Direitos
Humanos – A Construção Universal da Utopia
João Baptista
Herkenhoff
Capítulo 10
Direitos
Humanos e Direitos dos Povos.
1.
Direitos dos Povos, a mais relevante contribuição ao alargamento
da Idéia de Direitos Humanos.
Uma
das restrições apresentadas por alguns países socialistas
quando da edição da “Declaração Universal dos Direitos
Humanos” foi o caráter individualista do texto.
A
reserva procede. O documento não apenas é centrado nos
“direitos individuais”, como também silencia quanto ao
direito coletivo dos povos.
A
ONU procurou corrigir o desvio, em documentos posteriores. Assim
é que, no âmbito desse organismo internacional, dois Pactos da
maior importância, posteriores à “Declaração Universal dos
Direitos Humanos”, consagraram expressamente os Direitos dos
Povos:
a)
o Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e
Culturais;
b)
o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos.
Ambos
são de 1966.
Dirigentes
de países, sobretudo dos países pobres do mundo, líderes de
movimentos de libertação nacional e figuras do mundo civil
aprovaram, em Argel, uma “Declaração Universal dos Direitos
dos Povos” (1976).
As
Nações Indígenas, que estão espalhadas pelo mundo, encravadas
no território de inúmeros Estados, aprovaram, em Porto Alberni,
a “Declaração Solene dos Povos Indígenas do Mundo” (1975).
Em
âmbito regional, os países da “Organização da Unidade
Africana” aprovaram a “Carta Africana dos Direitos Humanos e
dos Povos “ (1981).
A
idéia de “Direitos dos Povos” muito alarga e enriquece a idéia
de “Direitos Humanos”. Na verdade, não haverá, no mundo. a
vigência universal dos Direitos Humanos se não houver o
reconhecimento dos “Direitos dos Povos”.
O
reconhecimento dos “Direitos dos Povos”, nos fóruns
internacionais, foi fruto da luta dos povos dominados e
marginalizados da África, da Ásia, da América Latina. Houve,
sem dúvida, o apoio de militantes, dissidentes, intelectuais, no
cenário dos países ricos, mas o grito partiu dos países pobres
ou empobrecidos.
O
acréscimo dos “Direitos dos Povos” ao elenco dos “Direitos
Humanos” foi, a meu ver, a mais relevante contribuição das
culturas consideradas marginais, sob a ótica dos dominadores, à
idéia de “Direitos Humanos”.
2.
O Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais
e o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos.
O
Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e culturais e
o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticas fazem
expressa referência aos “direitos dos povos”. Estes pactos
foram aprovados pela Assembléia Geral da ONU em 16 de dezembro de
1966. Foram abertos à ratificação dos Estados na mesma data.
Assim
é que os itens 1, 2 e 3 do artigo 1 de ambos os Pactos estatuem
expressamente o direito à autodeterminação, que é indispensável
à vida dos povos.
Este
direito é fundamental para todas as Nações, porem sobretudo
para as que não dispõem de poderio militar.
O
direito de autodeterminação das Nações militarmente fracas é
constantemente ameaçado pela ambição de hegemonia econômica,
militar e cultural de Nações poderosas.
Tal
é a importância do direito à autodeterminação que Hector Gios
Espiell chega mesmo a afirmar que a vigência desse direito é
condição de subsistência de todos os demais Direitos Humanos
Dizem
os itens e o artigo já referidos dos Pactos que estamos
examinando:
“Todos
os povos têm o direito à autodeterminação. Em virtude deste
direito estabelecem livremente sua condição política e
determinam, outrossim, seu desenvolvimento econômico, social e
cultural.
Para
a consecução de seus fins, todos os povos podem dispor
livremente de suas riquezas e recursos naturais, sem prejuízo das
obrigações que derivam da cooperação econômica internacional
baseada no princípio de benefício recíproco, assim como no
Direito Internacional. Em caso alguma pode um povo ser privado de
seus próprios meios de subsistência.
Os
Estados-Partes no presente Pacto, inclusive aqueles que têm a
responsabilidade de administrar territórios não-autônomos e
territórios sob tutela, promoverão o exercício do direito à
autodeterminação e respeitarão esse direito em conformidade com
as disposições da Carta das Nações Unidas “.
3.
A Declaração Universal dos Direitos Humanos
Dirigentes
de países, líderes de movimentos de libertação nacional, políticos,
juristas e economistas, reunidos em Argel, aprovaram a “Declaração
Universal dos Direitos dos Povos”. Esse fato ocorreu em 4 de
julho de 1976, numa reunião que se realizou por iniciativa da
Fundação Lélio Basso.
A
Declaração Universal dos Direitos dos Povos não se opõe à
Declaração Universal dos Direitos Humanos. Muito pelo contrario,
o documento de Argel endossa expressamente, no seu preâmbulo, a
Declaração Universal dos Direitos Humanos, como já dissemos.
A
Declaração Universal dos Direitos dos Povos alarga o sentido da
Declaração Universal dos Direitos Humanos. Isto porque acresce a
uma visão de direitos da pessoa humana, que fosse restrita, a visão
expressa de “direitos dos povos”.
4.
As enunciações da Declaração Universal dos Direitos dos Povos.
O direito à existência, à autodeterminação e os direitos econômicos.
A
Declaração Universal dos Direitos dos Povos (Carta de Argel)
é dividida em 7 seções e é formada por 30 artigos.
A
Seção 1, que trata do Direito à Existência, diz que:
todo
povo tem direito à existência (artigo 1);
todo
povo tem direito ao respeito por sua identidade nacional e
cultural (artigo 2);
todo
povo tem o direito de conservar a posse pacifica do seu território
e de retomar a ele em caso de expulsão (artigo 3);
nenhuma
pessoa pode ser submetida, por causa de sua identidade nacional ou
cultural, ao massacre, à tortura, à perseguição, à deportação,
à expulsão ou a condições de vida que possam comprometer a
identidade ou a integridade do povo ai> qual pertence (artigo
4).
Na
Seção II, cuidando do Direito à Autodeterminação Política,
estabelece essa Declaração:
todo
povo tem o direito imprescritível e inalienável à autodeterminação.
Determina seu estatuto político com inteira liberdade, sem
qualquer ingerência estrangeira (artigo 5);
todo
povo tem direito de se libertar de toda dominação colonial ou
estrangeira direta ou indireta e de todos os regimes racistas
(artigo 6);
todo
povo tem direito a um regime democrático que represente o
conjunto dos cidadãos, sem distinção de raça, de sexo, de crença
ou de cor e capaz de assegurar o respeito efetivo pelos direitos
do homem e pelas liberdades fundamentais para todos (artigo 7).
Sob
a rubrica “Direitos Econômicos dos Povos” arrola a Seção
III os seguintes postulados:
todo
povo tem direito exclusivo sobre suas riquezas e seus recursos
naturais. Tem direito de recuperá-los se deles foi espoliado,
assim como de reaver as indenizações injustamente pagas (artigo
8);
como
o progresso científico e técnico faz parte do patrimônio comum
da humanidade, todo povo tem direito de participar dele (artigo
9);
todo
povo tem direito a que seu trabalho seja justamente avaliado e a
que os intercâmbios internacionais se laçam em condições de
igualdade e equidade (artigo 10);
todo
povo tem direito de escolher seu sistema econômico e social e de
buscar sua própria via de desenvolvimento econômico em liberdade
total e sem ingerência exterior (artigo II);
os
direitos econômicos enunciados acima devem expressar-se num espírito
de solidariedade entre os povos do mundo e levando em conta seus
respectivos interesses (artigo 12).
5.
O direito à cultura, ao meio ambiente e aos recursos e os
direitos das minorias, na Declaração Universal dos Direitos dos
Povos.
Como
“direitos à cultura” estabelece-se na Seção IV que:
todo
povo tem o direito de falar sua língua, de preservar e
desenvolver sua cultura, contribuindo assim para o enriquecimento
da cultura da humanidade (artigo 13);
todo
povo tem direito ás suas riquezas artísticas, históricas e
culturais (artigo 14);
todo
povo tem direito a que não se lhe imponha uma cultura estrangeira
(artigo 15).
O
“direito ao meio ambiente e aos recursos” está disciplinado
através das seguintes disposições:
todo
povo tem direito à conservação, à proteção e ao melhoramento
do seu meio ambiente (artigo 16);
todo
povo tem direito à utilização do patrimônio comum da
humanidade, tais como o alto-mar, o fundo dos mares, o espaço
extra-atmosférico (artigo 17);
no
exercício dos direitos precedentes, todo povo deve levar em conta
a necessidade de coordenar as exigências do seu desenvolvimento
econômico com as da solidariedade entre todos os povos do mundo
(artigo 18).
Os
“direitos das minorias” são assegurados por força das
seguintes estipulações:
quando,
no seio de um Estado, um povo constitui minoria, tem direito ao
respeito por sua identidade, suas tradições, sua língua e seu
patrimônio cultural (artigo 19);
os
membros da minoria devem gozar, sem discriminação, dos mesmos
direitos que os outros cidadãos do Estado e participar com eles,
em igualdade, na vida pública (artigo 20);
estes
direitos devem ser exercidos mediante o respeito aos legítimos
interesses da comunidade em seu conjunto, e não podem servir de
pretexto para atentar contra a integridade territorial e a unidade
política do Estado, quando este atua cm conformidade com todos os
princípios enunciados na presente Declaração (artigo 21).
6. As Garantiu e Sanções a Carta de Argel.
As
“Garantias e Sanções”, na Declaração Universal dos
Direitos dos Povos (Carta de Argel), são estatuídas através de
nove artigos, a saber
todo
descumprimento às disposições da Declaração constitui uma
transgressão às obrigações para com toda a comunidade
internacional (artigo 22);
todo
prejuízo resultante de uma transgressão à presente Declaração
deve ser integralmente reparado por aquele que o causou (artigo
23);
todo
enriquecimento em detrimento de um povo, por violação das
disposições da presente Declaração, deve dar lugar à restituição
dos lucros assim obtidos. O mesmo se aplicara a todos os lucros
excessivos realizados pelos investimentos de origem estrangeira
(artigo 24);
Todos
os tratados, acordos ou contratos desiguais, subscritos Com
depreciação aos direitos fundamentais dos povos, não poderão
ter nenhum efeito (artigo 25);
os
encargos financeiros exteriores que se tenham tornado excessivos e
insuportáveis para os povos deixam de ser exigíveis (artigo 26);
os
atentados mais graves contra os direitos fundamentais dos povos,
especialmente contra o seu direito à existência, constituem
crimes internacionais, acarretando a responsabilidade penal
individual de seus autores (artigo 27);
todo
povo cujos direitos fundamentais são gravemente ignorados tem o
direito de fazê-los valer, especialmente pela luta política ou
sindical, e mesmo, em última instância, pelo recurso à força
(artigo 28);
os
movimentos de libertação devem ter acesso as organizações
internacionais, e os seus combatentes têm direito à proteção
das leis humanitárias da guerra (artigo 29);
o
restabelecimento dos direitos fundamentais de um povo,
quando gravemente desconsiderados, é dever que se impõe a todos
os membros da comunidade internacional (artigo 30).
7. A Declaração Solene dos Povos Indígenas
do Mundo.
O
Conselho Mundial dos Povos Indígenas, reunido em Porto Alberni,
em 1975, aprovou a ‘Declaração Solene dos Povos Indígenas do
Mundo”.
Essa
Declaração começa com um preâmbulo a que nos reportaremos
ainda neste capítulo.
Na
sua Carta de Direitos, os Povos Indígenas:
a)
declaram a todas as Nações do mundo a sua própria ancianidade;
b)
recordam que foram explorados e vilipendiados pela cobiça dos
conquistadores;
c)
afirmam que esses conquistadores roubaram suas terras mas não
puderam eliminar seus Povos;
d)
proclamam que os dominadores não conseguiram fazer esquecer o que
eles são: eles são a cultura da terra e do céu, procedentes de
uma ascendência milenar, eles são milhões e ainda que todo o
Universo seja destruído eles viverão um tempo mais longo que o
império da morte
A
proclamação de Direitos dos Povos Indígenas e a luta que
travam, nos mais diversos países, têm uma especificidade, se
comparadas às proclamações de Direitos e às lutas dos Povos em
geral.
As
Nações Indígenas não têm pretendido sua constituição em
Estados. Querem que suas terras sejam demarcadas, no interior dos
Estados onde se encontram, que suas culturas sejam respeitadas,
que seus direitos não sejam pisoteados. Buscam sobretudo o
sagrado direito de sobreviver. Não querem ser exterminadas pelas
doenças do homem branco, pela cobiça de riquezas minerais do
homem branco, pela exploração do homem branco e pelo massacre
puro e simples. Enfim, os Povos Indígenas do Mundo não querem
continuar sendo vítimas de genocídio.
8. A Carta Africana dos Direitos Humanos e
dos Povos.
Muito
expressivamente, os Estados africanos, membros da Organização da
Unidade Africana, deram a sua Carta de Direitos o nome de
“Carta Africana dos Direitos Humanos e dos Povos”.
E
a chamada “Carta de Banjul”, adotada em 27 de julho de 1981,
ao ensejo da 18ª Assembléia da Organização da Unidade
Africana, reunida em Nairobi, no Quênia.
Chama-se
“Carta de Banjul” porque foi redigida preliminarmente numa
reunião da Organização da Unidade Africana que ocorreu na
cidade de Banjul, Gâmbia, entre 7 e 19 de janeiro de 1981.
Povos
historicamente vítimas do colonialismo e do neocolonialismo, com
muita razão um tratamento individualista dos Direitos Humanos não
lhes poderia satisfazer.
Um
dos considerandos da “Carta Africana dos Direitos Humanos e dos
Povos” coloca a reciprocidade entre “direitos humanos” e
“direitos dos povos”. Os “direitos humanos” devem ter
proteção nacional e internacional porque emanam dos atributos
dos seres humanos. O respeito aos “direitos dos povos”, no
entanto, é garantia necessária dos “direitos humanos”.
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