Racismo
e direitos humanos
O que é o CERD
José Augusto Lindgren Alves
Conhecido pela sigla inglesa CERD, de Committee
on the Elimination of Racial Discrimination, o
Comitê para a Eliminação da Discriminação Racial
é o órgão que monitora a implementação do primeiro
dos grandes tratados adotados pelas Nações Unidas
na seqüência da proclamação da Declaração Universal
dos Direitos Humanos em 1948: a Convenção Internacional
sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação
Racial, de 1965.
Conforme definido no Artigo 8º da própria Convenção,
o CERD é composto de 18 "peritos de alto
prestígio moral e reconhecida imparcialidade",
eleitos pelos Estados-partes, em escrutínio secreto,
entre candidatos apresentados pelos respectivos
governos, para o desempenho de funções a título
pessoal, com mandatos de quatro anos.
De acordo com o texto convencional, o CERD tem
três tipos de atuação: o exame dos relatórios
periódicos que os Estados-partes se comprometem
a apresentar sobre "medidas legislativas,
judiciais, administrativas ou de outra índole"
que hajam tomado na matéria (artigo 9º); a consideração
de queixas interestatais de violações da Convenção
(artigo 11); a consideração de petições individuais
contra os Estados-partes que tenham expressamente
reconhecido sua competência para esse fim (artigo
14). O sistema, compulsório, de queixas interestatais
jamais chegou a ser acionado. O sistema de comunicações
individuais, em vigor desde 1982, é pouco utilizado
(possivelmente porque há hoje mecanismos mais
eficazes dentro da própria ONU). O exame de relatórios
nacionais, com recomendações aos governos respectivos,
tem sido, assim, a principal forma de atuação
do CERD.
Mas outras funções vêm sendo por ele desenvolvidas,
com base na liberdade que tem para definir as
regras de procedimento. Suas sessões regulares
se estendem por três semanas e se realizam duas
vezes por ano em Genebra. A última delas, a 60ª,
ocorreu em março. Dela participou como membro,
pela primeira vez, um cidadão brasileiro. Lançado
pelo Governo FHC para concorrer nas eleições de
janeiro de 2002, em Nova York, o candidato, autor
destas linhas, obteve a quarta colocação entre
14 competidores (para as 9 vagas então existentes).
Os outros 17 integrantes atuais do Comitê são
de nacionalidades argelina, argentina, austríaca,
belga, britânica, chinesa, dinamarquesa, egípcia,
equatoriana, francesa, grega, guineense, indiana,
paquistanesa, romena, russa e sul-africana.
A 60ª sessão do CERD
Em sua sessão de março, o CERD examinou relatórios
da Áustria, Bélgica, Costa Rica, Croácia, Dinamarca,
Jamaica, Liechtenstein, Lituânia, Moldova, Qatar
e Suíça. Conforme prática destinada a permitir
diálogo sobre o tema de seu mandato - as discriminações
baseadas em "raça, cor, descendência, origem
nacional ou étnica" (Artigo 1º da Convenção
de 1965) -com os Estados em questão, estes foram
convidados a enviar representantes às reuniões
dedicadas a seus relatórios. As delegações enviadas,
além de fazerem a apresentação oral dos informes,
procuram responder às indagações dos peritos,
fornecendo esclarecimentos complementares ao texto
escrito. Sua composição é sintomática da importância
que os governos atribuem às opiniões do CERD (além
de depender da proximidade geográfica e das disponibilidades
financeiras de cada país). Na 60ª sessão, quase
todas foram numerosas. A Suíça, que teve seu terceiro
relatório examinado, e o Qatar, cujo relatório
foi o primeiro, enviaram a Genebra as maiores
representações, com número de componentes igual
ao do próprio Comitê: 18 membros, das mais variadas
esferas (justiça, imigração, trabalho, educação
etc.), de níveis que iam do federal ao distrital,
do ministerial ao de delegados de polícia.
No exame de relatórios sobressaía a diferença
de enfoques entre, de um lado, os Estados europeus,
preocupados sobretudo com a afirmação da respectiva
nacionalidade, no sentido étnico do termo, perante
as minorias que vivem na mesma jurisdição territorial
(integrando ou não a cidadania) e, de outro lado,
os países do continente americano, cujo objetivo
é assegurar uma cidadania eficazmente eqüitativa
para toda a população, sem descurar das diferenças
culturais que devam ser mantidas. Enquanto para
os primeiros a cobrança maior do CERD era de eqüidade
de condições entre nacionais e imigrantes, ou
entre maiorias e minorias nacionais (a Lituânia,
com 3,6 milhões de habitantes, declara ter 109
nacionalidades convivendo em seu território!),
a Jamaica e a Costa Rica foram perscrutadas a
respeito do tratamento dos segmentos populacionais
negros ou indígenas (no caso da Jamaica, a preocupação
era com a eventual manutenção de privilégios entre
os brancos, o que foi radicalmente negado por
sua delegação, negra). De maneira simplificada
poder-se-ia dizer que, ao passo que para a Europa
toda a questão gira em torno da idéia de nação
respaldada no jus sanguinis, para as Américas,
com nacionalidades construídas sobre o jus soli,
a implementação da Convenção contra o Racismo
diz realmente respeito às discriminações pela
"raça", por mais vazio que seja o termo
do ponto de vista da ciência. Único Estado asiático
com relatório examinado nessa sessão, o Qatar
configurou um caso sui generis, não-generalizável,
onde o elemento religioso prevalecia sobre todos
os demais.
Na medida em que o exame de relatórios é de interesse
particular para o país examinado e a consideração
de queixas individuais (apenas uma na sessão de
março) ocorre em procedimento confidencial (reuniões
fechadas a observadores), o trabalho do CERD não
atrai atenções do público e da maioria das ONGs.
Nem por isso deixa de alcançar repercussão. Tendo
sido o primeiro treaty body estabelecido no âmbito
da ONU, suas iniciativas costumam ecoar alhures,
especialmente quando abordam assuntos genéricos.
No passado recente, o CERD ajudou a chamar atenção
para, por exemplo, a situação dos ciganos (o termo
correto é "roma", pelo qual eles se
auto-identificam), ao decidir discuti-la entre
os peritos. A próxima discussão temática, programada
para agosto próximo, será sobre a discriminação
por descendência (caso inter alia dos párias da
Índia e dos "buraku" do Japão), que
não chegou a ser tratada na Conferência de Durban.
A propósito dessa polêmica Conferência de 2001,
o CERD adotou uma Recomendação Geral significativa.
Por ela o Comitê endossa a Declaração e o Programa
de Ação de Durban contra o Racismo, Discriminação
Racial, Xenofobia e Intolerância Correlata, determinando
que os Estados incluam doravante, em seus relatórios
periódicos, informações sobre as medidas tomadas
para implementar esses dois documentos.
Outra decisão abrangente do Comitê foi a de condenar,
em declaração formal, os atos terroristas de 11
de setembro de 2001 contra os Estados Unidos,
salientando, ao mesmo tempo, que o combate ao
terrorismo precisa ser acorde com o direito internacional
dos direitos humanos e o direito humanitário.
Nesse contexto, o CERD anuncia que passará a monitorar
os efeitos potencialmente discriminatórios de
leis ou práticas adotadas na luta contra o terrorismo.
Como se previsse o que se veria em abril, assumiu,
assim, para si, na qualidade de órgão técnico,
uma responsabilidade que a Comissão dos Direitos
Humanos, como órgão político, não chegou a tomar.
José
Augusto Lindgren Alves
Diplomata, membro do Comitê para Eliminação da
Discriminação Racial da ONU e embaixador do Brasil
na Bulgária.
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