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 A
        CONFERÊNCIA DO CAIRO SOBRE POPULAÇÃO
  
        
         J.A.
        Lindgren Alves
         
        
          
        
         Ao descrever o paradigma do conflito entre civilizações, estas
        fundamentadas nas grandes religiões, como novo esquema conceitual
        sucessor da Guerra Fria, Huntington sequer contemplou a possibilidade, tão
        próxima no tempo, de uma alianca estratégica entre o dogma cristão e
        as tradições corânicas. 
        E essa aliança, na forma de apoios mútuos e articulações de
        delegados, foi sensível, audível e visível nas deliberações do
        Cairo. 
        
         Uma
        vez ultrapassada, na prática e na teoria, a fase das discussões em
        torno do fim da história tal como concebido por Francis Fukuyama
        (1989), o artigo de Samuel Huntington (1993) 
        sobre o choque das civilizações tem sido, muito provavelmente,
        o ensaio teórico das relações internacionais mais influente destes
        tempos pós-Guerra Fria. Nele se define, em substituição ao modelo
        bipolar político-ideológico prevalecente no período 1945-89, um novo
        paradigma de comportamento e conflito entre as nações, baseado nas
        culturas erigidas sobre as grandes religiões.
        
         Publicado
        no verão setentrional de 1993, o artigo logo provocou reações entre
        os estudiosos da matéria, geralmente contra a argumentação exposta. A
        maioria contestava o modelo por enfoques não abordados explicitamente
        por Huntington, fosse apontando outras tendências contemporâneas
        extraculturais mais indicativas do aprofundamento do fenômeno da
        globalização, fosse enquadrando-o como simples variante do paradigma
        do realismo([i]).
        No entanto, poucos parecem ter observado até agora - nem o próprio
        Huntington na primeira tréplica publicada (1994: 171) - que o teste
        mais próximo do modelo por ele visualizado iria ser oferecido pela
        Conferência do Cairo de 1994. E que nela ficaria patente um tipo de
        aliança estratégica não prevista na esfera das culturas, assim como
        uma outra possibilidade de divisão do mundo cruzando as fronteiras das
        grandes civilizações.
        
         Terceiro
        grande conclave mundial da década de 90, a Conferência Internacional
        sobre População e Desenvolvimento, celebrada no Cairo de 5 a 13 de
        setembro de 1994, inscreve-se no amplo conjunto de iniciativas em curso
        sob a égide das Nações Unidas no campo social, com o propósito de
        melhor adequar o planeta para o próximo milênio. Refletiu, assim,
        naturalmente, as principais tendências verificadas nas relações
        internacionais da época contemporânea, trazendo à luz, ao mesmo
        tempo, outros paradigmas, encobertos até então pelos diferentes
        fatores que já se haviam apresentado mais imediata e visivelmente com o
        fim das rivalidades ideológicas entre comunismo e capitalismo.
        
         Cercada
        de sensacionalismo em função da ampla e natural divulgação pelos media
        das posições divergentes que inevitavelmente se apresentam por ocasião
        de eventos congêneres, a Conferência do Cairo produziu exagerada
        celeuma antes de sua realização, traduzida sobretudo em polêmicas
        acaloradas em quase todos os países. 
        
         As
        apreensões podem ser compreendidas com naturalidade em vista de alguns
        subtemas inerentes às questões populacionais, que, a par da abordagem
        macroestrutural, envolvem necessariamente conceitos e valores de foro íntimo
        e conteúdo ético, como a família, a procriação e os direitos
        individuais. Exagerado foi o nível de estridência das preocupações
        prévias às deliberações do Cairo, magnificadas pelo desconhecimento
        ou por leituras superficiais dos textos em discussão. Afinal, se
        comparada com a Conferência do Rio de Janeiro sobre Meio Ambiente e
        Desenvolvimento, e com a Conferência de Viena sobre Direitos Humanos, a
        preparação para a Conferência Internacional sobre População e
        Desenvolvimento foi relativamente tranqüila. Talvez por isso não tenha
        captado a atenção de Samuel Huntington([ii]).
        
         Diferentemente
        do ocorrido com as outras duas conferências, a agenda para a do Cairo
        fora estabelecida sem maiores dificuldades, e o projeto de documento a
        ser por ela adotado, discutido nas sessões do Comitê Preparatório no
        período 1991-93, continha poucas passagens entre colchetes - os
        colchetes significando sempre a inexistência de consenso. Em vista
        desse fato, as delegações presentes na capital egípcia, ao
        deliberarem sobre o formato da Conferência, não consideraram sequer
        necessário constituir um Comitê de Redação. A busca do consenso e a
        retirada dos colchetes ficaram a cargo do único comitê estabelecido: o
        Comitê Principal.
        
         Não
        quer isto dizer que as negociações tenham sido fáceis ou
        desinteressantes. Ao contrário, a Conferência exigiu grande esforço
        conciliatório, muita habilidade diplomática, acomodações e concessões
        recíprocas, além de uma alocação de tempo para o trabalho do Comitê
        Principal muito superior ao originalmente previsto. Houve, inclusive,
        momentos de forte tensão, quando a inflexibilidade de alguns em
        reconhecer as dificuldades dos demais parecia poder provocar a ruptura
        do diálogo e o encerramento da Conferência sem um documento
        consensual.
        
         É,
        assim, importante que o Programa de Ação do Cairo, com contribuições
        substantivas e inovadoras ao tratamento da questão da população e de
        suas interligações com o tema do desenvolvimento, tenha conseguido um
        nível inédito de consenso, inclusive da parte da Santa Sé. É
        importante, também, que o documento tenha processado adequadamente os
        insumos das duas conferências internacionais precedentes e fornecido
        orientações para as outras já então programadas pela ONU: a Cúpula
        do Desenvolvimento Social, em Copenhague, em março de 1995, a IV Conferência
        Mundial sobre a Mulher, em Pequim, em setembro de 1995, e a II Conferência
        das Nações Unidas sobre Assentamentos Humanos (Habitat-II), em
        Istambul, em junho de 1996.
        
         Quanto
        às insólitas alianças formadas no Cairo, a serem explicitadas mais
        adiante, embora não cheguem a configurar um novo modelo de blocos ideológicos,
        são uma tendência que se tem reconfirmado desde então. Sem
        propriamente invalidar o paradigma de Huntington, constituem um dado
        novo que o qualifica. Além de requererem atenção nas análises da
        realidade contemporânea, necessitam, sobretudo, ser levadas em conta
        por todos os atores, governamentais e não-governamentais, operantes no
        campo das relações internacionais. Tanto para impedir que as civilizações
        se choquem, como para evitar que se cindam na forma de novos blocos
        antagônicos. 
 Antecedentes
        temáticos 
        
         Embora
        precedida por duas conferências mundiais, de caráter técnico-científico,
        sobre o tema - em Roma, em 1954, e em Belgrado, em 1965 - e por isso
        denominada Terceira Conferência
        Mundial sobre População, a Conferência de Bucareste de 1974 
        foi, na verdade, a primeira grande conferência intergovernamental a tratar do assunto.
        Realizada em plena Guerra Fria, sob influência das cataclísmicas
        previsões do Clube de Roma([iii]), o encontro de Bucareste
        foi sobretudo um palco de divergências entre posições "controlistas"
        e "natalistas".
        
         Entre
        os "controlistas" situavam-se os países asiáticos e os
        ocidentais desenvolvidos. Dentre estes, a postura mais radical era dos
        Estados Unidos. Sua delegação propugnava a drástica redução das
        taxas de fecundidade no mundo, assinalando que "[...] a alternativa
        pode estabelecer a diferença entre uma vida decente ou a morte
        prematura para centenas de milhões na próxima geração, ou ainda mais
        para a geração seguinte"([iv]).
        
         No
        pólo ideologicamente oposto, os países socialistas entendiam ser a
        população um "fator neutro", cujos problemas se deviam
        unicamente às injustiças dos sistemas econômicos e à propriedade
        desigual dos meios de produção. 
        
         Para
        a África, em geral - salvo raras exceções, como o Quênia -, o maior
        problema seria a subpopulação de seus espaços vazios. Em situação
        assemelhada, a Argentina era veementemente "natalista", como
        também o eram, com graus de convicção variados, quase todas as demais
        delegações da América Latina.
        
         Em
        um período em que os países em desenvolvimento tinham forte capacidade
        de articulação multilateral em defesa de uma nova ordem econômica
        internacional, o Plano de Ação de Bucareste, impreciso em termos de
        alvos numéricos ou estratégias de ação, convidava
        os países a considerar a conveniência de adotarem políticas
        populacionais, no contexto do desenvolvimento socioeconômico, e
        indicava o papel de apoio da cooperação internacional, "baseada
        na coexistência pacífica de Estados com diferentes sistemas
        sociais".
        
         Reunida
        dez anos depois, para avaliar a implementação do Plano de Ação de
        Bucareste, a Conferência do México de 1984 ocorria após a adoção,
        em muitos países, de políticas de apoio ao planejamento familiar ou de
        programas de planejamento populacional. O dado mais curioso foi a total
        inversão de posição dos Estados Unidos, então sob a administração
        Reagan, com relação a Bucareste, pois foram eles os primeiros a
        advogar a neutralidade do fator populacional, declarando, textualmente:
        "Primeiro, e acima de tudo, o crescimento populacional não é bom
        nem mau. Torna-se um ativo ou um problema em conjunção com outros
        fatores, tais como a política econômica, as dificuldades sociais, e a
        habilidade para colocar os homens e mulheres adicionais em trabalhos
        produtivos."([v]).
        
         A
        China, porém, já havia adotado desde 1979 a prática de "um filho
        por casal", e fez a defesa arraigada de sua política, apresentando
        forte contrapeso à nova postura norte-americana - então assimilável
        à posição tradicional do Leste Europeu. O país africano mais
        expressivo na época, a Nigéria, anunciou a intenção de promover
        "um enfoque integrado para o planejamento populacional", de
        forma a evitar que a taxa de crescimento de sua população impusesse, a
        longo prazo, carga excessiva sobre a economia nacional. A delegação do
        Brasil, por sua vez, comunicou que o governo federal havia acabado de
        aprovar a integração do apoio ao planejamento familiar aos serviços públicos
        de saúde. 
        
         Essencialmente,
        a maior inovação propiciada pela Conferência do México com relação
        a Bucareste foi a atenção dada à situação e ao papel da mulher. As
        Recomendações de 1984 observavam que a capacidade das mulheres de
        controlar sua própria fecundidade constituía base importante para o
        gozo de outros direitos; da mesma forma, a garantia de oportunidades
        socioeconômicas iguais às dos homens, assim como a provisão dos serviços
        e meios necessários, permitiriam a elas assumir maior responsabilidade
        em suas vidas reprodutivas. O planejamento familiar foi objeto de 11
        recomendações que realçavam a necessidade de os governos fornecerem
        educação e meios "aos casais e indivíduos para alcançarem o número
        desejado de filhos" (Recomendação 25). Quanto ao aborto, foi ele
        tratado na Recomendação 18, nos seguintes termos:
        
         "Todos
        os esforços devem ser feitos para reduzir a morbidade e a mortalidade
        maternas. Os governos são instados a: [...] e) tomar as medidas
        apropriadas para auxiliar as mulheres a evitarem o aborto, que em nenhum
        caso deve ser promovido como método de planejamento familiar, e, sempre
        que possível, a prover tratamento humano e aconselhamento às mulheres
        que tenham recorrido ao aborto." (ICPD Secretariat, 1994) 
        
         Verifica-se,
        assim, que quase todos os subtemas mais delicados, objeto de controvérsias
        no Cairo, já haviam sido considerados e registrados em documentos
        internacionais precedentes. O caminho traçado no processo preparatório
        da Conferência de 1994 não era, portanto, ignoto; nem seus marcos,
        tabus. 
        
         É
        importante notar que, tanto em Bucareste, em 1974, como na Cidade do México,
        em 1984, a Santa Sé manifestou o mesmo tipo de apreensões e discordâncias
        com as deliberações, e dissociou-se do consenso na aprovação dos
        documentos finais, sendo sua a única delegação a fazê-lo. A dissociação
        não se repetiu no Cairo.          
         
        
         As
        circunstâncias da Conferência do Cairo
         
        
         Com
        o fim do bloco socialista e o conseqüente esvaziamento das teses por
        ele propaladas como "marxistas", a noção de
        "neutralidade" do fator população perdeu seu substrato ideológico,
        assim como seus propugnadores históricos. Nos Estados Unidos, por sua
        vez, a eleição do democrata Bill Clinton, em campanha eleitoral
        arraigadamente liberal, deslocou do centro de influências a "moral
        majority" que tanto determinara as posições republicanas de
        Reagan e de Bush, reabrindo-se a possibilidade de o governo encarar a
        questão populacional em seu peso específico.
        
         Nos
        foros internacionais, os preparativos para a Conferência das Nações
        Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento prenunciavam a crescente
        afirmação de um conceito novo, que se consagraria na Rio-92: o do desenvolvimento
        sustentável, a englobar simultaneamente os sistemas produtivos, os
        padrões de consumo, a pobreza, o crescimento econômico, a população
        e a sustentabilidade da vida no planeta. Não foi difícil, portanto,
        superar, desde a convocação da Conferência da Cairo, as antigas
        dicotomias entre "controlismo"e "natalismo",
        "planejamento populacional "e "desenvolvimento econômico".
        Desde o primeiro momento - a adoção da Resolução 1989/91 pelo ECOSOC
        - decidiu-se que a Conferência de 1994, ao contrário das de Bucareste
        e do México, seria sobre população e desenvolvimento, evidenciando-se, assim, a estreita
        interligação dos dois temas
        
         De
        fato, foram tranqüilas as duas primeiras sessões do Comitê Preparatório,
        em março de 1991 e maio de 1993, quando se definiram consensualmente os
        pontos prioritários da Conferência - população, meio ambiente e
        desenvolvimento; políticas e programas populacionais; população e
        mulher; planejamento familiar, saúde e bem-estar familiar; crescimento
        populacional e estrutura demográfica; distribuição populacional e
        migrações -, bem como os tópicos conceituais para inclusão no
        documento final - a relação entre população, meio ambiente,
        crescimento econômico sustentado e desenvolvimento; a capacitação e o
        fortalecimento (empowerment) da mulher([vi]);
        o envelhecimento da população; saúde e mortalidade; distribuição
        populacional; urbanização e migrações internas; migrações
        internacionais; saúde reprodutiva e planejamento familiar; parceria
        entre governos e ONGs (IISD, 1994, p. 1). Este último tópico, por
        sinal, reflete um dos fenômenos mais marcantes da década: o extraordinário
        crescimento e a grande assertividade das organizações não-governamentais,
        nas esferas doméstica e internacional, como atores de peso sobretudo no
        tratamento dos temas globais, particularmente os do meio ambiente, dos
        direitos humanos, da situação da mulher, do desenvolvimento social e
        das questões populacionais.
        
         Foi
        somente na terceira sessão do Comitê Preparatório, em abril de 1994,
        que o dissenso se manifestou, liderado pela delegação da Santa Sé,
        acompanhada esta por alguns países latino-americanos - que antes haviam
        aceito as idéias principais do projeto de documento final, no chamado
        Consenso Latino-Americano e do Caribe sobre População e
        Desenvolvimento, alcançado na Conferência Regional Preparatória do México
        em abril de 1993. Foram, assim, encaminhados ao Cairo entre colchetes os
        trechos do projeto referentes à definição de planejamento familiar,
        saúde e direitos reprodutivos, maternidade segura, necessidades sexuais
        e reprodutivas dos adolescentes, bem como aos recursos financeiros
        necessários à implementação do Plano.
        
         As
        objeções essenciais levantadas pela Santa Sé são conhecidas, e não
        diferiam das apresentadas nas conferências anteriores. Todas se
        encaminhavam no sentido de rejeitar a idéia de controles não-naturais
        da fecundidade, do aborto em qualquer circunstância e da adoção de práticas
        que pudessem de alguma forma coonestar relações extramatrimoniais ou a
        sexualidade dos adolescentes. Entendia ainda a Santa Sé que o espírito
        do projeto era demasiado individualista.
        
         O
        dado novo que propiciou o grande acirramento das controvérsias em torno
        da Conferência, na esfera internacional, foi um fator característico
        da realidade pós-Guerra Fria: o crescimento generalizado do
        fundamentalismo religioso, sobretudo o islâmico. Possivelmente
        despertados pelas objeções do Vaticano a passagens específicas do
        projeto de Programa de Ação, hierarcas de todos os credos, mas
        sobretudo muçulmanos, passaram a encarar a Conferência como um exercício
        amoral e ateu. O próprio imam
        da Universidade de Al Azhar, no Cairo, condenou de início a realização
        da Conferência, mudando de posição no seu decorrer, à luz da evolução
        dos trabalhos. Eram consideradas provocativas às leis e tradições islâmicas
        tanto as propostas relativas à sexualidade, quanto as recomendações
        concernentes à igualdade de direitos entre os gêneros, uma vez que a shari'a
         estabelece claras e
        assumidas distinções no tratamento de homens e mulheres, nos processos
        judiciais, no direito penal e na esfera cível.  
          
 
            
           
 
            [i]
            O número imediatamente posterior da Foreign Affairs trazia várias réplicas ao ensaio de Huntington. 
            A polêmica foi editada no Brasil pela revista Política
            Externa (São Paulo, Paz e Terra, vol. 2, n. 4, mar.-abr.-maio,
            1994).  Dentre textos
            brasileiros ver Chiappin (1994).  
            
            
           
            [ii]
            Ou, talvez, precisamente por contrariar a idéia do choque de
            civilizações Huntington não se tenha interessado.  Afinal, ele assimilou logo as diferentes concepções
            civilizacionais dos direitos humanos verbalizadas nos debates da
            Conferência de Viena, utilizando-as em 
            reforço a suas teses na tréplica (Huntington, 1994:171). 
            
            
           
            [iii]
            Cujo estudo The limits to
            growth (New American Library,1972), apesar de servir de pretexto
            para inaceitáveis tentativas de imposições de “crescimento
            zero” aos países em desenvolvimento, teve o inquestionável mérito
            de lançar alertas internacionais para a natureza finita dos
            recursos do planeta em face do caráter predatório, inclusive ao
            meio ambiente, do modelo de desenvolvimento adotado universalmente e
            do crescimento populacional incontrolado. 
            
            
           
            [iv]
            A citação do discurso de Caspar Weinberger, então secretário de
            Saúde, Educação e Bem-Estar, é extraída de trechos reproduzidos
            por Johnson (1994:111; tradução minha).  
             
            
            
           
             
            [vi]
            A expressão empowerment of
            women, de tradução imprecisa, foi utilizada reiteradamente no
            projeto e incorporada ao Programa de Ação, vindo a ser um de seus
            conceitos mais importantes. A expressão conota capacitação,
            fortalecimento do status,
            assim como, sem dúvida, maior participação no poder, público e
            privado. Nas citações e paráfrases que virão adiante optei
            simplificadamente por "capacitação", seguida da reprodução
            entre parêntesis do termo original empowerment.
            
              
            
             A
            Arábia Saudita, o Líbano, o Iraque e o Sudão decidiram boicotar o
            evento, apesar dos esforços do Egito para fazê-los ver que mais útil
            para a fé islâmica seria confrontar os eventuais excessos do texto
            com a participação ativa. Esta foi a posição seguida pela Santa
            Sé e pela maioria dos demais países muçulmanos, inclusive aqueles
            de ordenamento jurídico rigorosamente religioso, como o Irã. Ainda
            assim a Conferência se iniciou sob a ameaça amplamente divulgada
            pelos fundamentalistas egípcios - que haviam acabado de atacar um
            ônibus de turismo no sul do país, assassinando um menino espanhol
            - de que perpetrariam atentados contra os delegados estrangeiros.
            
             As
            ameaças não surtiram efeito. A Conferência do Cairo contou com
            delegações de 182 países, cerca de 2 mil ONGs no fórum paralelo
            de organizações não-governamentais e grande afluência de
            jornalistas. Congregou, ao todo, cerca de 20 mil pessoas de
            nacionalidades diversas - o dobro da Conferência de Viena sobre
            Direitos Humanos de 1993.
            
             Ao
            longo de toda a Conferência, porém, nos discursos em plenário,
            nas negociações do Comitê Principal, nas discussões dos Grupos
            de Trabalho, nas articulações de corredores e na panfletagem dos
            militantes presentes, das mais diversas correntes, o que parecia
            delinear-se era um conflito distinto daqueles a que o mundo estava
            acostumado, de sentido Leste-Oeste ou de sentido Norte-Sul. Tampouco
            fora previsto por Samuel Huntington no seu  The
            clash of civilizations? 
            
             Ao
            descrever o paradigma do conflito entre civilizações, estas
            fundamentadas nas grandes religiões, como novo esquema conceitual
            sucessor da Guerra Fria, Huntington sequer contemplou a
            possibilidade, tão próxima no tempo, de uma aliança estratégica
            entre o dogma cristão e as tradições corânicas. E essa aliança,
            na forma de apoios mútuos e articulações de delegados, foi sensível,
            audível e visível nas deliberações do Cairo ([i]).
            Não havendo contemplado tal tipo de aliança, Huntington tampouco
            poderia prever as linhas de fissura intracivilizacionais e as novas
            formas de composição de grupos ensaiadas no Cairo para tratar do
            tema da população - e reconfirmadas posteriormente, em Copenhague,
            nas discussões sobre o desenvolvimento social.
            
              As
            inusitadas fissuras colocavam de um mesmo lado a Santa Sé e o Irã,
            a Argentina e a Líbia, Malta e Iêmen, Honduras e Kuwait. No
            extremo oposto situavam-se a União Européia e os Estados Unidos,
            com alguns apoios afro-asiáticos. O meio termo, que logrou servir
            de ponte entre os dois pólos opostos, foi oferecido por países de
            culturas e civilizações variadas, como o Brasil, o Paquistão, o México
            e a Namíbia.
            
             Acima,
            portanto, das diferenças entre Oriente e Ocidente e entre formas de
            organização social coletivistas e individualistas, da contraposição
            política entre autoritarismo e democracia, das disputas socioeconômicas
            entre países ricos e países pobres, e das distinções e
            rivalidades entre as crenças coletivas de cada grupo de nações, o
            que se esboçou no Cairo não foi um conflito de civilizações, mas
            sim outro paradigma de antagonismo internacional, contrapondo fé e
            realidade social, religião e secularismo, teocracia e Estado civil.
            
             O
            esboço, felizmente, não se materializou em obra. As fissuras não
            fraturaram o trabalho coletivo. Para tanto, muitos elementos
            contribuíram. Entre estes - e a par da existência de delegações
            com posições naturalmente conciliatórias ([ii])
            - terá tido forte influência o fato de a Conferência realizar-se
            num país muçulmano tolerante, geograficamente cercado de Estados
            fundamentalistas, e cujo governo vem enfrentando agressões
            terroristas de grupos fanáticos islâmicos.
            
             Foi
            significativo o discurso de abertura do presidente Hosni Moubarak,
            dando as boas-vindas aos delegados no Cairo, "[...]cidade[...]
            em cujo céu se entrelaçam os minaretes do Islã e as torres das
            igrejas, onde se propagam a tolerância e o amor, e que ilumina pela
            luz da fé o esforço do homem egípcio neste vale abençoado pelas
            Palavras dos versículos do Corão, assim como pelas Palavras do
            Evangelho e pelos textos da Tora"([iii]). 
            
             Ainda
            mais expressiva foi a alocução da primeira-ministra Benazir Bhutto
            ao ressaltar sua condição de mulher, mãe, esposa e chefe de
            governo da maior nação muçulmana com eleições democráticas,
            assinalando que o Programa de Ação não deveria ser encarado como
            uma Carta destinada a impor o adultério e o aborto, nem os
            participantes deveriam permitir que uma minoria de mentalidade
            estreita ditasse a agenda (IISD, 1994, p. 3)([iv]).
            
              
            
             O
            Programa de Ação do Cairo
            
              
            
             Com
            113 páginas e 16 capítulos, o projeto de Programa de Ação
            encaminhado à Conferência do Cairo pelo Comitê Preparatório
            abordava o tema da população de forma abrangente, conforme
            evidenciado pelos próprios títulos:
            
                                
            “1. Preâmbulo;
            
             2. 
            Princípios;
            
             3.
            Inter-relações entre população, crescimento econômico 
            
                                  
            sustentado e
            desenvolvimento sustentável;
            
             4.
            Igualdade de gênero, eqüidade e capacitação (empowerment)
            
                                  
            da mulher;
            
             5.
            A família, seus papéis, composição e estrutura;
            
             6.
            Crescimento e estrutura populacional;
            
             7.
            Direitos reprodutivos [saúde sexual e reprodutiva] e
            
                                   
            planejamento familiar;
            
             8.
            Saúde, morbidade e mortalidade;
            
             9.
            Distribuição populacional, urbanização e migrações internas;
            
                                
            10. Migrações internacionais;
            
                                
            11. População, desenvolvimento e educação;
            
             12.
            Tecnologia, pesquisa e desenvolvimento;
            
             13.
            Ações nacionais;
            
             14.
            Cooperação internacional;
            
             15.
            Parceria com o setor não-governamental;
            
             16.
            Seguimento da Conferência” (Nações Unidas, 1994, 
            
                      
                           doc.A/CONF.
            171/L.1).
            
              
            
             Com
            exceção do Preâmbulo e dos Princípios, todos os capítulos
            apresentavam-se subdivididos em três partes: bases para ação,
            objetivos e ações.
            
             O
            próprio enunciado dos temas demonstra a ligeireza com que se
            disseminou a idéia de que o evento do Cairo seria uma "conferência
            sobre o aborto". Conforme acima grafado - e assim recebido no
            Cairo -, apenas um único subtema, no capítulo 7, era objeto de
            dissenso ao se iniciar a Conferência (em contraste, por exemplo,
            com os mais de 200 colchetes, em quase todos os subtemas, que teve
            de enfrentar a Comissão de Redação na Conferência de Viena sobre
            Direitos Humanos)([v]).
            Com exceção do Preâmbulo e dos Princípios, os demais capítulos,
            igualmente relevantes, já haviam sido extensamente discutidos nas
            sessões do Comitê Preparatório e obtido notável nível de
            consenso.
            
             A
            par do Capítulo 7, sem dúvida o mais controvertido, colchetes
            circundavam algumas passagens e expressões em outros capítulos, a
            maioria das quais repetia, de maneira inegavelmente insistente, senão
            obsessiva, temas ainda controversos, atinentes ao exercício das funções
            reprodutivas. Sobre o aborto existia um único parágrafo, no Capítulo
            8, com duas versões alternativas, ambas entre colchetes.
            
             Embora
            nenhuma das duas versões originais do parágrafo 8.25 procurasse
            estimular a prática do aborto, mas sim instar ao reconhecimento de
            sua ampla ocorrência como uma questão de saúde pública, a ser
            encarada de frente, ambas foram rejeitadas, assim como uma terceira,
            quase consensual, produzida em um grupo de trabalho informal do
            Comitê Principal. À Santa Sé e a algumas delegações
            latino-americanas causavam dificuldades quaisquer menções a aborto
            inseguro - pois todas as formas de aborto são, por definição,
            "nocivas ao feto" - ou a aborto
            legal - já que, para a ortodoxia católica, a prática viola o
            direito à vida do nascituro. Os muçulmanos tinham menos problemas
            com esse ponto porque as leis corânicas permitem o aborto em caso
            de risco de vida para a mãe. 
            
             A
            solução finalmente encontrada para a retenção da expressão aborto
            inseguro foi a aposição de asterisco remissivo e nota de rodapé,
            na qual se reproduz a definição da Organização Mundial da Saúde:
            “procedimento para terminar com uma gravidez indesejada realizado
            seja por pessoas sem as necessárias qualificações, seja em condições
            desprovidas dos mínimos padrões sanitários, ou envolvendo os dois
            casos”. Quanto ao aborto
            legal, a expressão foi substituída por "circunstâncias
            em que o aborto não seja contrário à lei". Com reservas da
            Santa Sé e dos países que a seguiam mais estreitamente, o texto
            adotado, sem votos contrários, no Programa de Ação diz:
            
                 
            "Em nenhum caso deve
            o aborto ser promovido como método de planejamento familiar. Os
            Governos e as organizações intergovernamentais e não-governamentais
            relevantes são instados a fortalecer seu compromisso com a saúde
            da mulher, a enfrentar o impacto na saúde do aborto inseguro como
            um grave problema de saúde pública, e a reduzir o recurso ao
            aborto, através de serviços de planejamento familiar expandidos e
            aperfeiçoados.[...] Nas circunstâncias em que o aborto não seja
            contrário à lei, deve ele ser seguro. Em todos os casos as
            mulheres devem ter acesso a serviços qualificados para lidar com
            complicações advindas de aborto. Aconselhamento pós-aborto, educação
            e serviços de planejamento familiar devem ser prontamente
            oferecidos, com vistas também a evitar a repetição de
            abortos." (Nações Unidas, 1994, parágrafo 8.25: 61) 
            
             O
            capítulo 7, objeto de intensas e difíceis negociações, passou a
            ter por título, na forma finalmente acordada, tão-somente
            "Direitos reprodutivos e saúde reprodutiva". A saúde
            reprodutiva é definida como sendo
            
                   
            "[...] um estado de
            completo bem-estar físico, mental e social, e não apenas ausência
            de doença ou enfermidade, em todas as matérias relacionadas com o
            sistema reprodutivo, suas funções e processos. A saúde
            reprodutiva implica portanto que as pessoas estejam aptas a ter uma
            vida sexual satisfatória e segura, que tenham a capacidade de
            reproduzir-se e a liberdade de decidir fazê-lo se, quando e quantas
            vezes desejarem. Implícito nesta última condição está o direito
            de homens e mulheres de serem informados e de ter acesso a métodos
            de planejamento familiar de sua escolha [...] que não sejam contra
            a lei[...]" (Nações Unidas, 1994, parágrafo 7.2: 41) 
            
             Quanto
            aos direitos reprodutivos, são eles definidos da seguinte maneira:
            
                   
            "Levando em conta a
            definição acima (da saúde reprodutiva), os direitos reprodutivos
            englobam certos direitos humanos já reconhecidos em leis nacionais,
            documentos internacionais de direitos humanos e outros documentos
            consensuais das Nações Unidas. Tais direitos se baseiam no
            reconhecimento do direito fundamental de todos os casais e indivíduos
            de decidir livre e responsavelmente o número, o espaçamento e a época
            de seus filhos, e de ter informação e meios de fazê-lo, assim
            como o direito de atingir o nível mais elevado de saúde sexual e
            reprodutiva[...]"(Nações Unidas,1994, parágrafo 7.3:41) 
            
             Estabelecidas
            estas definições, o mesmo parágrafo determina que a promoção do
            exercício responsável desses direitos deve ser a base das políticas
            e programas estatais; fixa o compromisso dos Estados em prol do
            respeito mútuo e da igualdade entre os gêneros; chama atenção
            particular para as necessidades dos adolescentes em matéria de
            ensino e de serviços "para que possam assumir sua sexualidade
            de modo positivo e responsável".
            
             Dentre
            as medidas recomendadas, o documento inclui a disseminação de
            informações, assessoramento e serviços de saúde reprodutiva;
            propõe tornar acessíveis métodos voluntários de contracepção
            masculina, assim como métodos para a prevenção de doenças
            sexualmente transmissíveis, entre as quais a AIDS; convoca à
            participação nesse esforço "todos os tipos de organizações
            não-governamentais, inclusive os grupos locais de mulheres, os
            sindicatos, as cooperativas, os programas para jovens e os grupos
            religiosos". De especial importância para o país e a região
            onde se realizava a Conferência é a recomendação de inclusão
            nos programas de saúde reprodutiva de uma ativa dissuasão da prática
            da mutilação genital feminina - ainda amplamente praticada no
            Nordeste da África, inclusive no Egito, com o estímulo
            dissimulado, e muitas vezes com apoio ostensivo, de líderes
            religiosos e políticos locais.
            
             Na
            parte concernente ao planejamento familiar, o parágrafo 7.16
            estabelece que a finalidade das medidas propostas no Programa de Ação
            é "ajudar os casais e indivíduos a alcançarem seus objetivos
            de procriação e oferecer-lhes todas as oportunidades de exercer
            seu direito de ter filhos por escolha". Foram notadamente difíceis
            as negociações sobre as menções aos objetivos de procriação
            "dos casais e indivíduos", pois para algumas delegações
            a referência a indivíduos, e não a casais matrimoniais, nesse
            contexto, soava profana e promíscua.
            
             É
            inegável que as negociações sobre o aborto e demais questões com
            implicações éticas, em que conflitavam as posições religiosas e
            as de bem-estar social, predominaram nas deliberações e negociações
            do Cairo. Outras, contudo, também exigiram flexibilidade e acomodações.
            Foi o caso, por exemplo, no Capítulo 10 (Migrações
            internacionais), da reunificação
            familiar dos migrantes  - 
            para o Terceiro Mundo, um direito; para os países
            desenvolvidos, não -, tendo prevalecido fórmula consensual,
            segundo a qual todos os governos, particularmente os dos países de
            acolhida, "devem reconhecer a importância vital da reunificação
            familiar e promover sua integração na legislação
            nacional[...]" (parágrafo 10.2). Foi o caso, também, da
            indicação dos montantes de recursos financeiros necessários à
            execução dos programas de saúde reprodutiva nos países em
            desenvolvimento e com economias em transição (17 bilhões de dólares
            no ano 2000) e da proporção correspondente à assistência
            internacional (um terço do custo total estimado), em que
            prevaleceram as postulações dos países em desenvolvimento e dos
            ex-socialistas (agora chamados "países com economias em transição").
            
             Embora
            tenha sido possível alcançar posições coincidentes em quase todo
            o Capítulo 4, sobre a igualdade entre os sexos, em um ponto específico,
            habilmente negociado por delegadas mulheres de países muçulmanos,
            a idéia teve de ser modificada: no direito de sucessão. Já que,
            de acordo com as leis corânicas, as mulheres não recebem mais do
            que um terço do que cabe ao homem, a noção da igualdade de
            direitos em matéria de herança foi substituída por "direitos
            sucessórios eqüitativos" (parágrafo 4.17).
            
             Particularmente
            delicada, a negociação do chapeau
            dos Princípios (Capítulo 2) - que, tais como o Preâmbulo (Capítulo
            1), não haviam sido examinados no Comitê Preparatório - exigiu inúmeras
            reuniões informais de um grupo de "amigos do presidente do
            Comitê Principal", englobando representantes de todas as áreas
            geográficas. As dificuldades advinham do nível de obrigatoriedade
            a ser atribuído ao Programa de Ação, tanto à luz da necessidade
            de respeito às soberanias nacionais, quanto dos valores cultivados
            nos diferentes sistemas culturais. Conforme finalmente acordado, o chapeau
            dispõe que:
            
                     
            "A implementação
            das recomendações contidas no Programa de Ação é direito
            soberano de cada país, consistente com as leis e prioridades de
            desenvolvimento nacionais, com pleno respeito para com os diversos
            valores religiosos e éticos e contextos culturais de seu povo, e em
            conformidade com os direitos humanos internacionalmente
            reconhecidos."(Nações Unidas, 1994:12) 
            
             Neste
            ponto, talvez ainda mais do que em qualquer outro, as posições dos
            países muçulmanos, e sobretudo a delicada situação do Egito como
            país anfitrião, tiveram de ser levadas em conta. Se, por um lado,
            ninguém chegava a contestar a necessidade de respeito às
            soberanias nacionais, por outro, temia-se que a noção de
            "pleno respeito" aos valores éticos e religiosos de cada
            cultura anulasse a universalidade dos conceitos e direitos definidos
            no documento, permitindo aos governos fundamentalistas ignorá-los
            sem qualquer conseqüência. A fórmula afinal encontrada equilibra
            a noção de "pleno respeito" com os termos "diversos
            valores[...] de seu povo" - que oferece válvula de escape ao
            monolitismo religioso e cultural - e com a referência aos
            "direitos humanos internacionalmente reconhecidos" - que
            protege, inter alia, e
            sobretudo nesse caso, as liberdades individuais e a não discriminação
            de gênero.
            
             Seria
            impossível, nesta oportunidade, descrever os lances de cada negociação,
            muitas das quais se desenvolviam simultaneamente em diferentes
            grupos de trabalho. Mais útil me parece apontar os principais avanços
            obtidos no Cairo para o tratamento da questão populacional,
            contextualizada, em todo o Programa de Ação, dentro do grande tema
            do desenvolvimento. 
            
             Os
            avanços do Cairo 
            
             Tal
            como as conferências anteriores, de Bucareste e do México, a
            Conferência do Cairo tinha por alvo estrito a redução das taxas
            de crescimento populacional e a estabilização da população
            mundial em níveis compatíveis com os recursos do planeta. Conforme
            registra o preâmbulo do Programa de Ação, a população mundial,
            da ordem de 5,6 bilhões no presente, vem aumentando em 86 milhões
            por ano, devendo assim permanecer até o ano 2015, apesar da ocorrência
            de taxas declinantes de crescimento (parágrafo 1.3). De acordo com
            as projeções, nos próximos 20 anos estima-se uma população
            situada entre 7,1, 7,5 ou 7,8 bilhões. A diferença entre as projeções
            mais alta e mais baixa, da ordem de 720 milhões de pessoas no curto
            período de 20 anos, corresponde ao total da população atual da África.
            A implementação das recomendações do Programa de Ação, que se
            dirigem a desafios nas áreas de população, saúde, educação e
            desenvolvimento enfrentados por toda a comunidade humana, resultaria
            num crescimento populacional inferior às projeções estimadas (parágrafo
            1.4).
            
             A
            diferença fundamental da Conferência do Cairo com relação às
            anteriores encontra-se no enfoque adotado. Enquanto as Conferências
            de Bucareste e do México encaravam a população no contexto dos
            interesses estratégicos e geopolíticos dos Estados,
            supervalorizando sua capacidade de controle e atribuindo aos
            governos o poder de decidir se a população de um país deveria
            aumentar ou diminuir conforme suas conveniências, a
            abordagem do Cairo se baseia, acima de tudo, nos direitos humanos e
            no conceito de desenvolvimento sustentável.
            
             Dos
            15 Princípios que compõem o Capítulo 2, os três primeiros
            reproduzem a linguagem de documentos internacionais de direitos
            humanos, a começar pela Declaração Universal de 1948 e incluindo
            a Declaração de Viena de 1993. Reafirmam os direitos civis e políticos,
            os direitos econômicos, sociais e culturais e o direito ao
            desenvolvimento como "um direito universal e inalienável,
            parte integrante dos direitos humanos fundamentais", e
            assinalam que os seres humanos são o sujeitos centrais do direito
            ao desenvolvimento e do desenvolvimento sustentável, cabendo aos
            Estados assegurar a todos os indivíduos a oportunidade de
            desenvolver ao máximo seu potencial.
            
             O
            Princípio 4 estipula que a promoção da igualdade de gênero, a eqüidade
            entre os sexos, a capacitação (empowerment)
            das mulheres, assim como a eliminação da violência contra a
            mulher e a garantia de que ela possa controlar sua própria
            fecundidade são os alicerces dos programas de desenvolvimento
            relacionados com a população.
            
             O
            Princípio 8 determina que "todos têm o direito a usufruir do
            mais alto padrão possível de saúde física e mental",
            devendo os Estados adotar medidas que garantam o acesso universal a
            serviços de saúde, "inclusive aqueles relativos à saúde
            reprodutiva", que incluem, por sua vez, o planejamento familiar
            e a saúde sexual.
            
             O
            Princípio 9, por ter provocado interpretações errôneas na fase
            preparatória da Conferência, merece ser reproduzido integralmente:
            
                  
            "A família é a
            unidade básica da sociedade e, portanto, deve ser fortalecida. Tem
            o direito de receber proteção compreensiva e apoio. Em sistemas
            culturais, políticos e sociais distintos existem várias formas de
            família. Deve-se aceder ao casamento através da livre vontade dos
            futuros esposos, devendo marido e mulher ser parceiros
            iguais."(Nações Unidas, 1994:14) 
            
             De
            acordo com o Princípio 15: 
            
                   
            "O crescimento econômico
            sustentado, no contexto do desenvolvimento sustentável, e o
            progresso social requerem que o crescimento tenha base ampla,
            oferecendo oportunidades iguais a todas as pessoas. Todos os Estados
            devem reconhecer suas responsabilidades comuns, mas diferenciadas.
            Os países desenvolvidos reconhecem sua responsabilidade na busca
            internacional do desenvolvimento sustentável[...]"(Nações
            Unidas, 1994:15) 
            
             Tendo
            em conta que todos os demais capítulos, embora negociados antes,
            refletem e expandem os Princípios, acredito que a amostragem acima
            já aponta adequadamente o sentido em que se desenvolve todo o
            Programa de Ação.
            
             Reflexo
            das tendências predominantes no mundo atual, o Programa é globalizante,
            em diversos sentidos. O primeiro parágrafo do Preâmbulo, após
            observar que a Conferência ocorre em "momento determinante na
            história da cooperação internacional", salienta: 
            
                
            "Com o crescente
            reconhecimento da interdependência global da população, do
            desenvolvimento e do meio ambiente, a oportunidade de se adotarem
            políticas macro e socioeconômicas para promover o crescimento econômico
            sustentado no contexto do desenvolvimento sustentável de todos os
            países e de se mobilizarem recursos humanos e financeiros para a
            solução de problemas globais nunca foi tão grande."(Nações
            Unidas, 1994:7)           
            
            
                        
            Mais clara e
            construtivamente a globalização se reflete na definição das
            responsabilidades compartilhadas, mas diferenciadas, de toda a
            comunidade internacional, e na conseqüente indicação dos
            montantes que incumbem aos países desenvolvidos, em desenvolvimento
            e com economias em transição para a implementação do Programa
            acordado.
            
             Em
            contraste com as abordagens estatizantes - no sentido de se
            dirigirem quase que exclusivamente aos Estados - dos planos de
            Bucareste e do México, o Programa do Cairo é liberalizante,
            atribuindo às famílias, casais e indivíduos as principais funções
            na esfera populacional - cabendo aos Estados a obrigação de
            assegurar-lhes os meios para exercê-las. É ainda de orientação
            descentralizante, na medida em que, ao reorientar as funções
            do Estado na matéria, multiplica e fortalece o número de atores
            coadjuvantes entre governos, organizações governamentais e não-governamentais.
            O Programa reflete, finalmente, o espírito da época, ao assumir os
            direitos humanos, entre os
            quais o direito de asilo aos refugiados (Princípio 13), e sobretudo
            os direitos reprodutivos, como fundamento para toda a ação.
            
             Embora
            o Preâmbulo esclareça que a Conferência não cria novos tipos de
            direitos humanos (parágrafo 1.15), o Programa de Ação do Cairo é
            o primeiro documento universal que adota e explicita a expressão
            "direitos reprodutivos" - antiga e importante postulação
            das mulheres, que não chegou a ser acolhida na Convenção sobre a
            Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher,
            de 1979. Implícitos no direito à liberdade de escolha do número e
            espaçamento dos filhos, já consagrado internacionalmente desde a
            Proclamação de Teerã, da primeira Conferência Internacional
            sobre os Direitos Humanos, de 1968, somente agora encontram-se eles
            claramente definidos e reconhecidos.
            
             Se
            fosse o caso de tentar resumir o "espírito do Cairo" num
            único parágrafo, ele poderia seguir o seguinte raciocínio: a
            experiência dos últimos 30 anos comprova que, fora dos Estados
            totalitários, o controle do crescimento populacional é tendência
            natural e volitiva dos casais, e particularmente das mulheres, no
            pleno exercício de seus direitos. Ao Estado incumbe a realização
            das prestações positivas essenciais ao gozo de tais direitos,
            particularmente os relativos às liberdades fundamentais, à saúde,
            à educação, ao trabalho, à não discriminação e, no caso das
            mulheres, ao controle da própria fecundidade. Para que isso se
            concretize em escala universal, é imprescindível a determinação
            nesse sentido dos governos e sociedades. Mas é também essencial a
            cooperação internacional. 
            
             Nas
            palavras do Departamento de Informação Pública da ONU, o Programa
            de Ação do Cairo constitui "[...] uma estratégia para
            estabilizar o crescimento da população mundial e para alcançar o
            desenvolvimento sustentável através de ações dirigidas às
            necessidades da saúde reprodutiva, e dos direitos e
            responsabilidades dos indivíduos" (Department of Public
            Information(ONU), Press Release POP/CAI/241, 13/9/94, p.1).
            
             É
            importante ressaltar que, diferentemente do ocorrido nas conferências
            precedentes, há, respectivamente, 20 e 10 anos, na Conferência do
            Cairo a delegação da Santa Sé aderiu, ainda que de forma
            seletiva, ao consenso com que se aprovou o documento. Conforme sua
            declaração final em plenário:
            
                   
            "A Santa Sé não pôde
            unir-se ao consenso alcançado em 1974 na Conferência Mundial sobre
            População de Bucareste, nem em 1984 na Conferência Internacional
            da Cidade do México. Na presente Conferência, pela primeira vez, o
            desenvolvimento se acha diretamente ligado à população. O
            presente Programa de Ação reitera a proteção à família como
            unidade básica da sociedade, e insta à capacitação (empowerment)
            das mulheres através de melhorias na educação e no acesso aos
            serviços de saúde. A questão da imigração é examinada e o
            documento também apela ao respeito pelas crenças e princípios
            religiosos.[...]
            
             Na
            Conferência do Cairo a Santa Sé se une ao consenso de maneira
            incompleta e parcial [...] A Santa Sé apóia o conceito de saúde
            reprodutiva e a promoção geral da saúde para homens e mulheres, e
            continuará a trabalhar para a evolução desses princípios. Nada
            nessa aceitação parcial deverá ser interpretado como um endosso
            ao aborto ou uma mudança de sua posição sobre o aborto, o uso de
            anticoncepcionais, a esterilização ou o uso de preservativos na
            prevenção de HIV/AIDS."(Department of Public Information(ONU),
            Press Release POP/CAI/241, 13/9/94, pp.10-11) 
            
             Também
            expressaram reservas a partes do Programa de Ação as delegações
            do Irã, Malta, Peru, Iêmen, Afeganistão, El Salvador, Kuait,
            Djibuti, Líbia, Argentina, República Dominicana, Emirados Árabes
            Unidos, Nicarágua, Guatemala, Paraguai, Honduras e Equador. 
            
             A
            participação do Brasil 
            
             A
            forma em que se deu a participação do Brasil na Conferência do
            Cairo teve caráter pioneiro e modelar. Aprofundando iniciativa
            experimentada, ainda de maneira incoativa, na preparação para a
            Conferência de Viena sobre Direitos Humanos, o processo preparatório
            brasileiro desenvolveu-se mediante diálogo direto entre o governo e
            a sociedade, de forma transparente e consentânea com o sistema
            democrático, o que assegurou a solidez e a efetividade de nossas
            posições. Para tanto foi constituído, por decreto presidencial de
            abril de 1993, um Comitê Nacional congregando, sob a presidência
            do Itamaraty, os demais órgãos públicos federais com competência
            na matéria: ministérios da Educação, do Trabalho, da Saúde e 
            do Bem-Estar Social, o IPEA, o IBGE e a Agência Brasileira
            de Cooperação. O Comitê Nacional, por sua vez, com apoio
            financeiro do Fundo das Nações Unidas para a Populacão (FNUAP),
            promoveu em cidades variadas seminários abertos, com ampla divulgação
            e expressiva participação de representantes da sociedade civil:
            meios acadêmicos, ONGs, institutos de pesquisa e CNBB. Em todo o
            processo preparatório o Comitê Nacional foi assessorado por demógrafos
            e outros especialistas escolhidos consensualmente por seus
            integrantes.
            
             A
            primeira fase desse processo teve por objetivo preparar um relatório
            nacional para encaminhamento à ONU, conforme previsto nas resoluções
            sobre a Conferência. Retrato da situação populacional brasileira,
            tão fiel e abrangente quanto possível a um documento de dimensões
            limitadas, o relatório, como a própria denominação indica, não
            era um documento definidor de posições. Descrevia, sim, os
            problemas existentes nos diversos setores sociais, registrando,
            inclusive, a ocorrência do aborto ilegal e da esterilização
            feminina (República Federativa do Brasil, 1993).
            
             Uma
            vez encaminhado o relatório, dedicou-se o Comitê Nacional a buscar
            as opiniões, senão consensuais, predominantes em nossa sociedade
            sobre os vários subtemas da Conferência, para com elas compor as
            posições a serem defendidas pelo país no Cairo. Estas podem ser
            assim esquematizadas:(a) a soberania nacional é exclusiva para as
            decisões na matéria; (b) a cooperação internacional é
            importante e deve complementar os esforços nacionais; (c) as políticas
            conducentes ao desenvolvimento sustentável devem ser fortalecidas e
            abranger os padrões inadequados de consumo e produção, bem como o
            acesso às tecnologias desenvolvidas; (d) os direitos da mulher,
            inclusive os direitos reprodutivos, devem ser respeitados e
            fortalecidos; (e) os direitos dos migrantes necessitam proteção;
            (f) as políticas populacionais são entendidas como dimensões
            integrantes das políticas de desenvolvimento socioeconômico; mais
            do que o alcance de metas demográficas numéricas, devem elas
            promover a convergência de ações destinadas à melhoria das condições
            de vida, à superação das desigualdades e ao respeito aos direitos
            humanos; (g) a política populacional brasileira baseia-se no Artigo
            226, inciso 7º, da Constituição, segundo o qual "o
            planejamento familiar é livre decisão do casal, competindo ao
            Estado propiciar recursos educacionais e científicos para o exercício
            deste direito"; (h) a consideração da dinâmica populacional
            em todas as dimensões - tamanho, crescimento, estrutura etária,
            mortalidade e morbidade, fecundidade, migrações e distribuição
            espacial, tipos de família e a situação da mulher - é de importância
            fundamental para a integração da variável "população"
            no planejamento de estratégias de desenvolvimento com eqüidade
            social.
            
             Em
            vista do sensível desconhecimento das posições efetivamente
            defendidas pelo Brasil na Conferência do Cairo, vale a pena
            transcrever alguns trechos relevantes do discurso feito em plenário:
            
                    
            "[...] Mais do que
            tudo, é inegável a relação que existe entre qualquer tipo de política
            demográfica e o exercício dos direitos humanos, no seu sentido
            mais amplo, é claro, mas especialmente no que diz respeito aos
            direitos reprodutivos da mulher. [...] A Constituição brasileira
            dispõe que o planejamento familiar é livre decisão do casal,
            competindo ao Estado propiciar recursos educacionais e científicos
            para o exercício desse direito, vedada qualquer forma coercitiva
            desse exercício por parte das instituições oficiais ou privadas.
            
                  
            Nas formulações contidas
            no projeto (de Programa de Ação), que, obviamente, ainda podem ser
            melhoradas, nada vemos que nos faça acreditar que destoem de
            compromissos assumidos em instrumentos internacionais acordados. Em
            especial, nada vemos que permita supor, por exemplo, que o aborto
            possa ser admitido como método de planejamento familiar, um tema de
            grande relevância para parcelas consideráveis de nossas
            sociedades. A legislação brasileira posiciona-se de maneira clara
            ao proscrever a prática do aborto, exceto se necessária para
            salvar a vida da gestante ou em casos de gravidez resultante de
            estupro (conforme os Artigos 124 a 128 do Código Penal)."([vi]) 
            
             Com
            essas posições, que decerto não conflitavam com o espírito das
            propostas contidas no projeto de Programa de Ação, nem ofendiam
            qualquer tradição cultural, puderam os delegados brasileiros no
            Cairo desenvolver intensa atividade em prol do consenso, oferecendo,
            muitas vezes, as fórmulas que levaram aos textos finalmente
            adotados. 
            
             Conclusão 
            
             Ao
            término da Conferência do Cairo, a imprensa estrangeira, com
            reprodução na brasileira, relacionou, na forma de listas, as
            "vitórias" obtidas por cada grupo de participantes, por
            ela divididos em três: os muçulmanos, os católicos e "os
            governos ocidentais e as feministas". As listas apontavam como
            vitórias unilaterais as composições arduamente negociadas,
            algumas das quais acima descritas (International
            Herald Tribune, 13/9/94; Jornal
            do Brasil, 14/9/94; Folha
            de São Paulo, 14/9/94). Tal visão, obviamente simplista, é
            também parcial, como se apenas os países desenvolvidos do Ocidente
            tivessem preocupações com a situação e os direitos das mulheres.
            Ou como se apenas os países muçulmanos fossem arraigados a suas
            tradições.
            
             É
            absurdo falar em termos de "vitórias e derrotas" sobre um
            exercício de negociação multilateral em que, com freqüência,
            concessões táticas permitem compensações mais importantes em
            outros pontos. Muitos participantes de todos os cantos do planeta -
            entre os quais brasileiros e brasileiras, na qualidade de delegados
            e assessores, ou de observadores atuantes - foram fundamentais para
            a consecução dos avanços do Cairo. O movimento de mulheres, de
            escopo universal, com ramificações em todos os países, culturas e
            civilizações, foi inquestionavelmente muito ativo e influente,
            antes, durante e depois da Conferência, tendo, inclusive,
            exercitado a flexibilidade necessária para não insistir em pontos
            demasiado polêmicos quando a possibilidade de ruptura das negociações
            se configurava. Não houve grupos vencedores ou derrotados no Cairo.
            Houve, sim, avanços conceituais e recomendações expressivas para
            o aprimoramento da situação da espécie, do ser humano em sua
            universalidade, das mulheres de todo o mundo.
            
             Em
            um sistema internacional de polaridades indefinidas como o atual -
            para usar a expressão de Celso Lafer e Gelson Fonseca Junior (1994)
            -, a religião é, naturalmente, um fator de aglutinação
            importante. Daí a aparência "auto-evidente" do paradigma
            de Huntington, espécie de "ovo de Colombo" numa época já
            por muitos qualificada de "nova Idade Média"([vii]).
            
             O
            dado novo observado no Cairo foi a aliança de duas religiões cujas
            rivalidades, no passado, provocaram tantas guerras. Parecia, assim,
            que a comunidade internacional se encontrava dividida não pelas
            demarcações entre as "grandes civilizações", mas entre
            teocratas e profanos. Essa aparência não se concretizou. A superação
            das principais divergências foi, nesse contexto, um difícil exercício
            de tolerância recíproca, na procura de um mínimo denominador
            comum à humanidade como um todo. A vitória terá sido da moderação
            sobre os fundamentalismos. Evitou-se, dessa forma, que se forjassem
            dois novos megablocos antagônicos no tema da população, que
            fatalmente se estenderiam, pelo menos, ao tema dos direitos humanos,
            destruindo o consenso alcançado na Conferência de Viena([viii]).
            
            
             A
            implementação das decisões do Cairo, contudo, dependerá de
            grande empenho nas esferas nacionais, assim como da afirmação,
            ainda distante, de uma política internacional efetivamente solidária.
            Até que isto ocorra, pesarão, provavelmente por muito tempo, as
            forças centrífugas que se opõem ao fenômeno atual da globalização.
            Tanto nas ações coletivas, como nas ações nacionais e decisões
            individuais influirão, além dos diferenciais de poder, as
            especificidades das culturas e tradições, assim como os pontos de
            atrito entre a ética religiosa e a ética secular. E este último
            é um fator importante que escapou à visão simplificadora de
            Huntington.
            
             Na
            Conferência do Cairo as "civilizações" não se
            chocaram. Em relativamente poucos momentos - sem dúvida
            significativos - as tradições judaico-cristã, ortodoxa, muçulmana
            ou confuciana se enfrentaram. A grande disputa se deu em outra
            esfera, entre a modernidade e a "pós-modernidade"
            regressiva, entre o universalismo e os particularismos exacerbados,
            que se queriam impor como universais. Esse tipo de enfrentamento é
            o que perdura nas grandes negociações internacionais sobre temas
            sociais, de que foi exemplo recente a Cúpula Mundial sobre o
            Desenvolvimento Social de Copenhague, e que poderá repetir-se em
            Pequim, na IV Conferência Mundial sobre a Mulher.
            
             O
            Programa de Ação do Cairo não conseguiu ultrapassar o relativismo
            em favor do universalismo, como o fez a Declaração de Viena de
            1993. Esta reafirmou, em seu Artigo 1º, a universalidade dos
            direitos humanos acima de qualquer dúvida. O Programa do Cairo, no chapeau
            de seus Princípios e ao longo de todo o texto, teve de fazer
            concessões a um relativismo matizado.
            
             Na
            sua qualidade de documento orientador de atividades da comunidade
            internacional, o Programa de Ação do Cairo conseguiu, porém, algo
            extraordinariamente positivo. Além de evitar uma perigosa
            estratificação entre a fé e a ação social, fez prevalecer o
            enfoque humanista no tratamento de uma questão até então
            eminentemente econômica. Nesse sentido, mais do que em qualquer
            outro, a Conferência Internacional sobre População e
            Desenvolvimento representou uma esperança de progresso histórico,
            proporcionando impulso substantivo à mais positiva das tendências
            dos tempos presentes: a que estabelece os direitos humanos como
            fundamento, condição e meio para a consecução do desenvolvimento
            da humanidade. 
            
              
            
             Notas 
              
 
                [i]
                Os jornais de ONGs que circulavam no recinto da Conferência a
                ela se referiam como "The Unholy Alliance", em alusão
                jocosa à "Santa Aliança" formada ao término das
                guerras napaleônicas para a restauração das monarquias européias.
                A expressão jornalística "pegou" e foi repetida
                abundantemente na Cúpula Mundial sobre o Desenvolvimento
                Social, em Copenhague, em março de 1995.
                
                  
                
                 
                [ii]
                Um participante não-governamental da Conferência do Cairo
                contou cerca de 50 passagens do Programa de Ação cuja
                linguagem consensual finalmente aprovada foi sugerida pela
                delegação brasileira (Donald Sawyer, palestra na Universidade
                de Brasília, setembro de 1994, anotações datilografadas).
                
                  
                
                 
                [iii]
                Tradução da versão francesa, reproduzida no periódico Le
                Progrès Egyptien, Cairo, 6/9/94.
                
                  
                
                 
                [iv]
                O discurso da senhora Bhutto foi dos mais comentados entre as
                delegações à Conferência.
                
                  
                
                 
                [v]
                Sobre o assunto ver Saboia (1993).
                
                  
                
                 
                [vi] 
                Discurso pronunciado pela ministra do Bem-Estar 
                Social Leonor Franco, Cairo, 6/9/94, texto datilografado.
                
                  
                
                 
                [vii]
                O livro de Alain Minc, Le
                Nouveau Moyen Âge, que disseca as características
                "medievais" da época atual, é de 1993, contemporâneo,
                pois, do artigo de Samuel Huntington. As tendências ao
                fortalecimento dos valores religiosos fundamentalistas começaram
                muito antes do fim de Guerra Fria, na década de 70, sendo mais
                visíveis no mundo islâmico a partir da revolução iraniana.
                
                  
                
                 
                [viii]
                A respeito dos avanços conceituais alcançados na Conferência
                Mundial sobre Direitos Humanos de 1993, e para uma tradução em
                português da Declaração
                de Viena, ver Alves (1994, particularmente cap. 2 e apêndice).
                
                
                  
                
                  
                
                  
                
                  
                
                 Referências
                bibliográficas
                
                  
                
                 ALVES,
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                São Paulo, Perspectiva, 1994.
                
                  
                
                 CHIAPPIN,
                José R. Novaes.”O paradigma de Huntington e o realismo político”. 
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                 FUKUYAMA,
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                 HUNTINGTON,
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                 ICPD
                - International Conference on Population and Development
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                 IISD
                - International Institute for Sustained Development. 
                Earth Negotiations Bulletin, vol. 6, n.39, 14/9/94. 
                
                  
                
                 JOHNSON,
                Stanley P. 
                World population - Turning the tide, three decades of
                progress.  Graham
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                 LAFER,
                Celso e FONSECA JR., Gelson. 
                “Questões para a diplomacia no contexto internacional
                das polaridades indefinidas (notas analíticas e algumas sugestões)”. 
                In: FONSECA JR., Gelson e CASTRO, Sergio Henrique Nabuco
                de (orgs.), Temas de política
                externa - II, Brasília/São Paulo, Fundação Alexandre de
                Gusmão/Paz e Terra, vol. 1, 1994, pp. 49-77.
                
                  
                
                 MINC,
                Alain.  Le
                Nouveau Moyen Âge.  Paris,
                Gallimard, 1993.
                
                  
                
                 NAÇÕES
                UNIDAS.  Documento
                A/CONF.171/L.1, 13/5/94.
                
                  
                
                 REPÚBLICA
                FEDERATIVA DO BRASIL.  Relatório do Brasil para a Conferência Internacional sobre
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                Brasília, dezembro de 1993.
                
                  
                
                 SABOIA,
                Gilberto V.  “Um
                improvável consenso: a Conferência Mundial de Direitos Humanos
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                1993.
                
                  
                
                  
                
                  
                
                  
                
                 RESUMO
                - A Conferência do Cairo sobre População e Desenvolvimento e
                o paradigma de Huntington      
                . Ao
                estabelecer o choque das civilizações como novo paradigma das
                relações internacionais no mundo pós-Guerra Fria, Samuel
                Huntington desconsiderou uma outra possibilidade de conflito e
                alianças ideológicas entre Estados, que se esboçou na Conferência
                do Cairo de 1994 sobre População e Desenvolvimento, baseada
                nas divergências entre religião e secularismo. O artigo
                descreve a Conferência do Cairo, com sua abordagem inovadora
                para o tema da população, evidenciando que, se naquela ocasião
                foi evitada a divisão do mundo em dois novos megablocos antagônicos,
                a tensão entre as duas forças ideológicas perdura.      
                
                  
                
                  
                
                  
                
                 ABSTRACT
                -  The Cairo
                Conference on Population and Development and the Huntington’s
                paradigm.
                When defining the clash of
                civilizations as the new paradigm for international relations in
                the post-Cold War world, Samuel Huntington did not take into
                consideration another possibility of conflict and alliances of
                States, which became apparent at the Cairo Conference on
                Population and Development in 1994, based on divergences between
                religious and secular options. This article describes the Cairo
                Conference, with its innovative approach to the theme of
                population, showing that, while on that occasion a new division
                of the world into two antagonistic mega-blocks was avoided,
                tension between those two ideological forces goes on.
                
                  
                
                  
                
                  
                
                  
                
                 (Recebido
                para publicação em junho de 1995)   |