O
EXEMPLO DA POLÍCIA CANADENSE
Folha
de São Paulo, 25.12.1998
Benedito Domingos Mariano
De
acordo com o último relatório sobre o Índice de Desenvolvimento
Humano divulgado pela ONU neste ano, o Canadá ocupa novamente o
primeiro lugar no ranking das Nações Unidas. Em três indicadores (saúde, educação
e renda per capita), o
Canadá é o melhor país para viver entre as 174 nações do
mundo. Mas não abdicou de reestruturar sua polícia, mesmo sendo
ela uma polícia de tradição legalista.
Nas
últimas décadas, o Parlamento e setores da sociedade civil
organizada têm controle direto sobre a polícia, seja ela a
nacional (a Polícia Montada), sejam as das Províncias e municípios.
Desde
1980, duas experiências canadenses se destacam com exemplos de
eficiência. A primeira é a filosofia de policiamento comunitário;
a Segunda, as comissões civis de polícia, nomeadas pelo
Parlamento, além de fiscalizar o serviço policial, têm a
prerrogativa de estabelecer políticas, examinar declamações públicas
e dar recomendações ao chefe de polícia.
A
chefe de polícia de Calgary define assim o policiamento comunitário:
“Não é um programa. É uma filosofia de ação, que tem como
ponto de partida a convicção d que o cidadão integra o trabalho
da polícia. A população tem o dever e o direito de participar
do processo decisório policial. A polícia não ensina a população;
aprende com ela novas formas de prevenir o crime. Além de seguir
regras e ordens, os policiais devem ter a capacidade de pensar
comunitariamente. Se a população não confia na polícia, não há
policiamento comunitário. O gerenciamento do sistema pode ser
feito em parceria permanente com a população. As operações táticas
e estratégicas é que ficam com a polícia; afinal, somos pagos
para isto”.
O
policiamento comunitário pressupõe mudanças de regras e
conceitos. Não há grande diferença entre o menor e o maior salário
na polícia do Canadá (o comissário-geral recebe U$$ 9.000; o
oficial de rua, U$$ 3.000). no Brasil, essa diferença é de pelo
menos dez vezes. No Canadá, houve grande diminuição dos graus
hierárquicos; os inspetores que comandam as unidades operacionais
estão mais próximos dos policiais de rua, e estes sentem que são
fundamentais nas decisões dos superiores.
O
policiamento comunitário não se coaduna com a violência. Em
nove cidades canadenses, num período de dez anos, 50 civis foram
mortos pela polícia, e o número de feridos é bem superior ao de
vítimas fatais (em São Paulo, em menos de nove anos, 5.628 civis
foram mortos pela PM, é o número de feridos é menor que o de
mortos. De 1983 a 1992, para cada dois civis mortos, um era
ferido), o que confirma a tese de que a eficiência da polícia não
se mede pelo número de civis mortos.
Em
todas as cidades canadenses, se um policial saca sua arma em público,
mesmo sem atirar, é obrigado a fazer um relatório sobre os
motivos do ato. Nos casos em que o policial atira num cidadão e o
fere, é automaticamente retirado da atividade-fim e investigado
pela Divisão de Assuntos Internos e pela Comissão Civil de
Reclamação.
É
feita uma rígida pesquisa social quando um cidadão é aprovado
no recrutamento da polícia, que dura cerca de dois anos.
Reciclagem e cursos de aperfeiçoamento técnico-científico são
obrigatórios. Todas as polícias do Canadá são de caráter
civil, com um setor majoritário uniformizado e outro para
investigação. Há um plano único de carreira, e as polícias não
são judiciárias (não cabe a elas a instauração de inquéritos
policiais; os crimes são sempre apurados pela Promotoria).
A
polícia do Canadá não trabalha só com os efeitos da violência,
mas também com as causas, graças à interação com a população.
O resultado é a diminuição da criminalidade.
É
evidente que há grandes diferenças do ponto de vista econômico,
social e cultural entre Brasil e Canadá. A população pobre
canadense (formada principalmente por nativos e afro-caribenhos) não
supera 20%, enquanto no Brasil cerca de 70% da população é
pobre. Mas nos últimos 20 anos, o Canadá venceu as resistências
e reestruturou sua polícia, respeitada até pelo segmento mais
pobre – tradicionalmente, alvo preferencial da violência
policial.
O
Brasil, que tem uma tradição de polícia autoritária (oriunda,
em grande parte, dos 400 anos de escravidão e dos períodos
ditatoriais), precisa priorizar na agenda política o rompimento
dessa herança perversa e a criação de um novo modelo. Sem isso,
qualquer programa de policiamento comunitário tende a ficar na
superfície do problema da violência e da criminalidade.
Se
temos 70% de pobres, e são eles que sofrem cotidianamente a violência
policial (ao mesmo tempo em que são as principais vítimas dos
efeitos da criminalidade), é, com eles, os pobres, como sujeitos
do presente, que preferencialmente tem de ser forjado um modelo de
polícia cidadã. Polícia comunitária é incompatível com
militarização, eleva corrupção policial e impunidade. A
reforma estrutural das polícias e uma nova formação, que
estimule o policial a pensar comunitariamente, devem ser simultâneas
aos programas de policiamento comunitário ou vir antes dele.
O
Canadá é, pela Quinta vez consecutiva, o melhor país do mundo
em desenvolvimento humano. Isto também é medido pelo perfil de
sua polícia.
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