Literatura
e Direitos Humanos
Paulo
Thadeu Gomes da Silva (*)
Num primeiro momento pode parecer estranho
que um verbete intitulado "literatura"
possa constar de um dicionário
de direitos humanos. A razão, supostamente,
residiria em que não existe relação
de pertinência entre o verbete e
o título do livro. Essa constatação
pode ser verdadeira se feita prima facie,
contudo, se de fato pensada de maneira
mais detida e mediante uma observação
adequada a conclusão será
pela existência de relação
entre literatura e direitos humanos. O
pressuposto é o de que todas as
pessoas têm o direito humano e fundamental
à literatura. A partir desse pressuposto
descreve-se a relação existente
entre eles. A relação que
pode ser estabelecida também pode
ser dividida em duas abordagens: a) uma
abordagem geral e ampla; b) uma abordagem
específica e restrita.
Numa aproximação geral e
ampla a literatura bem pode ser descrita
como elemento integrante dos bens protegidos
pela Constituição, em seus
artigos 215 e 216, como manifestação
oral e escrita da cultura dos povos que
formam a sociedade brasileira. Bom é
que se destaque que nessa acepção
literatura nada tem a ver com a surrada
distinção que indica a existência
de uma hierarquia entre cultura erudita
e cultura popular "a famosa dupla
high brow / low brow", de resto já
existente em Eliot, pois que qualquer
manifestação literária
produzida nesse pano de fundo será
considerada literatura como bem a ser
protegido.
A relação, então,
existente entre literatura e direitos
humanos, nesse quadro mais geral, amplo
e, por assim dizer, mais político,
deita raízes na idéia de
que, uma vez protegidos esses bens, assegurada
estará a auto-reprodução
sócio-cultural das etnias que concorrem
para a formação da sociedade
multicultural brasileira. Numa abordagem
específica e mais restrita a relação
entre literatura e direitos humanos pode
ser descrita como uma realidade que auxilia
a compreensão da promoção
e da defesa dos direitos fundamentais,
agora já no campo mais jurídico
que político. Essa função
pode ser observada pela leitura de obras
de cunho literário e que possuem
potencial descritivo para influenciar
a formação daquele que trabalha
com o direito. Daí a chegar à
conclusão de que é necessária
a criação da cadeira "direito
e literatura" vai um caminho muito
curto. A lista de livros a serem lidos
é extensa e dependerá de
cada sociedade a seleção
das obras, sem embargo de que a realidade
mais comum impõe a leitura de livros
que transcendam as fronteiras geográficas
de cada país.
O que se quer dizer é que, dependendo
de cada país dar-se-á, como
exceção à regra,
ênfase em obras nacionais. Assim,
direito e literatura na França,
a par de contar com a leitura de obras
não-francesas, priorizará
um Racine; de igual efeito, nos Estados
Unidos, na Espanha, na Alemanha, no Brasil,
etc. Neste passo já se faz mais
nítida a distinção
direito humano na política e direito
fundamental no jurídico. Na política
esse direito humano pode ter sua promoção
por meio da reivindicação
e implementação de políticas
públicas, educacionais ou não,
que tenham por objeto o incremento do
acesso ao direito à literatura,
o que produziria o extraordinário
efeito do alargamento da cosmovisão
"Weltanschauung" das pessoas
e, portanto, da sociedade, dando concretude
ao que os alemães apregoam a respeito
do cérebro pela frase grosser ist
besser e combatendo o ditado inglês
segundo o qual ignorance is bliss. A proteção
desse direito humano, no político,
pode ser feita pela impossibilidade de
se modificar a norma constitucional que
protege esse mesmo direito. No jurídico
esse direito fundamental auxilia tanto
a análise das decisões jurídicas
como a construção doutrinária
e jurisprudencial, ou seja, da interpretação.
Aqui seria de se indagar: como pode um
promotor de justiça acusar sem
ter lido Os Miseráveis de Victor
Hugo? Como pode um juiz julgar sem ter
lido Billy Budd, de Herman Melville? Como
pode um advogado defender sem ter lido
o libelo J´accuse, de Zola? Como
pode alguém ser acusado da prática
de um crime sem ter lido Crime e Castigo,
de Dostoievski? Como pode alguém
compreender a aplicação
de uma pena como retribuição
sem ter lido O Mercador de Veneza, de
Shakespeare? Uma discussão teórica
valiosa se instaurou no direito norte-americano
a respeito da comparação
entre o formalismo legal e a escola literária
representada pelo nome New Criticism.
Ambos se equivaleriam em suas descrições
e se antagonizariam com o denominado pensamento
pós-moderno calcado no desconstrucionismo,
pelo qual uma obra literária seria
apenas um artefato, cuja interpretação
teria que ser feita sem se levar em conta
o contexto da biografia do autor e de
outras determinantes referente à
composição da obra.
Tome-se como exemplo mais significativo
o texto da Constituição.
Dworkin advoga meio-termo entre essas
teorias e assevera que se escolhe entre
duas interpretações sobre
uma obra literária pela decisão
que faz da obra uma obra melhor, mais
coerente, mais agradável, e que
o mesmo deveria ser feito quando da interpretação
da Constituição, com a ressalva
de que os critérios de coerência
e integridade seriam jurídicos
e não estéticos. Por exemplo,
qual a interpretação da
norma constitucional da igualdade de todos
perante a lei seria a mais coerente expressão
do princípio da igualdade? Esse
debate pode apontar para a diferenciação
funcional entre o sistema jurídico
e o das artes, onde se incluiria a literatura,
todavia, aqui não é a sede
mais apropriada para mais essa descrição.
Um autor brasileiro que escreveu especificamente
sobre a literatura como direito humano
foi Antonio Candido. Segundo ele há
os bens compressíveis e os bens
incompressíveis, sendo estes os
que não podem ser negados a ninguém.
Para esse mesmo autor, a literatura, sendo
manifestação universal de
todos os homens em todos os tempos, impede
que qualquer pessoa não tenha contato,
cotidianamente, com algum tipo de fabulação.
Se essa premissa é adequada, e
parece de fato ser, então a literatura,
compreendida como toda e qualquer manifestação
de verniz ficcional, dramático
e poético, é também
um direito humano, pois que toda pessoa
tem a necessidade, e o direito, a ela,
literatura. É ela que, ainda segundo
as palavras do autor, sendo "fator
indispensável de humanização,
confirma o homem na sua humanidade"
ou, conforme Vargas Llosa, "que a
cultura, a literatura, as artes, a filosofia,
desanimalizam os seres humanos, ampliam
extraordinariamente seu horizonte vital,
atiçam sua curiosidade, sua sensibilidade,
sua fantasia, seus apetites, seus sonhos,
os tornam mais porosos à amizade
e ao diálogo, e melhor preparados
para enfrentar a infelicidade”.
Com base nessa idéia pode-se afirmar
que a expressão "direito humano"
transcende seu campo de aplicação
das esferas do político e do jurídico
para a esfera privada do indivíduo
e dos grupos, cuja produção
vai desembocar na identificação
do patrimônio cultural da sociedade
mundial, de sua vez, já protegido
por Convenção Internacional.
O risco existente para a formulação
da idéia do direito humano/fundamental
à literatura é a perda de
eficácia do próprio conceito
de direito humano/fundamental, pois que
tudo ou quase poderia se configurar como
direito dessa espécie. A eficácia,
real, passaria a ser apenas simbólica.
De fato, esse risco existe, contudo, a
contingência parece ser da própria
sociedade moderna, e nela os direitos
humanos/fundamentais não seriam
apenas universais, mas também universais
direitos humanos/fundamentais universais.
A decisão fica por conta da resposta
que se possa dar à indagação:
vale a pena correr o risco de se construir
a idéia do direito à literatura
como direito humano? O verbete aqui escrito
indica a resposta positiva.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
CANDIDO,
Antonio. O direito à literatura.
In: Vários Escritos. São
Paulo: Duas Cidades, 2004, pp. 169-191.
DOSTOIEVSKI, FIODOR. Crime e Castigo.
São Paulo:Editora 34, 2001.
ELIOT, T. S. Notas para uma definição
de cultura. São Paulo: Perspectiva,
1988.
HUGO, Victor. Os Miseráveis. São
Paulo: Cosac & Naify, 2002.
LEVINE, Lawrence. Highbrow/Lowbrow: The
Emergence of Cultural Hierarchy in America.
Cambridge: Harvard University Press, 1990.
LLOSA, Mario Vargas. Filosofia doméstica
para tornar a vida mais compreensível
e tolerável. O Estado de São
Paulo, 11.06.2006, p. D8.
MELVILLE, Herman. Billy Budd. São
Paulo: Cosac & Naify, 2003.
POSNER, Richard A. What Can Law Learn
in the Schools of Literary Criticism.
In: Law and Literature. Cambridge: Harvard
University Press, 2002, pp. 211-254.
(*)
Este artigo foi gentilmente cedido (via
e-mail, à Profa. Graça Graúna)
pelo Doutor em Direito pela PUC/SP, Procurador
Regional da República em São
Paulo e Professor da UNIFMU, e encontra-se
também disponível em:
www.esmpu.gov.br/dicionario/tiki-user_information
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