A comemoração do cinqüentenário da
Declaração Internacional dos Direitos Humanos, aprovada em 10 de
dezembro de 1948, tem motivado o aprofundamento do debate em torno
da idéia e da vigência da democracia, entendida como o regime
político que melhor protege e promove os direitos humanos.
Sem dúvida, podemos definir democracia como o
regime político fundado na soberania popular e na separação e
desconcentração de poderes, com pleno respeito aos direitos
humanos. Esta breve definição tem a vantagem de agregar
democracia política e democracia social; isto é, reúne as
liberdades civis, a separação e o controle sobre os poderes, a
alternância e a transparência no poder, a igualdade jurídica e
a busca da igualdade social, a exigência da participação
popular na esfera pública, a solidariedade, o respeito à
diversidade e a tolerância.
A associação imediata entre democracia e
direitos humanos na sociedade contemporânea, e especialmente no
Brasil, não decorre de um consenso. Pelo contrário. É corrente
a afirmação de que estamos "em plena democracia", uma
vez que temos voto universal e eleições periódicas, que os
poderes constitucionais funcionam e não existe censura nem presos
políticos. Quanto aos direitos humanos, é conhecida a manipulação
do conceito, visando a identificá-los como "direitos dos
bandidos".
Pretendo, neste texto, contribuir para o debate
a partir de algumas questões que considero cruciais:
• o que são direitos humanos, com especial
destaque para a questão da igualdade;
• a polêmica em torno da oposição virtual
entre universalidade de direitos humanos e o direito à cultura,
ou à diferença;
• a educação para a democracia, como saída
para se enfrentar a discriminação e o preconceito por intermédio
de uma nova "cultura democrática".
Parto, ainda, de uma inquietação que vem
sendo crescentemente espicaçada: até que ponto os direitos
humanos, vinculados a princípios e valores tidos por
"universais", respondem às necessidades de
reconhecimento da legitimidade de particularidades, seja em
termos do direito à cultura, seja em termos de especificidades
biológico-culturais, como as questões de gênero. Para
essa questão adianto apenas algumas considerações, pois entendo
que persistem ainda muitas dúvidas e perplexidades, sobretudo
referentes às chamadas políticas de ação afirmativa — em
relação às quais, no caso brasileiro, tenho uma posição em
princípio favorável.
Direitos humanos e a questão da
igualdade
Direitos humanos são aqueles direitos comuns a
todos os seres humanos, sem distinção de raça, etnia,
nacionalidade, sexo, orientação sexual, nível socioeconômico,
religião, instrução, opinião política e julgamento moral, e
que têm como pressuposto óbvio o direito à vida. Decorrem do
reconhecimento da dignidade intrínseca a todo ser humano e
diferem dos direitos do cidadão — embora estes estejam, em
grande parte, aí incluídos —, porque os direitos humanos
extrapolam as condições legais e as fronteiras, as quais definem
a cidadania e a nacionalidade. A ausência de cidadania jurídica,
por exemplo, não implica ausência de direitos humanos.
Para fins didáticos e de compreensão histórica,
costuma-se classificar os direitos humanos em três gerações, as
quais, de certa forma, corresponderiam àqueles ideais da Revolução
Francesa: liberdade, igualdade e fraternidade. A primeira geração,
englobando os direitos civis e políticos e as liberdades
individuais, é fruto da longa marcha das idéias liberais e tem
sua inserção histórica marcada pelas conquistas da
"democracia americana". A segunda geração,
correspondente aos direitos econômicos e sociais — basicamente
vinculados ao mundo do trabalho —, permanece associada às lutas
operárias e socialistas na Europa, e sempre referidas ao ideal da
igualdade. A terceira geração, entendida como o conjunto de
direitos decorrentes do ideal da fraternidade e da solidariedade
(alguns falam até em "solidariedade planetária")
corresponde ao direito à autodeterminação dos povos e passou a
incluir, mais recentemente, o direito ao desenvolvimento, o
direito à paz, o direito ao meio ambiente saudável, ao usufruto
dos bens qualificados como "patrimônio comum da
humanidade".
Em relação ao conteúdo de cada geração
vale lembrar que determinadas sociedades, mesmo se afirmando
democráticas, enfatizam prioridades ou simplesmente recusam
certos direitos — o que já compromete a
"universalidade". Os liberais conservadores, por
exemplo, apegam-se aos direitos da primeira geração e denunciam
sua violação por parte dos regimes autoritários, mas sempre
tiveram sérias dificuldades para aceitar, como direitos
fundamentais, os de segunda geração, os direitos sociais. Até
hoje os Estados Unidos, enquanto Estado, recusam tal associação
— o que explica, em parte, a ênfase americana na expressão
"direitos civis" e não "direitos humanos" —
e, em decorrência, excluem as prestações positivas no campo
social, como saúde e previdência, por exemplo, no velho estilo
hoje renomeado, entre nós, de neoliberal.
Em termos de direitos universais, a
liberdade corresponde aos direitos e garantias para o exercício
das liberdades individuais ou coletivas; inclui do direito à
integridade física e psíquica aos direitos de expressão e de
organização política. A igualdade corresponde aos
direitos à igualdade diante da lei, mas também em relação a
necessidades básicas, como saúde, educação, habitação,
trabalho e salário justo, seguridade e previdência etc. A
solidariedade, que os franceses chamaram de fraternidade,
corresponde ao direito e ao dever de co-responsabilidade pela
busca do bem comum, o que implica participação na vida pública.
É preciso destacar o direito-dever da
solidariedade, sobretudo num país como o nosso, pois comumente a
palavra assume, entre nós, significados próximos à idéia de
caridade, assistencialismo, boa vontade. No entanto, se aceitamos
a premissa da igualdade na dignidade humana, a solidariedade deve
ser entendida em várias acepções: 1) a coesão entre diferentes
indivíduos e grupos é indispensável à manutenção do todo
social, pois cada qual traz ao conjunto uma contribuição
insubstituível; 2) os indivíduos ou grupos que se acham em situação
de fraqueza ou deficiência, devem ser amparados pelos outros.
Todos têm igual direito a uma vida digna, sem privações do que
é razoavelmente considerado essencial (Comparato, 1993).
Justificam-se aqui, por exemplo, os programas de renda mínima, já
aprovados em países do Primeiro Mundo e em implementação em
nosso Distrito Federal e em algumas outras cidades.
Outro ponto a ser destacado é a relação,
muitas vezes vista como dilemática, entre igualdade e liberdade.
Se os direitos civis e políticos exigem que todos gozem da mesma
liberdade, são os direitos sociais que garantirão a redução
das desigualdades de origem; caso contrário, a falta de
igualdade pode acabar gerando, justamente, a falta de liberdade.
Por sua vez, não é menos verdade que a liberdade propicia as
condições para a reivindicação de direitos sociais.
É preciso entender claramente o significado de
igualdade contido na proposta da cidadania democrática. É
evidente que não se supõe a igualdade como
"uniformidade" de todos os seres humanos — com suas
saudáveis diferenças de raça, etnia, sexo, ocupação, talentos
específicos, religião e opção política, cultura no sentido
mais amplo. O contrário da igualdade não é a diferença, mas
a desigualdade, que é socialmente construída, sobretudo numa
sociedade tão marcada pela exploração classista. As diferenças
não significam, necessariamente, desigualdades, isto é, não
existe uma valoração hierárquica inferior/superior na distinção
entre pessoas diferentes. Homens e mulheres são obviamente
diferentes, mas a desigualdade estará implícita se tratarmos
essa diferença estabelecendo a superioridade masculina, por
exemplo. O mesmo pode ser dito das diferenças culturais e étnicas.
Em outras palavras, a diferença pode ser
enriquecedora, mas a desigualdade pode ser um crime. É nesse
sentido que se entende porque, no Direito contemporâneo
(inclusive na legislação brasileira), manifestações de
discriminação ou racismo — no trabalho, no acesso a bens e
serviços, nas diversas formas de expressão social — são
tipificadas como crime, em alguns casos insuscetíveis de fiança
ou prescrição. No entanto, as desigualdades sociais, tão
evidentes no Brasil — com sua herança da escravidão sempre
presente —, não são ainda entendidas como crime, mesmo quando
decorrem de políticas ostensivamente excludentes.
A igualdade é sempre uma dimensão social, não
individual. Ao contrário da liberdade, ela ocorre sempre dentro
de um grupo social, ou entre grupos sociais, e não entre indivíduos
isoladamente considerados. Podemos identificar quatro dimensões
da igualdade democrática:
• a igualdade diante da lei; é um
pressuposto da aplicação concreta da lei, quer proteja, quer
puna. É o que os gregos chamavam de isonomia;
• a igualdade do uso da palavra, ou da
participação política; é o que os gregos chamavam de isegoria;
• a igualdade que decorre, num paradoxo
apenas aparente, do direito à diferença, ou seja, o
direito que todos igualmente têm de preservar sua identidade,
bem como exigir tratamento específico em atendimento a
necessidades singulares dessa identidade (no caso, por exemplo,
dos direitos específicos das mulheres);
• a igualdade de condições socioeconômicas
básicas, para garantir a dignidade humana. Desconhecida dos
gregos antigos, é o resultado das revoluções burguesas mas,
principalmente, das lutas do movimento operário e socialista nos
séculos XIX e XX.
Fábio Comparato (1993) insiste, com razão, em
que essa quarta igualdade não configura um pressuposto, mas uma
meta a ser alcançada, não só por meio de leis, mas pela correta
implementação de políticas públicas. Pois a
desigualdade aqui considerada é a que afeta as classes, grupos ou
o gênero inferiorizados, isto é, que possuem menos força ou
capacidade de autodefesa na sociedade. As classes ou grupos
sociais inferiorizados têm direito ao exercício, pelo Estado, de
uma política de integração social.
Para Aristóteles a democracia seria o regime
fundado na idéia de que os homens são iguais em tudo, e a
oligarquia, aquele fundado na idéia de que os homens são
desiguais em tudo. Na verdade, a democracia é o regime em que
todos têm, igualmente, direito a cultivar seus próprios valores
e modos de vida, desde que isso não importe em subordinar ou
oprimir outros grupos e pessoas (Comparato, 1993).
A tríade liberdade-igualdade-solidariedade é
a base do regime democrático.
Direitos universais e direitos à
diferença: o relativismo cultural
A discussão atual sobre direitos humanos tem
provocado muita polêmica sobre a relação entre a universalidade
dos direitos e a crescente reivindicação pelo reconhecimento da
diversidade cultural, em todos os sentidos. Aqui discutem-se o
significado da tolerância — um dos valores essenciais da
democracia — e do reconhecimento de que direitos humanos
tornaram-se "um tema global".
O que significa tratar direitos humanos como um
"tema global"? Significa reconhecer que já existe, em
âmbito mundial, a adesão a um campo comum de valores que —
independentemente de quaisquer variáveis, individuais ou
coletivas, decorrentes de sexo, raça, etnia, nacionalidade,
religião, nível de instrução, julgamento moral, opção política
e classe social — definem a humanidade, a dignidade de todo
ser humano. Tais valores transcendem, hoje, o quadro histórico
do anticolonialismo e do anti-racismo (embora os incorporem, é
evidente), além dos direitos e das liberdades consagradas no
liberalismo clássico, para abranger o direito à paz, ao
desenvolvimento, à cultura, ao reconhecimento do direito às
diferenças e particularidades, mantendo-se a premissa da
igualdade, a postulação de uma nova ordem política e econômica
mais solidária.
Tratar direitos humanos como um tema global não
é, evidentemente, a mesma coisa que falar em "globalização"
dos direitos humanos. A globalização do Direito pode significar,
por exemplo, a extensão ultrafronteiras de um determinado
interesse — como a defesa do meio ambiente ou o acesso ao patrimônio
cultural e científico da humanidade. Falar em direitos humanos
como tema global também não significa priorizar determinados
interesses internacionais, mesmo os mais nobres, mas colocar em
primeiro plano a abrangência — global — de valores éticos
enraizados nas noções de justiça e igualdade. Volta-se, assim,
aos ideais, não concretizados na maior parte do mundo, da Revolução
Francesa e da Declaração Universal de 1948.
Deve ser lembrado, ademais, que a Conferência
Internacional de Direitos Humanos, em Viena ( ONU, 1993),
consagrou como consenso básico o reconhecimento da unidade do
gênero humano — o que lhe confere a dignidade —, apesar
de manter a ênfase no respeito e na tolerância à diversidade
das nações, das regiões e dos grupos sociais em seus aspectos
históricos, culturais e religiosos.
O conteúdo da terceira geração de direitos
humanos vem despertando especial polêmica, pois muitos estudiosos
— todos do primeiríssimo mundo, ciosos de sua hegemonia econômica
e cultural — apontam para a imprecisão e a heterogeneidade do
elenco de direitos, além de problemas no plano jurídico para sua
efetivação. A principal dificuldade jurídica reside no fato de
que tais direitos, de fruição também coletiva, contrariam o
entendimento mais corrente sobre o "individualismo" em
que se baseia a conceituação tradicional de direitos humanos, na
ótica do Ocidente. Vale lembrar, no entanto, o avanço conseguido
em Viena, no sentido de que o direito ao desenvolvimento, além de
concebido como de titularidade individual e coletiva (ou seja,
para todas as pessoas e para todos os povos) foi reforçado como
um direito universal e inalienável e parte integrante dos
direitos humanos fundamentais.
Mas a questão crucial diz respeito à virtual
oposição entre a universalidade dos direitos humanos e o
relativismo cultural. A polêmica é tão mais intensa porque não
apenas envolve questões teóricas, muito caras aos antropólogos,
por exemplo, como — e sobretudo — envolve delicadas questões
de ordem política. Estas, no plano mundial, tendem a opor
conceitos diversos do que sejam "civilizações" e a
fomentar acusações de etnocentrismo, o qual visaria
especificamente uma possível "dominação cultural do
Ocidente".
Boaventura de Souza Santos (1997) entra
fortemente na polêmica afirmando que
"enquanto forem concebidos como direitos
humanos universais, os direitos humanos tenderão a operar como
localismo globalizado — uma forma de globalização
de-cima-para-baixo. Serão sempre um instrumento do choque de
civilizações, ou seja, como arma do Ocidente contra o resto do
mundo".
E propõe, como tarefa central da política
emancipatória de nosso tempo "a transformação da idéia e
da prática dos direitos humanos de um localismo globalizado num
projeto cosmopolita". Como Santos insiste na excelência da
abordagem marxista — aquela, segundo ele, que enfatiza a
igualdade no plano socioeconômico, em detrimento da abordagem
liberal, que apenas defenderia a igualdade no plano político —,
vale a pena conhecer melhor suas teses. Por todas as considerações
até agora feitas, não estou convencida de que apenas a versão
marxista considera a questão da defesa dos direitos humanos com
ênfase na igualdade social; a versão da democracia radical, por
mim adotada, enfatiza exatamente a urgência dessa igualdade,
sobretudo num país como o Brasil.
No plano interno das nações, o reconhecimento
do direito dos povos a sua cultura tende a exacerbar reações
centralizadoras do Estado face às "minorias", bem como
as reivindicações específicas de grupos por um certo tipo de
"políticas compensatórias" (mulheres, negros, pobres)
tende a levantar outros tipos de discriminação. Como foi
amplamente divulgado pela imprensa, na época, esse tema provocou
intensos debates em Viena, tendo sido veementemente questionado
pelos países asiáticos e africanos e os de religião islâmica.
A própria associação entre direitos humanos e desenvolvimento
econômico começou a ser contestada em função do que seria
entendido como imposição de um determinado "modelo" de
desenvolvimento, o qual pode significar "progresso" para
os países ricos às custas da exploração de mão-de-obra
proletarizada dos pobres. Por outro lado, a extinção de uma
determinada cultura, devido ao "progresso" da ciência
ou da tecnologia, pode ser considerada um atentado às liberdades
fundamentais.
O relativismo cultural representa uma faca de
dois gumes: pode, sem dúvida, significar proteção às minorias,
quando são respeitados os elementos de configuração das
identidades. Mas pode significar, também, a complacência com
costumes que atentam contra a dignidade do ser humano (mutilações
rituais ou castigos degradantes, por exemplo, especialmente graves
no caso de agressão às mulheres) ou, no outro extremo, a
escalada de conflitos étnicos e do fundamentalismo religioso que,
além de atingir o conjunto das populações envolvidas, ainda
significam maior violência contra as mulheres, como na história
recentíssima do Afeganistão e da Argélia.
O debate sobre o relativismo cultural leva à
discussão do multiculturalismo, tema candente sobretudo na área
da educação. Pelo que se tem observado, sem qualquer pretensão
de aprofundamento, até os movimentos políticos de esquerda
tendem a refutar teses radicais sobre o multiculturalismo, bem
como sobre qualquer política pública de "ação
afirmativa", como as que existem nos Estados Unidos para
negros, mulheres, hispânicos, deficientes. Muitos estudiosos
consideram que a oposição entre universalidade dos direitos
humanos e direito à cultura encerra um dilema. Considero, no
entanto, que a única saída é defender, em todas as situações,
que é possível reconhecer um consenso em torno da hierarquia dos
princípios e das normas, no qual predomina o direito à vida e
à integridade física e psíquica de todo ser humano. Nesse
sentido, o direito à cultura deve estar condicionado também ao
princípio da liberdade individual: cabe ao adulto escolher
livremente sua identificação cultural — ou não escolher, ou
desistir da escolha, em qualquer época.
Tal discussão obriga ao redimensionamento do
alcance e dos limites da virtude cívica da tolerância, essencial
às democracias.
Em primeiro lugar, é claro que essa tolerância
não significa levar ao extremo o temor do etnocentrismo e, daí,
bloquear todo julgamento ético e político em nome do relativismo
cultural. O respeito à diferença não significa esterilidade de
convicções. Não se trata de uma simples virtude passiva, de
aceitação ou de passividade, mas reúne dois sentidos,
estreitamente vinculados aos demais valores democráticos da
igualdade e da liberdade: a tolerância como respeito às diferenças
e à variedade da criatividade cultural e a tolerância como o
reconhecimento pleno da igualdade em dignidade de todos — indivíduos
ou grupos — apesar das diferenças.
A tolerância democrática opõe-se ao
autoritarismo e ao dogmatismo sob todas as suas formas — políticas,
sociais, morais e científicas. Para a consciência democrática a
tolerância não será empecilho para denunciar e repudiar o
intolerável, como a discriminação e a agressão aos
diferentes, que leva ao racismo, ao sexismo, ao fundamentalismo
religioso, às diferentes formas do nazi-fascismo; o recurso
irresponsável da busca de soluções violentas dos conflitos; a
falta de ética nas relações profissionais e na política.
É evidente que a definição do que seja
"intolerável" vai variar na mesma medida que variam
identidades culturais, com suas noções próprias de dever,
direito, justo e injusto, amigo, inimigo. A melhor discussão que
encontrei, no meio acadêmico, sobre o tema, é a desenvolvida por
Celi Pinto (1997). Essa autora levanta questões fundamentais: até
que ponto se admite a diferença? Todas as diferenças devem ser
incorporadas como passíveis de convivência? É possível um
mundo de diferenças absolutas?
A autora discute como
"os entusiastas da diferença e de um
multiculturalismo ingênuo tendem a ver toda construção de
identidade e toda a manutenção da diferença como conquistas.
Entretanto, deve-se chamar a atenção para o fato de que um
considerável número de identidades se constituiu não pelos
sujeitos que, por meio delas, foram enunciados, mas pelo seu contrário,
pelo dominador. Negros, mulheres, índios, imigrantes, minorias étnicas
das mais diversas, todos foram nomeados pelos brancos, homens etc.
Características associadas à cor da pele, ou ao sexo, à condição
social ou à localização espacial, têm-se constituído
historicamente como formas de dominação".
Estamos diante de um problema, continua, que só
pode ser resolvido pela tolerância — e mal resolvido, na medida
em que tolerar identidades é, ao mesmo tempo, congelá-las e não
as integrar. Por outro lado, a inclusão de uma determinada
diferença em um dado cenário de forças, em uma dada comunidade,
não é um fenômeno simples. A inclusão não é a eliminação
da diferença, mas o reconhecimento da diferença; a exclusão,
essa sim, é o não-reconhecimento do outro ( Pinto, 1997). Celi
Pinto conclui retomando os elementos do quadro dominante/dominado:
"Devemos redirecionar a discussão no
sentido de buscar formas de redistribuição de poder na
sociedade, que tenham como resultado o fim da necessidade de
alguns grupos identitários dependerem da tolerância para
garantir até mesmo suas vidas".
É difícil não concordar com ela.
Educação para a cidadania e em
direitos humanos
A violação sistemática de direitos humanos
em nosso país, em todas as áreas, é incompatível com qualquer
projeto de cidadania democrática. É fato inegável que, no
Brasil, os direitos políticos sempre antecederam os direitos
sociais. Criamos o sufrágio universal — o que é,
evidentemente, uma conquista — mas, com ele, criou-se também a
ilusão do respeito pelo cidadão. A realização periódica de
eleições convive com o esmagamento da dignidade da pessoa
humana, em todas as suas dimensões. A constatação desse quadro
sombrio nos leva a refletir, conforme Paulo Freire, sobre a importância
da educação como transformação no sentido da construção de
uma sociedade democrática.
O artigo 13 do Pacto Internacional das Nações
Unidas, relativo aos direitos econômicos, sociais e culturais (O
NU, 1966), reconhece não apenas o direito de todas as pessoas à
educação, mas que esta deve visar ao pleno desenvolvimento da
personalidade humana, na sua dignidade; deve fortalecer o respeito
pelos direitos humanos e as liberdades fundamentais; deve
capacitar todas as pessoas a participar efetivamente de uma
sociedade livre. Temos aí, portanto, um marco jurídico
importante para a reivindicação da educação para a
cidadania.
Outro importante marco jurídico de abrangência
mundial é a Convenção para a eliminação de todas as formas
de discriminação contra mulheres (ONU, 1979). Em seu artigo
5º estabelece que os Estados membros devem tomar as medidas
necessárias para "modificar os padrões sociais e culturais
na conduta de homens e mulheres, visando a eliminação de
preconceitos e práticas derivadas da crença na inferioridade ou
superioridade de um dos sexos". No artigo 10º estabelece que
devem ser tomadas todas as medidas para implementar programas de
educação mista, garantindo direitos iguais às mulheres e
promovendo revisão nos textos didáticos preconceituosos e na própria
metodologia do ensino. Nos dois casos trata-se de estimular
iniciativas de educação para a democracia, nos termos aqui
defendidos.
É preciso deixar claro que aqui identificamos
especificamente a educação para a cidadania democrática. Essa
ressalva parece óbvia, mas ela se justifica quando lembramos que
a formação de cidadãos sempre foi preocupação de regimes
totalitários, no sentido da mobilização e da inculcação de
valores de submissão à pátria e ao culto à personalidade, de
exaltação das ações militares e do nacionalismo xenófobo, da
discriminação dos considerados "diferentes ou
inferiores", da padronização absoluta de opinião, religião,
comportamento etc. Os trágicos exemplos do nazismo, do stalinismo
e dos fascismos deste século são eloqüentes; seus governantes
investiram eficientemente na educação de cidadãos comprometidos
com valores radicalmente contrários à democracia.
A educação para a cidadania democrática
consiste na formação de uma consciência ética que inclui tanto
sentimentos como razão; passa pela conquista de corações e
mentes, no sentido de mudar mentalidades, combater preconceitos e
discriminações e enraizar hábitos e atitudes de reconhecimento
da dignidade de todos, sejam diferentes ou divergentes; passa pelo
aprendizado da cooperação ativa e da subordinação do interesse
pessoal ou de grupo ao interesse geral, ao bem comum. Se
falamos em ética, trata-se de confirmar valores; nesse sentido, a
educação para a democracia inclui o desenvolvimento de virtudes
políticas decorrentes dos valores republicanos e democráticos.
Por virtudes republicanas entendem-se:
a) o respeito às leis, vistas como
"educadoras", no sentido da autonomia, isto é, leis
decididas em processos regulares e amplamente participativos;
b) o respeito ao bem público, acima do
interesse privado e patriarcal, típico de nossa tradição doméstica;
c) o sentido da responsabilidade no exercício
do poder, com a consciência dos males coletivos que resultam
do descumprimento dos deveres próprios de cada um, nas diferentes
esferas de atuação do cidadão.
Por virtudes democráticas entendem-se:
a) o reconhecimento da igualdade e o conseqüente
horror aos privilégios;
b) a aceitação da vontade da maioria
legalmente formada decorrente de eleições ou de outro processo
democrático, porém com constante respeito aos direitos das
minorias. No Brasil, como é sabido, as grandes maiorias —
do ponto de vista socioeconômico — permanecem alijadas da
participação política, apesar de votarem nas eleições. O
desafio democrático para a construção da cidadania é,
justamente, a transformação dessa maioria social em maioria política;
c) o respeito integral aos direitos humanos.
Os direitos implícitos nos valores são definíveis
intelectualmente, mas é evidente que o seu conhecimento não será
suficiente para que eles sejam respeitados, promovidos e
protegidos. Os direitos são históricos: é preciso entendê-los
nas suas origens, mas também no seu significado atual e
universal, assim como é mister compreender as dificuldades políticas
e culturais para sua plena realização.
Em outros termos, democracia, cidadania e
direitos estão sempre em processo de construção. Isso significa
que não podemos congelar, para uma determinada sociedade, uma
lista fechada de direitos. Tal lista será sempre historicamente
determinada. Como assinalou Hannah Arendt (1988), o que permanece
inarredável, como pressuposto básico, é o direito a ter
direitos.
O processo de construção democrática, lembra
Marilena Chauí (1984), implica a criação de espaços sociais de
lutas (movimentos sociais, sindicais e populares) e a definição
de instituições permanentes para a expressão política, como
partidos, legislação e órgãos dos poderes públicos.
Distingue-se, portanto, a cidadania passiva — aquela que
é outorgada pelo Estado, com a idéia moral da tutela e do favor
— da cidadania ativa, aquela que institui o cidadão como
portador de direitos e deveres, mas essencialmente criador de
direitos para abrir espaços de participação e possibilitar
a emergência de novos sujeitos políticos.
A escola pode ser um locus excelente
para a educação para a cidadania. Alguns programas de formação
de professores em direitos humanos (desde a gestão de Paulo
Freire na Secretaria de Educação da cidade de São Paulo) assim
o indicam. Mas existem outros espaços para a educação para a
cidadania — eleições, partidos, associações profissionais,
sindicatos, movimentos sociais e populares, mecanismos
institucionais de democracia direta (como o plebiscito, o
referendo, a iniciativa popular legislativa, o mandato imperativo,
a revogação de mandatos, os conselhos populares, o orçamento
participativo etc.).
Além das iniciativas de partidos e movimentos,
cabe reivindicar a implementação das propostas de educação
para a cidadania, como aquelas previstas no Programa Nacional de
Direitos Humanos, apresentado pelo Ministério da Justiça e com o
apoio explícito da Presidência da República, em maio de 1996.
Cabe, igualmente, discutir e aprofundar os novos "Parâmetros
Curriculares", do Ministério da Educação, que prevêem a
educação para a cidadania por meio de "temas
transversais" nas escolas de primeiro, segundo e terceiro
graus. Deve ser lembrado, ainda, o recente Programa Estadual de
Direitos Humanos, do governo de São Paulo. São propostas públicas,
em relação às quais a cidadania democrática deve se manifestar
— eventualmente para criticar e transformar.
Finalmente, na discussão de direitos e valores
democráticos nunca será demais enfatizar a solidariedade como
uma virtude política ativa — por isso difícil de ser cultivada
—, pois exige uma ação positiva para o enfrentamento das
diferenças injustas (que, por serem injustas caracterizam
desigualdades) entre os cidadãos. Assim, não basta educar para a
tolerância e para a liberdade, sem o forte vínculo estabelecido
entre igualdade e solidariedade. Esta implicará o despertar dos
sentimentos de indignação e revolta contra a injustiça e, como
proposta pedagógica, deverá impulsionar a criatividade das
iniciativas tendentes a suprimi-la, bem como levar ao aprendizado
da participação popular nos processos decisórios, em função não
apenas de prioridades sociais, como também para a reivindicação
e o reconhecimento efetivo das diferenças e das particularidades.
Bibliografia