1.
INTRODUÇÃO
O
projeto de implantação do policiamento comunitário foi lançado
no estado de São Paulo no dia 10 de dezembro de 1997. Neste dia,
em solenidade no Parlamento Latino Americano, com a presença do
secretário da Segurança Pública do Estado de São Paulo, do
comandante-geral da polícia militar e do delegado-geral da polícia
civil, a polícia militar oficialmente adotou o policiamento
comunitário como filosofia e estratégia organizacional e lançou
um ambicioso projeto de reestruturação e de redefinição da sua
missão e da sua relação com a comunidade em todo o estado. O
objetivo central deste projeto é desenvolver um tipo de
policiamento apoiado em parcerias entre a polícia e a comunidade
e voltado para a melhoria da segurança pública e da qualidade de
vida da população através da identificação e resolução dos
problemas da comunidade que contribuem para o aumento da
criminalidade e da violência.
Para
viabilizar a implantação do policiamento comunitário em São
Paulo, a polícia militar instalou no dia 30 de setembro, dois
meses e dez dias antes do lançamento oficial do projeto, a Comissão
de Assessoramento da Implantação do Policiamento Comunitário.
Esta comissão, aberta à participação da sociedade civil, com
representantes da polícia militar, da polícia civil, da
Secretaria da Segurança Pública, da Secretaria da Justiça e da
Defesa da Cidadania e de diversas organizações não-governamentais,
presidida pelo comandante do policiamento metropolitano da polícia
militar, se reúne regularmente desde 30 de setembro na sede do
comando da polícia militar, para trocar informações e para
analisar, avaliar e sugerir medidas para a implantação do
policiamento comunitário.
O
Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo (NEV)
foi convidado pela polícia militar e aceitou participar da Comissão
do Policiamento Comunitário. O NEV é um centro de pesquisas
especializado no estudo das instituições responsáveis pelo
controle da violência e pela defesa da democracia, do estado de
direito e dos direitos humanos. Como um centro de pesquisa, a
principal colaboração que o Núcleo de Estudos da Violência
pode oferecer à Comissão é contribuir para a análise e avaliação
sistemática e rigorosa da concepção, da implementação e do
resultado do projeto de policiamento comunitário e do seu impacto
na qualidade da segurança pública, na consolidação da
democracia e na institucionalização do estado de direito e dos
direitos humanos no estado de São Paulo.
Este
relatório apresenta uma análise e avaliação do projeto de
implantação do policiamento comunitário -nove meses após o seu
lançamento e um ano após a instalação da Comissão do
Policiamento Comunitário- e algumas recomendações para a sua
continuidade e aperfeiçoamento. É uma das forma através das
quais o Núcleo de Estudos da Violência torna conhecidos os
resultados da sua pesquisa sobre o projeto de policiamento comunitário
em São Paulo e através das quais o NEV procura participar do
debate público sobre a reforma da polícia e o policiamento
comunitário no Brasil.
A
Comissão de Assessoramento da Implantação do Policiamento
Comunitário não tem poder decisório. É um órgão tipicamente
consultivo, de assessoria à polícia militar. É um canal de
comunicação entre a polícia militar e a comunidade com o
objetivo de facilitar a troca de idéias e informações sobre o
projeto de policiamento comunitário, o monitoramanto e a avaliação
do projeto durante sua implementação, a identificação dos
problemas que dificultam a implantação do policiamento comunitário
no estado e a discussão de soluções para estes problemas.
A
participação do Núcleo de Estudos da Violência na Comissão não
significa e não deve ser interpretada como sinal de uma aliança
ou apoio político ao governo estadual, à polícia militar ou ao
comando da polícia militar. Esta participação reflete, sim, o
compromisso do NEV com a reforma da polícia e com a construção
de uma polícia comprometida de fato com a garantia da segurança
pública de todos os cidadãos, sem discriminação de qualquer
natureza, e com o respeito ao estado de direito, aos direitos do
cidadão e à dignidade humana. Mais especificamente, esta
participação reflete a expectativa, apoiada em diversos estudos
sobre o policiamento comunitário em democracias consolidadas, de
que o policiamento comunitário -ao incentivar a participação da
comunidade na formulação, implementação e avaliação das políticas
de segurança pública e estratégias de policiamento- pode
contribuir não apenas para melhorar o desempenho da polícia e a
qualidade da segurança pública mas também para o aperfeiçoamento
da democracia e para a institucionalização do estado de direito
e dos direitos humanos.
O
governo do estado, através do Programa Estadual dos Direitos
Humanos, e a polícia militar, através de reiteradas declarações
do seu comandante geral, se comprometeram publicamente com a
implantação do policiamento comunitário e com a transformação
da polícia em uma “polícia de proteção dos direitos de
cidadania e da dignidade humana”.[1]
Na medida em que a polícia militar assume este compromisso público
e solicita a colaboração de entidades da sociedade civil e da
universidade -não como uma forma de cooptá-las e desmobilizá-las
como aconteceu outras no vêzes no passado, mas para obter o apoio
a um projeto para transformar a polícia- é uma obrigação
destas entidades atender a esta
solicitação.
Considerando
o curto prazo de tempo desde o início da implantação do
policiamento comunitário, este relatório focaliza principalmente
a origem do policiamento comunitário em democracias consolidadas,
particularmente nos Estados Unidos e no Canadá, e o seu
desenvolvimento no Brasil (capítulo 2), os objetivos e estratégias
do projeto de policiamento comunitário em São Paulo (capítulo
3) e o processo de implementação deste projeto (capítulo 4).
Ainda é cedo para analisar o impacto do policiamento comunitário
na qualidade da segurança pública no estado de São Paulo e para
afirmar que o projeto é bem-sucedido ou irreversível. Mas o
relatório analisa as mudanças provocadas pelo projeto na
organização e no funcionamento da polícia e nas relações
entre a polícia e a comunidade (capítulo 5) e discute as realizações,
desafios e perspectivas do projeto (capítulo 6).
O
relatório está baseado em informações obtidas principalmente
através da observação do projeto de policiamento comunitário
em andamento, de setembro de 1997 a agosto de 1998, na capital e
no interior, da participação em reuniões, conversas, discussões,
aulas e seminários sobre reforma da polícia e policiamento
comunitário, de entrevistas, de pesquisas de opinião, de
documentos públicos e de notícias divulgadas na imprensa escrita
e televisiva. O relatório não é resultado de uma pesquisa
puramente acadêmica, mas de um estudo que aplica métodos e técnicas
normalmente empregados nas ciências sociais para analisar e
avaliar o desenvolvimento de um projeto de policiamento comunitário.
O
Núcleo de Estudos da Violência sempre manteve uma atitude crítica
em relação à polícia e ao governo estadual e conta com
pesquisadores que não recebem financiamento e não têm vínculo
com a polícia ou o governo estadual. É preciso reconhecer,
entretanto, que o acesso às informações sobre a implantação
do policiamento comunitário depende do interesse da polícia, que
espera receber não apenas uma análise e avaliação crítica do
projeto mas também cooperação e apoio no desenvolvimento do
projeto. Neste relatório, tentamos corresponder a estas
expectativas, sem ultrapassar os limites da nossa responsabilidade
e competência científica. O relatório focaliza, por isso, questões
gerais referentes à implantação do policiamento comunitário no
estado e não questões específicas referentes à implantação
do policiamento comunitário em uma cidade ou distrito.
O
relatório sugere que, considerando os obstáculos e as
dificuldades para implantação do policiamento comunitário no
Brasil, avanços significativos foram realizados entre setembro de
1997 e setembro de 1998 em São Paulo, principalmente na polícia
militar e na relação polícia militar-comunidade. O
comando-geral da polícia militar adotou o policiamento comunitário
como filosofia e estratégia organizacional. A Comissão de
Implantação do Policiamento Comunitário está apoiando a
implantação desta filosofia e estratégia organizacional no
estado de São Paulo. Policiais estão trabalhando em projetos
piloto de policiamento comunitário e em bases comunitárias de
segurança em diversos bairros da capital e em diversas cidades do
interior do estado. Policiais estão fazendo cursos e estágios e
recebendo orientação sobre policiamento comunitário e direitos
humanos. Estão recebendo material informativo sobre cidadania e
direitos humanos, policiamento comunitário e relações públicas.
Estão participando de reuniões em conselhos, associações e
grupos comunitários, discutindo os problemas da comunidade e soluções
para estes problemas. Estão fazendo policiamento em escolas e
fornecendo instrução a alunos, professores e pais sobre formas
de prevenir o uso de drogas e a violência. Estão fornecendo
orientação à população sobre o policiamento comunitário e
sobre formas de prevenir os tipos mais comuns de crimes. Estão
estudando e fazendo pesquisa sobre o policiamento comunitário.
Estão participando de seminários acadêmicos e de encontros
promovidos por organizações governamentais e não-governamentais
sobre reforma da polícia e policiamento comunitário. Estão
viajando para outros países para conhecer experiências de
policiamento comunitário. Muitas destas atividades já eram
realizadas em pequena escala, algumas há muitos anos. Mas agora
estão sendo realizadas em escala maior e são mais valorizadas
pela polícia, pelo governo e pela comunidade.
O
relatório sugere, entretanto, que o policiamento comunitário
ainda não pode ser considerado implantado e muito menos
consolidado no estado. Há muitos obstáculos que ainda precisam
ser superados. Há ainda grande confusão em relação aos
objetivos do policiamento comunitário e as estratégias para
atingir estes objetivos. A maioria dos policiais e membros da
comunidade ainda não compreendem o que é o policiamento comunitário
e não estão efetivamente engajados no projeto. Poucas mudanças
aconteceram na organização, no gerenciamento e na cultura
profissional da polícia militar. Mudanças indispensáveis à
implantação do policiamento comunitário estão num estágio
extremamente incipiente: a descentralização e a abertura da
organização policial; a adoção de um estilo de gerenciamento
participativo, compatível com os princípios da qualidade total;
a incorporação dos valores da democracia à cultura profissional
dos policiais, particularmente do respeito ao estado de direito e
aos direitos de cidadania.
Acima
de tudo, muita pouca atenção está sendo dada aos mecanismos de
controle da atividade policial e de prestação de contas da polícia
para a comunidade e à integração entre a polícia militar e a
polícia civil e entre as polícias e as outras agências públicas
responsáveis pela garantia da segurança pública, da justiça,
do bem-estar social e da qualidade de vida dos cidadãos. Em
particular, apesar de iniciativas importantes das suas lideranças,
poucas mudanças aconteceram no Judiciário, no Ministério Público,
na Procuradoria de Assistência Judiciária e no sistema penitenciário
para dar sustentação ao policiamento comunitário.
O
relatório apresenta uma série de sugestões de mudanças na
estrutura organizacional, no estilo de gerenciamento e na cultura
profissional da polícia e nas relações entre a polícia e a
comunidade e os demais órgãos públicos. Além disso, o relatório
sugere que, para implantar o policiamento comunitário, além da
consolidação das mudanças já realizadas e de uma atenção
especial às áreas apontadas como problemáticas, é importante
fazer com que o policiamento comunitário se transforme de fato em
um projeto estadual, da polícia militar e da polícia civil, do
governo e da comunidade, e não fique restrito a um projeto de uma
parcela da polícia militar e da comunidade.
É
importante, neste sentido, que o governo estadual e a Assembléia
Legislativa, que atualmente são os responsáveis pela escolha dos
chefes de polícia e pela definição do orçamento da polícia,
de maneira clara e inequívoca, condicionem a escolha dos chefes
de polícia e a concessão de verbas públicas para polícia à
implantação do policiamento comunitário e principalmente à
obtenção de resultados concretos na redução da violência
social e da violência policial. Para isso, é fundamental que os
eleitores condicionem o seu voto nas eleições para o governo
estadual e para a Assembléia Legislativa ao compromisso efetivo
dos candidatos e dos partidos políticos com o policiamento
comunitário e principalmente com a redução da violência social
e da violência policial.
Além
disso, é indispensável criar, no interior da Comissão do
Policiamento Comunitário, mecanismos que permitam monitorar de
forma mais sistemática e rigorosa a implantação do policiamento
comunitário, identificando rapidamente os avanços e as limitações
ou deficiências do projeto de policiamento comunitário no
estado. Um mecanismo poderia ser a elaboração e divulgação de
relatórios periódicos sobre o policiamento comunitário,
produzidos por membros da polícia e da comunidade, analisando e
avaliando o processo de implantação e o impacto do policiamento
comunitário no estado. Até que o policiamento comunitário
esteja implantado e consolidado, este tipo de análise e avaliação,
apesar de estar inter-relacionada, deve ser separada e
diferenciada da análise e avaliação do desempenho da polícia.
Outro
mecanismo poderia ser a criação de um conselho de assessoria
permanente do policiamento comunitário, semelhante ao conselho
previsto na nota de instrução da polícia militar que regula a
implantação do policiamento comunitário, de 10 de dezembro de
1997.[2]
Este conselho poderia ser composto por policiais militares,
personalidades civis e lideranças comunitárias, com mandato
fixo, e poderia funcionar como órgão de assessoria para estudos,
acompanhamento, avaliação e formulação de propostas para o
desenvolvimento do policiamento comunitário. A este conselho
poderia ser atribuída a responsabilidade de definir um plano e um
cronograma para o desenvolvimento do policiamento comunitário e
de elaborar os relatórios semestrais e anuais sobre o
desenvolvimento do policiamento comunitário no estado.
Nota de Instrução PM3-004/02/02/97, item 6.a.2 e item 6.e.1.
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