Militantes
Brasileiros dos Direitos Humanos
João Baptista Herkenhoff
Libertação
de Edna, a que ia ser Mãe
Pode a condição
de Mãe fundamentar um despacho de soltura
de uma acusada?
Podem
ter alma e paixão as sentenças que
os juízes proferem?
Sentenças
e despachos devem ser frios, equidistantes dos
dramas tantas vezes presentes nas questões
judiciais?
Essas
perguntas, pelo que sinto, despertam a curiosidade
de muitas pessoas, não apenas daquelas
ligadas ao mundo do Direito.
A
meu ver, o esquema legal da sentença não
proíbe que ela tenha alma, que nela pulse
a vida, e valores, e emoção, conforme
o caso.
Em
várias oportunidades, os jornais têm
registrado sentenças marcadas pelo sentimento,
pela empatia, sem desdouro para os magistrados
que as subscrevem.
Na
minha própria vida de juiz, senti muitas
vezes que era preciso dar sangue e alma às
sentenças. Para que Justiça se fizesse,
não bastava a construção
racional de um frio silogismo.
Este
artigo contém, no seu bojo, o despacho
que libertou Edna, a que ia ser Mãe.
Esta
peça judicial resume minha concepção
do Direito.
Como
devolver a Edna, protagonista do caso, a liberdade,
sem penetrar fundo na sua sensibilidade, na sua
condição de pessoa humana? Foi o
que tentei fazer.
Edna,
uma pobre mulher, estava presa há 8 meses,
prestes a dar à luz, porque fora apanhada
portanto alguns gramas de maconha. Dei um despacho
fulminante, carregado de emoção
e da ira santa que a injustiça provoca.
Este
despacho, quando a ele me refiro em palestras
e cursos, encontra uma resposta tão forte
junto aos ouvintes, que cedo à tentação
de transcrevê-lo.
Talvez
a transcrição ajude a responder
as indagações que colocamos no início
deste artigo.
Eis,
pois, o despacho:
"A
acusada é multiplicadamente marginalizada:
por ser mulher, numa sociedade machista; por ser
pobre, cujo latifúndio são os sete
palmos de terra dos versos imortais do poeta;
por ser prostituta, desconsiderada pelos homens
mas amada por um Nazareno que certa vez passou
por este mundo; por não ter saúde;
por estar grávida, santificada pelo feto
que tem dentro de si, mulher diante da qual este
Juiz deveria se ajoelhar, numa homenagem à
maternidade, porém que, na nossa estrutura
social, em vez de estar recebendo cuidados pré-natais,
espera pelo filho na cadeia.
É
uma dupla liberdade a que concedo neste despacho:
liberdade para Edna e liberdade para o filho de
Edna que, se do ventre da mãe puder ouvir
o som da palavra humana, sinta o calor e o amor
da palavra que lhe dirijo, para que venha a este
mundo tão injusto com forças para
lutar, sofrer e sobreviver.
Quando
tanta gente foge da maternidade; quando milhares
de brasileiras, mesmo jovens e sem discernimento,
são esterilizadas; quando se deve afirmar
ao Mundo que os seres têm direito à
vida, que é preciso distribuir melhor os
bens da Terra e não reduzir os comensais;
quando, por motivo de conforto ou até mesmo
por motivos fúteis, mulheres se privam
de gerar, Edna engrandece hoje este Fórum,
com o feto que traz dentro de si.
Este
Juiz renegaria todo o seu credo, rasgaria todos
os seus princípios, trairia a memória
de sua Mãe, se permitisse sair Edna deste
Fórum sob prisão.
Saia
livre, saia abençoada por Deus, saia com
seu filho, traga seu filho à luz, que cada
choro de uma criança que nasce é
a esperança de um mundo novo, mais fraterno,
mais puro, algum dia cristão.
Expeça-se
incontinenti o alvará de soltura".
Edna
encontrou um companheiro e com ele constituiu
família. Mudou inteiramente o rumo de sua
vida. A criança, se fosse homem, teria
o nome do juiz, conforme declarou na audiência.
Mas nasceu-lhe uma menina que se chamou Elke,
em homenagem a Elke Maravilha.
Onde
estará Edna com sua filha?
Distante
que esteja, eu a homenageio. Pela tarde em que
a libertei, por essa simples tarde, valeu a pena
ter sido juiz. |