Militantes
Brasileiros dos Direitos Humanos
João Baptista Herkenhoff
Mulher honesta
O Código Penal Brasileiro,
de 1940, alterado sucessivamente em muitos de
seus artigos, continua a consagrar a expressão
"mulher honesta". A recepção
do substantivo "mulher", seguido do
adjetivo "honesta", poderia ser matéria
de estudo simplesmente vocabular, não tivesse
a enunciação repercussão
mais séria no direito das pessoas. O gravíssimo
são as conseqüências jurídicas
dessa conceituação.
Assim
é que o artigo 215 do Código estabelece
a pena de um a três anos de reclusão
para quem tenha conjunção carnal
com mulher honesta mediante fraude. Se a conjunção
carnal fraudulenta atinge mulher virgem, menor
de dezoito e maior de catorze anos, a pena é
mais grave - dois a seis anos de reclusão.
(Parágrafo único do artigo 215).
Na
mesma linha, o artigo 216 capitula como crime
"induzir mulher honesta, mediante fraude,
a praticar ou permitir que com ela se pratique
ato libidinoso diverso da conjunção
carnal". A pena, neste caso, será
de um a dois anos de reclusão.
Finalmente,
o artigo 219 define o rapto: "Raptar mulher
honesta, mediante violência, grave ameaça
ou fraude, para fim libidinoso". (Pena e
dois a quatro anos de reclusão).
O
legislador, numa lamentável distorção
ética e jurídica, não protege
toda e qualquer mulher contra a conjunção
carnal fraudulenta. São resguardadas contra
esse atentado à dignidade da pessoa humana
apenas a menor, se for virgem, e a mulher que
o Código classifica como honesta. Da mesma
forma só a mulher que, na ótica
do Código, é definida como "honesta"
pode ser sujeito passivo de dois outros crimes:
indução, mediante fraude, à
prática de ato libidinoso diverso da conjunção
carnal; rapto mediante violência, grave
ameaça ou fraude.
Um
sentimento mínimo de respeito à
pessoa humana não excluiria mulher alguma
de proteção contra os três
crimes mencionados, tendo em vista que a característica
em comum de todos eles é a prática
mediante fraude. Ninguém pode ser fraudado
na sua liberdade, nas suas escolhas, no direito
de "ser pessoa".
O
Código não define o que seja "mulher
honesta". Também não se refere,
em qualquer artigo, a "homem honesto".
Dentro de uma visão machista, "homem
honesto", diversamente da "mulher honesta",
é aquele que paga as contas.
Estas
considerações sobre a expressão
"mulher honesta" servem para destacar
a importância da interpretação
jurídica.
Procuramos
citar uma hipótese na qual a interpretação
literal da lei conduziria a uma irracionalidade.
Mas à margem de um anacronismo tão
gritante como este que exemplificamos, sempre
se exige do intérprete uma visão
histórica e finalística para corretamente
aplicar o Direito.
A
lei aplicada cegamente trai o Direito. Ao jurista
cabe a tarefa de descobrir o Direito que, em muitas
situações, esconde-se atrás
da lei. Muito estudo, visão multidisciplinar,
consciência reta, dignidade, sensibilidade.
É
isto que o povo espera dos juízes e operadores
do Direito em geral. |