Projeto DHnet
Ponto de Cultura
Podcasts
 
 Direitos Humanos
 Desejos Humanos
 Educação EDH
 Cibercidadania
 Memória Histórica
 Arte e Cultura
 Central de Denúncias
 Banco de Dados
 MNDH Brasil
 ONGs Direitos Humanos
 ABC Militantes DH
 Rede Mercosul
 Rede Brasil DH
 Redes Estaduais
 Rede Estadual RN
 Mundo Comissões
 Brasil Nunca Mais
 Brasil Comissões
 Estados Comissões
 Comitês Verdade BR
 Comitê Verdade RN
 Rede Lusófona
 Rede Cabo Verde
 Rede Guiné-Bissau
 Rede Moçambique
        



OS CÁRCERES DA AMÉRICA DO SUL
  *Nilmário Miranda
  Em muitos países da América do Sul, as garantias e direitos elementares das pessoas submetidas a pena supressiva de liberdade são somente formulações teóricas, sem o menor comprometimento do estado e das autoridades penitenciárias responsáveis por sua implementação.

Como membro da Comissão de Direitos Humanos do Parlamento-Latino Americano (Parlatino), representante do legislativo brasileiro, venho, desde 1997, integrando a subcomissão responsável pelas inspeções promovidas a estabelecimentos prisionais de todos os países do continente sul-americano.

Em todas as prisões visitadas constataram-se graves problemas humanos e gerenciais. As conclusões do inspecionamento apontam para a omissão ou ineficiência no tocante ao cumprimento da Resolução nº 2.858, de 1971, preceituada pela Assembléia Geral da ONU e reiterada pela Resolução nº 3.218, de 1974.

Na Venezuela, em visita à prisão de Tocoyito, localizada em Valência, terceira cidade do país, a subcomissão deparou-se com a mais estarrecedora situação. Tocoyito fica com o cetro de horror dos horrores. Suas dependências aglomeram 1,4 mil detentos impossibilitados dos mais elementares hábitos de higiene. Muitos apresentam-se com ferimentos expostos e manchas características de doenças de pele. Não dispõem de assistência médica, psicológica, farmacêutica e odontológica. São mal alimentados, vítimas de excessiva violência interna, tanto por parte dos carcereiros quanto pela truculência de presos rivais. Há denúncias de tortura e as punições administrativas são cruéis e degradantes. O terror, a barbárie e a insalubridade estão presentes em toda a extensão. Montanhas de lixo se acumulam há meses no interior do presídio; os esgotos correm a céu aberto, sujeitando todos ao cheiro fétido exalado. A exposição às doenças infecto-contagiosas é permanente. Aos presos sequer são fornecidos pratos para as refeições diárias. Os suportes para se prover da comida são improvisados. Em lugar de colheres e pratos, os detentos recolhem dos lixos copos de plásticos, vasilhames usados de iogurte ou margarina, ou na ausência desses, alguns presos chegam a dobrar a própria camiseta para receber a alimentação de péssima qualidade.

Chegou-se em Tocoyito, a um ponto indescritível de degradação humana. A negligência institucional é conivente com a absoluta liberdade mercantil no interior do presídio. Tudo é vendido: drogas, bebidas, comida, a dignidade e a integridade das pessoas. Os presos de maior periculosidade exploram e ameaçam permanentemente os novos reclusos. Inúmeras denúncias atestam que castigos corporais, punições cruéis, aviltantes e desumanas são quase rotineiras. Aos recém-chegados a este mundo de horror e desesperança, o imediato sentimento certamente deve se assemelhar à magistral descrição do inferno feita por Dante Alighieri em A divina comédia: "Deixai toda a esperança, vós que entrais".

Já o cárcere Bolívar, na capital Caracas, não é sequer controlado pelo Estado. O Poder Público simplesmente abandonou sua responsabilidade institucional pela administração, hoje dominada pela fratricida disputa de facções criminosas rivais que ali se encontram alojadas.

Na Bolívia, ainda que indiscutíveis progressos tenham sido observados, encontramos, no presídio de San Pedro, o anúncio da venda de celas. Em espaços cada vez mais exíguos, cada preso tem que construir sua própria cela ou então comprá-la. A dotação por preso/dia é insuficiente para garantir estes elementares direitos, estando estimada no valor de cinqüenta centavos.

Em toda a Bolívia, existem 1.563 crianças, inclusive 36 com idade inferior a um ano, que vivem dentro das prisões com seus pais, sem serem sequer contempladas por atendimento em creche ou pré-escola.

Outro exemplo explícito de falta de comprometimento com os direitos humanos foi testemunhado em visita ao Presídio de Chonchocoro, premeditadamente construído a 3,8 mil metros de altitude, onde temperatura e pressão atmosférica são absolutamente hostis à sobrevivência humana. As celas apresentam flagrante risco à vida dos reclusos por problemas de superfície mínima; volume de ar e ventilação inapropriados.

No Chile, ainda que, comparativamente aos demais países do continente, normas internacionais para funcionamento de estabelecimentos prisionais sejam mais afirmativa contempladas, presos acusados de terrorismo registraram graves queixas de discriminação.

Visitamos em Valparaíso, cidade de 276 mil habitantes, um presídio onde os detentos são diariamente submetidos a rígidas regras disciplinares. Todas as manhãs os prisioneiros são compulsoriamente perfilados para recepcionar as autoridades militares que trabalham no presídio.

De todos os países visitados pela comissão o Paraguai apresenta uma das mais reduzidas percentagens de presidiários em relação à população (4 mil presos para 5,1 milhões de habitantes).

No entanto, a maioridade penal é expressivamente baixa em relação aos outros países do continente: somente são inimputáveis criminalmente os menores de quatorze anos.

Em Tacumbu - maior presídio do país -, é crônico o problema de superlotação. Por absoluta inexistência de espaço físico os presos vão ocupando todos os lugares disponíveis: a capela, a marcenaria, a cozinha, os escritórios administrativos e as dependências de assistência. São 1,5 mil pessoas aglomeradas, semelhante a um campo de refugiados. Esta grande concentração vem acarretando graves problemas de saúde e higiene. Não há incentivo ao trabalho penitenciário. Os telefones públicos, antes disponíveis no interior do presídio, foram barbaramente destruídos para obrigar os reclusos a alugar os aparelhos de telefonia celular daqueles que os possuem. Foram localizados também alguns presos provisórios entre os sentenciados. Um deles aguarda há oito anos decisão de seu processo criminal. A estes, além da ausência de assistência judiciária, não são observadas as orientações normativas de separação dos condenados, oferecimento de oportunidade de trabalho e muitas vezes são proibidas as visitas familiares. Próximo ao presídio de Tacumbu vistoriamos as instalações do Centro de Reabilitação Ilamada Panchito López, destinado a menores infratores, que abriga crianças e adolescentes de 14 a 18 anos. São trezentos reclusos divididos unicamente pelo critério de idade, o que expõe os menores a um risco potencial. Nem todas as celas estão em perfeito estado de conservação. O centro de Reabilitação carece de investimentos para ensino educacional e profissionalizante aos jovens de Tacumbu.

Ainda no Paraguai, o Cárcere Feminino Bom Pastor aloja 161 mulheres, sendo quarenta delas menores de 21 anos. Insólita foi a presença de uma criança de 13 anos entre as detentas, revelando inadmissível falha no sistema administrativo e jurisdicional.

No Paraguai registram-se inúmeras queixas sobre a morosidade e a ausência de assistência jurídica. Por fim, constatamos ainda a incrível existência de um presídio fantasma, onde, embora existam diretores designados e previsão orçamentária, as obras para conclusão do presídio encontram-se em completo estado o de indiferença e abandono.

Na Argentina, há cerca de 30 mil reclusos, sendo que aproximadamente 6,1 mil pessoas cumpram pena em estabelecimentos federais de Buenos Aires. De acordo com os dados oficiais, apenas 20% da população carcerária argentina encontra-se contemplada pelo direito ao trabalho penitenciário. É também alarmante a informação de que aproximadamente 8% dos reclusos estariam infectados pelo vírus da Aids, fato este agravado pela grande incidência de outras doenças sexualmente transmissíveis.

No presídio federal Caseros, em plena Buenos Aires, centenas de presos condenados não têm onde tomar sol ou praticar esportes. Não há a menor perspectiva de trabalho num presídio parcialmente destruído pela última rebelião, ocorrida já há alguns anos.

O melhor exemplo de administração penitenciária da Argentina foi observado em Olmos, próximo a La Plata. Lá encontramos 3.336 internos, dos quais 80% são sentenciados. Embora a população carcerária seja superior à sua capacidade, Olmos apresenta alguns aspectos positivos: aos detentos são oferecidos serviços de ensino integrado à rede pública educacional. São 180 reclusos matriculados em curso primário e 220 em aulas de orientação secundária. Em todos os pavilhões são encontrados telefones públicos que permitem aos presos o livre acesso a seus familiares e advogados. Um serviço comunitário de rádio opera internamente, ocupando parcialmente a população carcerária. É permitida a visita conjugal aos detentos, bem como assistência religiosa. Durante a visita tivemos a oportunidade de presenciar uma cerimônia pentecostal que reuniu cerca de oitocentos detentos.

Fomos apresentados a uma inédita experiência de monitoramento eletrônico que começa a ser implementada na Argentina. São pulseiras de identificação criminal presas ao tornozelo dos detentos a fim de possibilitar sua imediata identificação fora do presídio. Assim, mediante o uso das pulseiras os presos são autorizados a trabalhar externamente. No caso de eventuais tentativas de fuga, a recapturação é incontestavelmente facilitada. Asseguram as autoridades penitenciárias que a utilização deste sofisticado aparelho eletrônico não proporciona o menor risco de dano físico. Além disso, o custo operacional "das pulseiras eletrônicas" representa a metade dos gastos de manutenção dos sentenciados em regime de reclusão.

No Uruguai - bastião do civismo, da melhor distribuição de renda do continente e dos direitos sociais - é o Ministério do Interior responsável tanto pela repressão ao crime e quanto pelo encarceramento, em contradição à regra fundamental de incompatibilidade entre as duas atribuições.

Estivemos no Complexo Carcerário Santiago Vásquez, que aloja mais de 50% da população reclusa do país. Pudemos constatar o problema de superlotação, já que, originariamente concebido para alojar oitocentos presos, hoje comporta 1,7 mil detentos. Há ainda grande carência em matéria de trabalho, apesar de alguns convênios realizados com empresas privadas. Um problema essencial é a inexistência de hospital penitenciário para atendimento médico, farmacêutico e ambulatorial.

Quanto ao Brasil, embora tenha aprovado em 1994 - graças ao esforço e comprometimento dos membros do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária - importante resolução disciplinar sobre Regras Mínimas para o Tratamento ao Preso, ainda prevalecem graves denúncias e massacres de presidiários. No Brasil, a subcomissão visitou o Complexo Carcerário do Carandiru, em São Paulo, e o Complexo Carcerário de Bangu I, no Rio de Janeiro.

Bangu I é hoje um centro penitenciário de alta segurança. Lá encontram-se reclusos 48 presos de altíssima periculosidade e grande poder econômico. Todos os poderosos líderes de quadrilhas do tráfico de drogas do Rio presos lá cumprem pena. Como o calor intenso inviabiliza a presença no interior das celas, o pátio externo é o local preferido dos detentos, o que exige do serviço de segurança penitenciário vigilância permanentemente reforçada e atenta, sobretudo em dias de visitas públicas. Ainda que de forma insuficiente, há assistência médica e judiciária. Já o Complexo do Carandiru impressiona pela imensidão física e populacional. Para os parlamentares estrangeiros que integravam a delegação ainda era imediata a fatídica lembrança da noite de 2 de outubro de 1992, quando 111 presos foram cruelmente assassinados numa explosiva conjunção de ineficiência profissional, violência banalizada e despreparo policial, a pretexto de conter uma rebelião eminente. Na ocasião, laudos técnico-periciais, em desacordo com a versão oficialmente de conflito corporal, comprovaram que a maioria das vítimas encontrava-se rendida quando foi executada a tiros.

Hoje, o Complexo do Carandiru abriga 6,5 mil detentos. Reclamações sobre a permanência da superpopulação ainda persistem. Entretanto, pressões internacionais decorrente da repercussão da tragédia de 1992 acelerou a assinatura de convênio entre o governo federal e o do estado de São Paulo para a desativação do complexo. Com o advento do convênio, garante-se o repasse de verbas federais para a construção de seis novos presídios de segurança média e uma nova casa de detenção.

Há entre os detentos vários prisioneiros de outras nacionalidades. Destacadamente os uruguaios são incisivos ao denunciarem o abandono pátrio decorrente da ausência de autoridades diplomáticas. Entre eles, havia um sentenciado que afirmou já haver cumprido dezoito anos de pena. Embora contemplado com uma declaração de expulsão do Brasil, para cumprimento do restante da pena no Uruguai, continuava recluso em São Paulo, graças à desídia protocolar das autoridades diplomáticas de seu país.

Cabe salientar que existem em São Paulo aproximadamente 15 mil reclusos alojados indevidamente em cadeias públicas, em condições impróprias para cumprimento de pena. A superlotação dos estabelecimentos prisionais inviabiliza a transferência de inúmeros sentenciados, que permanecem por infindável período ocupando as celas das delegacias. A situação dos distritos policiais de São Paulo revela incontestável falência do sistema penitenciário brasileiro. Em algumas cadeias encontramos os denominados "homens-morcegos" - presos que se amarram às grades para dormir -, tamanha a falta de espaço nas celas, que impede a presença de redes ou colchonetes.

Deve-se ainda destacar que, no estado de São Paulo, o índice de reclusos por habitantes é quase o dobro do registrado no Uruguai (1,9% contra 1% da população), o que representa quase 60 mil reclusos para uma população de 35 milhões de habitantes. Embora impressionantes estes índices são também inconclusos. Existem em São Paulo 200 mil ordens de prisão não cumpridas, muitas delas pela falta de estabelecimento prisional para o cumprimento de sentença condenatória.

Em todos os países visitados, há queixas amargas contra a lentidão dos julgamentos e vários incidentes em relação aos pedidos de revisão criminal, o que proporciona a existência de milhares de presos reféns da desorganização não só do sistema penitenciário como também da justiça criminal. Quase sempre as visitas conjugais só são permitidas aos homens, não como um direito do recluso, mas como premiação por bom comportamento. A corrupção é um elemento crônico: superfaturamento na compra de alimentos, facilitação à prostituição, inúmeras fugas e, ao mesmo tempo, insuficiência de recursos orçamentários destinados à manutenção dos presídios e construção de benfeitorias necessárias. É dramática a situação de estrangeiros abandonados pelos países de sua nacionalidade. Os presos são cada vez mais jovens. Sem perspectiva de emprego ingressam prematuramente no mundo da criminalidade, estimulados pelo ilusório sonho de enriquecimento rápido acalentado pelo tráfico de drogas. Em todo o país, é abismal a diferença entre a norma jurídica e a realidade encontrada nos cárceres.

No ano do cinqüentenário da belíssima Declaração Universal dos Direitos Humanos, a América Latina precisa urgentemente construir uma visão do sistema penitenciário alicerçada nos direitos e garantias fundamentais da pessoa humana. Durante o IV Congresso das Nações Unidas sobre Prevenção do Delito e Tratamento do Delinqüente, realizado em Quito, no Japão, em 1970, já se alertava para a importante implementação, por todos os países, de um corpo comum de princípios que orientem a função punitiva do Estado, no qual a eficácia da pena estivesse sempre de comum acordo com as exigências constitucionais e resoluções internacionais de proteção à dignidade humana e à redenção do cidadão infrator.

Certamente, não haverá solução para os presídios latino-americanos se o problema das superlotações carcerárias não for verdadeiramente enfrentado. O alargamento na aplicação de penas alternativas, restritivas de direitos ou de prestação de serviços comunitários, deve substituir imediatamente a tradicional prática sentencial de nossos magistrados de penas supressivas de liberdade, que abarrotam indevidamente os presídios de condenados por delitos leves, de pequeno potencial ofensivo, e que não oferecem risco evidente ao convívio social. Os grandes complexos penitenciários devem ser paulatinamente substituídos por menores centros de detenção, onde o processo de ressocialização é mais propício e a administração prisional menos complexa e onerosa aos cofres públicos.

Quanto à ausência de trabalho, combustível para revoltas, conflitos internos e rebeliões periódicas, o incentivo de natureza fiscal a pessoas jurídicas que empreguem presos sentenciados, além de possibilitar a redução da pena mediante ocupação profissional, como já rege a legislação brasileira de execuções penais, ainda atenderia a justa reivindicação de detentos, sem prejuízo dos parcos orçamentos destinados ao gerenciamento dos estabelecimentos prisionais. A moderna Ciência Penal deve sem dúvida punir o delinqüente, nos rígidos limites da lei, mas também possibilitar o pleno resgate do cidadão para a livre e regenerada convivência social. Neste sentido, o trabalho de vistoria a estabelecimentos prisionais feito pela Subcomissão de Direitos Humanos do Parlatino irá possibilitar a formulação de recomendações e a elaboração de regras comuns para o funcionamento de todos os presídios do continente.
____________________

* Nilmário Miranda, deputado federal (PT/MG) é membro da Comissão de Direitos Humanos do Parlamento-Latino Americano.
**Artigo publicado na Revista Teoria & Debate - Ano 11 - nº 39 - edição de out/nov/dez de 1998.

 

Desde 1995 © www.dhnet.org.br Copyleft - Telefones: 055 84 3211.5428 e 9977.8702 WhatsApp
Skype:direitoshumanos Email: enviardados@gmail.com Facebook: DHnetDh
Busca DHnet Google
Notícias de Direitos Humanos
Loja DHnet
DHnet 18 anos - 1995-2013
Linha do Tempo
Sistemas Internacionais de Direitos Humanos
Sistema Nacional de Direitos Humanos
Sistemas Estaduais de Direitos Humanos
Sistemas Municipais de Direitos Humanos
História dos Direitos Humanos no Brasil - Projeto DHnet
MNDH
Militantes Brasileiros de Direitos Humanos
Projeto Brasil Nunca Mais
Direito a Memória e a Verdade
Banco de Dados  Base de Dados Direitos Humanos
Tecido Cultural Ponto de Cultura Rio Grande do Norte
1935 Multimídia Memória Histórica Potiguar