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Tortura, Intolerância, Direitos Humanos

Paper, em versão preliminar, apresentado no Terceiro Seminário Internacional- Polícia e Sociedade Democrática: O Estado Democrático de Direito e as Instituições Policiais, Governo de Rio Grande do Sul, Porto Alegre, Rio Grande do Sul,1.2 2002

Paulo Sérgio Pinheiro
Professor Titular de Ciência Política , USP
Secretário de Estado de Direitos Humanos, Brasil
mailto:Brasilpaulo.pinheiro@mj.gov.br

Foi com muita satisfação que aceitei o convite para falar na manhã de hoje sobre um tema crônico que afeta várias novas democracias no continente americano e que continua insistentemente presente no cotidiano brasileiro, mesmo depois de quinze anos do final da ditadura militar. Refletir sobre tais questões num espaço institucional como este seminário é uma valiosa oportunidade para discutir um tema crucial da consolidação democrática. Tentarei examinar aqui como os temas centrais deste seminário , tortura e tolerância se relacionam e perguntar-me e qual é a perspectiva que a promoção e proteção dos direitos humanos oferece para a erradicação de ambos flagelos.

Antes de tudo cumpre lembrar que durante séculos a tortura foi usada como meio de prova admitido pelo direito. No excelente e clássico "livro-reportagem" de Pietro Verri , Observações sobre a Tortura, um alerta da ineficácia da tortura como meio de prova, é apresentada a montagem de um processo judicial, toda ele feito a partir de confissões obtidas por meio da tortura. Esse fato histórico teve lugar em Milão no ano de 1630. Ali essas confissões obtidas por meio de tortura criam uma história absurda em que os acusados acabam por confessar que causaram uma terrível peste em Milão, espalhando pela cidade uma unção que usavam para pregar cartazes. Apesar de ineficaz como meio de prova e método de investigação a tortura, durante séculos, foi o método jurídico para descoberta da verdade dos fatos.

Fato paradoxal que atenta contra o próprio significado da ciência jurídica que vem a ser a ciência de jus dicere (dizer o justo). Será o ato de torcer alguém até transmitir uma informação a forma mais adequada e viável de "revelar o justo"? Em termos de técnica de investigação e do due process of law ,devido processo da lei,definitivamente não. Apesar disso a antiga essa é uma antiga crença que continua disseminada no planeta e no Brasil, onde o inquérito policial e o processo judicial continuam a ser profundamente inquisitoriais.

Torturar, não é investigar, mas desumaniza não só a vítima como também o torturador."A tortura subverte a própria lógica do aparato estatal, que de guardião da lei e assegurador de direitos transforma-se em violador da lei e aniquilador de direitos." .Da tortura e desaparecimento dos presos políticos da Ditadura militar há uma larga continuidade até a tortura contra os suspeitos do homicídio do navegador neozelandês Peter Burke no Amapá . De acordo com o balanço preliminar divulgado pelo SOS Tortura , no âmbito da campanha contra a tortura, desenvolvida pelo Movimento Nacional de Direitos Humanos em parceria com a Secretaria de Estado dos Direitos Humanos, durante o período de 30 de outubro de 2001 a 17 de janeiro de 2002 foram denunciados 803 casos de tortura no país. Pelo levantamento , conforme as denúncias que estão sendo apuradas, os instrumentos mais usados são o cassetete, aparelhos de choque elétrico, gás pimenta , sacos plástico e paus de arara.

Em dezembro do ano passado membros da Comissão Especial de Tortura do Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana, CDDPH, foram a Teixeira de Freitas, no sul da Bahia. Com apoio da Polícia Federal ingressaram de surpresa no Complexo Penitenciário daquela cidade. Lograram flagrar diversos presos apresentando ferimentos, equimoses e marcas. Quatorze foram levados a exame de corpo de delito e revelaram estar sofrendo castigos corporais diários e sistemáticos, além de encerramento num cubículo. O Diretor, vice-diretor e vinte e um agentes penitenciários foram afastados.

Tolerância

A investigação policial quando feita nos limites impostos pela lei funciona como um processo de comunicação. A etimologia de comunicação esclarece seu significado como sendo co-munus . "Munus" de encargo tarefa .Comunicar é portanto uma tarefa compartilhada por duas ou mais pessoas no gozo da sua dignidade. Quando a comunicação torna-se impossível deixamos de considerar o outro como sujeito, o destituímos de sua inerente dignidade, está preparado o terreno para a violência . Quando toleramos o outro: dialogamos. Quando não toleramos o outro: torturamos. A intolerância, que foi um dos temas principais está entre as causas primeiras da tortura.

É necessário, primeiramente, definirmos tolerância. Tolerar não é acolher, aconchegar, está mais para suportar. Quando toleramos alguém existe sempre uma tensão. Saramago diz que só tolerar é muito pouco temos que buscar outras formas de coexistência que a superem. O que supera a tolerância é a hospitalidade. As doutrinas filosóficas sobre a tolerância surgem como forma de criar um espaço de dissenso para as diferentes formas de religião que discordavam entre si. Se cada diferente religião coloca-se como portadora da verdade absoluta, não é lógico existir mais do que uma verdade absoluta, portanto as outras formas de religião seriam todas heréticas. Nessa perspectiva da tolerância compreende-se o aparecimento do estado laico. O Estado ao não se identificar com um culto em especial garante a possibilidade da existência de diversos cultos. Não há o reconhecimento da existência de uma verdade única, mas reconhece-se a dignidade inerente a todo ser humano e a busca da verdade espiritual como um ato de liberdade de cada um em relação ao qual o Estado não deve interferir.

Tolerar é pois suportar a existência do outro e respeitar seu diferente pensamento, sua outra forma de agir. A tolerância é o primeiro e imprescindível passo para o reconhecimento do outro como sujeito. Isso só acontecerá no terreno da hospitalidade. Afirma Edgard Morin: "Escrevo que o ser-sujeito nasceu num universo físico, que ignora a subjetividade que fez brotar, que abriga e, ao mesmo tempo, ameaça. O indivíduo vivo vive e morre neste universo onde só o reconhecem como sujeito alguns congêneres vizinhos e simpáticos. É, portanto, na comunicação amável que podemos encontrar o sentido de nossas vidas."

Mas a tolerância ela não é a garantia de um mundo justo e fraterno. Para atingirmos esse fim é preciso muito mais... Todavia ela é o mínimo que se pode exigir para a existência de uma convivência relativamente pacífica na sociedade.Ao tolerar somos capazes de conviver com o diferente, aturamos o diálogo e podemos "agir conjuntamente" o que para Hannah Arendt é o fator essencial para geração de poder. Um poder baseado na tolerância, na convivência e no agir conjunto. Não um poder baseado na subjugação, um poder que transforma o ser humano em lixo não-reciclável.

O poder baseado no "agir conjunto" é a forma de poder mais adequada a uma democracia participativa como a brasileira. Tolerância, convivência, hospitalidade esses valores que informam a democracia participativa "deveriam estar refletidos no nosso policiamento e na governabilidade" (PSP; 1998). "A própria noção da forma de policiamento contribui para formação de uma cultura democrática." (PSP; 1998) Acredito que nenhuma instituição é mais central para o sucesso da consolidação do estado de direito do que a polícia. Se isso é verdade porque a polícia continua a torturar? Uma das respostas está na intolerância que brutaliza e desumaniza as classes populares .Quando se perde a tolerância, perdemos toda e qualquer possibilidade de contato sadio entre seres humanos. Desconsiderar-se o outro, transforma-o em algo descartável, ejetável, passível e possível de ser torturado.

Tortura e intolerância

Uma perversa lógica da intolerância tem dominado a história de nossa República. Tortura-se já que o poder do Estado brasileiro não é o poder não-violento de Hannah Arendt, mas é o poder que se baseia na violência, na destruição intencional do outro. Ao torcer e quebrar o outro, numa situação de completa falta de igualdade de armas, eu arranco-lhe a humanidade pois -de forma prática- não reconheço seu merecimento ao respeito, sua inerente dignidade.

A Declaração de 1948 é o início de todo um novo ramo do Direito: o Direito Internacional dos Direitos Humanos (DIDH). Esse novo ramo do Direito Internacional Público é elaborado logo após a experiência totalitária dos campos de concentração, o holocausto, após a Segunda Guerra Mundial (uma guerra para acabar com todas as outras guerras) que terminou com o lançamento das bombas nucleares de Hiroshima e Nagasaki que colocaram -pela primeira vez na história da humanidade - a possibilidade do aniquilamento do planeta. Surgido neste contexto histórico o DIDH -segundo Guilherme de Almeida -tem como princípio de organização: a não-violência. É por essa razão que a luta pelos direitos humanos é uma luta contra o poder, isso já dizia René Cassin um dos pais da Declaração de 1948. Não que os direitos humanos prescindam do poder, eles são contrários a uma determinada espécie de poder: aquele que tem como fundamento a violência arbitrária. A não-violência como princípio sobressai esclarece-nos a razão de ser de vários de seus documentos do DIDH, tanto na esfera global como regional: A Convenção contra a Tortura e outros Tratamentos ou Penas, Cruéis, Desumanos ou Degradantes (1984); a Convenção Interamericana para Prevenir e Punir a Tortura (1985); a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher apelidada de Convenção de Belém do Pará de 1994 e a Convenção Européia para a Prevenção da Tortura e Tratamentos Desumanos ou Degradantes (1987). Devo lembrar também um preceito do direito internacional humanitário que segundo Sérgio Vieira de Melo (Secretário para Assuntos Humanitários da ONU) funciona como divisor de águas entre civilização e barbárie. É o artigo 3 comum as quatro Convenções de Genebra de 1949 do que pode ser usado em qualquer situação de conflito interno ou internacional. Estabelece o artigo 3 no seu inciso a e c a proibição: a) os atentados à vida e à integridade física, em particular o homicídio sob todas as formas, as mutilações, os tratamentos cruéis, torturas e suplícios; c) as ofensas à dignidade das pessoas, especialmente os tratamentos humilhantes e degradantes.

A legitimação da tortura

Para nosso espanto atualmente alguns ousam defender a idéia de que em casos de extrema urgência (determinado prisioneiro possui uma informação que pode salvar a vida de dezenas de pessoas) a prática da tortura física e psicológica é legítima. Usa-se o argumento de que em algumas circunstâncias, a tortura é um mal menor. Essa toada aparece este ano na revista Atlantic Monthly ao refletir que sob condições extremas e em circunstâncias desesperadoras não seria o caso de se repensar o recurso à tortura: "Algumas vezes em más circunstâncias boas pessoas devem fazer coisas más" obviamente, torturar. Em outro artigo recente na revista Newsweek um editorialista abre sua alma lembrando "que não podemos legalizar a tortura; é contra os valores americanos. Mas ao mesmo tempo em que continuamos protestando contra os abusos aos direitos humanos no mundo ,precisamos manter uma mentalidade aberta sobre certas medidas de combate ao terrorismo, como interrogatórios psicológicos sancionados pela justiça" e propõe a transferência dessa sale besogne , esse trabalho sujo, para "nossos aliados menos escrupulosos". Mas não é exatamente o que vem acontecendo faz muito tempo na cena internacional do século XX as grandes potências delegavam a ditaduras da periferia o papel de contenção do comunismo ? Não é o que acontece em várias novas democracias, como a nossa , em que as elites brancas instrumentalizam as polícias para sua proteção fechando aos olhos para a tortura? Essa hipocrisia vem ocorrendo faz décadas. Essa "mentalidade aberta" para a tortura é mais perigosa ainda que sua defesa aberta que poucos ousam fazer. Essa legitimação da tortura como tema de debate muda dramaticamente o pano de fundo dos pressupostos e opções ideológicas. O problema aqui, como bem apontou o filósofo esloveno Slavoj Zizek, é de pressupostos éticos fundamentais: é claro que se pode legitimar a tortura em relação a benefícios de curto prazo (salvar centenas de vidas) mas e as conseqüências em longo prazo para nosso universo simbólico ? Onde devemos parar ? Porque não torturar criminosos graves, um pai que raptou seu filho da ex-mulher ? A idéia de que depois de deixar o gênio sair da garrafa a tortura possa ser mantida em um nível "razoável" é a pior ilusão liberal.".

Legitimar a prática da tortura e dos tratamentos desumanos, sob qualquer circunstância, é dar a possibilidade da desrazão e da irracionalidade dirigir a vida de homens e de mulheres. É trocar qualquer indício de humanidade pela mais abjeta barbárie. O fato mais preocupante e que conclama a um estado constante de alerta é que após 11 de setembro de 2001 como vimos essas idéias passaram a ser enfaticamente veiculadas e defendidas (em algumas situações até praticadas) em várias democracias consolidadas.nos quatro cantos do mundo. Mas "Se para vencer o terror tivermos que abrir mão das liberdades individuais, das garantias dos direitos civis, da proibição de uso da tortura, então nossa vitória será realmente um contra-senso." lembrou Fernando Henrique Cardoso.

A crença na serventia da tortura é uma doença crônica brasileira que acomete os aparelhos policiais em todo o país. A Constituição de 1988 com sua carta de direitos do artigo 5 e garantias fundamentais condenam de forma enfática e veemente sua prática. Passados 14 anos da promulgação da Constituição de 1988, e 17 anos do final do regime militar constatamos que a tortura deixou de ser praticada contra os prisioneiros políticos stritu sensu pelo simples fato não haver mais esses Entretanto, hoje, nos manicômios judiciais, penitenciárias, delegacias, instituições para adolescentes em conflito com a lei e demais lugares de encarceramento a tortura e as mais variadas formas de tratamentos desumanos continuam a ser perpetrados contra a população pobre e miserável, as "classes torturáveis" como as chamava o escritor Graham Greene. "O maior conjunto de práticas de tortura se dá quando cidadãos estão sob a custódia do Estado, em delegacias, cadeias e presídios. A tortura é um recurso constantemente usado por policiais para obter informações sobre crimes. Com freqüência, pessoas detidas, em flagrante ou não, são torturadas para dar informações sobre como ocorreu ou foi planejado o crime, para apurar esconderijos ou denunciar outras pessoas envolvidas etc. Nessa mesma lógica sem o trabalho policial e pericial adequados, ao torturar um suspeito busca-se logo provocar sua confissão, como prova que dispensa a continuidade da investigação".

Na época da ditadura militar o perverso argumento para justificar a tortura pelos aparelhos de repressão paralelos, como os DOI-CODI, era a necessidade de preservar a segurança nacional. Nos seus vinte e três anos de existência da Comissão Teotônio Vilela de Direitos Humanos e nos quatorze do Núcleo de Estudos da Violência tem sido exaustivamente documentada a prática sistemática da tortura no Brasil, defendido suas vítimas e tentado contribuir para responsabilizar seus perpetradores. Policiais, juízes, promotores e advogados devem saber que a tortura é proibida em qualquer circunstância pela lei internacional; que seu uso faz minar a autoridade e a legitimidade dos governos;que ela é perpetrada no contexto de outras graves violações de direito humanos; que ela não é um meio confiável para recolher informação sobre crimes e criminosos; que as tentativas de justifica-la não passam de ardis psicológicos para permitir os perpetradores desconectarem sua consciência moral de atos de extrema violência. E no entanto ela persiste .A tortura não pode ser justificada em nenhuma circunstância porque ele faz impugnar o mero sentido de nossa existência na nave Terra e que impede toda a pretensão de sermos humanos. Hoje o que explica sua perpetuação? Como erradicá-la?

Tortura e pedagogia do medo

A tortura que praticada no Brasil não é somente organizada para obter informações, ainda que este aspecto esteja presente num sistema jurídico profundamente inquisitorial e baseado na confissão. A tortura parece não visar primeiramente nem apenas visar alvos específicos, mas também em função dos efeitos de massa capazes de serem produzidos por ricochete, numa operação de construção da "pedagogia do medo" ( a expressão é de Olga Mingot) . Trata-se , de forma similar à tortura sob a ditadura militar de "atingir indivíduos considerados como nós em redes de relações familiares e sociais quantitativamente numerosas e através daí atingir indiretamente o maior número possível de pessoas possível a fim de criar nela, pelo terror, um habitus de aceitação passiva (...) não referido a uma causa (...), e ainda mais [para promover] o desligamento e a eliminação do sujeito como origem da palavra".

Como disse meu antigo colega o relator especial para tortura da ONU, Nigel Rodley, a tortura é um "crime de oportunidade", que pressupõe a certeza da impunidade. O combate a esse crime exige, assim, a adoção pelo Estado de medidas preventivas e repressivas. De um lado, é necessárias a criação e manutenção de mecanismos que eliminem a 'oportunidade' de torturar, garantindo a transparência do sistema prisional-penitenciário. Por outro, a luta contra a tortura impõe o fim da cultura de impunidade, exigindo do Estado rigor no dever de investigar, processar e punir seus perpetradores."

Alguns passos fundamentais, foram dados pelo direito brasileiro: 1) os direitos e garantias fundamentais expressos no artigo 5º da Constituição de 1988; 2) a ratificação em 1989 pelo Estado Brasileiro da Convenção contra a Tortura e outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes (1984); 3) A lei 9.455 de 07 de abril de 1997 que tipifica o crime de tortura e 4) a lei 9.807 que estabelece o Programa de Proteção às vítimas e Testemunhas. Mais recentemente no final do ano 2001, como já mencionamos foi lançada a campanha nacional contra a tortura com o MNDH e o SOS Tortura, com o fone 08007075551.

O governo brasileiro apresentou relatório transparente, elaborado com a colaboração de entidades e especialistas independentes como são o professor Fernando Salla e a professora Flávia Piovesan: dificilmente será possível encontrar outro país no hemisfério sul com padrão de violações de direitos humanos como o Brasil que pratique consistentemente a transparência e a aceitação do monitoramento por organizações da sociedade civil nacional, internacional e por organismo multilaterais. Não nos deixemos de lembrar como foi difícil e como custaram a ser dados esses passos. Como disse uma vez meu ilustre antecessor José Gregori tudo que se consegue em matéria de direitos humanos nesse país autoritário, é muito, muito difícil. Não nos subestimemos, no governo ou na sociedade civil, não desvalorizemos o que conseguimos a muito custo.

Entretanto é preciso deixar claro que essas leis e medidas por si só não bastam, elas poderão ser o fundamento de uma nova prática, não são a prática em si. Assim podemos dizer o que se aplica a evolução política do Brasil em relação à tortura: o passado não está morto: nem passado é ainda. Em boa medida porque o sistema social não se altera com a mudança do regime político, da Constituição e das leis de um Estado. As leis acabam, muitas vezes, sendo melhores que homens e mulheres componentes de determinada sociedade conseguem tornar realidade. As leis indicam o norte a seguir, mas são incapazes de por si só alterar a mudança.

Urge debelar o que Franco Basaglia chamava de "instituição da violência", mudar aquilo que meu querido colega o professor Sérgio Adorno chamou da ciência da tortura, praticada com a conivência ou a omissão de autoridades policiais e judiciárias na maior parte dos locais de encarceramento de nosso país. Aqui prisões, os manicômios judiciários e as instituições para adolescentes em conflito com a lei apresentam-se como locais da ordem propiciadora da regeneração e mas na realidade funcionam como espaços do não-direito, verdadeiros artefatos para a desumanização das vítimas e dos algozes.

Muitas autoridades em diversos estados da federação continuam a tratar, os pobres, marginalizados e despossuídos como "classes perigosas" que cumpre cercar e enquadrar. Para afastar as classes perigosas das elites "a polícia e outras instituições do sistema criminal tendem a atuar como guardas-fronteiras protegendo a elite dos pobres. Muros, ruas e condomínios fechados, esquemas de segurança privados, herméticos shopping centers continuam a deixar as elites "salvas" das classes perigosas. Sem a sociedade se dar conta que "O mito da possibilidade de isolamento auto-suficiente leva à implosão de qualquer possibilidade de sobrevivência da esfera pública."

A violência policial e a tortura continuam impávidas ,com impunidade garantida, porque justamente dirigidas contra as "classes perigosas" e raramente afetando a vida das classes médias, afluentes e ricas" (PSP;1998). Tolera-se silenciosamente a tortura e as diversas formas de maus-tratos como uma espécie de assepsia social. Para tanto continua em curso "tanto entre as classe mais favorecidas como entre as classes populares há uma operação mental de desumanização em relação aos desviantes e diferentes (vadios, criminosos, nordestinos, afrodescendentes, homossexuais) que autoriza o arbítrio e gera aquiescência diante das violações".

Mais uma vez é a hora de declarar que o governo federal não tolerará a tortura ou outras formas de maus- tratos por parte de funcionário público, principalmente policial militar ou civil, pessoal penitenciário e pessoal de instituições destinadas a crianças e jovens infratores. O governo federal denunciará todo e qualquer crime de tortura e chamará a responsabilidade subsidiária dos estados da federação na investigação, processo, julgamento dos perpetradores desses crimes. Um acordo padrão entre a Secretaria de Estado de Direitos Humanos e os governos dos estados está sendo assinado visando à estreita colaboração dos estados na repressão e prevenção da tortura. Conforme foi proposto pela Anistia Internacional em recente relatório. O governo jamais assumirá na ordem internacional a defesa dos perpetradores dessas violações. Desde o dia 24 de janeiro o governo federal , através de medida provisória proposta pelo Ministro da Justiça, Aloysio Nunes Ferreira,tem a competência de determinar a competência da polícia federal de intervir nas investigações de graves violações de direitos humanos e assim o fará. Ao mesmo tempo deverá ser iniciada em breve capacitação dos operadores do judiciário sobre as responsabilidades diante da convenção internacional contra a tortura. Estou propondo a aceitação pelo governo federal da aceitação do direito de petição individual ao Comitê contra a Tortura mediante a declaração prevista no artigo 22 da Convenção contra a Tortura. Desde o ano passado está confirmada a visita ao Brasil de minha colega a relatora especial sobre execuções extrajudiciais, sumárias ou arbitrárias, Asma Jahandir, que receberá total e irrestrito apoio , pleno acesso a todos os dados e informações . O governo federal considera as visitas dos relatores especiais da ONU como relevante colaboração para a proteção dos direitos humanos, tanto que desde 19 de dezembro, quando o Presidente Fernando Henrique Cardoso anunciou uma "standing invitation", um convite permanente e em aberto para todos os relatores especiais e representantes especiais da ONU. Assim o Brasil é um dos doze países do mundo que até o momento fez esse convite.

O que garantimos ao ser humano quando sua integridade física e psíquica é respeitada? Garante-se a ele ou a ela a mínima consideração de sua condição humana. A partir desse ponto que o ser humano pode rumar para o desenvolvimento. Os pobres e miseráveis ao serem destituídos dos seus mais mínimos direitos civis e políticos como também dos econômicos, sociais e culturais não tem sua existência dignificada o que os coloca para fora do terreno da tolerância e da convivência. A falta de equanimidade na consideração da humanidade dos seres humanos, obra da atitude de intolerância, impossibilita todo e qualquer desenvolvimento.

O estudioso da paz Joan Galtung afirma que violência é tudo que impede o desenvolvimento. A resposta possível para a erradicação da tortura é uma decidida e enfática aposta no Desenvolvimento e uma absoluta intolerância contra a pobreza. A questão é "por quanto tempo o Brasil postergará o aproveitamento extraordinário do seu potencial de desenvolvimento, desperdiçando a sua chance histórica de se projetar como uma potência mundial com rosto humano?(...)

O tempo é precioso. A cada geração que passa, são milhões de brasileiros que perdem a oportunidade de viver uma vida digna de realizar seus potenciais humanos. É uma perda irreparável porque irreversível, eticamente escandalosa.

 

 
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