Abuso do Poder
Estatal:
A questão da tortura e da execução sumária
Pela primeira vez em
nossa história, o Brasil demonstra vontade de erradicar a tortura
praticada por agentes do Estado. A Constituição Federal considerou a
tortura crime grave, imprescritível, insuscetível de graça ou
anistia. As Convenções da ONU e OEA pela abolição da tortura foram
ratificadas. Em abril de 1997 foi sancionada a Lei 9455, que tipificou a
crime de tortura.
O Estado brasileiro recebeu a visita de inspeção do Relator Especial
da ONU, Nigel Rodley e apresentou (com 11 anos de atraso) relatório ao
Comitê da ONU em Genebra, sobre a tortura no país.
Em 30 de outubro de 2001, o presidente em exercício, Marco Maciel,
empossou uma Comissão Nacional de Combate à Tortura que vai aprovar um
plano nacional para efetivar medidas preconizadas pela ONU e por
organizações governamentais e não-governamentais.
Nunca tantas personalidades, entidades e instituições falaram tanto
contra a tortura.
Desde abril de 1997, até agosto de 2001, os promotores apresentaram
mais de 500 denúncias com base na Lei 9455. Há leis que pegam e leis
que não pegam. A 9455 está pegando, em que pese o número pequeno de
condenações.
Já há Ouvidorias de Polícia em 11 Estados do país. No entanto, a
tortura continua sendo uma prática generalizada e sistemática no
Brasil.
A partir da luta tenaz e obstinadas dos Grupos Tortura Nunca Mais, dos
ex-perseguidos políticos e dos movimentos de direitos humanos, vários
Estados brasileiros indenizam vítimas de tortura durante a ditadura:
Rio Grande do Sul, Santa Catarina, Paraná, Minas Gerais, Pernambuco. São
Paulo já tem a lei aprovada neste sentido. Além de reparar injustiças,
engendram debates públicos educativos de inegável importância.
Os Grupos Tortura Nunca Mais lutam para impedir que torturadores notórios,
protegidos pela "auto-anistia" de 1979, sejam distinguidos com
cargos de confiança.
Já existe uma seção brasileira da ACAT (Ação Cristã pela Abolição
da Tortura) A Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados tem
uma Subcomissão de Combate à Tortura; no Ministério da Justiça foi
instalada uma Comissão Nacional de Combate à Tortura. Há um
Disque-Denúncia, com um telefone gratuito e confidencial (0800 7007
5551), com operadores do Movimento Nacional de Direitos Humanos, o
SOS-Tortura.
Por 3 semanas, em agosto de 2000, Sir Nigel Rodley visitou 6 Estados
(DF, SP, RJ, MG, PE, PA) e chegou à triste conclusão de qg??ue a tortura
está generalizada. Recolheu 350 casos de tortura só nestes Estados.
Declarou que a tortura é utilizada como "método de investigação"
por policiais civis (e não raro, associada à extorsão); como forma de
castigo ou punição por policiais militares; como forma de impor a
disciplina em instituições destinadas a aplicar medidas sócio-educativas
para adolescentes infratores ou em cárceres superlotados e degradados.
Em abril de 2001, o Brasil apresentou o 1º Relatório exigido pela
Convenção da ONU em Genebra, ao mesmo tempo que um "relatório
complementar" - um verdadeiro contra-relatório - era apresentado
pela Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados, Movimento
Nacional de Direitos Humanos, Ong's.
Se após todos esses esforços conjugados a tortura segue sua marcha ignóbil,
ignorado a Constituição, leis, convenções internacionais, sua
erradicação exigirá um esforço contínuo, integrado, nacional,
envolvendo Estado e sociedade.
A tortura está enraizada na cultura do país. Tivemos 364 anos de
escravidão de negros. Cálculos conservadores falam de 4 milhões de
negros que sobreviveram nos navios negreiros. Por vários séculos este
comércio infame predominou nos oceanos e mares. A apropriação do
fruto integral dos trabalhadores escravos era feita mediante o uso
permanente da violência: grilhões, açoites, pau-de-arara, o ferro em
brasa, a palmatória. Quando o escravo chegava ao local onde ia
trabalhar, era espancado para que soubesse quem era seu dono. Os líderes
quilombolas não raro eram decapitados, para servir de exemplo. Buscar a
liberdade era o mais grave dos crimes punidos sem dó nem piedade.
Os capitães-governadores, empreendedores privados, em última instância,
administg??ravam a "justiça" e trouxeram para a Colônia a prática
dos castigos corporais para os negros (devidamente desumanizados: eram
considerados mercadorias, objetos de trabalho), para os indígenas
("selvagens", destituídos de alma) e para os brancos pobres,
não proprietários e para revoltosos e libertários.
Vale recordar que em 1888, quando a escravidão foi definitivamente
abolida no Brasil, último país a fazê-lo, negros e pardos eram a
maioria da população: 8 milhões numa população de 13 milhões.
No século XIX, após a Independência, a tortura, as decapitações, os
massacres foram utilizados contra os movimentos sociais messiânicos
camponeses (Canudos, Contestado), contra movimentos separatistas e
contra as "classes perigosas" urbanas.
Na República Velha, a tortura era arma de contenção na fase heróica
da classe operária, contra o anarco-sindicalismo e contra o comunismo
nascente ("a questão social é uma questão de polícia").
No século XX a tortura na política foi largamente usada, contra
opositores políticos nas 2 ditaduras (37/45 e 64/85). Nunca deixou de
ser empregada contra pessoas de classes populares.
A imensa maioria dos torturados são pessoas que cometem delitos contra
o patrimônio, que não atentam contra a vida e contra a pessoa. Não é
verdade que a tortura é praticada contra estupradores, seqüestradores
- ainda que fosse assim, não se justificaria.
São também vítimas preferenciais os sem-terra, os sexualmente
diferentes, as prostitutas, os adolescentes infratores. São pessoas sem
influência política, social ou econômica sem acesso a advogados e à
mídia. Está associada, portanto, à mais odiosa discriminação social
e mesmo étnica. A torg??tura é um vício antigo, recorrente, praticada
por agentes estatais para satisfazer as elites.
Não podemos fazer concessão à tortura: a única posição plausível
é a sua erradicação. De todas as formas de violação cometidas
contra a pessoa humana é a tortura a que causa maior repugnância à
consciência ética.
Beccaria a repeliu ao fim do século XVIII como prática irracional, estúpida,
ineficaz e desumana. No fim daquele século foi abolida dos códigos
penais europeus.
Ela volta como política de Estado com o nazismo, com o stalinismo, com
as ditaduras em Portugal, Espanha, Turquia e Grécia. Após a 2ª
Guerra, alastrou-se na repressão aos movimentos de libertação
nacional, anti-colonialistas, a ponto de Sartre considerá-la "a
peste do século". Foi ensinada na escola das Américas pelos EUA.
Em toda a América Latina foi empregada contra a insurgência e na África
do Sul contra os militantes antiapartheid, e no Oriente Médio. As
ditaduras brasileira, chilena, argentina, uruguaia, paraguaia, boliviana
criaram a Operação Condor, uma multinacional do terror de Estado e os
desaparecimentos.
Frente a isto, as personalidades humanistas e as ONG's de direitos
humanos pressionam a ONU para por um basta à barbárie e consegue-se a
aprovação da Convenção Internacional pela Abolição da Tortura, em
1984, que o Brasil ratificou em 1989.
A discussão sobre a erradicação da tortura vai levar à discussão
sobre as prioridades da segurança pública, à reforma das polícias,
à revisão dos inquéritos policiais, como deve funcionar uma política
numa sociedade democrática e a política penitenciária. Lutar contra a
tortura, em toda sua extensão, é lutar pelo aprofundamento da
democracia no país.
g??
Outra modalidade gravíssima do abuso do poder estatal são as execuções
sumárias e arbitrárias.
As polícias no Brasil matam exageradamente acima de qualquer padrão
comparativo internacional. Mata pelas costas, com tiros na nuca, com
mais de 5 tiros, sempre escolhendo partes letais. A maioria das vítimas
são adolescentes infratores, jovens sem antecedentes criminais,
brancos, pobres e negros. A maioria das vítimas vem de áreas
estigmatizadas: favelas, vilas, periferias abandonadas pelo Estado,
conjuntos populares. Aqui também aparece a discriminação social,
cultural, étnica, com similaridades com políticas fascistas de
"limpeza social".
Quando se atira pelas costas num adolescente de periferia sem
antecedentes criminais, que não foi previamente identificado, o que
passa pela cabeça do policial é mais ou menos isso: "estou
livrando o mundo de um vagabundo".
O próprio treinamento dos policiais privilegia o tiro nas partes letais
e não para a imobilização.
A doutrina da segurança nacional fundada na ideologia do "inimigo
interno", da "guerra interna", deixou raízes. Fala-se
muito aqui em "guerra contra o crime". Volta e meia, ante
crimes de impacto, setores da mídia pedem o Exército nas ruas
combatendo o "crime organizado". Cecília Coimbra, no seu
livro sobre o fracasso da Operação Rio, a ocupação dos morros no Rio
de Janeiro pelo Exército em 1993, mostra o papel deletério da mídia
neste caso, com a super exaltação da repressão.
O índice de punição para os policiais que matam - com características
de execução sumária e arbitrária - é muito baixo. Não raro,
autoridades como governadores, secretários de segurança, polg??íticos
demagogos, fazem rasgados elogios à arbitrariedade e às "mortes
de bandidos". Um secretário de segurança do Rio, o famigerado
General Cerqueira, instituiu prêmios e promoções para os PM's
matadores.
Policiais que matam não são cuidadosamente investigados nem submetidos
a tratamento. Sabe-se que policiais que matam muito, sem controle e
tratamento, adquirem seríssimas deformações psíquicas.
O combate ao crime não é uma guerra. É um trabalho cotidiano,
submetido às leis e aos direitos humanos.
Neste sentido, a visita de inspeção da Relatora Especial da ONU para
as Execuções Sumárias e Arbitrárias no 1º semestre de 2002 será de
enorme importância para ampliar este debate.
Por fim, a ação dos "grupos de extermínio" que faz
"justiça" com as próprias mãos pode ser enquadrada como
abuso do poder estatal, devido à tolerância criminosa do Estado para
com eles. Todos os supostos "justiceiros" são conhecidos e
poderiam ser punidos se não houvesse a conivência. São, via de regra,
policiais de folga, ex-policiais e vigilantes privados.
Em 100% dos casos, os "grupos de extermínio" são formados
onde a segurança pública falhou. Empresários contratam os policiais
ou parapoliciais para assassinar adolescentes infratores e delinqüentes
de baixo potencial deletivo (em geral crimes contra o patrimônio). Logo
os "justiceiros" tornam-se bandidos e passam a extorquir
comerciantes, traficar armas e drogas, assaltar bancos e à pistolagem.
A condenação moral de "justiceiros" e torturadores pelas
autoridades, personalidades, grandes formadores de opinião, feita
publicamente, é muito importante. Caracterizar a tortura e o extermínio
como perversão; afastar do serviço público os policiais corruptos e
violentos (em vez de transferi-los quando são foco de atenção pública),
contribuem para o desenvolvimento de uma cultura civilizatória e
humanista.
Nosso país pode desempenhar um papel admirável neste mundo de guerras,
terrorismo, intolerância religiosa, xenofobia, racismo, desde que
enfrentemos o desafio da distribuição da riqueza, do poder, do saber,
combatendo a iniqüidade e a escandalosa desigualdade.
|