Os
direitos humanos e a reação ao Onze de Setembro: uma retomada de
esperanças?
Folheto distribuído, em 15 de fevereiro de 2002, no centro de São
Francisco, EUA, perguntava: "Você quereria viver num país
que: (a) desafia o direito internacional; (b) humilha
deliberadamente soldados capturados; (c) mantém presos incomunicáveis
por meses, sem qualquer acusação, por causa da respectiva etnia ou
religião; (d) pune pessoas sem lhes dar oportunidade de
defesa?" A resposta, ou complementação, era: "You
already do" ("Você já vive"). Tendo por chamada
"Não à tortura em Guantánamo!", o panfleto era uma
convocação pela seção local da Guilda Nacional de Advogados (ONG
de profissionais do direito ativistas dos direitos humanos) para
manifestação pública, no coração da cidade, diante do escritório
de Senadora californiana pelo Partido Democrata. Esta, segundo o
mesmo panfleto, havia visitado a base norte-americana em Cuba, onde
os prisioneiros transportados do Afeganistão e fotografados com
vendas, capuzes, mordaças, algemas e correntes, vivem expostos em
celas de alambrado qualificadas por "perito penitenciário"
como "basicamente um canil" (sic). Não obstante essas
fotos e informações reiteradas de que os cativos têm sido
drogados e sujeitos a privação sensorial para debilitar resistências
nos interrogatórios, a Senadora em questão teria concluído que
eles não se encontravam em circunstâncias desumanas. Endossava,
assim, a opinião do secretário de Defesa contra o que têm
afirmado a Cruz Vermelha, a Anistia Internacional, a Human Rights
Watch e outras organizações congêneres. Para quem se acostumou à
rotina da superpopulação carcerária brasileira, em condições
indescritíveis, a situação em Guantánamo não deveria parecer
assustadora (embora as fotografias sejam chocantes para qualquer um
que as veja). Tampouco soam incomuns maus tratos de prisioneiros num
país como o Brasil, onde o crime é tão abundante que se inventou
a categoria dos "hediondos" e a tortura, tão rotineira
que sua tipificação como delito parece não ter
"pegado". Afigura-se, porém, estranho que esses panfletos
sejam distribuídos num país que se apresenta como modelo de
direitos humanos (o presidente Bush acaba de fazê-lo na China, em
viagem oficial, em 22 de fevereiro). Mais estranho ainda soa que se
critique, de forma tão veemente, numa cidade "avançada",
mulher parlamentar, de posições liberais, geralmente admirada.
Mais do que estranho, tudo isso é deveras surpreendente depois do
tenebroso Onze de Setembro de 2001. Com efeito, os ataques em Nova
York e Washington haviam abalado de maneira tão profunda a
sociedade norte-americana que qualquer dissensão parecia, até o
passado recente, falta de patriotismo. Depois do apoio quase unânime
do Congresso ao presidente para que ele pudesse declarar legalmente
uma "guerra contra o terrorismo", a lógica dominante era
aquela sempre típica dos protestantes puritanos dos Estados Unidos,
aplicada com particular afinco em sua política externa: "nós
somos bons, eles maus", logo "quem não está comigo está
contra mim". Ao contrário do que diziam livros sérios, pouco
lidos, sobre os erros da CIA ao financiar talibãs contra os soviéticos
na década de 80, todos favoráveis a mudanças nas posições do país,
a sociedade e os meios de comunicação norte-americanos pareciam
apoiar em uníssono a interpretação de que os atentados não
passavam de atos covardes, resultantes de um ódio visceral,
complexado e gratuito, pela civilização. O apoio popular ao
Presidente chegou a alcançar 95%. Qualquer crítica ao Governo na
"guerra contra o terrorismo" (e até em outros assuntos)
era repudiada como anti-americanismo - quanto mais se feita em
defesa de indivíduos descritos como perigosos terroristas! Por mais
simplista que fosse, a obsessão patriótica durou, com vigor
extraordinário, por mais de três meses e meio. Foi ela que
propiciou ao governo a adoção de medidas restritivas de
liberdades, como as que permitem a escuta telefônica e a censura de
comunicações pela Internet, atinentes ao direito à não-interferência
em assuntos da vida privada, normalmente sacrossanto porque
essencial ao individualismo do país. Foi ela que fez vista grossa
à discriminação contra os estrangeiros no território nacional,
passíveis de detenção arbitrária, por tempo indeterminado, sem
acusação conhecida e sem direito a advogado (alguns já por mais
de cem dias). A discriminação entre nacionais e estrangeiros se
revela também no decreto de 16 de dezembro de 2001, pelo qual o
Presidente da República "autoriza o estabelecimento" de
tribunais militares especiais, de rito secreto e sumário, sem
possibilidade de apelação de sentenças, para julgar estrangeiros
por ele qualificados de terroristas (o que não foi sequer
contemplado para o norte-americano John Walker Lindh, Talibã
apreendido em território afegão, mas julgado nos Estados Unidos
por tribunal normal, com assistência jurídica e apoio familiar).
Foi a exaltação do patriotismo, associado à ânsia de vingança
da superpotência ferida contra os idealizadores dos atentados
(estes precisam, sim, obviamente, ser punidos), que aprovou, sem
hesitações, o bombardeio do Afeganistão em ruínas, com
arremessos de comida para uma população em fuga para o vizinho
Paquistão, país pobre e já transbordante de refugiados pashtuns -
foragidos que, por sinal, encontravam as fronteiras fechadas por
ordens dos Estados Unidos na fase precedente à operação militar
(para impedir a saída de inimigos). Foi o patriotismo amortecedor
de direitos, mais do que o temor de mensagens subliminares, que
justificou para o povo a recomendação governamental de autocensura
à retransmissão de vídeos da estação Al Jazeera (a
"CNN" árabe, do Qatar) em que Bin Laden aparecia, com
discurso igual ao do Presidente Bush, apenas com os sinais trocados.
Nesse ambiente de exaltação belicosa, não foram os atos atentatórios
aos direitos fundamentais de todos os seres humanos, particularmente
estrangeiros, que modificaram de forma súbita a reação de
norte-americanos àquilo que vinha - e vem ainda - ocorrendo. Sem dúvida,
as fotografias dos detidos em Guantánamo e a repulsa que causaram,
despertaram em muita gente, no país e no exterior, a consciência
de que a luta contra o terrorismo não pode ser conduzida ao arrepio
do direito; de que a barbárie de uns não pode justificar a
brutalidade de outros; de que, na civilização, nada pode
fundamentar a rediscussão da tortura como técnica para a obtenção
de informações. A dissociação norte-americana do direito humanitário
que os próprios Estados Unidos haviam ajudado a criar (na conferência
diplomática de Genebra de 1949) forçava os aliados europeus, com
um mínimo de consistência, a cobrar o reconhecimento dos detidos
em Guantánamo como prisioneiros de guerra, protegidos pela Terceira
Convenção de Genebra. Esta impede maus tratos e interrogatórios
além do imprescindível para sua identificação; prevê repatriação
no término das hostilidades; estipula que o eventual indiciado em
crime de guerra, detentor como qualquer pessoa da presunção de
inocência, seja julgado por tribunal transparente e imparcial, com
direito a advogado e recurso contra sentenças. Todavia, muito mais
do que as fotografias de Guantánamo e a repulsa que causaram, o que
realmente vem modificando em profundidade a atitude de
norte-americanos e aliados foi o primeiro discurso do presidente
George W. Bush sobre o "estado da União", em 29 de
janeiro. Nele, ademais de anunciar a disposição de expandir a
"guerra contra o terrorismo", com ou sem autorização
externa, estendendo o combate aonde lhe pareça necessário, o
Presidente dos Estados Unidos singularizou o Iraque, o Irã e a Coréia
do Norte como um "eixo do Mal". Os europeus em geral -
inclusive o governo britânico - dissociaram-se de possíveis
bombardeios contra qualquer desses três países, decididos por
Washington. Os sul-coreanos fizeram manifestações contra o
Presidente Bush às vésperas de sua primeira visita a Seul (além
de a nação ser a mesma, a agressão verbal à Coréia do Norte
tende a prejudicar as negociações bilaterais encetadas). Não é
preciso ter o gênio de Immanuel Wallerstein para entender que os
atentados do Onze de Setembro deram ainda mais força aos "falcões"
da administração George W. Bush (v. entrevista à Folha de S.
Paulo, em 10/02/2002, p. A7). O mesmo tem sido dito, agora em crítica
mordaz, por quem antes apoiava a "guerra contra o
terrorismo" (v., por exemplo, a análise de Chris Matthews sob
o título expressivo de Who hijacked our war? - "Quem seqüestrou
nossa guerra?" - no S. Francisco Chronicle, 17/02/2002, p. D1).
Na preparação do Presidente para o state of the Union, os
"falcões parecem ter ido além do limite tolerável pelo
patriotismo do cidadão comum, que, afinal, tem também justificados
temores. Pode ser que, por pressão interna, européia e asiática,
acabem perdendo terreno para o moderado Colin Powell. E que a idéia
desse "eixo" com elementos tão díspares não tenha
passado de de artifício de apoio à proposta de aumento gigantesco
no orçamento militar. Não sei, francamente, em que deu a convocação
de São Francisco à manifestação em favor dos prisioneiros talibãs.
Só tomei conhecimento do panfleto depois da hora marcada. Tampouco
li nos diários ecos de sua realização (o que me leva a supor ter
sido bem reduzida). Contudo, uma coisa é certa: os detidos de Guantánamo
e o "eixo do Mal" mudaram os noticiários. A simples
fadiga dos assuntos da "guerra contra o terrorismo" não
os faria passar tão rapidamente das primeiras páginas de todos os
jornais para aquelas menos lidas, dedicadas ao exterior. Nas páginas
de rosto saem agora notícias desagradáveis a Washington (como as
de ataques errados e espancamentos de inocentes por tropas no
Afeganistão), muitas sobre violações de direitos no país,
decorrentes de medidas adotas nessa guerra heterodoxa. O que a
conscientização dos media e das pessoas representará de concreto
na luta contra o terrorismo é difícil prever. É ainda improvável,
mas não totalmente impossível, que ela possa reorientar o governo
para o reconhecimento da importância dos direitos humanos,
atualmente submersos na prioridade da segurança, militar e policial
- felizmente sem a "doutrina" que conhecemos no Brasil -,
fazendo-o sentir que a observância desses direitos sempre foi e
continuará a ser a melhor forma de desfazer condições que
conduzem ao terror. A conscientização evidencia, de qualquer
forma, que, para a sociedade civil esclarecida e atuante, os
direitos fundamentais e o direito internacional humanitário não se
acham esquecidos pelo medo ou patriotismo cego. Tendo em conta o
grande peso dos Estados Unidos na disseminação internacional da idéia
dos direitos humanos e a importância da sociedade civil
norte-americana para sua afirmação dentro dos próprios Estados
Unidos (como visto nos anos 50 e 60), a movimentação que se esboça
de novo pelo respeito a tais direitos, depois do Onze de Setembro, só
pode ser positiva. Na medida em que ela absorva e propague a
interdependência de todos os dispositivos da Declaração Universal
de 1948, inclusive os direitos econômicos e sociais, ela pode
tornar-se antídoto aos malefícios da globalização excludente.
José Augusto Lindgren Alves
Diplomata, membro do Comitê
para a Eliminação da Discriminação Racial
da ONU e embaixador designado do
Brasil em Sófia (Bulgária)
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