POLICIAMENTO
COMUNITÁRIO NO BRASIL
O
policiamento comunitário, que está se desenvolvendo no Brasil e
em outras democracias emergentes na década de 1990, se
desenvolveu originalmente nos Estados Unidos, no Canadá e em
outros países democráticos, principalmente os de língua
inglesa, nas décadas de 1970 e 1980. Nos Estados Unidos e no
Canadá, o discurso e a prática do policiamento comunitário
foram gradualmente adotados por lideranças e grupos reformistas
na polícia, na comunidade e no governo, com o objetivo de
melhorar a imagem e o desempenho da polícia e a qualidade da
segurança pública.
Nos
Estados Unidos em 1994, Congresso aprovou o "Violent Crime
Control and Law Enforcement Act" autorizando o governo
federal a destinar recursos para promover o policiamento
comunitário e financiar a contratação ou deslocamento de
100.000 policiais para o patrulhamento ostensivo. O Departamento
de Justiça criou a divisão do "Community Oriented Policing
Services" (COPS) que, de 1994 a 1998, financiou a
contratação ou deslocamento de 70.000 policiais para o
patrulhamento ostensivo e destinou US$ 3,6 bilhões para
promoção do policiamento comunitário em mais de 9.000
organizações policiais em diversos estados e cidades do país.
Existe
hoje, principalmente nos Estados Unidos, uma ampla bibliografia
científica e profissional sobre o policiamento comunitário. Nesta bibliografia, há
diversas teorias ou concepções de policiamento comunitário que
estão relacionadas a diversos projetos de reforma e
aperfeiçoamento da polícia. Entretanto, existem algumas
características comuns a diversos projetos de reforma e
aperfeiçoamento da polícia, implementados sob diversas
denominações, que tendem a ser identificadas como as
características básicas do policiamento comunitário.
Policiamento
Comunitário nos Estados Unidos e no Canadá
Nos
Estados Unidos e no Canadá, o policiamento comunitário é
normalmente entendido como uma filosofia e estratégia de
policiamento baseada em parcerias entre a polícia e a comunidade
e voltada para a melhoria da segurança pública através da
identificação e resolução dos problemas da comunidade que
aumentam o risco de crimes. É uma forma de policiamento,
portanto, que associa e valoriza três elementos, que
frequentemente são dissociados e desvalorizados pela polícia:
parcerias entre a polícia e a comunidade, identificação e
resolução de problemas da comunidade e prevenção de crimes.
É
possível observar pelos menos três tipos ou três práticas de
policiamento normalmente identificados como, ou associados ao,
policiamento comunitário: o policiamento orientado para a
comunidade (“community-oriented policing”); o policiamento
orientado para a identificação e resolução de problemas da
comunidade (“problem-oriented policing”); o policiamento
orientado para a manutenção da ordem pública e para a melhoria
da qualidade de vida da comunidade (“quality of life policing”).
O
policiamento orientado para a comunidade (“community-oriented
policing”) é a concepção de policiamento que valoriza e chama
a atenção para a importância de criar e sustentar parcerias
entre a polícia e a comunidade para garantir a segurança
pública.
O
policiamento orientado para a resolução de problemas da
comunidade (“problem-oriented policing”) valoriza e chama a
atenção para importância de identificar e resolver os problemas
da comunidade para garantir a segurança pública.
O
policiamento orientado para a manutenção da ordem pública e a
melhoria da qualidade de vida da comunidade (“quality of life
policing”) valoriza e chama a atenção para a importância de
manter a ordem pública e melhorar a qualidade de vida da
comunidade para garantir a segurança pública. Este tipo de
policiamento ficou conhecido principalmente através dos “programas
de tolerância zero”, inspirados na teoria das “janelas
quebradas”.
Nos
Estados Unidos e no Canadá, as organizações policiais tendem a
combinar estes três tipos de policiamento, ainda que com
prioridades diferentes dependendo das características de cada
polícia e de cada comunidade. É difícil sustentar parcerias
entre a polícia e a comunidade sem que estas parcerias contribuam
para resolver problemas e melhorar a qualidade de vida da
comunidade. Da mesma forma, é difícil melhorar a qualidade de
vida da comunidade sem sustentar sem parcerias entre a polícia e
a comunidade capazes de resolver os problemas da comunidade. Nos
dois países, a resolução dos problemas e a melhoria da
qualidade de vida da comunidade tendem a ser considerados
componentes importantes do policiamento comunitário, ao lado da
parceria entre a polícia e a comunidade.
O
que aproxima o policiamento orientado para a comunidade, do
policiamento orientado para a resolução de problemas e do
policiamento orientado para a melhoria da qualidade de vida é a
proecupação das três tipos
de policiamento com a prevenção do crime e não apenas com a
identificação e prisão dos criminosos. O policiamento orientado
para a comunidade focaliza problemas conjunturais e o policiamento
orientado para a resolução de problemas focaliza problemas
estruturais que aumentam o risco de crimes.
Esta preocupação com a resolução dos problemas estruturais ou
conjunturais da comunidade diferencia estes dois tipos de
policiamento dos programas de “tolerância zero” e do
policiamento voltado para a manutenção da ordem pública e para
a melhoria da qualidade vida da população. A principal
preocupação deste último é com os comportamentos criminosos.
Seu objetivo é prevenir rimes não tanto através da resolução
dos problemas da comunidade mas principalmente através da
dissuasão dos criminosos e da intensificação do policiamento
nas áreas e nos horários em que há maior risco de crimes.
Tradicionalmente,
a polícia procurou controlar a criminalidade e melhorar a
segurança pública através da modernização tecnológica e da
profissionalização dos policiais, da centralização do comando
e do controle nas mãos de profissionais altamente qualificados e
da organização e preparação dos policiais para responder
rapidamente às ocorrências criminais e para idendificar e
prender os criminosos. Esta estratégia funcionou relativamente
bem até a década de 1960 e 1970. Entretanto, o enfraquecimento
de mecanismos tradicionais de controle social -como a família, a
escola e a igreja-, a contenção de despesas governamentais, o
aumento da criminalidade violenta, do tráfico de drogas e da
delinqüência juvenil, o distanciamento a intensificação de
conflitos entre a polícia e a comunidade mostraram os limites e
as imperfeições desta estratégia.
Nas
décadas de 1970 e 1980, um número crescente de estudos mostrou
que o policiamento convencional, ao distanciar a polícia da
sociedade, foi capaz de conter a utilização da polícia para
fins político-partidários e eleitorais. Mas, ao mesmo tempo,
alienou a polícia da comunidade e alienou os próprios policiais
do comando da polícia, gerando e intensificando conflitos entre a
polícia e a sociedade e entre os policiais e o comando da
polícia. Além de ser muitas vêzes ineficaz e ineficiente do
ponto de vista do controle da criminalidade, este tipo de
policiamento se apoiava excessivamente no uso da força como forma
de controlar a criminalidade na sociedade e na própria polícia.
Novos
estudos mostraram que a participação da comunidade na
formulação, implementação e avaliação de políticas de
segurança e estratégias de policiamento, se orientada para a
identificação e resolução de problemas de segurança pública,
ajuda a prevenir crimes. A partir de experiências práticas,
cujos resultados foram avaliados positivamente pela polícia, pela
comunidade e por especialistas em segurança pública, o
policiamento comunitário se desenvolveu e se fortaleceu não
apenas como uma filosofia mas também como um modelo
organizacional e uma série de práticas gerenciais e
operacionais.
O
policiamento comunitário assume necessariamente formas diferentes
em lugares diferentes, uma vez que parte do pressuposto que as
prioridades da polícia e as estratégias de policiamento têm que
ser ajustadas às necessidades e expectativas de cada comunidade.
Entretanto, independentemente da forma como é realizado em cada
comunidade, o policiamento comunitário tem algumas
características básicas que o diferenciam das formas
tradicionais de policiamento.
O
policiamento comunitário é um tipo de policiamento baseado na
pareceria entre a polícia e a comunidade. Nesta parceria, a
comunidade tem o direito de não apenas ser consultada mas também
participar das decisões sobre as prioridades da polícia e as
estratégias de policiamento, como contrapartida da sua
obrigação de colaborar com o trabalho da polícia no controle da
criminalidade e na preservação da ordem pública.
A
polícia, por sua vez, tem a obrigação de prestar contas das
suas atividades não apenas diante da lei e das autoridades civis
mas também diante da comunidade, como contrapartida do seu
direito de usar a força e de prender os cidadãos para garantir a
segurança pública.
O
policiamento comunitário, além disso, é um tipo de policiamento
preventivo, no qual a polícia e a comunidade trabalham em
conjunto, para identificar e resolver os problemas e melhorar a
qualidade de vida da comunidade -e não apenas para responder a
ocorrências criminais e para identificar e prender os criminosos
cujos crimes são na maioria das vêzes uma manifestação
superficial destes problemas.
Este
policiamento preventivo, através de parcerias entre a polícia e
a comunidade, exige a descentralização e a abertura da
organização policial para permitir que os policiais, que são o
elo de ligação da polícia com a comunidade, os cidadãos e os
representantes de organizações governamentais e da sociedade
civil se engajem e cooperem de fato na identificação e
resolução dos problemas que afetam a segurança pública.
Exige também um estilo de gerenciamento participativo,
flexível e ágil, voltado para o apefeiçoamento profissional dos
policiais e a prestação de serviços à comunidade, para
permitir a adequação das prioridades da polícia e das
estratégias de policiamento às expectativas e necessidades de
cada comunidade. Finalmente, exige uma cultura profissional que
incorpore e promova os valores da democracia, particularmente o
respeito ao estado de direito e aos direitos humanos, para
permitir que a ampliação do papel da polícia na garantia da
segurança pública, inerente aos projetos de policiamento
comunitário, não aumente os riscos de violência e de
corrupção policial.
Com
o policiamento comunitário, ao invés de simplesmente sustentar
prioridades e estratégias impostas de cima para baixo por
governos e chefes de polícia, a polícia passa a sustentar
prioridades e estratégias desenvolvidas em cada local através de
parcerias entre os policiais e as lideranças e grupos
comunitários. Policiais em todos os níveis hierárquicos, de
todos os setores da polícia, assim como os membros da comunidade
passam a atuar de forma integrada e, cada um na sua área de
competência, passam a ser responsáveis pelas prioridades e
estratégias de policiamento. A agenda, as prioridades e as
estratégias da polícia passam a ser debatidas de forma ampla a
transparente pelos policiais e pela comunidade.
O
sistema de informações é organizado para produzir informações
seguras e atualizadas, não apenas para relatórios mensais para
os chefes de polícia e autoridades governamentais mas
principalmente para relatórios semanais e diários sobre a
evolução da criminalidade e o desempenho da polícia que servem
de base para a discussão das prioridades da polícia e das
estratégias de policiamento. Policiais de todos os níveis
hierárquicos e setores da polícia e lideranças comunitárias
são treinados em métodos e técnicas avançadas para coleta,
análise e comunicação de dados, tendo em vista a resolução
dos problemas da comunidade e a prevenção de desordens, delitos
e crimes.
O
sistema de seleção, treinamento, supervisão e promoção dos
policiais valoriza a capacidade de coletar, analisar e transmitir
informações, em parceria com a comunidade, com o objetivo de
identificar e resolver problemas, melhorar a qualidade de vida e
diminuir o risco de crimes. Não valoriza apenas a capacidade de
responder rapidamente a ocorrências criminais e prender
criminosos.
O
policiamento comunitário está apoiado em estratégias
operacionais que dirigem a atenção e os recursos da polícia e
da comunidade para a identificação e resolução de problemas
nos chamados “hot spots” -locais, horários, grupos,
indivíduos e comportamentos diretamente associados com o aumento
da criminalidade. O aumento do número de policiais, patrulhas,
investigações criminais e prisões têm efeito significativo na
segurança pública apenas se planejadas e executadas com os
policiais e a comunidade e se direcionadas para os “hot spots”.
Mas não basta o direcionamento das estratégias operacionais para
os "hot spots".
As
estratégias do policiamento comunitário têm um caráter
essencialmente preventivo. Mas, além disso, estas estratégias
visam não apenas reduzir o número de crimes mas também reduzir
o dano, da vítima e da comunidade, e modificar os fatores
ambientais e comportamentais para modificar o tipo e reduzir a
gravidade dos crimes.
Finalmente,
o policiamento comunitário exige o estabelecimento de uma
relação de confiança entre a polícia e a comunidade. Esta
relação, por sua vez, exige um compromisso claro e inequívoco
da polícia com o respeito às regras do estado de direito, com a
proteção dos direitos humanos, dos membros da comunidade e dos
policiais, e com a eliminação de práticas violentas, corruptas
ou mesmo desrespeitosas na polícia.
O
policiamento comunitário é indissociável de sistemas rigorosos
de prestação de contas da polícia não apenas para a própria
polícia e para as autoridades do Executivo, do Legislativo e do
Judiciário mas também para as comunidades para quem a polícia
presta serviços. Esta prestação de contas pode ser feita
formalmente através de mecanismos como ouvidorias de polícia,
comissões de revisão das reclamações dos cidadãos e conselhos
comunitários e informalmente através de contatos regulares entre
os policiais e os membros da comunidade. Sistemas rigorosos de
prestação de contas são indispensáveis para diminuir os
riscos, aumentar os benefícios e viabilizar a descentralização
organizacional e operacional da polícia e o exercício da
autonomia profissional e da discrecionaridade que são inerentes
ao policiamento comunitário.
No
policiamento comunitário, entretanto, sistemas de prestação de
contas passam a ter como objetivo não apenas a punição mas
principalmente o aperfeiçoamento profissional dos policiais. O
aperfeiçoamento profissional dos policiais, além disso, é
entendido como a capacitação dos policiais para não apenas
manter a lei e a ordem e controlar a criminalidade mas também -o
que é indispensável em regimes democráticos- respeitar as
regras do estado de direito e os direitos humanos.
Policiamento
Comunitário: Dos Estados Unidos e Canadá para o Brasil
Na
década de 1990, o desenvolvimento do policiamento comunitário
nas democracias consolidadas, principalmente nos Estados Unidos e
Canadá, chamou a atenção das democracias emergentes
interessadas em reformar e aperfeiçoar a polícia e melhorar a
segurança pública. Na América Latina, Europa Oriental e África
Meridional, democracias emergentes começaram a reformar a
polícia quando um número crescente de estudos mostrando as
limitações das políticas segurança pública e estratégias de
policiamento tradicionais e as possibilidades do policiamento
comunitário eram publicados nos Estados Unidos e divulgados
internacionalmente.
O
Brasil fez a transição do autoritarismo para a democracia na
década de 1980 e está desde 1990 engajado no processo de
consolidação democrática.
Parte central deste processo é a institucionalização do estado
de direito e dos direitos de cidadania (civis, políticos e
sociais) para todos os membros da sociedade. Isto requer, entre
outras reformas, a reforma do judiciário e da polícia, que são
as instituições responsáveis pela manutenção da lei e da
ordem, para torná-las mais eficazes, eficientes e equânimes e
mais comprometidas com a defesa do estado de direito e a
proteção dos direitos humanos.
No
Brasil, na década de 1980, a Comissão Provisória de Estudos
Constitucionais (Comissão Afonso Arinos) propos a separação das
forças armadas e da polícia, a limitação do papel das forças
armadas na segurança pública e reformas na polícia que
apontavam na direção do policiamento comunitário.
Em São Paulo em 1985, o governo estadual criou os conselhos
comunitários de segurança. No Rio de Janeiro em
1984-87, o governo estadual defendeu a integração entre a
polícia e a comunidade na resolução dos problemas de segurança
pública. O plano diretor da polícia militar do Rio de Janeiro
reorientou a ação da polícia para os problemas de segurança
pública através de uma nova concepção de ordem pública
baseada na colaboração e integração entre a polícia e a
comunidade.
Entretanto,
as forças armadas e as polícias militares, juntamente com a
maioria conservadora da Assembléia Constituinte e do Congresso
Nacional, defenderam a continuidade e o endurecimento de
políticas de segurança pública e estratégias de policiamento
convencionais. Para os conservadores, o fortalecimento da polícia
e a participação das forças armadas na “guerra ao crime” e
especialmente na “guerra às drogas” -apontada como uma das
principais causas do aumento da criminalidade nas décadas de 1980
e 1990- continuam a ser as formas mais efetivas de conter o
aumento da criminalidade.
Desde
a sua criação no século dezenove, a polícia no Brasil serviu
principalmente para proteger os interesses da elite política e da
elite econômica que tinham a autoridade e o poder para
controlá-la. Serviu também para para proteger os interesses de
seus próprios membros, mais do que para controlar a
criminalidade, manter a ordem pública e proteger os direitos dos
cidadãos. A maioria da população nunca participou do debate
sobre políticas de segurança pública, que sempre foi amplamente
dominado pelas elites.
Com
a transição para a democracia, entretanto, a maioria da
população passou a ter o direito de votar, eleger o governo e,
pelo menos indiretamente, participar da definição de políticas
de governo. As políticas de governo, assim, passaram a ser
minimamente influenciadas pela maioria da população e voltadas
para a proteção dos interesses desta maioria. Na década de 1980
e principalmente na década de 1990, o aumento da criminalidade
violenta, princpalmente nos grandes centros urbanos, fez da
segurança pública uma das principais preocupações da
população e dos governantes. Em 1994, os dois principais
candidatos à Presidência da República apresentaram programas de
governo nos quais propostas de reforma nas as áreas da justiça e
segurança pública apareciam com grande destaque.
O
aumento da participação da população na definição de
políticas de governo favoreceu algumas vêzes os grupos
conservadores. Entretanto, este movimento abriu caminho para a
atuação de grupos reformistas na área da segurança pública.
Grupos reformistas passaram a convergir em torno do projeto de
reforma da polícia e do policiamento comunitário, como uma
alternativa ao projeto conservador de fortalecimento da polícia e
endurecimento das políticas de segurança pública e estratégias
de policiamento.
Na
década de 1990, projetos de policiamento comunitário ou de
"policiamento interativo" e "segurança
cidadã", como foram algumas vêzes chamados, começaram a
ser implantados em diversas cidades e bairros em diversos estados
do Brasil: Ribeirão Preto (SP), Copacabana no Rio de Janeiro
(RJ), Samambaia (DF), Guaçuí (ES), Recife (PE), Porto Alegre
(RS) e Macapá (AP). Em dezembro de 1997, a polícia militar
lançou um projeto para implantação do policiamento comunitário
em todo o estado de São Paulo -o mais ambicioso projeto de
policiamento comunitário até agora iniciado no país.
Entretanto,
apesar do crescente entusiasmo com o policiamento comunitário,
há pouquíssima discussão da possibilidade de desenvolvimento do
policiamento comunitário, o tipo de policiamento comunitário que
pode ser implantado e as condições necessárias para a
implantação deste tipo de policiamento no Brasil. Muitas das
condições que contribuiram para o desenvolvimento do
policiamento comunitário nos Estados Unidos e no Canadá não
estão presentes no Brasil. Além disso, a polícia no Brasil se
desenvolveu e se professionalizou sob a influência das polícias
da Europa Continental e o policiamento comunitário na Europa
Continental não teve o mesmo sucesso que teve nos Estados Unidos
e no Canadá e em outros países de língua inglêsa.
Finalmente, mesmo nos Estados Unidos e no Canadá, onde as
condições são mais favoráveis ao seu desenvolvimento, o
policiamento comunitário encontrou bastante resistência e
oposição.
Quais
são as condições que dificultam e as condições que facilitam
a implantação do policiamento comunitário no Brasil? Quais são
as diferenças, semelhanças e relações entre o policiamento
comunitário no Brasil, nos Estados Unidos e no Canadá? Como o
policiamento comunitário está sendo implantado no Brasil? Para
começar a responder estas perguntas e compreender a natureza,
origem e desenvolvimento do policiamento comunitário no Brasil,
é útil comparar o contexto a experiência histórica do Brasil e
dos Estados Unidos e Canadá antes de examinar o policiamento
comunitário no Brasil.
Brasil,
Canadá e Estados Unidos: as diferenças
No
Canadá e nos Estados Unidos, três fatores contribuiram de
maneira significativa para o desenvolvimento do policiamento
comunitário: uma democracia consolidada e um sistema político
descentralizado; um sistema legal construído sobre a tradição
da “common law”; e um sistema policial civil e unificado. No
Brasil, a ausência destas três condições não apenas dificulta
o desenvolvimento do policiamento comunitário mas também faz com
que o policiamento comunitário adquira características
diferentes das características do policiamento comunitário nos
Estados Unidos e no Canadá.
Os
Estados Unidos e o Canadá têm regimes democráticos consolidados
há muitas décadas, que foram capazes de institucionalizar o
estado de direito e de extender um amplo leque de direitos civis,
políticos e sociais para a maioria dos cidadãos. Os dois países
ocupam o quarto e o primeiro lugar, respectivamente, no ranking do
desenvolvimento humano do Programa das Nações Unidas para o
Desenvolvimento (PNUD). Os Estados Unidos têm um índice de 0,943
e o Canadá de 0,960.
O
Brasil, ao contrário, tem uma democracia emergente, ainda não
consolidada, onde o estado de direito não está
institucionalizado e os direitos da maioria dos cidadãos não
estão garantidos. No ranking de desenvolvimento humano do PNUD, o
Brasil ocupa o sexagésimo segundo lugar com índice de 0,809.
Além
disso, os Estados Unidos e o Canadá têm sistemas políticos
decentralizados, nos quais os governos locais têm um grau alto de
autoridade e poder e os cidadãos participam ativamente nos
governos locais. O governo federal e os governos estaduais têm
suas próprias polícias, mas a grande maioria das polícias e dos
policiais são organizadas e controladas por governos locais. Em
1990, os Estados Unidos tinham 16.961 organizações policiais com
um total de 869.064 funcionários, sendo 793.020 em regime de
tempo integral. Deste total, 91% das organizações policiais
tinham menos de 50 policiais e 50% tinham menos que dez policiais.
Na polícia da cidade de Nova York, a maior do país,
33.363 funcionários trabalhavam em tempo integral (sendo
25.655 policiais). Em 1998, a polícia de
Nova York passou a contar com aproximadamente 38.000
funcionários.
No Canadá, em 1991, 56.774 policiais e outros 19.000
funcionários trabalhavam em aproximadamente 420 organizações
policiais.
Apesar
de ter um estado federal como os Estados Unidos e o Canadá, o
Brasil tem um sistema político bastante centralizado onde os
governos locais não têm um grau alto de autoridade e poder
e os cidadãos não participam ativamente nos governos
locais. O sistema político, entretanto, não é tão centralizado
como na França, Itália, Espanha ou Portugal, que têm estados
unitários e polícias organizadas e controladas pelo governo
nacional.
No
Brasil, os governos locais têm guardas municipais sem poder de
polícia. O governo federal organiza e controla a polícia
federal. Mas a maioria do efetivo policial pertence às polícias
militares e civis organizadas e controlados pelos vinte e seis
governos estaduais. No estado de São Paulo, que tem o maior
força policial, a polícia militar tem 82.403 policiais e a
polícia civil tem 37.043 policiais, para um total de 119.446
policiais.
Os
Estados Unidos e o Canadá têm sistemas legais baseados na “common
law”, no qual o processo judicial é conduzido pelas partes em
conflito, segundo o modelo adversarial, diante de autoridades do
estado, cujo objetivo é administrar ou mediar o conflito e
encontrar uma solução aceitável para as partes. A lei é
tratada como um instrumento para proteção de direitos dos
cidadãos, inclusive e prinicipalmente contra abusos de
autoridades estatais.
No
caso do Brasil, um sistema legal baseado na “civil law” faz
com que o processo judicial seja conduzido segundo o modelo
inquisitorial pelas autoridades do estado, cujo objetivo é impor
uma solução e eliminar o conflito entre as partes. A lei é
tratada com um instrumento para educar os cidadãos e para manter
a ordem social e política.
Os
dois sistemas são baseados em tipos diferentes de relação entre
os cidadãos e os representantes do estado e particularmente da
polícia, que facilitam no caso do Canadá e Estados Unidos e
dificultam no caso do Brasil a interação entre a comunidade, o
estado e a polícia. No caso do Canadá e Estados Unidos, existe a
pressuposição de igualdade entre os cidadãos e as autoridades
estatais e policiais, enquanto no caso do Brasil a pressuposição
é de superioridade das autoridades estatais e policiais e de
inferioridade dos cidadãos.
Finalmente,
nos Estados Unidos e Canadá, cada governo local organiza e
controla uma única polícia, completamente separada das forças
armadas, responsável apenas pela manutenção da lei e da ordem
através do policiamento ostensivo e preventivo, atendimento de
ocorrências e investigação criminal. Além disso, a polícia
tem uma estrutura organizacional integrada, com um número
limitado de níveis hierárquicos e sem uma rígida separação e
diferenciação entre os policiais em níveis hierárquicos
diferentes.
No
Brasil, cada governo estadual organiza e controla duas polícias:
uma militar e uma civil. A polícia militar é não apenas
polícia mas também força auxiliar e reserva do Exército e,
como tal, sujeita a regras e diretivas militares e responsável
não apenas pelo manutenção da lei e da ordem mas também pela
defesa nacional e do estado. Constitucionalmente, a polícia
militar é responsável pelo policiamento ostensivo e pela
manutenção da ordem pública e a polícia civil pelas
investigações criminais e polícia judiciária. Na prática,
cada polícia frequentemente desempenha atividades da outra
polícia, subtituindo, cooperando ou competindo com a outra
polícia. Além disso, as duas polícias têm uma estrutura
hierárquica segmentada, com muitos níveis hierárquicos e uma
rígida separação e diferenciação entre os policiais em
níveis hierárquicos diferentes.
Brasil,
Canada e Estados Unidos: as semelhanças
Dada
a natureza extremamente diferente do sistema político, legal e
policial no Brasil e nos Estados Unidos e Canadá, por que e como
o policiamento comunitário foi introduzido no Brasil como uma
possível solução para os problemas da polícia no Brasil?
Ao
lado das diferenças mencionadas acima, há fatores conjunturais e
estruturais importantes para o desenvolvimento do policiamento
comunitários que estão presentes nos três países e que
contribuiram para o desenvolvimento do policiamento comunitário
no Brasil. No Brasil, como nos Estados Unidos e no Canadá, há
uma percepção generalizada dos limites e deficiências das
formas convencionais de policiamento e da necessidade de melhorar
o desempenho da polícia. Essa percepção das deficiências da
polícia é reforçada por casos de violência e de corrupção
policial de grande repercussão nos meios de comunicação social.
Ainda que os tipos e níveis de criminalidade e de violência
policial sejam bastante diferentes nos três países, a
preocupação do público com a melhoria do desempenho da polícia
é uma característica comum aos três países.
No
Brasil, como nos Estados Unidos e no Canadá, há uma série de
estudos e investigações jornalísticas que mostram que a
persistência dos problemas graves na polícia -da ineficácia,
ineficiência e violência policial- apesar dos esforços da
polícia e do governo para solucioná-los. Nos três países, há
problemas associados à estrutura e à cultura organizacional da
polícia, que não podem ser resolvidos simplesmente através da
punição ou expulsão de maus policiais.
Há
também uma mobilização da sociedade, do governo e da polícia
em favor de reformas para aproximar a polícia e a comunidade e
para tornar a polícia mais atenta às preocupações, valores e
prioridades da comunidade e mais capaz de identificar e resolver
os problemas da comunidade na área da segurança pública.
Há
ainda uma crescente bibliografia científica e oferta de serviços
de consultoria e assessoria não apenas sobre o policiamento
comunitário mas também sobre o processo de implantação deste
tipo de policiamento que pode servir de apoio para lideranças políticas,
policiais e comunitárias interessadas no desenvolvimento deste
tipo de policiamento.[1]
Além
disso, no Brasil, como nos Estados Unidos e no Canadá, há mudanças
estruturais na sociedade e no estado que contribuem para
fortalecer projetos de policiamento comunitário na polícia. No
setor privado e no setor público, teorias e práticas da
qualidade total estão cada vez mais presentes, modificando a
maneira pela qual as organizações funcionam e se estruturam. As
organizações enfatizam cada vez mais a prestação de serviço
ao consumidor ou cidadão, a atenção aos valores, interesses e
expectativas dos consumidores ou cidadãos, a avaliação da
qualidade do serviço prestado, da descentralização
organizacional e operacional e a participação e integração dos
consumidores ou cidadãos e dos membros da organização na
formulação, implementação e avaliação das políticas e
estratégias organizacionais.
Finalmente,
na sociedade civil, organizações não governamentais e grupos
comunitários cada vez mais se mobilizam para proteger direitos
individuais e coletivos e para participar mais ativamente na
formulação e implementação de políticas úblicas em parceria
com organizações governamentais. Essa mobilização da sociedade
civil também ajuda a sustentar projetos de reforma da polícia e
de policiamento comunitário.
Todos
estes fatores contribuíram para o desenvolvimento do policiamento
comunitário nos Estados Unidos e no Canadá e estão contribuindo
para o seu desenvolvimento no Brasil. Mas no Brasil há ainda um
fator adicional, ausente nos Estados Unidos e Canadá, que
contribui para a aceitação da filosofia -mas não da prática-
do policiamento comunitário: o grau relativamente baixo de
profissionalismo da polícia.
No
Brasil, o grau relativamente baixo de profissionalismo da polícia
diminuiu as resistências ao policiamento comunitário, na medida
em que a polícia não foi ainda separada e diferenciada da
sociedade da mesma forma como aconteceu nos Estados Unidos e no
Canadá. O menor grau de separação e diferenciação entre a polícia
e a sociedade que facilitou a difusão da filosofia do
policiamento comunitário e da idéia (falsa) de que o
policiamento comunitário sempre existiu e/ou pode ser implantado
facilmente ou rapidamente no país.
Particularmente
nas cidades do interior e nas cidades de menor porte, persistem
formas de policiamento pré-modernas, anteriores ao
desenvolvimento do policiamento de tipo profissional, no qual a
polícia está bastante associada não à comunidade mas à elite
local. Esta associação entre a polícia e a elite local facilita
a aceitação da filosofia do policiamento comunitário, na medida
que os representantes da elite local passam por representantes da
sociedade ou da comunidade. Entretanto, nesse contexto, ao
legitimar a associação entre a polícia e a elite local, a difusão
da filosofia do policiamento comunitário dificulta, ao invés de
facilitar, o processo de reforma da polícia e de implantação do
policiamento comunitário na medida em que este processo exige não
apenas a integração, cooperação ou colaboração entre a polícia
e a sociedade ou a comunidade mas principalmente, em primeiro
lugar, a separação e diferenciação entre a polícia e a elite
local.
Quando
os representantes da elite local assumem o papel dos
representantes da comunidade no projeto de implantação do
policiamento comunitário, excluindo do projeto os representantes
da população pobre e de grupos minoritários, o policiamento
comunitário é inviabilizado na prática. Além disso, o que é
pior, do ponto de vista do desempenho da polícia, da qualidade da
segurança pública e da consolidação da democracia, a filosofia
do policiamento comunitário passa a ser a ideologia através do
qual a elite local e a polícia racionalizam, mascaram e susentam
formas de policiamento pré-modernas e autoritárias.
Brasil,
Canada e Estados Unidos: as influências internacionais
Para
a introdução e o desenvolvimento do policiamento comunitário no
Brasil, foi fundamental a troca de experiências e a difusão de
informações sobre projetos bem-sucedidos de policiamento comunitário
nos Estados Unidos, no Canadá e em outros países como a
Inglaterra, a Austrália, a Nova Zelândia e o Japão.
Mas
a influência internacional no desenvolvimento do policiamento
comunitário no Brasil é indireta. Ao invés de servir de modelo
para reforma da polícia no Brasil -o que seria impossível dadas
as diferenças entre os países analisadas acima-, os exemplos de
policiamento comunitário em outros países, bastante diferentes
entre si, tem servido de contraponto e elemento de comparação na
discussão de projetos de reforma da polícia no Brasil. O
conhecimento dos problemas do policiamento em outros países serve
para alertar os brasileiros dos riscos deste tipo de policiamento.
O conhecimento dos projetos de policiamento comunitário e
principalmente o conhecimento dos resultados destes projetos em
outros países serve para legitimar projetos de reforma da polícia
e de policiamento comunitário no Brasil, ainda que os projetos no
Brasil tenham características diferentes dos projetos nos outros
países.
Policiamento
Comunitário no Brasil
Por
que o policiamento comunitário foi introduzido no Brasil, apesar
das dificuldades para implantação deste tipo de policiamento
analisadas acima e da virtual inexistência de estudos e avaliações
sobre o policiamento comunitário no país?[2]
Por que o estado de São Paulo lançou um grande projeto de
policiamento comunitário, abrangendo 41 projetos piloto em todo o
estado, sem antes testar e avaliar a viabilidade deste tipo de
policiamento? Ainda que o principal objetivo do policiamento
comunitário seja melhorar o desempenho da polícia e a qualidade
da segurança pública, razões políticas, mais do que razões de
desempenho policial e segurança pública, motivaram a introdução
deste tipo de policiamento no Brasil e particularmente em São
Paulo em 1997.
Fatores
Estruturais
Desde
a transição para a democracia, houve uma redefinição
das expectativas em relação à polícia. O critério para avaliação
da polícia passou a ser não apenas a sua capacidade de manter a
lei e preservar a ordem pública mas também a sua capacidade de
respeitar e proteger o estado de direito e os direitos dos cidadãos.
Grupos sociais e organizações da sociedade civil que
tradicionalmente tiveram uma relação conflituosa com a polícia,
seja porque são vítimas de violência policial ou porque são
comprometidos com a proteção e promoção dos direitos humanos,
passaram a ter maior espaço de atuação política. Denúncias de
violência policial através dos meios de comunicação social e
em fóruns internacionais passaram a comprometer a legitimidade da
polícia e do governo. Governantes e chefes de polícia passaram a
ter um interesse maior no controle da violência policial.[3]
Além
disso, o processo de desenvolvimento econômico e reformas
sociais, do qual dependia em parte a estabilididade da nova
democracia, dependia por sua vez de investimentos externos e
internos. Estes investimentos, por sua vez, dependiam de um certo
grau de confiança no funcionamento das institutições e
particularmente das instituições responsáveis pela manutenção
da lei e da ordem. Ao mesmo tempo que organizações de direitos
humanos reivindicavam mudanças na polícia para reduzir a violência
policial, organizações empresariais passaram cada vez mais a
denunciar as deficiências da polícia e a reivindicar mudanças
para aumentar a eficácia e a eficiência da polícia.[4]
Finalmente,
grupos de novos profissionais, na polícia, no governo e na
sociedade civil, com acesso a informações sobre polícia em
outros países, principalmente Estados Unidos e Canadá, passaram
cada vez mais a reconhecer a gravidade das deficiências e da violência
da polícia no Brasil. Ao mesmo tempo, estes grupos começaram a
perceber as limitações das formas tradicionais de policiamento e
as possibilidades abertas pelo policiamento comunitário.
Fatores
conjunturais
De
1985 a 1995, houve uma série de estudos, propostas e projetos de
reforma da polícia que promoviam a implantação do policiamento
comunitário, em diversos municípios e estados, mas geralmente
sem grande apoio governamental e da própria polícia. Somente em
1996 este tipo de reforma da polícia passou a receber maior apoio
governmental.
Em
1996, o Núcleo de Estudos da Violência da USP, em parceria com o
Human Rights Research and Education Center da Universidade de
Ottawa, iniciou um projeto de intercâmbio entre o Brasil e o
Canadá para troca de experiências de policiamento comunitário e
de participação da sociedade civil na formulação e implementação
de políticas de controle da violência social e policial. Um dos
principais objetivos deste projeto, com a duração de três anos,
foi criar oportunidades para que os policiais brasileiros pudessem
conhecer a experiência de policiamento comunitário no Canadá.[5]
Em 1996 e 1997, o Núcleo de Estudos da Violência apoiou a inclusão
de propostas de apoio à implantação do policiamento comunitário
no Programa Nacional de Direitos Humanos e no Programa Estadual de
Direitos Humanos de São Paulo.
O
Programa Nacional de Direitos Humanos, lançado pelo
governo federal em 13 de maio de 1996, apontou claramente a
necessidade de reforma da polícia e a recomendou a todos os
estados a implantação do policiamento comunitário.[6]
Nenhum estado seguiu esta recomendação imediatamente. No
primeiro semestre de 1997, o governo federal, através do Ministério
da Ministério da Justiça, com apoio do Viva Rio, organizou a Conferência
Nacional sobre Justiça, Segurança e Cidadania. Esta conferência
analisou e avaliou iniciativas de reforma da polícia e projetos
de policiamento comunitário em diversos estados do país,
inclusive São Paulo, Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul, Paraná,
Espírito Santo, Pernambuco, Amapá e Distrito Federal e novamente
recomendou ao estados a implantação do policiamento comunitário.[7]
Em
maio de 1997, o governo federal, através do Ministério da Justiça,
criou uma comissão especial para avaliar o sistema de segurança
pública, que elaborou e divulgou em agosto um documento com
33 recomendações para reforma da polícia, que foram entregues
ao presidente da república e recebidas como ponto de partida para
a formulação de uma política nacional de segurança pública.
Uma das recomendações era o apoio a projetos de policiamento
comunitário nos estados.[8]
Policiamento
Comunitário em São Paulo
Em
São Paulo, uma série de acontecimentos contribuiram para
aumentar a mobilização em favor de reformas na polícia durante
o ano de 1997.
Em
primeiro lugar, houve uma série de casos de violência policial
com grande publicidade na imprensa. No dia 31 de março, a Rede
Globo de Televisão transmitiu para todo o país uma fita de vídeo
mostrando um grupo de policiais militares do 24° BPM, nos dias 3,
4, 5, 6 e 7 de março, ameaçando, agredindo e espancando
moradores da Favela Naval, em Diadema, e matando uma pessoa
na noite do dia 6 para o dia 7 de março.
Outros
casos de violência policial com grande repercussão na imprensa
aumentaram o impacto do caso da Favela Naval: a morte de três
pessoas durante operação da polícia militar para desocupar um
conjunto habitacional na Fazenda da Juta na zona leste de São
Paulo no dia 20 de maio de 1997; o sequestro e assassinato do
menino de oito anos Ives Ota por policiais militares que
faziam bico trabalhando como seguranças para o seu pai em agosto
de 1997.
Na
polícia civil, teve grande repercussão o caso da prisão por
parte de policiais civis de um grupo de pessoas acusadas de
participar do assassinato de uma jovem no Bar Bodega, num
bairro de classe média de São Paulo. O Ministério Público, a
partir de informações fornecidas pela polícia militar,
comprovou que o grupo não tinham tido nenhuma participação no
crime, que tinha sido cometido por outras pessoas. Os acusados,
entretanto, haviam sido presos, torturados e obrigados a confessar
o crime por policiais civis que queriam resolver rapidamente um
caso de grande repercussão na imprensa.
Estes
não foram casos isolados de violência policial. Segundo dados
oficiais divulgados em 1997, 547 civis foram mortos por policiais
militares em 1995 (45,58 por mes), 301 em 1996 (25,08 por mes) e
322 em 1997 (26,83 por mes). Novos dados oficiais, divulgados em
1998, revelam que o número de civis mortos por policiais
militares foi ainda maior: 618 em 1995 (51,5 por mes), 398 em 1996
(33,2 por mes) e 435 em 1997 (36,6 por mes). No caso da polícia
civil, 43 civis foram mortos por policiais civis em 1995 (3,8 por
mes), 38 em 1996 (3,2 por mes) e 31 em 1997 (2,6 por mes). Ainda
que o número de civis mortos por policias seja muito inferior aos
números registrados em 1991 e 1992, quando morreram 1.076 e 1.450
civis em encontros com policiais militares e 10 e 7 civis em
encontros com policiais civis, o número é extremamente alto
-muito superior ao número de civis mortos pela polícia em
qualquer país democrático.[9]
A
Ouvidoria da Polícia, criada pelo governo estadual em dezembro de
1995, recebeu 2.648 denúncias contra a polícia em 1996, sendo
297 por abuso de autoridade, 191 por tortura ou espancamento, 40
por homicídio, 72 por extorsão/concussão e 94 por corrupção.[10]
Em 1997, a Ouvidoria recebeu 3.784 denúncias contra a polícia,
sendo 599 por abuso de autoridade, 243 por tortura/espancamento,
101 por homicídio, 206 por extorsão/concussão e 74 por corrupção.[11]
Além
dos casos de violência policial, entretanto, policiais militares
e civis realizaram manifestações de protesto contra o governo em
praticamente todos os estados do país em junho e julho de 1997.
Estas manifestações resultaram em rebeliões nas polícias e
intervenções das forças armadas em Minas Gerais, Mato
Grosso do Sul, Alagoas, Pernambuco, Paraíba, Ceará e Rio Grande
do Sul. Em São Paulo, o governo estadual e as lideranças
policiais, inclusive das associações profissionais, foram
capazes de evitar a rebelião e a intervenção militar, mas
experimentaram por várias semanas a ameaça e o medo de rebelião
e de intervenção.[12]
As
rebeliões nas polícias e as intervenções das forças armadas
em sete estados em 1997 mostraram de forma dramática a crise e a
necessidade de reformas das polícias no Brasil. De forma menos
dramática, mas ainda mostrando os problemas e a necessidade de
mudanças nas polícias, as forças armadas foram empregadas na área
da segurança pública pelo menos 50 vêzes de 1985 a 1997, sendo
13 vêzes para controlar crise e rebeliões nas polícias.[13]
Para
agravar o quadro, depois de estabilizar em níveis bastante altos
em 1990, os índices de criminalidade, particularmente
criminalidade violenta, voltaram a subir em meados da década de
1990. No Brasil, a taxa de mortalidade por homicídio e lesões
intencionais provocadas por outras pessoas aumentou de 12,3 por
100.000 habitantes em 1980 para 20,94 por 100.000 habitantes em
1991 e 24,76 por 100.000 habitantes em 1996.[14]
No
estado de São Paulo, segundo dados do Ministério da Saúde, o número
de mortes por homicídio e lesões intencionais provocadas por
outras pessoas aumentou de 3.452 em 1980 para 7.023 em 1985 para
9.517 em 1990 e 9.691 em 1991. O número caiu para 9.027 em 1992 e
9.219 em 1993, mas subiu novamente para 9.995 em 1994, 11.566 em
1995 e 12.350 (36,20 por 100.000 habitantes) em 1996.[15]
Segundo
dados da polícia, o número de homicídios dolosos na Grande São
Paulo aumentou de 6.652 em 1994 para 7.410 em 1995 para 7.829 em
1996 e caiu para 7.702 em 1997. Entretanto, o número de “mortes
suspeitas”, categoria que registra mortes sem causa conhecida,
aumentou de 19.178 em 1994 para 20.187 em 1995 e 22.962 em 1996. [16]
Ainda
segundo dados da polícia, o número de roubos aumentou de 71.665
em 1994 para 73.977 em 1995, 84.235 em 1996 e 103.344 em 1997. O número
de furtos caiu de 111.656 em 1994 para 94.587 em 1995 mas subiu
para 110.911 em 1996 e 122.658 em 1997. Finalmente, o número de
furto e roubo de veículos caiu de 98.388 em 1994 para 88.936 em
1995 mas subiu para 110.646 em 1996 e 196.119 em 1997.[17]
Segundo
pesquisa de vitimização realizada pelo Datafolha em 1997, 27%
dos moradores da cidade de São Paulo com 16 anos ou mais já
foram vítimas de um crime e outros 36% já foram vítimas de dois
ou mais crimes. Mais grave, apenas 33% dos crimes foram
notificados à polícia, devido a, entre outras razões, crença
na ineficácia e ineficiência da polícia e falta de coragem e
medo da polícia.[18]
Não
é possível atribuir os problemas da polícia simplesmente à
falta de recursos. Em 1996, o orçamento da Secretaria da Segurança
Pública foi de R$ 1,937 bilhões, equivalente a 6,34% do orçamento
total do estado e 11,52% do orçamento do estado descontadas as
despesas da administração geral do estado. Somente a Secretaria
da Educação tem um orçamento superior ao da Secretaria da
Segurança (11,6% do orçamento total do estado).[19]
De
1995 a 1997, o governo do estado contratou 8.824 policiais
militares e 4.758 policiais civis, na compra de 4.466 viaturas,
14.859 coletes à prova de balas, 22.500 revólveres, 6.000
pistolas, 5.000 cassetetes e 15.000 tonfas. O governo do estado
aumentou o piso salarial dos policiais de 1a. classe R$ 333,00
para R$ 746,54.[20]
Em
setembro de 1997, entretanto, a um ano das eleições para o
governo do estado marcadas para outubro de 1998, os investimentos
na segurança pública não haviam resultando em melhor desempenho
da polícia e em índices de criminalidade mais baixos. A violência
policial havia diminuído, em parte devido ao Programa de
Atendimento aos Policiais Envolvidos em Ocorrências de Alto Risco
(PROAR) criado pelo governo estadual em 1995, mas ainda era um
problema grave. A criminalidade violenta continuava a aumentar,
anda que em ritimo mais lento do que na década de 1980,
principalmente nas áreas de periferia das grandes cidades em que
se concentram a maioria dos eleitores. Para agravar o problema, o
principal candidato da oposição, conservador, tinha na segurança
pública um dos principais temas da campanha.
No
dia 14 de setembro, o governo de São Paulo lançou o Programa
Estadual de Direitos Humanos que mais uma vez, como o Programa
Nacional de Direitos Humanos, recomendou a implantação do
policiamento comunitário no estado.[21]
No mesmo dia, o governador e o secretário da segurança pública
anunciaram a substituição do comandante-geral da polícia
militar. Além disso, o governador e o secretário da segurança pública
determinaram ao novo comandante, empossado dia 18 de setembro, que
a polícia militar deveria se empenhar mais no controle da violência
policial, no policiamento ostensivo-preventivo e na concentração
dos policiais em áreas de maior risco de criminalidade.
As
recomendações do Programa Estadual de Direitos Humanos e as
determinações do governo do estado refletiram em parte o
resultado de um amplo debate no estado sobre os problemas da polícia
que apontou claramente a necessidade de reformas na polícia. Dois
grandes eventos sinalizaram claramente o apoio da sociedade civil
à reforma da polícia na direção do policiamento comuitário. O
primeiro foi o seminário São Paulo Sem Medo, de 6 a 9 de maio,
organizado pela Rede Globo de Televisão, Fundação Roberto
Marinho e Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São
Paulo, que levou à criação do Instituto São Paulo contra a
Violência.[22]
O segundo foi a 1ª Conferência Estadual de Direitos Humanos, 16
e 17 de junho, organizada pela Comissão de Direitos Humanos da
Assembléia Legislativa, Conselho Estadual de Defesa dos Direitos
da Pessoa Humana, Secretaria da Justiça e da Defesa da Cidadania
e Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo.[23]
Na
polícia, a discussão do policiamento comunitário está sendo
estimulada pelo programa de intercâmbio entre as polícias
militar e civil de São Paulo e polícias do Canadá, desenvolvido
pelo Núcleo de Estudos da Violência da USP e pelo Human Rights
Research and Education Center da Universidade de Ottawa. Este
programa, iniciado em 1996, tem os seguintes objetivos: dar apoio
às iniciativas brasileiras de interação da polícia com a
comunidade, promover o diálogo entre autoridades brasileiras e
canadenses para aprimorar e trocar experiências de policiamento
comunitário, promover treinamento sobre relacionamento comunitário
e apoiar iniciativas de participação da comunidade em organizações
que ajudem o controle externo das polícias militar e civil.[24]
A
partir do dia 15 de setembro, já atendendo a uma recomendação
do programa estadual de direitos humanos, a polícia militar começou
a instalar postos de policiamento funcionando 24 horas por dia. Até
abril de 1998, a polícia militar instalou 201 postos localidades
na na região metropolitana, com o objetivo de tornar a polícia
mais acessível à população no horário noturno.[25]
No
dia 30 de setembro, a polícia militar instalou a Comissão de
Assessoramento da Implantação do Policiamento Comunitário. Sob
a presidência do comandante do policiamento metropolitano da polícia
militar, a Comissão reúne representantes da polícia e de
entidades da sociedade civil e do estado com atuação na área da
segurança pública e direitos humanos.
A
Comissão passou a realizar reuniões semanais na sede do comando
de policiamento metropolitano e, desde fevereiro de 1998, a fazer
visitas a projetos piloto de policiamento comunitário. A comissão
se tornou um forum troca de informações e debate sobre os
problemas da polícia e da segurança pública, as mudanças
necessárias para resolução destes problemas e a formas de
implementar estas mudanças. A comissão se tornou também o
principal grupo de apoio ao projeto de policiamento comunitário
no estado.
No
dia 10 de dezembro de 1997, o comandante-geral da polícia militar
oficialmente adotou o policiamento comunitário como filosofia e
estratégia organizacional e lançou o projeto de implantação do
policiamento comunitário no estado, com a realização de um
seminário no Parlamento Latino Americano, em São Paulo. Ainda
que o policiamento comunitário exija a participação da polícia
civil e da polícia militar, foi a polícia militar quem assumiu a
dianteira na sua implantação. Duas razões ajudam a explicar a
iniciativa e o empenho da polícia militar no policiamento comunitário:
Por
outro lado, a polícia militar, mais do que a polícia civil, pode
ganhar legitimidade e apoio político com o policiamento comunitário.
Este tipo de policiamento valoriza o policiamento ostensivo e
preventivo e a interação com a comunidade, que atualmente são
realizados principalmente pela polícia militar.
Apesar
de receber o apoio do governo e de segmentos expressivos da polícia
militar e da comunidade, o projeto de policiamento comunitário se
defrontou desde o início com a resistência e com o ceticismo de
grande parte da polícia, principalmente da polícia civil, e da
comunidade. Para os céticos, o projeto do policiamento comunitário
não passa de uma proposta eleitoreira do governo e de uma estratégia
de relações públicas da polícia militar. Para os opositores, o
policiamento comunitário enfraquece a polícia, desviando
policiais e recursos do combate à criminalidade para as relações
públicas e a assistência social.
No
lançamento do projeto do policiamento comunitário, permanecia a
dúvida: O projeto seria apenas uma promessa da polícia diante da
crise e do governo diante das eleições, destinada ao
esquecimento quando a crise passar e as eleições terminarem? Ou
o projeto ganharia apoio na polícia, na comunidade e no governo e
seria capaz de sobreviver à crise e às eleições e se tornaria
ponto de partida para uma ampla reforma da polícia? Nesse caso,
como o projeto seria implementado? O projeto contribuiria para a
melhoria do desempenho da polícia e da qualidade da segurança pública?
Ou o projeto contrbuiria para piorar ainda mais o desempenho da
polícia e a qualidade da segurança pública? Estas questões são
analisadas nos próximos capítulos.
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