Militantes
Brasileiros dos Direitos Humanos
João Baptista Herkenhoff
Aborto: o existencial suplanta
o jurídico
Não pretendo dizer a última
palavra sobre este grave e controverso tema. Entendo,
entretanto, que o debate seja sempre benéfico
e pode trazer luz ao exame dos mais diversos assuntos.
A
Declaração Universal dos Direitos
Humanos não se pronuncia expressamente
sobre o aborto. Há o princípio geral
de defesa da vida. Numa interpretação
ampla, esse princípio proíbe o aborto.
Dizemos que o princípio geral veda o aborto
porque no feto está presente a vida humana.
Mas a Declaração não se define
incisivamente sobre o aborto para considerá-lo
lícito ou ilícito.
Não
obstante outros aspectos da questão, creio
que, fundamentalmente, dois são os argumentos
antagônicos principais, em face do assunto:
a
- o aborto seria lícito como decorrência
do direito da mulher ao uso do próprio
corpo;
b
- o aborto não seria lícito porque
o feto não é apenas uma expectativa
de vida, o feto é uma vida humana em desenvolvimento.
O direito da mulher ao próprio corpo não
lhe permitiria eliminar a vida de um filho que
está para nascer.
Além
das teses que se opõem há um bloco
de questões aparentemente laterais. A meu
ver, essas questões, laterais na aparência,
são centrais na essência. Não
vejo esses pontos suficientemente discutidos nos
debates que se travam sobre o aborto. Trata-se
do seguinte:
a sanção penal é apropriada
para evitar o aborto?
o
aborto é uma questão jurídica
ou uma questão existencial?
A
psicanalista Marie Balmary, debruçando-se
sobre a realidade da França, onde o aborto
é permitido, tem uma palavra a dizer.
Conta
Marie Balmary, à luz de sua experiência
de consultório, que como o aborto, na França,
é legal, a dor psíquica subjacente
é reprimida. A legalização
do aborto não teve força para sepultar
o sentimento de angústia decorrente do
ato. Permanece na mãe um sentimento de
perda, não obstante ela própria
tenha pedido para abortar o filho.
Na
minha experiência de juiz, julguei alguns
casos de aborto. Dentro da realidade brasileira,
só há processo pela prática
de aborto quando o caso se complica e a mãe,
em perigo de vida, vai para o hospital. O hospital
é obrigado a fazer a comunicação
da ocorrência à Polícia. São
abortos realizados por parteiras leigas que, na
linguagem popular, são chamadas "fazedeiras
de anjo".
Sabe-se
da existência de clínicas clandestinas,
onde o aborto é praticado discretamente,
sem complicações.
Nos
casos que chegaram a mim, eu só me defrontei
com situações dramáticas.
Nunca veio a minha presença mulher que
tivesse abortado por razões de conforto
ou por motivo fútil. Testemunhei e vivenciei
essa dor existencial percebida por Marie Balmary
no seu consultório de psicanalista. Em
todos os casos que julguei, sem uma única
exceção, minha sentença,
em razão da carência de dolo do agente
(no caso, a mãe) foi sempre de absolvição.
Como
a prática do aborto constitui crime doloso
contra a vida, a competência para o julgamento
é do Tribunal do Júri.
A
essa conclusão leva uma interpretação
meramente lógica dos dispositivos atinentes
à espécie, conforme se verifica
a seguir.
O
art. 5º, inciso XXXVIII, da Constituição
Federal, diz que é reconhecida a instituição
do júri, com a organização
que lhe der a lei, assegurada, conforme estabelece
a letra "d", a competência para
o julgamento dos crimes dolosos contra a vida.
O
título I, da Parte Especial do Código
Penal, que cuida dos crimes contra a vida (artigo
121 e seguintes), tipifica o aborto como um desses
crimes, conforme está expresso no art.
124:
"provocar
aborto em si mesma ou consentir que outrem lho
provoque".
Creio
que, em regra, o juiz não pode subtrair
a competência constitucional do Tribunal
do Júri pelo caminho da absolvição
sumária. Mas vejo os casos de aborto como
dignos de uma hermenêutica menos rígida.
O comparecimento da mulher que abortou, para julgamento
pelo júri popular, constitui humilhação,
mesmo que venha a ser absolvida. O magistrado
pode, assim, absolver sumariamente uma acusada
se tem diante de sua consciência uma causa
de exclusão da ilicitude (justificativa)
ou da culpabilidade (dirimente), para evitar esse
constrangimento público. Não se
atira pedra a quem já está apedrejado.
Da observância dessa norma de sabedoria
popular não está dispensado o juiz.
O
raciocínio que a boa exegese, a meu ver,
recomenda é este: não há
previsão da modalidade culposa para o crime
de aborto, razão pela qual o crime só
é punido se praticado dolosamente. Não
se pode reconhecer o dolo quando alguém
é impelido à prática de uma
conduta, em princípio criminosa, mas que
perde esse caráter por circunstâncias
que obscurecem a expressão da vontade.
Dei
sentenças dessa natureza estribado em teorias
de interpretação que permitem ao
magistrado, à luz da Ciência do Direito,
assim proceder. Entretanto, reconheço que,
na prática, a maioria dos juízes
tende à estrita aplicação
do preceito legal, presos a um legalismo que desfavorece
a absolvição sumária.
Um
dos casos que mais me impressionou foi o de uma
jovem que veio a mim rotulada como ré.
Segundo as testemunhas, toda noite embalava um
berço vazio, como se nele houvesse uma
criança.
Em
razão dessa vivência de juiz é
que suponho que não são contraditórias
as seguintes colocações, que me
parecem acertadas:
a
- o aborto não é lícito,
a vida humana, desde a concepção,
é sagrada;
b
- a mulher tem direito ao próprio corpo
mas esse direito não lhe dá a faculdade
de dispor da vida do feto;
c
- o aborto está, em princípio, no
âmbito do jurídico, pois que envolve
uma relação interpessoal: a mãe
e o filho por nascer;
d
- relação interpessoal, conflito
de interesses jurídicos, o aborto, numa
primeira perspectiva, meramente lógica,
deveria ser definido como crime;
e
- o tratamento meramente jurídico, entretanto,
é impróprio para abarcar toda a
dramaticidade do aborto; no aborto, o existencial
suplanta e absorve o jurídico;
f
- em razão do conteúdo existencial
do aborto, ele mereceria um tratamento jurídico
especial:
f-1
- ou um tratamento jurídico semelhante
ao que é dado à tentativa de suicídio
(a tentativa de suicídio não é
crime, mas instigar o suicida a que pratique esse
ato é crime);
f-2
- ou o estabelecimento, na lei, de uma alternativa
para que o juiz possa absolver sumariamente a
acusada, ou deixar de aplicar a pena quando, em
face das circunstâncias, verificar que o
ato foi praticado por uma razão existencial
escusável;
g
- um conjunto de medidas sociais, pedagógicas,
psicológicas, econômicas, médicas
deveria proteger o direito de nascer; a sociedade
tem o dever de socorrer com empenho e eficácia
a mulher grávida; todo o esforço
social deve ser desenvolvido para que a mulher
não seja compelida ao aborto. |