mais ricas e poderosas para defender seus “interesses vitais” em qualquer parte do mundo, numa lógica de potência e de choque de interesses, portadora de conflitos e guerras considerados, em última instância, como inevitáveis e até benéficos para “o progresso” da humanidade.
- Ou promovendo uma rede cosmopolita alternativa de instituições internacionais e supranacionais - tanto na esfera estatal como da sociedade civil – com um mínimo de força suficiente para enfrentar os problemas que o mercado cria e os Estados não podem resolver, permitindo assim uma melhor distribuição da riqueza a nível internacional e retirando as raízes mais profundas da violência e da guerra.

Nesta perspectiva, as nações não desapareceriam, mas continuariam tendo un papel próprio na garantia dos direitos e das identidades locais de seus cidadãos, mas delegariam a organismos supranacionais, em base ao principio de subsidiariedade, a solução dos conflitos e dos problemas que superam suas fronteiras tendo como fundamento o reconhecimento de uma cidadania não mais somente nacional, mas cosmopolita.
De um ponto de vista teórico esta parece ser a única proposta racional, quase uma “exigência” da razão numa época de globalização, um “imperativo categórico”, ao mesmo tempo intelectual e moral, de um pensamento que queira estar a altura de sua época e dos seus problemas, sem renunciar a una justificação universalista de sus fundamentos.
Não sabemos se a razão prevalecerá na história, não temos mais a confiança iluminista e historicista na sua realização. Talvez, será preciso que aconteça uma catástrofe: uma grave crise do sistema financeiro global, um grave colapso ecológico, um atentado terrorista “atômico”... ou algo parecido para que a humanidade possa tomar o caminho que a razão lhe indica. Enquanto isso, nossa tarefa è continuar lutando com todas as nossas forças para que os princípios de uma “razoável” (senão próprio racional) convivência humanas possam prevalecer.

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Notas
* Professor do Depto. de Filosofia e membro do Núcleo de Cidadania e Direitos Humanos da Universidade Federal da Paraiba.
1 BOBBIO, Norberto, A era dos direitos, Rio de Janeiro, Campus, 1992. BOBBIO, Norberto, O Futuro da Democracia. Uma defesa das regras do jogo, Rio de Janeiro, Paz e Terra. 1986; Liberalismo e Democracia, São Paulo, Brasiliense, 1988
2 Ver ARISTÓTELES, Política. I 2, 1253, trad. de Mário da Gama Kuri, Brasília: UNB, 1997.
3 STRAUSS, Leo. Diritto Naturale e storia, Genova: Il Melangolo, 1990. 131.
4 VILLEY Michel. Le droit et les droits de l'homme. Paris: PUF, 1983.
5 BARBERA, Augusto. FUSARO, Carlo. Il governo delle democrazie. Bologna: Il Mulino, 1997.
6 ARISTÓTELES, Política. III, 16, 1278°. BIN, Roberto. Lo Stato di diritto.Come imporre regole al potere. Bologna: Il Mulino 2004.
7 FERRY, Luc e RENAUT Alain, Des Droit de l'homme à l'idée républicaine. Paris: Presse Universitaire de France 1985. FERRY, Luc, Le Droit: la nouvelle querelle des Anciens e des modernes ,Paris: Presse Universitaire de France, 1984.
8 MARX K., A questão judaica. São Paulo: Centauro ed., 2000, p. 41. LEFORT, Claude, A invenção democrática. Os limites do totalitarismo. São Paulo: Brasiliense 1983. Ver também. OLIVEIRA, Luciano, Imagens da democracia. Os direitos humanos e o pensamento político da esquerda no Brasil. Pindorama: Recife 1996.
9 ARENDT, Hanna, Origens do Totalitarismo, São Paulo: Companhia das Letras, 1997.
BOBBIO, N; MATTEUCCI, N; PASQUINO, G. Dicionário de política. Brasília: Ed. UnB, 1986. Totalitarismo.
10 ZOLO, Danilo e COSTA, Pietro, Lo Stato di diritto. Storia, teoria, critica. Milano: Feltrinelli, 2002.
11 ZOLO, Danilo. Cosmopolis. La prospettiva del governo mondiale, Milano, Feltrinelli, 1995, trad. ingl. Cambridge, Polity Press, 1997. Chi dice umanità. Guerra, diritto e ordine globale, Torino: Einaudi, 2000 (ed. inglese: London-New York 2001); Uso da força e direito internacional depois de 11 de setembro de 2001, in LYRA. R. P. Direitos Humanos: os desafios do século XXI. Uma abordagem interdisciplinar, Brasília, Brasília Jurídica 2002, pp. 47-57. I signori della pace. Una critica del globalismo giuridico. Roma: Carocci, 1998.
12 SCHMITT, C., Il Nomos della terra, Milano, Adelphi, 1991.
13 PORTINARO; P.P. Il realismo político. Roma-Bari: Laterza, 1999.
14 TERRA, Ricardo Ribeiro, Política tensa, Idéia e realidade na filosofia da história de Kant, São Paulo: Iluminuras, 1995. ROHDEN, Valério (org.) Kant e a instituição da paz. Porto Alegre: Ed. UFRGS, Goethe-Institut/ICBA, 1997.
15 KANT, Immanuel. (1784) - Idéia de uma história Universal do ponto de vista cosmopolita (1784), Ricardo Ribeiro Terra, (org.), São Paulo: Brasiliense, 1986; À Paz Perpétua. Um projecto Filosófico (1796), Edições 70, Lisboa 1990
16 RAWLS, John. O direito dos povos, São Paulo: Martins Fontes, 2002. Liberalismo político, São Paulo: Martins Fontes, 2003.
17 HABERMAS, J. L’inclusione dell’altro, Feltrinelli, Milano 1998. pp. 235-248 e pp. 216-232.
18 BACCELLI. Luca, Critica del repubblicanesimo, Laterza, Roma-Bari 2003.
19 KÜNG, Hans, Projeto de ética mundial. Uma moral ecumênica em vista da sobrevivência humana, São Paulo, Paulinas 1992. Uma ética global para a política e a economia mundiais. Petrópolis: Vozes, 1999.
20 ZOLO, Danilo. Globalizzazione. Una mappa dei problemi, Roma-Bari, Laterza, 2004 (ed. inglese: London-New York, 2004). BAUMAN, Z., Globalization: The Human Consequences, Columbia University Press, New York 1998. HELD, David. MCGREW , Anthony. Globalismo e antiglobalismo. Bologna: Il Mulino, 2002. HIRST, Paul e THOMPSON, Grahame, Globalização em questão, Vozes, Petrópolis 1998. IANNI, Octavio, Teoria da globalização, Civilização Brasileira, Rio de Janeiro 1997.
21 BECK, Ulrich. La società globale di rischio, Roma: Carocci, 2001.
22 CARRETTO, Ennio. Gli Usa: nucleare contro i ”nuovi nemici”. Corriere della Sera. 12/09/2005.
23 NYE, J. S. O paradoxo do poder americano. Porque a única superpotência do mundo não pode prosseguir isolada. São Paulo: UNESP, 2002.
24 Ver: GLOBAL CIVIL SOCIETY. Yearbooks. Oxford, University Press: 2001, 2002, 2003, 2004; organizados pelo Center for the study of Global Governance, da London School of Economics, dirigido por Mary Kaldor. Site: www.lse.ac.uk/Depts/global
25 CAFFARENA, Anna. Le organizzazioni internazionali. Bologna: Il Mulino 2001.
26 FERRARESE, M.R., Le istituzioni della globalizzazione, Bologna, il Mulino, 2000.
27 HUNGTINGTON, S.P., The Clash of Civilizations and the Remaking of the World Order, New York, Simon & Schuster, 1996.
28 CASSESE, Antonio, I diritti umani nel mondo contemporaneo, Laterza, Roma-Bari 1994. PAPISCA A., Diritti umani, “supercostituzione” universale, in “Pace, diritti dell’uomo, diritti dei popoli”, 3 (1990), pp. 13-24.
29 Ver a respeito desta discussão: FERRAJOLI, Luigi. MATARRESE, Tecla. ZOLO; Danilo. Guerra, diritto e ordine globale. In: JURA GENTIUM. Centre for Philosophy of International Law and Global Politics. Firenze: Dip. di Teoria e Storia del Diritto. http://dex1.tsd.unifi.it/jg/ (que reúne vários artigos sobre o assunto).
30 KELSEN, Hans. Peace trough Law, The University of North Carolina Press, 1944.
31 NOUR, Soraya À Paz Perpétua. Filosofia do direito internacional e das relações internacionais, São Paulo: Martins Fontes, 2004. ROHDEN, Valério (org.) Kant e a instituição da paz. Porto Alegre: Ed. UFRGS, Goethe-Institut/ICBA, 1997.

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