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FREI BETTO


    O FREI CARLOS ALBERTO LIBÂNIO CHRISTO, FREI BETTO, É FRADE DOMINICANO, ESTUDOU JORNALISMO, ANTROPOLOGIA, FILOSOFIA E TEOLOGIA. É  ESCRITOR E CONSULTOR DO MST E DO PT, ARTICULISTA DO BOLETIM REDE DE CRISTÃOS.  EM 1983, GANHOU O PRÊMIOS"JABUTI",  O PRINCIPAL PRÊMIO LITERÁRIO DO BRASIL, CONCEDIDO PELA CÂMARA BRASILEIRA DO LIVRO, POR SEU LIVRO "BATISMO DE SANGUE" EM 1986, FOI ELEITO "INTELECTUAL DO ANO", PELOS ESCRITORES FILIADOS À UNIÃO BRASILEIRA DE ESCRITORES, QUE LE DERAM O PRÊMIO "JUCA PATP".EM 1987  "DIREITOS HUMANOS" DA FUNDAÇÃO BRUNO KREISKY, EM VIENA. NA ITÁLIA, FOI A PRIMEIRA PERSONALIDADE BRASILEIRA A RECEBER O PRÊMIO "PAOLO E. BORSELINO", POR SEU TRABALHO EM PROL DOS DIREITOS HUMANOS, CONCEDIDO EM MAIO DE 1998. EM DEZEMBRO DE 1998,   RECEBEU O PRÊMIO CONCEDIDO PELA ASSOCIAÇÃO PAULISTA DE CRÍTICOS DE ARTE, DE MELHOR OBRA INFANTO-JUVENIL, COM O LIVRO "A NOITE EM QUE JESUS NASCEU".
FOI, DURANTE CINCO ANOS, MEMBRO DA FUNDAÇÃO SUECA DE DIREITOS HUMANOS .É MEMBRO   DO INSTITUTE FOR CRITICAL RESEARCH, AMSTERDÃ E DIRETOR DA REVISTA "AMÉRICA LIBRE". É ARTICULISTA DE VÁRIOS JORNAIS E REVISTAS DO BRASIL E DO EXTERIOR.

COM OBRAS EDITADAS EM VÁRIOS PAÍSES, TEM 38 LIVROS PUBLICADOS, EM DIVERSOS IDIOMAS .

ENTRE SUAS OBRAS, DESTACAM-SE NA ÁREA DA FICÇÃO: "A MENINA E O ELEFANTE" E "UALA , O AMOR", INFANTO-JUVENIS E  "O VENCEDOR"  E "ENTRE TODOS OS HOMENS".

NA ÁREA DO ENSAIO: FIDEL E A RELIGIÃO, BATISMO DE SANGUE, CARTAS DA PRISÃO, ESSA ESCOLA CHAMADA VIDA ( CO-AUTORIA COM  PAULO FREIRE), MÍSTICA E ESPIRITUALIDADE   ( CO-AUTORIA COM LEONARDO BOFF). O PARAÍSO PERDIDO - NOS BASTIDORES DO SOCIALISMO, ALUCINADO SOM DE TUBA, SINFONIA UNIVERSAL - A COSMOVISÃO DE TEILHARD DE CHARDIM E A OBRA DO ARTISTA - UMA VISÃO HOLÍSTICA DO UNIVERSO.


NESTE ESPAÇO, PODERÃO SER ENCONTRADOS,  UMA  ENTREVISTA EXCLUSIVA, CONCEDIDA AO JORNAL IGREJA NOVA, EM SETEMBRO DE 1997 E OS ARTIGOS PUBLICADOS  NO JORNAL .


ENTREVISTA EXCLUSIVA

ABRIL/MAIO/JUNHO - 1997


IGREJA NOVA: Frei Betto, se o senhor tivesse plenos poderes aqui no Brasil, quais as três medidas que tomaria urgentemente para mudar o curso deste país ?

FREI BETTO : Bem, primeiro eu espero que um dia o povo tenha estes plenos poderes e espero que, neste caso, as três medidas prioritárias sejam os três direitos fundamentais: alimentação, saúde e educação; nesta ordem.

Então, para resolver a questão da alimentação o mais urgente é promover a reforma agrária. Para resolver a questão da saúde o mais urgente é erradicar as causas como a miséria, a pobreza e a desigualdade que produzem a doença.

Doença física e psíquica é resultado da miséria. Para resolver a questão da educação é criar uma nova concepção onde educação seja uma concepção abrangente e portanto não meramente curricular, escolar, mas que mobilize toda a sociedade brasileira para erradicar o analfabetismo e para criar uma cultura educacional sobretudo na mídia brasileira.

I.N.: O senhor sabe que aqui em Olinda e Recife nós sofremos na pele o contraste entre Igreja chamada progressista do modelo Vaticano II e a Igreja que se tenta implantar atualmente, ou se implanta a nível mundial, uma Igreja mais conservadora. Se os plenos poderes aos quais nos referimos na pergunta anterior lhes fossem dados para mudar um pouco a Igreja hierárquica, enquanto corpo social, como o senhor agiria ?

F.B.: Bem, eu acho que a Igreja tem que ser fiel ao Evangelho, portanto a Igreja deve se despojar das suas marcas imperiais, que são heranças do constantinismo, do momento em que a Igreja do século quarto aderiu ao império romano, isso foi acentuado pela tradição medieval e posteriormente pelo monarquismo e sobretudo pelo absolutismo monárquico. De modo que é preciso despojar a instituição da Igreja de todas estas marcas de "nobreza" que não têm nada a ver com o Evangelho. Não há nenhuma razão de ser.

I.N.: Então, qual seria sua proposta ?

F.B.: Ora, mas para isso não é preciso que eu faça a proposta, é preciso que a Igreja assuma propostas que ela já consagrou, como por exemplo a concepção do Vaticano II, de uma Igreja Povo de Deus em marcha na história, de uma igreja dirigida por uma "colegialidade", pela colegialidade episcopal, uma igreja muito mais comunitária, de uma igreja não euro-centrada, de uma igreja onde a autoridade seja serviço e não poder de mando e submissão de súditos e por aí vai...

I.N.: Então devemos lutar por estes valores ...

F.B.: Isso são valores que a própria Igreja já trabalhou no seu seio e acredito que enquanto houver esta desigualdade social vai perdurar também as contradições internas da Igreja. Eu não quero criar ilusão de que nós teremos uma Igreja fraterna, uma Igreja totalmente sintonizada...não teremos nunca, ainda que as desigualdades desapareçam, porque há um limite. Evidente que nós precisamos criar uma Igreja menos autocrática, mais democrática, porém é preciso saber que haverá sempre diferenças entre nós. O importante é saber não transformar diferenças em divergências.

I.N.: O senhor concorda que as diferenças são saudáveis em qualquer contexto da vida, principalmente em relação à vida em comunidade?

F.B.: A começar do fato de haver quatro Evangelhos e não um só. São quatro óticas diferentes de Jesus. Seria terrível se alguém quisesse nos impor um dos Evangelhos jogando fora os outros três. Então é isso, é o testemunho que o próprio Senhor quis uma Igreja em comunhão com diferenças, onde há diversas óticas e ao mesmo tempo estas diversas óticas convivem com harmonia e vivem o projeto pastoral.

IGREJA NOVA: Frei Betto, para finalizar, , nos pediríamos uma mensagem de esperança para o povo, leigos e padres, que está engajado, para manter viva esta tradição da Igreja que tivemos e temos ainda com D. Hélder , este grande profeta.

FREI BETTO : Eu acho que a esperança é ser fiel à herança de D. Helder, ser fiel a tudo aquilo que D. Helder tem testemunhado ao longo da sua vida, as grandes aspirações que ele encarnou, ser fiel à grande revolução que representou o Vaticano II para a Igreja, ser fiel às linhas pastorais da CNBB, ser fiel a toda esta postura crítica que a CNBB tem diante do neoliberalismo, ser fiel enfim, a todo esse movimento de uma Igreja latinoamericana que se aproxima dos pobres, de uma Igreja que vive a fidelidade a Jesus na comunhão com todos, mas especialmente com os mais necessitados.

I.N - Muito obrigado.


RAINHA

SETEMBRO/OUTUBRO - 1997


ARTIGO PUBLICADO NO "BOLETIM REDE", DE 17 DE SETEMBRO - INFORME REDE DE CRISTÃOS - CENTRO ALCEU AMOROSO LIMA PARA A LIBERDADE

 

José Rainha , um dos líderes dos sem-terra, voltará ao banco dos réus agora em setembro. Delegações e personalidades do Brasil e do exterior irão ao Espírito Santo manifestar apoio aquele que, em primeira instância, recebeu a condenação de 26 anos e 6 meses de prisão, e repudio ao caráter injusto do processo.

São Tomás de Aquino ensina que não se deve confundir o legal e o justo. Há sentenças legais, porém injustas. Em nome da lei cometem-se erros judiciais irreparáveis. Sou vítima de um deles. Preso pela ditadura militar, fui condenado a 2 anos de reclusão e cumpri 4. Cassaram meus direitos políticos por 10 anos e nos últimos 2 anos de cárcere negaram-me o regime de prisão especial a que têm direito os prisioneiros com curso superior. Passei dois anos entre presos comuns nos pavilhões do Carandiru, da Penitenciaria do Estado e de Presidente Venceslau.

Essa ‘descida aos infernos’, levou-me à comunhão com os mais sofridos.

Libertado do cárcere, fui trabalhar com as Comunidades Eclesiais de Base. Ao assessorar um encontro de CEBs, ao norte do Espírito Santo, conheci um jovem lavrador franzino, espigado, de olhos perscrutadores e um jeito pausado de falar. Era José Rainha. Tornou-se um dos mais destacados animadores dos grupos de cristãos de base e dos que eram enxotados de suas terras pelo latifúndio.

Em 11 de junho deste ano, Rainha foi julgado em Pedro Canário por um crime que não cometeu. Nem poderia ter cometido, pois testemunhas idôneas viram-no, entre maio e junho de 1989, época do delito, no sertão do Ceará.

Há fotos que registram ali sua presença. Por que será que o levam a julgamento exatamente quando o MST está em evidência e ele, na mira dos que crêem que terra ociosa é direito divino? Mera coincidência?

A 5 de junho de 1989 foram assassinados em Pedro Canário o fazendeiro José Machado Neto e o policial Sérgio Narciso da Silva. Na mesma data, o padre Pedro Paulo Cavalcanti registrou a presença de Rainha na fazenda Reunidos de São Joaquim, em Madalena, CE. Inúmeros assentados da fazenda estiveram com Rainha. No arquivo da Casa Militar do governo cearense há uma foto na qual Rainha aparece dialogando com o governador Tasso Jereissati, em 30 de maio de 1989.

Não há provas da culpa de José Rainha. E há provas e testemunhas de sua inocência. A dificuldade reside na implicação política do julgamento, neste país em que batedores de carteiras apodrecem nas cadeias enquanto fraudadores de bancos, falsificadores de precatórias e cambistas de votos desfrutam da cegueira ou da brandura de uma justiça que proclama não ser grave o delito de queimar um índio vivo numa rua do Distrito Federal. É a nossa cidadania sendo consumida na pira da impunidade.

Estará no banco dos réus, em setembro, a legítima aspiração de reforma agrária da nação brasileira. Como não há como prender direitos e sonhos, procuram condenar quem os encarna.

Não há sentença injusta que altere a história de um país. Filhos de latifundiário também aprendem na escola quem são os heróis na nação brasileira: Zumbi, Tiradentes, Frei Caneca, Antonio Conselheiro, Chico Mendes - todos injustamente perseguidos pela elite gananciosa de seu tempo, como hoje José Rainha.


A IGREJA CATÓLICA E AS ELEIÇÕES -

SETEMBRO - 1998


O bispo de Jundiaí (SP), dom Amaury Castanho, divulgou lista de candidatos que merecem o voto do eleitorado católico. Uma prática reprovada por seus próprios fiéis, já que não se pode dissociar o bispo da instituição eclesiástica e nem admitir que esta deixe de cumprir seu papel de iluminar as consciências à luz do Evangelho para intrometer-se diretamente no pleito.

A posição da Igreja católica diante das eleições suscita tantas tolices que convém relembrar certos princípios. Sisudos articulistas usam, ao tratar da Igreja, dois pesos e duas medidas. Ontem, louvavam a Igreja da Polônia que apoiava abertamente o ex-movimento sindical e atual partido político Solidariedade e, hoje, condenam os cristãos que, no Brasil, buscam uma mediação política à exigência evangélica de opção pelos pobres.

O problema não reside na presença da Igreja na política. Para a doutrina católica, esta é uma questão resolvida. Todos os documentos pontifícios e episcopais insistem no dever de o cristão participar ativamente da vida política. O Papa Paulo VI acentuava que "a política é a mais perfeita forma de caridade". E ele próprio chegou a pedir votos para a Democracia Cristã quando a prefeitura de Roma estava ameaçada de passar às mãos do PCI ( Partido Comunista Italiano). Em outubro de 1989, o cardeal Poletti voltou a repetir o gesto. E quem se intrometeu mais na política interna dos países do Leste europeu que o papa João Paulo II?

De fato, a presença da Igreja na política incomoda quando se trata de favorecer o interesse popular. Durante séculos, a oligarquia manipulou setores da Igreja em prol de seus negócios escusos. A sombra da cruz, a América Latina foi invadida, os índios mortos, as riquezas saqueadas. Em nome de Deus, a supremacia do capita1 sobre o trabalho virou dogma inquestionável. Apesar de tanta miséria ainda ousam chamar o nosso Continente de cristão... Será esta a sociedade desejada por Cristo? Todos sabemos que não, pois diante de Deus a vida não pode ser privilégio de uns poucos em detrimento da morte de muitos.

Enquanto a Igreja incensou governos ditatoriais como Franco ou Somoza, freqüentou mansões de famílias aristocratas, pregou aos pobres a abnegação frente aos sofrimentos deste mundo, a ideologia dominante jamais se viu incomodada com sua presença na política.

Porém, quando ela retoma o caminho de Cristo e exige justiça - a ponto de proclamar que a fome de justiça é uma bem-aventurança - então dizem que ela "foge de sua verdadeira missão". Ainda bem que Jesus advertiu: "Se a mim chamaram de Belzebu, que não dirão dos membros de minha casa'." (Mateus 10, 25).

O modo de a Igreja participar da vida política não pode ser o mesmo de um partido político. Não cabe a ela organizar núcleos partidários, apontar candidatos, sacralizar regimes. Sua missão é formar e alertar a consciência dos fiéis. Se um bispo ou um padre apoia explicitamente um candidato, o faz em nome próprio, como cidadão revestido de todos os direitos políticos, e não em nome da instituição eclesiástica. Esta, porém, tem a obrigação moral de expressar as exigências éticas de uma ordem democrática, como faz a CNBB.

Toda a linha pastoral da Igreja católica no Brasil insiste na urgência da reforma agrária, em priorizar saúde e educação, no resgate da cidadania e no fortalecimento da democracia. Basta ler os documentos da CNBB. E seria aconselhável comparar o conteúdo com os programas, as palavras e, sobretudo, a prática dos candidatos a governador e presidente da República.

O beija-mão de candidatos que acorrem aos bispos não os absolve nem canoniza. Pelo contrário, foi com um beijo que Judas selou a morte de Jesus.


SONHOS E LOUCURAS DE CLEONICE

OUTUBRO - 1998


A Folha de S. Paulo (31/5) publicou entrevista da desempregada nordestina Maria Cleonice Souza Silva, 22, de Ouricuri (PE), que costuma ficar três dias sem comida. Ela declarou que, instigada pela miséria, é "capaz de fazer qualquer coisa".

Cleonice agrediu a mãe, tentou comer gilete e bebeu água sanitária. O Brasil sonega a essa moça, que habita o país que se destaca como o produtor mundial de frutas e um dos seis maiores produtores de alimentos, algo elementar: "comer alface, queijo, cenoura, beterraba, essas coisas que as outras pessoas comem".

Cleonice sonha com direitos básicos: trabalho e comida. O primeiro, um direito humano; o segundo, um direito animal. Trabalho o Brasil nega a cerca de 12 milhões de pessoas. Comida, a 40 milhões. Recursos para acabar com a fome não faltam: há terra em abundância, armazéns do governo repletos de grãos, cerca de US$ 60 bilhões estocados no Banco Central e mais US$ 95 bilhões na caderneta de poupança.

O que falta à nação é algo tão essencial quanto a comida que pede Cleonice: governo. O que temos não é mau, nem se regozija com a fome que assola o Nordeste. O problema é que o governo FHC fez a opção neoliberal. Governa de olhos no Primeiro Mundo e de costas para a questão social brasileira. Até gostaria que a fome não provocasse o efeito Cleonice e os pobres suportassem resignadamente a miséria, até serem ceifados pela morte precoce.

Cleonice, contudo, demonstra que ninguém suporta a falta de pão. Ela produz revolta e demência. No sertão, Cleonice agride a mãe. Na cidade, milhares de Cleonices apelam para o crime em busca de sobrevivência.

Os donos do poder gostariam que essa turba de Cleonices tivesse a mesma paciência com que aguarda chuvas para esperar as migalhas das políticas emergenciais. Porém, desde os anos 70 os pobres do Brasil decidiram fazer a hora e não esperar acontecer. Criaram o PT, a CUT, o MST e a CMP (Central de Movimentos Populares). Fizeram o que o sociólogo FHC defende como dever e direito: organizar a sociedade civil brasileira.

A CUT conta com cerca de 18 milhões de filiados. O MST coordena aproximadamente 15 milhões de sem-terra. Os donos do poder não condenam a existência de tais movimentos. Sem eles, toda aquela malta estaria engrossando o cinturão de favelas que cercam nossas cidades, multiplicando o número de crianças de rua e o índice da violência urbana.

O que provoca a ira dos donos do poder é esses movimentos sociais serem representativos e atuantes. Como Cleonice, eles reagem à falta de emprego, salário, terra e moradia. Mas ao contrário de Cleonice, não comem gilete nem bebem água sanitária. Ocupam terras ociosas, promovem saques em situações extremas, denunciam o descaso do governo com a questão social.

A demência provocada pela fome superlota o maior hospital psiquiátrico do sertão nordestino, a Casa de Saúde Santa Tereza, no Crato. A posologia preventiva é simples: comida. Mas as autoridades apelam ao velho recurso: camisa-de-força.

O MST perderia muito de sua força se houvesse reforma agrária. O governo, porém, prefere satanizá-lo e acusá-lo de "ideológico e partidário". Parte da mídia vai atrás e carrega nas tintas, indignada por viver numa nação cujas camadas populares se organizam e mobilizam (no fundo, o horror à democracia real). Como se houvesse, sobre a face da Terra, um movimento social sem implicações ideológicas e partidárias. E o efeito Cleonice: preferível diagnosticá-la como louca que oferecer-lhe um prato de comida.

Movimentos sociais são interessantes nas monografias da USP. Congregando milhões de pessoas e fora do controle dos donos do poder, viram bicho-papão. Como se subversiva e baderneira não fosse a fome, essa aliada eleitoral de oligarquias acostumadas a ofertar cestas básicas, carros-pipas e serviço em frentes de trabalho, mas jamais terras, poços artesianos e empregos.

O governo saqueia da nação seu direito de organizar-se e conquistar necessidades básicas, adotando a mesma postura paternalista do coronelismo responsável pela miséria do Nordeste. A elite organiza-se em um amplo leque de siglas e entidades, exerce todo tipo de pressão sobre o governo - mas isso é palatável pelas autoridades e pela mídia (que, aliás, é instrumento de pressão dos grupos que a comandam).

Eis o Brasil: Cleonice é louca, Stédile é raivoso e os donos do poder uma legião de anjos... exterminadores.


SAUDADES DO FUTURO

NOVEMBRO - 1998


Advento é tempo de espera, momento de renascer "nos mesmos sentimentos de Cristo" como sugere são Paulo. Ne1e esperamos o cessar dos cortes que infeccionam nosso tecido social, a paz sonegada ao coração aflito a saúde ameaçada pela enfermidades que nos reduz à dor

Na régua do tempo, miramos o passado, ora com olhos nostálgicos, ora com supremo alívio de quem sobreviveu à borrasca. O futuro é ilusão temperada na fé. Dele nada se sabe e, no entanto, tudo se espera: o amor ávido: o bem-estar diletante, a irrupção final e feliz do ser que somos e não temos sido. Apropriar-se de si mesmo, dando-se o direito de ociosidade criativa e sobretudo, orante. Deus como preguiça da alma. Agora é o presente, minúsculo microssegundo de uma constatação que já se faz passado pelo futuro implacável.

Nessa espera, vislumbramos minudências: guardar no olvido a sonegação da ternura, reinventar a vida ao amanhecer, perfumar espinhos, criar asas no lugar dos braços e alçar vôo. Aplacar a sede de Deus no gesto libertário e provar o Verbo que se fez carne para ter certeza que tem mesmo sabor de justiça.

Espera-se a abolição cabal de todos os determinismos, inclusive o que decreta o fim da história, e o reconhecimento de que o próprio compasso dialético encontra-se quanticamente indeterminado, sujeito aos protagonistas individuais e coletivos que agem de modo imprevisível.

Espera-se Jesus, sublinhando os valores que ele encarnou: o cuidado dos pobres, a misericórdia aos faltosos, a tolerância para com o diferente, o pão de cada dia a todos nós, o coração dilatado à misteriosa e sedutora presença do Amor.

Graças inacessíveis àqueles que nada esperam, inflados em seu ego, prepotentes geômetras da razão, arautos de uma opulência que ofende o haitiano cenário de nossas metrópoles repletas de corpos deambulantes.

Esperar é ousar renascer, advir, vir de novo, recomeçar, na fulgurante arte de tecer a vida, nisso que ela tem de mais íntimo e cotidiano, com os fios invisíveis da aventura espiritual e da poesia.

Um pouco menos de tarefas, agendas e inadiáveis compromissos. Um pouco mais de ociosidade, de gratuidade amorosa e de alegria despudorada, pois não duvido que estejamos levando muito a sério esse episódico existir, singular brincadeira de Três Pessoas que, no clima de Natal, voltam a ser crianças e se diverte m coma bola do Universo.

E nos revelam segredos escatológicos, inclusive o de que, no ponto final seremos todos acolhidos por Aquele que nos quer eternos. Porque Ele é terno.


FAZER RENASCER O NATAL

DEZEMBRO - 1998


O melhor da festa é esperar por ela, diz o provérbio. O melhor do Natal é ter passado por ele, sentem muitos sem dizer.

É insuportável a fissura desencadeada pelas festas de fim de ano. O consumo compulsório de produtos, o apetite compulsivo de comilanças, a máscara da alegria estampada no rosto para encobrir o bolso furado, a corrida aos espaços de lazer, as estradas engarrafadas, as filas intermináveis nos supermercados, os sinos de papel envoltos nas fitas vermelhas dos shopping centers, aquela mesma musiquinha marota, tudo satura o espírito.

Seria esse anticlima um castigo divino à nossa reverência pagã à figura de Papai Noel?

Natal é pouco verso e muito reverso. Em pleno trópico, nosso mimetismo enfeita de neve de algodão a árvore de luzinhas intermitentes. O estômago devora castanhas, nozes, avelãs e amêndoas, quando a saúde pede saladas e legumes.

Já que o espírito arde de sede daquela Água Viva do poço de Jacó ( João 4 ), afoga-se o corpo em álcool e gorduras. A gula de Deus busca, em vão, saciar-se no ato de se empanturrar à mesa.

Talvez seja no Natal que nossas carências fiquem mais expostas. Damos presentes sem nos dar, recebemos sem acolher, brindamos sem perdoar, abraçamos sem afeto, damos à mercadoria um valor que nem sempre reconhecemos nas pessoas. No íntimo, estamos inclinados à simplicidade da manjedoura. O mal-estar decorre do fato de nos sentirmos mais próximos dos salões de Herodes.

No Brasil, este Natal é de reis "magros". A nação, condenada a pagar as aventuras político-financeiras de governantes e economistas que tentaram salvar a moeda sacrificando o povo, dá as costas às alegrias do presépio para trilhar, com recessão, salários arrochados e tributos aumentados, o caminho do Calvário.

Sem que fôssemos consultados, o Brasil foi penhorado ao capital da pirataria especulativa, que saqueia nossas Bolsas, quebra nossas pequenas e médias empresas, leiloa nosso patrimônio público, dilapida nosso sistema de ensino e gangrena o de saúde. E ainda insistem em nos convencer de que esta é a melhor rota para o futuro e que devemos reeleger aqueles que seqüestram nossos anseios de felicidade.

Mudemos nós e o Natal . Abaixo Papai Noel, viva o Menino Jesus ! Em vez de presentes, presença – junto à família, aos que sofrem, aos enfermos, aos soropositivos, aos presos, às famílias das vítimas de crimes, às crianças de rua, aos dependentes de droga, aos (d)eficientes físicos e mentais, aos excluídos.

Façamos da ceia cesta a quem padece fome e do abraço laço de solidariedade a quem clama por justiça. Instalemos o presépio no próprio coração e deixemos germinar Aquele que se fez pão e vinho para que todos tenham vida com fartura e alegria.

Abandonemos a um canto a árvore morta coberta de lantejoulas e plantemos no fundo da alma uma oração que sacie nossa fome de transcendência.

Deixemo-nos, como Maria, engravidar pelo Espírito de Deus. Então, algo de misteriosamente novo haverá de nascer em nossas vidas.   


DOM HELDER CÂMARA, 90 ANOS

JANEIRO/FEVEREIRO - 1998


Completa 90 anos de idade, no próximo dia 7 de fevereiro, Dom Helder Câmara, arcebispo emérito de Olinda de Recife. Em 1962, indicado pela Ação Católica de Minas, integrei a equipe de coordenação nacional do JEC ( Juventude Estudantil Católica), no Rio. O assistente nacional da Ação Católica era Dom Helder, bispo-auxiliar do cardeal do Rio, Dom Jaime de Barros Câmara.

Durante três anos, convivi com o bispo que fundou a CNBB, a Cruzada de São Sebastião, o Banco do Providência e, no Nordeste, a Operação Esperança, que deu acesso à terra a vítimas do latifúndio.

Magro, rosto chupado, a calvície mal disfarçada por uma réstia de cabelos, Dom Helder andava sempre de batina, mesmo após ser permitido aos bispos, o uso de roupas comuns. De baixa estatura, o padre Helder – como prefere ser chamado pelo círculo de amigos mais próximos, alcunhado de "família mecejanense", em alusão ao seu chão de origem, no Ceará – parecia um gigante ao abrir a boca, quando ainda pregava em público.

Não era um orador sacro à moda antiga, nem um pregador retórico pleno de pomposidade e vazio de conteúdo. Não se apresentava com a carranca dos arautos do Vale de Lágrimas, como se o inferno fosse o destino natural de todos nós, pecadores costumazes.

Dom Helder pregava com vivacidade e entusiasmo – que significava etimologicamente "estar cheio do Espírito de Deus"- o olho faiscando, as mãos esqueléticas e os braços finos em gestos exuberantes que lhe compensavam a estatura; o corpo erguido na ponta dos pés, como se a ênfase lhe brotasse do impulso de querer voar; o sotaque nordestino rasgando as vogais de suas mensagens em frases curtas, sem vírgulas ou circunlóquios.

O bispo brasileiro que mais influenciou o Concílio Vaticano II sempre teve idéias claras, articulando o ardor da fé com o clamor de justiça. Profeta, de sua mente jorravam projetos que mudariam a face da Igreja Católica. É dele a iniciativa de organizar os bispos em conferências episcopais, os planos de pastorais e o exercício da colegialidade entre os prelados. Graças a ele, parcela significativa da Igreja resgatou suas origens evangélicas no compromisso de justiça com os setores mais pobres da população.

Compadre de Roberto Marinho, Dom Helder resistiu quando JK quis fazê-lo prefeito do Rio. Marcado por sua malfadada passagem pelo integralismo, nos anos 30, Dom Helder jamais entrou na política partidária. Assim como jovens esquerdistas fanáticos tendem a se tornar reacionários moderados na idade adulta, Dom Helder fez o percurso inverso. Nunca aceitou o marxismo, malgrado a sua fama de "bispo vermelho". Defensor intransigente dos pobres, toda a sua atuação se pautou pela busca de uma alternativa que superasse tanto o comunismo quanto o capitalismo. Por essa utopia correu o mundo, aprendeu a falar inglês com sotaque cearense e mobilizou multidões em metrópoles de países desenvolvidos.

No início de 1964, Dom Helder foi nomeado arcebispo de São Luís do Maranhão. Quando se preparava para a posse, morreu o arcebispo do Recife. O papa João XXIII decidiu transferi-lo para a arquidiocese pernambucana.

Na última semana de março, eu me encontrava em Belém do Pará, no congresso latino-americano de estudantes. A 1º de abril, estourou o golpe militar. Escondi-me no seminário. Mas o arcebispo, Dom Gaudêncio Ramos, passou a colaborar com a polícia, interessada em deter os padres "subversivos". Ora, se nem o clero podia contar com o bispo, o que seria de nós leigos?

Corri para a agência da Varig. Minha passagem Belém-Rio, tinha sido dada pelo Betinho, chefe de gabinete do então ministro da Educação, do governo Jango, Paulo de Tarso dos Santos, deposto pelo golpe.

A atendente desapareceu com o meu bilhete. Retornou pouco depois. Comunicou que todas as passagens cedidas pelo governo anterior estavam canceladas. Fiquei ali aturdido entre inúmeras pessoas que tentavam deixar a capital paraense. Na capa do bilhete, um carimbo nítido: "Cancelado". Rasguei a capa e estendi a passagem para outra atendente:

-Já que não há mais lugar para o Rio, pode desdobrar minha viagem via Recife? Fui atendido.

Desembarquei no aeroporto de Guararapes no dia da posse de Dom Helder. Cheguei ao palácio episcopal de Manguinhos na hora da recepção. Ao saudar o novo arcebispo, manifestei interesse ma falar-lhe em particular. O homenageado largou a festa, trancou-se comigo numa sala e ouviu atento o que eu tinha a relatar sobre a igreja de Belém do Pará.

Ao longo das últimas décadas, encontrei-o em viagens e eventos eclesiais. Nele identifico o principal inspirador da "opção pelos pobres", compromisso que propôs a um grupo de cardeais e bispos durante o Concílio. Ele é, portanto, o precussor da Teologia da Libertação.

Dom Helder é para a Igreja o que Paulo Freire representa para a educação e os movimentos sociais. Sem a "pedagogia do oprimido" não haveria MST, CUT, CMP ou PT. Sem Dom Helder talvez não houvesse comunidades eclesiais de base e pastorais sociais, Campanha da Fraternidade e Grito dos Excluídos.

Estivemos juntos em Puebla, no México, na conferência episcopal latino-americana de 1979. Eu, do lado de fora, em companhia de duas dezenas de teólogos da libertação; ele, do lado de dentro, repassando nossos subsídios aos bispos e, deles, às comissões e aos textos.

Vale definir Dom Helder como um "conspirador"- alguém capaz de conspirar a favor do bem com arte, verve, delicadeza e alegria. Nunca conheceu o desânimo e o luxo. Sempre se alimentou como um passarinho, de preferência em botequins nas imediações de seu local de trabalho.

A ditadura manteve o nome dele distante do noticiário nacional. Mas o êxito de suas pregações no exterior levou o Itamaraty a empenhar-se para que não recebesse o prêmio Nobel da Paz. Talvez articulações semelhantes expliquem por que não mereceu também o chapéu cardinalício.

Perdeu o Nobel, perdeu a Igreja. Dom Helder engrandeceria um e outro, pois ele sintetiza e simboliza o que de mais evangélico ocorreu na Igreja Católica nesta Segunda metade do século XX.

Padre Helder, feliz idade!


CARNAVAL E CINZAS

MARÇO - 1999


Carnaval significa "festa da carne" e era, em seus primórdios, uma festa religiosa. Às vésperas da Quaresma, diante da perspectiva de passar quarenta dias em abstinência de carne, os cristãos fartavam-se de assados e frituras entre o domingo e a "terça-feira gorda". Na quarta, revestiam-se de cinzas, evocando que do pó viemos e para o pó retornaremos, e ingressavam no período em que a Igreja celebra a paixão, a morte e a ressurreição de Jesus Cristo.

A modernidade secularizou a cultura e, de certo modo, esvaziou o significado das festas religiosas, hoje apreendido apenas por cristãos vinculados à comunidade eclesial. Com certeza ganhou a autonomia da razão e perdeu a consistência da subjetividade. Trocou-se São Nicolau, que no século V distribuiu sua herança aos pobres, pela figura consumista de Papai Noel; transformou-se o carnaval em festa da carne em outro sentido; e fez-se da Semana Santa um período extra de férias.

Essa reificação dos ritos de passagem torna-se mais evidente nesse momento em que a humanidade enfrenta a crise de paradigmas. Destituído o leninismo da condição de ciência da história, e constatado o fracasso crônico do neoliberalismo nos países da América Latina, da África e da Ásia, ocorre uma emergência espiritual em todo o mundo.

Parafraseando Rimbaud, há uma "gula de Deus", que favorece o encontro da mística oriental com a doutrina cristã ocidental, introduz a new age e agnose de Princeton, mas também abre campo aos mercenários da salvação, que pregam de olho na cobiça, convencidos de que "no princípio era a verba" e, se Jesus é o Caminho, pague-se a eles o pedágio...

A Quarta-Feira de Cinzas instiga-nos a refletir sobre esta experiência inelutável: a morte. O processo reificador da modernidade tende a tornar descartáveis também os ritos de passagem que se sobrepõem às esferas religiosas, como o nascimento, o casamento e a morte. Outrora, morria-se em casa e, contra a vontade do poeta, havia choro, vela e fita amarela.

Criança em Minas, acorri a enterros que eram uma festa, com toda a força paradoxal da expressão. Havia velório e carpideiras, cachaças e empadas, coroas de flores e procissão fúnebre, missa de corpo presente e encomendação no cemitério. Hoje, morre-se quase clandestinamente, e o enterro se faz antes que os amigos possam ser avisados, como se resistíssemos à idéia de que esta vida escapa ao nosso absoluto controle.

A evocação da morte incomoda porque remete ao sentido da vida. Só assume morrer quem imprime à vida um sentido altruísta, capaz de transcender aexistência individual. Fora disso, a morte é brutal sonegação da vida.

Porém, já não se enfatiza a questão do sentido da vida. Na escola,aprende-se a competir, a ter sucesso, a dominar a ciência, a técnica e o patrimônio cultural de que somos herdeiros. Pois não há disciplina que prepare os alunos para as crises quase inevitáveis da existência: o fracasso profissional, a ruptura afetiva, a doença, a falência, a morte. Socializada a ambição, toda as vezes que o desejo esbarra na frustração, privatiza o consolo: o alcoolismo, as drogas, o ressentimento, o lobo que nos devora o coração.

Na Quarta-Feira de Cinzas, a CNBB lança, em todo o Brasil, a Campanha da Fraternidade, neste ano dedicada ao desemprego. Há no país cerca de 10,3milhões de desempregados, um em cada cinco trabalhadores brasileiros. Ora, a fé cristã não faz o panegírio da morte, mas proclama o seu fracasso ao centrar seu eixo na ressurreição da carne. Isso significa a recusa de todasas situações de morte, do pecado individual às estruturas sociais queexaltam o capital e humilham o trabalho, incapazes de assegurar a tantos jovens e famílias um futuro melhor.

Proclamar que a vida tem a palavra final, inclusive sobre a morte, implica também empenhar-se para que a nossa juventude não se transforme numa geração perdida. Nos anos 50, o Rio viveu o pesadelo da Juventude Transviada e do assassinato de Aída Curi. Nos anos 60, a utopia incendiou de esperanças o movimento estudantil e deslocou o foco dos inferninhos de Copacabana para a Bossa Nova, o Cinema Novo, a UNE, o sonho de arrancar o Brasil do subdesenvolvimento.

Como nos enredos carnavalescos, parece que regressamos ao passado. As gangues ressurgem nas areias da praia e o assassinato de jovens já nem causa o impacto provocado pela morte de Aída Curi. O governo pode cortar verbas, mas comete um crime de lesa-pátria ao cortar sonhos. E sonhos deixam de ser químicos e se transformam em esperanças, que afloram em projetos de uma sociedade verdadeiramente humana, quando se investe em educação, oportunidades de trabalho, cultura e o sadio orgulho de ser brasileiro. Sem isso, nossos jovens estarão condenados a portar armas para se defenderemsegundo as leis da selva. E as vítimas seremos todos nós.


PÁSCOA, A ARTE DE SER CRIANÇA

ABRIL - 1999


A Páscoa judaica iniciou-se em 31 de março. A cristã, domingo, 4 de abril. Em ambas religiões, ela tem igual significado: celebrar a libertação dos hebreus escravizados no Egito do faraó Ramsés II, cerca de 1250 a.C. À fé cristã, acresce-seeste evento que imprime à festa consistência e centralidade: a ressurreição de Jesus.

Pessach, passagem, travessia. Páscoa é abrir-se às possibilidades de vida. Nesse sentido, alunos da escola judaica Isaac L. Peretz, de São Paulo, passaram por cima de preconceitos e visitaram o colégio católico Madre Cabrini. As criançasjudaicas partilharam com as católicas pães ázimos e outros alimentos próprios do seder.

Nós, adultos, temos muito a aprender com as crianças. Comungamos a mesma aventura da vida, a mesma crença na transcendência e os mesmos desafios dessa atribulada conjuntura nacional/internacional. No entanto, erguemos muros em nome de nossa concepção de Deus. Como se não fôssemos todos feitos do mesmo pó estelar, filhos da mesma Terra e igualmente vocacionados ao inelutável abraço da morte, que nos conduzirá à vida definitiva.

Quisera ver o mundo governado por crianças. Elas têm mais bom-senso que esses adultos que despejam bombas sobrepopulações civis e ainda acreditam, contra os recentes avanços da biologia, que a cor da pele determina a distinção deraças.

Criança vê o mundo pelos olhos do coração. A menos que o adulto lhe meta na cabeça que negro é inferior ao branco, muçulmano é inimigo do judeu, pobre é preguiçoso e índio é lixo que merece ser queimado.

O ovo é o símbolo da Páscoa. Contém vida, que só aflora se ele for quebrado. Assim é. Sem quebrar tabus epreconceitos ficamos isolados em nossas razões insensatas. O mau juízo é marido da ignorância. Quem não se desloca de sua esfera religiosa para, a exemplo das crianças judaicas, sentar-se à mesa com fiéis da sinagoga e da mesquita, doterreiro de candomblé e do santo daime, e tantas outras formas de pressentir Deus, cai na arrogância de considerar a suareligião a única com selo de qualidade divina e garantia de salvação eterna.

Se as crianças não são melhores, a culpa é dos adultos. Por que as escolas não seguem o exemplo da Isaac L. Peretz elevam seus alunos a um ritual afrobrasileiro? Ou não imitam o colégio Santa Cruz, que promove visitas ao Vale do Jequitinhonha (MG) e estimula os estudantes ao trabalho social? Seria educativo e, no futuro, evitaria fazer da questãosocial mero derivativo de primeira-dama.

Pode-se educar ignorando as raízes espirituais e culturais do Brasil? Há pais que se gabam de levar o filho à Disney. Eis a riqueza esbanjada por força da pobreza espiritual! A cabeça de nossas crianças seria outra se visitassem ao menos um dos 215 povos indígenas que vivem neste país e falam 185 idiomas! A exuberância do Pantanal, a beleza da Chapada Diamantina, os mistérios da Amazônia ou a criatividade artística do sertão do Nordeste, supera qualquer boneco de rato ou pato estilizado. O problema é que o colonizado tende a ver o mundo pelos olhos do colonizador, como ensinou Paulo Freire. É como o pássaro que se orgulha do requinte de sua gaiola.

Páscoa é renascer, aceitar o convite de Jesus para voltar a ser criança (Mateus 18, 1-4). Despojar-se dessa mulher ou homem velho que torna a nossa existência amarga. Soltar a fantasia, a criatividade, desamarrar o afeto, esbanjar sorrisos, recolher-se em oração, amar despudoradamente. Assim, dar a volta por cima desse sistema que satura os sentidos, proíbe a razão de pensar com o coração e nos aprisiona na ditadura do econômico.

Páscoa é tocar a mão amada em silêncio profundo e sentir, no íntimo, a brisa divina. Pura fruição, sem nada em mente, exceto o prazer de, como propunha Murilo Mendes, descobrir o alfabeto das formigas.


O PRESIDENTE,A IGREJA E A POLÍTICA

MAIO - 1999


O presidente Fernando Henrique Cardoso não gostou da crítica dos bispos brasileiros ao fracasso de sua política econômica. Movido pela incontinência verbal, declarou na Alemanha que "assim como não me meto nos dogmas da Igreja, a Igreja não deve se meter na política".

Toda vez que o presidente se pronuncia sobre questões religiosas o resultado é desastroso. Outrora declarou-se ateu e, agora, faz profissão de fé de que nunca disse o que disse a milhares de telespectadores, entre os quais me incluo, ao responder pergunta de Boris Casoy.

Dom Ivo Lorscheider, bispo de Santa Maria e ex-presidente da CNBB, ao defender o documento da Igreja comparou o presidente ao general Médici. Frente à afirmação de Dom José Maria Pires, então arcebispo de João Pessoa, de que "a Igreja fala de questões sociais por se preocupar com o homem", Médici retrucou: "É por se preocupar tanto com homem que os senhores vestem saias".

Não se pode separar fé e política, assim como não seria possível fazê-lo na Palestina do século I. Na terra de Jesus, quem detinha o poder político, detinha também o poder religioso. E vice-versa. Talvez soasse estranho, hoje, a certos ouvidos religiosos introduzir a leitura do Evangelho falando de Clinton e Nelson Mandela, Tony Blair e Yasser Arafat. No entanto, ao introduzir os relatos da prática de Jesus, Lucas primeiro nos situa no contexto político, informando que "já fazia quinze anos que Tibério era imperador romano. Pôncio Pilatos era governador da Judéia, Herodes governava a Galiléia e seu irmão Felipe, a região da Ituréia e Traconites. Lisânias era governador de Abilene. Anás e Caifás eram os presidentes dos sacerdotes" (3, 1-2).

Foi sob o símbolo da cruz que a colonização ibérica na América Latina promoveu o genocídio de 30 milhões de indígenas e o saque das riquezas naturais. Sob a silenciosa cumplicidade da Igreja católica, mais de 10 milhões de negros foram trazidos da África, como escravos, para o nosso continente. Com a conivência das Igrejas cristãs, instalou-se em nossos países o sistema burguês de dominação capitalista. Portanto, não se trata de vincular fé e política somente quando se refere à defesa dos mais pobres.

O fato de que fé e política estejam sempre vinculados em nossas vidas concretas, como seres sociais que somos – ou animais políticos , na expressão de Aristóteles - não deve constituir uma novidade senão para aqueles que se deixam iludir por uma leitura fundamentalista da Bíblia, que pretende desencarnar o que Deus quis encarnado. A fé é um dom do Pai a nós que vivemos neste mundo. No Céu, nossa fé será vã, pois veremos a Deus face a face, assegura são Paulo.

Portanto, a fé é um dom politicamente encarnado, que tem razão de ser nesta conflitividade histórica na qual somos chamados, pela graça, a vivenciar o projeto salvífico de Deus.

Nem mesmo em Jesus é possível ignorar a íntima relação entre fé e política, ainda que, para alguns cristãos pareça estranho aplicar certas categorias Àquele que nos assegura, por sua ressurreição, a vitória, em última instância, da vida sobre a morte e da justiça sobre a injustiça. Que Jesus tinha fé o sabemos pelos textos que falam dos longos momentos que ele passava em oração (Lucas 4, 16; 5, 16; 6, 12). A oração é para a fé o que o adubo é para a terra ou o gesto de carinho para o casal que se ama. O Evangelho nos fala até mesmo das crises de fé de Jesus, como as tentações no deserto (Mateus 4, 1-11; Marcos 1, 12-13; Lucas 4, 1-13) e o abandono que ele sentiu na agonia no horto das oliveiras (Mateus 26, 36-46; Marcos 14, 32-42; Lucas 22, 39-46).

Há quem insista que Jesus se restringiu a comunicar-nos uma mensagem religiosa que nada tem de política. Tal leitura só é possível se reduzimos a exegese bíblica à pescaria de versículos, arrancando os textos de seus contextos. Ora, não é só o texto bíblico que revela a Palavra de Deus, mas também o contexto social, político, econômico e ideológico, no qual se desenrolou a prática evangelizadora de Jesus.

Todos nós, cristãos, somos inelutavelmente discípulos de um prisioneiro político. Mesmo que na consciência de Jesus houvesse apenas motivações religiosas, sua aliança com os oprimidos, seu projeto de vida para todos (João 10, 10), tiveram objetivas implicações políticas. Por isso ele não morreu na cama, mas na cruz, condenado à pena de morte.

Já na introdução de seu evangelho, Marcos mostra como as curas operadas por Jesus - o homem de espírito mau, a sogra de Pedro, os possessos, o leproso, o paralítico, o homem de mão aleijada - desestabilizaram de tal modo o sistema ideológico e os interesses políticos vigentes, que levaram dois partidos inimigos - o dos fariseus e o dos herodianos – a fazerem aliança para conspirar em torno de "planos para matar Jesus" (3, 6). Assim, vê-se que as implicações políticas daação salvífica de Jesus tornaram-se tão graves e ameaçadoras, que induziram Caifás, em nome do Sinédrio, a expressar que era "melhor que morra apenas um homem pelo povo do que deixar que o país todo seja destruído" (João 11, 50).

E como situar, no contexto da Palestina do século I, a questão ideológica? Lucas registra que "Jesus crescia tanto no corpo como em sabedoria" (2, 52). Era pois um homem de seu tempo e que, segundo Paulo, "pela sua própria vontade abandonou tudo o que tinha e tomou a natureza de servo e se tornou semelhante ao homem" (Filipenses 2, 7). A divindade de Jesus não transparecia por uma consciência que pudesse emergir completamente de seu contexto cultural e sobrepairar, onisciente, acima do tempo e do espaço. Tal possibilidade adequa-se à imagem grega de deus e não à imagem bíblica.

Jesus era Deus encarnado e possuía a mesma natureza do Pai. Segundo o Novo Testamento, "Deus é amor. Quem vive no amor vive em união com Deus e Deus vive em união com ele" (1 João 4, 16). Portanto, Jesus era Deus porque amava assim como só Deus ama. E nisto consiste a nossa imagem e semelhança com Deus: é divina a natureza de todo amor de que somos capazes. E o somos como abertura a Deus, que nos habita mais profundamente do que o nosso próprio eu, e nos faz acolher o próximo. No entanto, nossa consciência, como a de Jesus, permanece tributária de nosso lugar social e de nosso tempo histórico. Em Jesus, Deus acolhe preferencialmente os oprimidos, em cujo lugar social se encarna e a partir do qual anuncia a universalidade de sua mensagem de salvação. Não há pois neutralidade. Jesus assume a ótica e o espaço vital dos pobres. Seu ponto de vista é a vista situada a partir de um ponto - o da Promessa que ressoa como bem-aventurança aos que injustamente foram privados da plenitude da vida.

Há também em Jesus um vínculo profundo entre sua fé e a ideologia apocalíptica, que o fez esperar com tanta expectativa a eclosão do Reino de Deus ainda para a sua geração (Marcos 9, 1). Muitos exegetas estão de acordo que a crise maior de Jesus foi constatar que não haveria coincidência entre seu tempo pessoal e seu projeto histórico. O Reino, que se antecipou em sua vida e ressurreição, exigiria a Igreja como sacramento histórico capaz de anunciá-lo, testemunhá-lo e prepará-lo na acolhida do dom de Deus.

Nesse sentido, a opinião de que a Igreja não deve ser meter em questões sociais e políticas revela uma soberba ignorância quanto à natureza e à missão da comunidade fundada por Jesus. Assim como todo cristão, inclusive o neófito FHC, tem o direito de debater inclusive questões dogmáticas da Igreja, pois a fé, como ensina meu confrade Tomás de Aquino, "é um dom da inteligência".


A ARTE DA TOLERÂNCIA

JUNHO/JULHO - 1999


Tolerância é a capacidade de aceitar o diferente. Não confundir com o divergente. Intolerância é não suportar a pluralidade de opiniões e posições, crenças e idéias, como se a verdade fizesse morada em mim e todos devessembuscar a luz sob o meu teto.

Conta a parábola que um pregador reuniu milhares de chineses para pregar-lhes a verdade. Ao final do sermão, em vez de aplausos houve um grande silêncio. Até que uma voz se levantou ao fundo: "O que o senhor disse não é a verdade". O pregador indignou-se: "Como não é verdade? Eu anunciei o que foi revelado pelos céus!" O objetante retrucou: "Existem três verdades. A do senhor, a minha e a verdade verdadeira. Nós dois, juntos, devemos buscar a verdade verdadeira".

Só os intolerantes se julgam donos da verdade. Assim ocorre com Milosevic, ao manter-se intransigente e não admitir os direitos dos kosovares, e com Clinton, ao decidir que seus mísseis são o melhor argumento para convencer o mundo de que a Casa Branca tem sempre razão.

Todo intolerante é um inseguro. Por isso, aferra-se a seus caprichos como um náufrago à tábua que o mantém à tona. Ele não é capaz de ver o outro como outro. A seus olhos, o outro é um concorrente, um inimigo ou, como diz um personagem de Sartre, "o inferno". Ou um potencial discípulo que deve acatardocilmente suas opiniões.

O tolerante evita colonizar a consciência alheia. Admite que, da verdade, ele apreende apenas alguns fragmentos, e que ela só pode ser alcançada por esforço comunitário. Reconhece no outro a alteridade radical, singular, que jamais deve ser negada.

Pode-se aplicar ao tolerante o perfil descrito por são Paulo no Hino ao Amor da 1ª carta aos Coríntios (13, 4-7): "é paciente e prestativo, não é invejoso nem ostenta, não se incha de orgulho e nada faz de inconveniente, não procura seu próprio interesse, não se irrita nem guarda rancor. Não se alegra com a injustiça e se rejubila com a verdade. Tudo desculpa, tudo crê, tudo espera, tudo suporta."

Ser tolerante não significa ser bobo. Tolerância não é sinônimo de tolice. O tolerante não desata tempestade em copo d’água, não troca o atacado pelo varejo, não gasta saliva com quem não vale um cuspe. Ele jamais cede quando

se trata de defender a justiça, a dignidade e a honra, bem como o direito de cada um ter seus princípios e agir conforme sua consciência, desde que isso não resulte em opressão ou exclusão, humilhação ou morte.

Das intolerâncias, a mais repugnante é a religiosa, pois divide o que Deus uniu.

Quem somos nós para, em nome de Deus, decretar se esses são os eleitos e, aqueles, os condenados?

Só o amor torna um coração verdadeiramente tolerante. Porque quem ama não contabiliza ações e reações do ser amado e faz da sua vida, um gesto de doação.


ANISTIA PARA O POVO BRASILEIRO

AGOSTO - 1999


Comemoram-se 20 anos, a 28 de agosto, da anistia concedida, pela ditadura militar, a suas vítimas e algozes. Os cárceres foram abertos em 1979, e os exilados e banidos puderam retornar ao país.

O decreto do general Figueiredo não foi um gesto de benevolência, mas fruto da mobilização de milhares de brasileiros, sobretudo mulheres lideradas por Therezinha Zerbini, em São Paulo; Helena Greco, em Minas; Nildes de Alencar Lima, no Ceará; Heloneida Stuart, no Rio etc. Entre os homens, um nome merece ser destacado, o do advogado Luiz Eduardo Greenhalgh, presidente do Comitê Brasileiro pela Anistia. Neste país, em matéria de direitos nada se dá. Tudo se conquista.

Fui beneficiado pela anistia. Ela zerou meu prontuário na polícia (mas não no consulado americano, que exige, a cada solicitação de visto, que eu explique em detalhes por que estive preso...). Fez-me recuperar os direitos políticos, cassados por dez anos em 1972.

Ao deixar a cadeia, em 1973, descobri um curioso paradoxo da justiça castrense: o frade havia sido cassado, o cidadão não. Eu podia e não podia votar, algo semelhante ao fenômeno físico do gato de Schrödinger, que fica morto e vivo ao mesmo tempo. Se o cidadão votasse, o frade incorreria em crime. Se o frade não votasse, o cidadão deveria se explicar à Justiça eleitoral. Optei pela única saída: nas eleições, ausentava-me do domicílio eleitoral e justificava-me numa agência dos Correios.

A tradição jurídica brasileira é uma história de aberrações, como a recente absolvição dos oficiais responsáveis pelo massacre de Eldorado dos Carajás. E a lei da anistia não é exceção. Ela assegura a impunidade dos torturadores. O que encerra uma confissão de culpa do regime militar. O corporativismo predominou, espécie de 30 moedas pagas a Judas pelo trabalho sujo. Hoje, a tortura é crime inafiançável. Um avanço no papel. Na delegacia da esquina, o pau come solto.

A anistia marcou o processo de abertura política do país. Abertura formal, limitada pelos interesses das elites, cuja concepção de democracia ainda exclui os direitos dos sem-terra, dos sem-teto, dos aposentados e dos desempregados. Assim como, na colônia, nação e cidadania excluíam índios e escravos, analfabetos e assalariados.

Outro paradoxo é constatar que o governo presidido por um ex-cassado e exilado, Fernando Henrique Cardoso, promove o "fechamento" econômico. Segundo dados da ONU e do Banco Mundial, o Brasil é campeão mundial de desigualdade social, com 63,4% da renda nacional em mãos de 20% da população. Nossa indústria é sucateada pela abertura irresponsável ao capital estrangeiro; nosso patrimônio público privatizado, encarecendo os serviços prestados, nem sempre de qualidade satisfatória; nossa agricultura carece de política adequada e continua refém do latifúndio.

Apenas 1% dos proprietários rurais controla 44% das terras do país. São aqueles 6%, entre 22 mil devedores do Banco do Brasil, que arcam com 80% da dívida e, agora, exigem anistia fiscal.

Há no Brasil 18,5 milhões de aposentados. Ganham em média 1,8 salário mínimo. Do total, 11 milhões sobrevivem com apenas um salário mínimo. De novo, o garrote econômico aperta o pescoço da maioria. Os aposentados pelo Congresso Nacional (ex-deputados e senadores) recebem, em média, 57,8 salários mínimos; pelo poder Executivo federal, 14,4; e pelo Judiciário, 43,7 salários mínimos. Os militares são aquinhoados, na expressão de Lillian Witte Fibe, com "aposentadorias hereditárias".

Enquanto isso, o governo reduz o pecúlio dos aposentados da iniciativa privada, condenando-os à mendicância.

Em julho, a presidência da República gastou cerca de R$ 9 milhões por dia com material de consumo (copa, cozinha, alimentação, combustível, homenagens, roupas de cama etc). Em junho, foram previstos R$ 16 mil para a compra de frutos do mar, R$ 5 mil de bacalhau, e R$ 7 mil de queijos e frios. E, no entanto, o Incra propôs ao MST cesta básica de R$ 20 para cada família assentada.

A tortura da fome de 47 milhões de brasileiros é mais dramática que o terror de Estado sob a ditadura. Entre tantos brasileiros, eu esperava que FHC tivesse um mínimo de sensibilidade para o social. Iludi-me. Agrava-se o leque de questões sociais: saúde, educação, emprego, moradia. A reforma agrária só existe em discursos oficiais. Basta conferir a força da bancada ruralista no Congresso. E, ainda por cima, velhas raposas da política brasileira tripudiam sobre a nação ao falar em acabar com a pobreza. Como se a natureza de suas raízes com o sistema de exclusão social permitisse que, súbito, se tornassem defensoras do galinheiro...

A 26 de agosto, milhares de pessoas estiveram em Brasília para proclamar um Basta! a essa política que anula, na esfera econômica, as conquistas políticas simbolizadas pela anistia de 1979. O povo brasileiro merece ser anistiado de tanta miséria e injustiça!

Quando comandantes de massacres de agricultores são absolvidos, assim como o foram os torturadores pela lei de anistia, é hora de regressarmos às ruas, antes que a falência da democracia nos empurre para um novo ciclo autoritário. Então, será tarde demais.


HELDER CAMARA (1909-1999)

SETEMBRO - 1999


 Dom Helder Câmara até ontem, como diz são Paulo na 1a. Carta aos Coríntios, conhecia Deus "como por um espelho, de modo confuso". Agora, conhece-O "face a face".

Meu primeiro contato com o "arcebispo vermelho" foi em 1961, quando eu era dirigente, em Minas, da Juventude Estudantil Católica e ele, bispo responsável pela Ação Católica Brasileira. No ano seguinte, levou-me para o Rio, para participar da direção nacional da JEC.

Convivemos durante três anos. Ele tinha seu escritório no palácio São Joaquim, no Largo da Glória. Do outro lado da praça, sob o Outeiro, ficava a sede da CNBB, da qual dom Helder foi o fundador e, por muitos anos, secretário-geral.

As refeições, ele tomava num botequim da esquina, entre pedreiros e cachaceiros.

Na Igreja católica, foi o pioneiro do movimento renovador conhecido por "opção pelos pobres". Fundou a Cruzada São Sebastião, empenhado em sua utopia de erradicar as favelas cariocas. Não deu certo. Instalados em apartamentos, os favelados, instigados pela miséria, arrancavam torneiras, encanamentos e instalações elétricas para vender, e muitos sublocavam a moradia em busca de renda.

Dom Helder Câmara descobriu então que uma só andorinha não faz verão e que a pobreza não resulta da indolência, mas de "estruturas injustas", conforme faria constar, em 1968, no documento episcopal de Medellín.

Durante o Concílio Vaticano II (1962-1965), o "bispo dos pobres" promoveu uma articulação entre cardeais e bispos de todo o mundo em favor da inserção da Igreja nos setores populares. Propôs ao papa João 23 entregar o Vaticano e suas obras de arte aos cuidados da UNESCO, como patrimônio cultural da humanidade, enquanto o papa passaria a morar, na qualidade de bispo deRoma, numa paróquia da capital italiana. Ele sonhava com uma Igreja menos imperial e mais parecida com a comunidade dos pescadores da Galiléia.

No Rio, dom Helder Câmara contava com o apoio de um grupo de leigos, homens e mulheres, conhecido como "a família messejanense" - referência à Messejana, distrito cearense no qual nasceu. A "família" teve o privilégio de receber, em forma de cartas, o diário do arcebispo durante o Concílio, onde ele narra, sem censura, os bastidores do conclave - documento de inestimável valor a ser divulgado após a sua morte.

Dom Helder nunca cedeu às pressões de quem pretendeu torná-lo, como JK, prefeito do Rio, senador e até presidente da República. Arcebispo de Olinda e Recife, jamais aceitou morar em palácio. Fez dos fundos de uma igreja sua casa e ali ele próprio atendia à porta a quem batia. Com certeza, nenhum brasileirofoi tão biografado. A maioria das obras é assinada por autores estrangeiros, embora ele tenha conseguido o milagre de ser profeta em sua própria terra.

Integralista na juventude, progressista na idade adulta, dom Helder sempre surpreendeu a quem quis enquadrá-lo em jargões. Sob a ditadura militar, dialogou com os generais que o censuravam na mídia e socorreu os perseguidos e os presos políticos na defesa intransigente dos direitos humanos.

Sua fama no exterior - entre brasileiros, só comparável à de Pelé - levou a Polícia Federal, sob o regime militar, a oferecer-lhe segurança. Brasília temia que ele sofresse um atentado. Dom Helder disse aos policiais: "Não preciso dos senhores. Já tenho quem cuida de minha segurança". Os agentes pediram os nomes. Precisavam de registro nos órgãos oficiais. O bispo não se fez derogado: "São o Pai, o Filho e o Espírito Santo".

Certa noite familiares aflitos procuraram dom Helder. Um homem tinha sido preso e estava sendo espancado na delegacia. O prelado ligou para o delegado: "Aqui é dom Helder. Está preso aí o meu irmão". O policial levou um susto: "Seu irmão, eminência?" Dom Helder explicou: "Apesar da diferença de nomes,somos filhos do mesmo pai". O delegado desmanchou-se em desculpas e mandou soltar o preso irmão do arcebispo. Filhos do mesmo Pai...

Assim era dom Helder, um homem evangélico, simples, sem firulas episcopais.

E como tinha muita fé, jamais conheceu o medo. E amou de todo o coração essaIgreja que tanto quis ver renovada e, no entanto, jamais concedeu-lhe o merecido título de cardeal.

Faltou este homem na galeria do Prêmio Nobel da Paz. Com certeza o futuro cumprirá a justiça de entronizá-lo entre aqueles que são venerados como santos.


O FATOR H

OUTUBRO - 1999


O evangelho centraliza-se no fator H: o ser humano é a obra-prima de Deus. A ponto de o próprio Deus assumir, em Jesus de Nazaré, a condição humana.

Assim, para o evangelho toda pessoa é sagrada, vocacionada à comunhão com o Absoluto, morada viva do Espírito Santo. Contra um ser humano não se admite nenhum gesto, quanto mais uma estrutura social, de opressão, humilhação ou exclusão.

Jesus chega a identificar-se com as vítimas da injustiça, demonstrando que Deus se coloca não apenas do lado delas, mas também na pele delas: "Tive fome, sede, estive doente, preso" (Mateus 25, 35).

Para quem se considera discípulo de Jesus, o fator humano deveria ser o alfa e o ômega de todos os governos, civis e religiosos. Ocorre que o poder tem uma diabólica força de tornar-se seu próprio fim.

Tornam-se pedras, no caminho de muitos, três coisas que deveriam estar direcionadas ao bem: o poder, o dinheiro e o sexo. Das três, o poder é a mais sedutora, porque permite morder o fruto do Paraíso e experimentar a ilusória sensação de ser deus.

Dom Helder Camara morreu sem ver realizado o seu sonho: o ano 2000 sem miséria em nosso país. Isso porque os nossos governos não consideram o fator H. Rege-nos uma economia virtual. Fala-se de ajuste fiscal, queda dos juros, alíquotas, moedas podres etc, numa linguagem esdrúxula que o vulgo não entende e da qual desconfia.

A cada seis meses temos um novo pacote de medidas sociais, sem que haja um programa de governo centrado no social. E nada modifica o panorama visto debaixo da ponte.

Lá estão os sem-teto, os desempregados, a escória dessa sociedade que produz uma terrível e temível aberração: crianças de rua.

Para que serve uma economia incapaz de incorporar, no direito ao pão, à saúde e à educação, o fator humano?

Todos nós agimos segundo paradigmas que abraçamos. Os paradigmas da equipe econômica do governo FHC não são os pobres, os doentes, os famintos, os aposentados e os desempregados. É o FMI. Governa-se para cumprir metas impostas por aquela instituição que, em toda a sua história, jamais arrancou um país da miséria. Pelo contrário, agravou a situação econômica e social dos países asiáticos. E endividou todos que recorreram à sua ajuda.

O governo FHC promete investir R$ 33 bilhões em 2000 na área social, de um total de R$ 112 bilhões previstos para os próximos quatro anos. E vai desembolsar, no próximo ano, R$ 69 bilhões para pagar juros da dívida federal! Eles contraem a dívida, nós pagamos, sem que os benefícios cheguem à população. O povo padece. As elites se locupletam.

Se não houvesse a Marcha dos 100 mil e o Grito dos Excluídos, o governo proporia o pacote de medidas sociais? É óbvio que não. O que demonstra que ele não tem rumo nem proposta. Age ao sabor das pressões momentâneas. E reage à base de promessas. "Nada é pra já", como diz um verso de Chico Buarque. Tudo é para o ano que vem. Parafraseando Stefan Zweig, o Brasil é mesmo o país do futuro.

Para a lógica evangélica, é muito estranho essa idolatria do capital. Da vida só se leva o que trazemos no espírito. A morte é inelutável. O resto fica aqui e apodrece. Mas não é fácil sair de si e pensar no outro.

O amor é fruto de intensa educação. Mas não consta no currículo de nenhuma escola. A ponto de as pessoas pensarem que amor é esse fluxo de sentimento gregário que nos deixa encantado pela presença do outro. Por isso a morte dói, porque quebra o nosso ego. Os místicos não temem a morte porque estão possuídos por um Outro a quem anseiam ver face a face.

O fator H nasce da capacidade de amar o outro como semelhante, ainda que haja diferenças de idade, raça, sexo e condição cultural ou social. Traduz-se em pequenos gestos da vida cotidiana: o modo de tratar o próximo, a justiça como princípio, a transparência nas relações, a tolerância com o diferente, o cuidado em não difamar, caluniar, nem cometer agressões verbais.

Quem ama é compassivo, sente-se ofendido com a injustiça cometida a outrem, impede que seu coração naufrague em iras e mágoas. Quem ama não inveja e nem se julga melhor ou pior do que ninguém. Humildade vem de humus, terra. Quem ama tem os pés na terra. Não se julga dono da verdade, mas guarda em si uma voraz fome de justiça, que Jesus qualifica de bem-aventurança.

Todas as alquimias economicistas podem encher de brilho a boca de seus oráculos, mas de nada valem se não enchem de pão a mesa e de paz o espírito da gente. Isso é o que importa. E o que falta.

A SEMELHANÇA E A DIFERENÇA

NOVEMBRO - 1999


Os grupos e movimentos religiosos, até dentro de uma mesma Igreja, dividem-se entre aqueles que buscam a semelhança e aqueles que buscam a diferença em relação a outros grupos eclesiais e/ou sociais.

Ao longo da história das religiões, os grupos da diferença aparecem com mais nitidez.

Eles constróem sua identidade a partir da crítica aos demais. A seus fiéis importa mais o que não são do que o que são. É o caso dos grupos católicos que não aceitam a teologia da libertação ("que mistura religião e política"); não acreditam em mortos que retornam ("como os espíritas"), não negam a infalibilidade do papa e a virgindade de Maria ("como os protestantes"); não crêem em reencarnações ("como os budistas") etc.

Vale para os grupos evangélicos que não fumam, não ingerem bebidas alcóolicas, não aceitam a autoridade do papa, não se põem de joelhos diante de imagens, não consideram o celibato uma virtude etc.

Para os adeptos da diferença, o outro é visto pelo que "falta" a ele. Ou melhor, assumem-se como dotados de uma especial vocação e missão sobrenaturais, que os faz sentirem-se mais próximos de Deus do que o comum dos mortais, imersos na cegueira e nas frivolidades da vida mundana.

Assim era a visão que escribas e fariseus tinham do grupo de Jesus. Este merecia ser censurado e marginalizado porque não acatava a autoridade do Templo de Jerusalém, não cumpria os preceitos de purificação, não evitava o contato com os "malditos", como pecadores, prostitutas, aleijados e endemoninhados.

Os adeptos da semelhança encaram os outros realçando os valores que eles possuem.

A graça de Deus manifesta-se a todos, talvez os meus olhos é que não percebam o que os outros têm a me ensinar, pensam eles. Essa foi a atitude de Jesus diante da mulher cananéia (Mateus 15, 21-28), dos samaritanos, da mulher adúltera, do modo como os pobres acolhiam o dom de Deus (Mateus 11, 25-26).

O branco tende a olhar o índio por aquilo que ele, branco, tem a seu alcance ­ carro, telefone, aparelhos eletrônicos ­ e o índio não tem. É o olho do colonizador, que em nenhum momento se pergunta: o que têm os indígenas que eu não tenho? Por que será que entre eles não há homicídios, dependentes químicos, desprezo às crianças e aos idosos? Por que os povos indígenas tribalizados não se preocupam em acumular riquezas e são felizes se dispõem de recursos mínimos?

O fato de eu ser católico não me torna necessariamente melhor nem pior do que ninguém, a menos que eu ceda ao farisaísmo, que Jesus criticou com fina ironia ao descrever a oração do fariseu: "Ó Deus, eu te agradeço, porque não sou como os outros homens, que são ladrões, desonestos, adúlteros" (Lucas 18, 11).

Mas, serei um bom cristão? A Bíblia, em seu realismo, não inferioriza o ser humano diante da grandeza de Deus. Ao contrário, afirma que nós somos "imagem e semelhança" de Deus. Mas não somos deuses. Marcados pela contradição, que a linguagem religiosa chama de pecado, nem isso nos torna desprezíveis aos olhos divinos, mas suscita o amor de Deus, que nos enviou seu Filho e nos deu seu Espírito.

Esses nos ensinam a prática da semelhança pelas virtudes da tolerância, do perdão, da compaixão e da humildade. Sobretudo do amor, que é a matéria-prima com a qual se tece a semelhança.

A ótica da diferença é narcísica, fascista, prepotente. Por ela os europeus julgaram-se no direito de aniquilar os índios ("que não tinham alma"); os homens submeteram as mulheres ("seres imperfeitos, inferiores"); os brancos discriminaram os negros ("não são como nós"); os nazistas assassinaram os judeus ("que não traziam sangue puro"); a inquisição supliciou os que não acatavam a autoridade eclesiástica ("os hereges"); os estalinistas fuzilaram os seus críticos ("traidores e revisionistas"); a ditadura militar torturou e matou seus opositores ("os terroristas").

A ótica da semelhança é autocrítica, sensata, ecumênica, capaz de apreciar o que o outro tem a ensinar, a dizer, a revelar em sua singularidade e mistério. O critério de juízo dessa ótica não é a sua própria identidade enquanto grupo, mas os valores que a justificam: a vida, os direitos humanos, a cidadania, a democracia real. Ela acata a unidade na diversidade e se empenha pela solidariedade na pluralidade.

Quem exclui, na verdade se exclui. Mas abraçar a semelhança não é ceder ao desfibramento de quem não tem princípios. É buscar para todos, sem exceção, os direitos fundamentais que asseguram a cada um dignidade, justiça, liberdade e paz.

Nesse sentido, a semelhança marca diferença em relação àqueles que consideram as desigualdades sociais tão inevitáveis e naturais como a chuva e os ventos. Mas não os discrimina. Antes, procura criar uma sociedade onde a vida seja estruturalmente assegurada, para todos, como dom maior de Deus e expressão melhor da evolução do Universo.


FELIZ TERCEIRO MILÊNIO

DEZEMBRO - 1999


Na noite de 31 de dezembro para 1º de janeiro, milhares de pessoas irão celebrar um equívoco: o início do século 21 e do Terceiro Milênio.

Vamos apenas ingressar no ano 2000, o último do século e do milênio. Basta a elementar aritmética para saber que um século, que enfeixa 100 anos, não pode ter somente 99. Nem dois milênios 1999 anos.

A era cristã foi calculada pelo monge Dionísio, o Pequeno, no século 6. Então, os europeus não conheciam o zero, já incluído na matemática dos maias e dos indianos. Portanto, não tendo havido o ano 0, a dezena, a centena e o milhar só se completam no 10, no 100 e no 1000. Stanley Kubrick acertou ao intitular seu filme de "2001, uma odisséia no espaço".

Não faz mal, teremos, este ano, o réveillon psicológico. Ano que vem, o cronológico.

Para a alegria das agências de turismo. Aliás, os mais atentos sabem que já ingressamos, há tempos, no ano 2000 da era cristã.

Dionísio, o Pequeno, errou no cálculo da data de nascimento de Jesus. O rei Herodes morreu no ano 4 a.C. E Mateus registra que Jesus nasceu "no tempo do rei Herodes" (2, 1), provavelmente entre os anos 8 e 6 antes da era cristã. O que significa que, ao ser assassinado no ano 30, ele teria de 36 a 38 anos de idade.

Há cem anos, houve o mesmo debate quanto à mudança do século, a ponto de irritar o fleumático "The Times". Cansado da polêmica, o jornal inglês deu um basta, no editorial de 26 de dezembro de 1899: "O século atual só terminará no dia 1º de janeiro de 1901, não mais discutiremos este fato. É uma discussão tola e infantil, que não faz mais que expor o desejo dos cérebros daqueles que teimam em manter uma posição contrária à nossa."

Nos últimos meses, muitos se viram diante da pergunta: aonde você vai passar o réveillon? A maioria passará trabalhando, para que os mais afortunados possam se divertir. Garçons, copeiros, cozinheiros e empregadas domésticas verão uma pessoa gastar, em poucos minutos, o que eles não ganham em um mês de trabalho. Sem falar naqueles que pagaram uma fortuna para se deslocar de casa para um lugar emblemático em suas cabeças, como Nova York, Paris ou na ilha Pitt, na Nova Zelândia, onde o Ano Novo chegará primeiro.

Trafegamos entre a vaidade de, mais tarde, dizer "eu estive lá", e a ânsia espiritual de vivenciar um rito de passagem. Esses ritos são raros na vida, como o nascimento, o ingresso na maioridade e o casamento. No fundo, vamos sempre em busca de nós mesmos.

Porém, seres narcísicos, necessitamos de espelhos. De preferência, os olhos alheios.

Não quaisquer olhos, mas os de nossos pares na condição social, no prestígio e no poder. Porque já não sabemos ser felizes sem provocar inveja nos outros. Daí o medo da solidão, sobretudo para quem dependura a mesquinhez d’alma num momento de alegria.

De que vale mudar de ano, de século e de milênio sem que haja mudança em nossas vidas? Vivemos assaltados pelos fantasmas projetados pelo próprio desejo. Amanhã haveremos de meditar, comer menos, andar mais, dialogar com os filhos, tratar melhor os subalternos, ler os livros empilhados, visitar o amigo doente.

Amanhã. Hoje, não. Hoje é a sofreguidão dos modismos, a administração dos bens, os atropelos dos sentimentos, as intenções sempre adiadas, as preocupações que dilaceram o espírito e estragam o prazer de viver.

Os povos antigos sentiam necessidade de renovar o mundo periodicamente. Na Mesopotâmia, a criação do mundo repetia-se ritualmente nas festas do Ano Novo. Celebrava-se a vitória de Deus sobre o vazio primordial, como registra o "Gênesis", que descreve, em seus primeiros capítulos, a passagem do Caos ao Cosmo (mesma raiz grega de cosmético, o que torna belo).

Sentimos também o desejo de renovar nossas vidas, como Nicodemos que, ao procurar Jesus de madrugada, recebeu dele o convite a nascer de novo, pelo Espírito (João 3, 1-8). Introduzidos inconscientemente no ciclo morte-ressurreição, somos atraídos pela utopia de que "amanhã será outro dia", como assegura o poeta.

Réveillon significa, em francês, despertar na passagem de um dia para o outro. Ainda que a noite de 31 de dezembro seja apenas um momento de festa e confraternização, que tal deixar que o "bug" ocorra em nossas vidas, zerando os nossos débitos de amor, e acatar a proposta de Jesus a Nicodemos?


FELIZ ANO NOVO AOS CORAÇÕES VELHOS

JANEIRO/FEVEREIRO - 2000


Feliz Ano Novo aos que praguejam sobre o solo árido de suas vida sem garimpar alegrias, e aos que amarram o espírito em teias de aranha sem se dar conta de que os dias tecem destinos. Também aos que desaprenderam o sorriso e abandonaram ao olvido a criança que neles residia.

Feliz Ano Novo aos que perambulam às margens da memória e semeiam ódio no quintal da amargura; guardam dinheiro na barriga da alma e penhoram a felicidade em troca de ambições; são náufragos de lágrimas, cegos aos arquipélagos da esperança, e fantasiam de asas as suas garras, voejando em torno do próprio ego.

Feliz Ano Novo aos que sonegam carinho e ainda cobram atenção, alpinistas da prepotência que os conduz ao abismo; àqueles que, alheios ao que se passa em volta, ilham-se na indiferença enquanto o mar arde em fogo; e a quem gasta saliva tentando se justificar por se disfarçar em pomba e agir como raposa.

Feliz Ano Novo aos que escondem o Sol no armário, sopram a luz das estrelas e põem espessas cortinas no limiar do horizonte. Aos que nunca tiveram tempo para a dança, ignoram por que os pássaros cantam e jamais escutaram um rumor de anjos.

Feliz Ano Novo aos que bordam iras com agulhas afiadas e desperdiçam palavras no furor de suas emoções desabridas; seqüestram dignidades e, como os colecionadores de borboletas, sentem prazer em espetá-las no interior de cavernas obscuras.

Feliz Ano Novo aos faquires da angústia e aos que, equilibrados num fio de sal, trafegam por cima de montanhas de açúcar. Também aos que jamais dobraram os joelhos em reverência aos céus e acreditam que a história do Universo tem início e fim neles.

Feliz Ano Novo às mulheres que destilam antigos amores em cápsulas de veneno e aos homens que, ao partir, mostram, às costas, a face diabólica que traziam mascarada sob juras de amor.

Feliz Ano Novo aos jovens enfermos de velhice precoce e aos velhos que, travestidos de adolescentes, bailam aos desafinados acordes do ridículo. E aos que atravessam o tempo sem se livrar de bagagens inúteis e ainda sonham em ingressar numa nova era sem tornar carne o coração de pedra.

Feliz Ano Novo aos que já não sabem conjugar os verbos no plural; agendam sentimentos e estão sempre atrasados na vida; mendigam admiração e se prostituem frente à sedução do poder.

Feliz Ano Novo àqueles que dão "mau-dia" ao acordar, afogam em trevas interiores a alegria que lhes resta, encaram a vida como madastra de história infantil. E aos que julgam que laços de família se cortam com a ponta afiada da língua e ignoram que o sangue escreve letras indeléveis.

Feliz Ano Novo aos que se apegam ao poder como a fuligem ao lixo, infantilizados pelas mesuras, prenhes de mentiras ao agrado do ouvido alheio, solícitos às providências que assassinam a ética. Sejam também felizes os que tentam corromper os filhos com agrados materiais e nunca dispõem de tempo para olhá-los nos olhos do coração.

Feliz Ano Novo aos navegadores cibernéticos, mariposas de noções fragmentadas,amantes virtuais que se entregam, afoitos, ao onanismo eletrônico, digitando a própria solidão.

Feliz Ano Novo aos poetas que não sabem tragar emoções e engolem com ira palavras que trariam vida ao mundo. E aos que abominam a arte por desconhecerem que o ser humano é modelado em barro e sopro.

Feliz Ano Novo a todos que temem a felicidade ou consideram, equivocadamente, que ela resulta da soma dos prazeres. E aos que enchem a boca de princípios e se retraem, horrorizados, diante do semelhante que lhe é diferente.

Feliz Ano Novo às mulheres que se embelezam por fora e colecionam vampiros e escorpiões nos lúgubres porões do espírito. E aos homens que malham o corpo enquanto definha a inteligência, transgênicos prometeus acorrentados ao feixe dos próprios músculos.

Feliz Ano Novo a todos os infelizes, aos que o são e aos que se julgam, cegos às

infinitas possibilidades da luz e das rotas. Sejam todos agraciados pela embriaguez da alegria divina, abertos ao Deus que os habita e ao amor que, como um rio cristalino, jamais nega água a quem se ajoelha, reverencia o milagre da vida e aprende a beber do próprio poço.


MULHER, USO E ABUSO

MARÇO - 2000


A 8 de março comemora-se o Dia Internacional da Mulher. Neste ano, a data coincide com a Quarta-Feira de Cinzas. Instaura-se o paradoxo. A beleza defronta-se com o espectro da morte. Após o Carnaval da nudez despudorada, as cinzas.

A sociedade de consumo, privilégio de poucos, gira em torno do lucro obtido com a venda de bens e serviços. E de aplicações financeiras que multiplicam o dinheiro. Aos olhos da publicidade, o cidadão reduz-se a mero consumidor movido a desejos. Toda a propaganda transforma-se num jogo de sedução.

Quanto mais emoções e ilusões, menos razões e valores, mais vulneráveis nos tornamos aos apelos consumistas, cuja principal isca é a mulher.

O mercado, onde outrora o homem figurava como único provedor, exceto para as compras da feira e das crianças, hoje tem na mulher u’a mantenedora de mão cheia. Daí a publicidade dirigida à consumidora, à mulher que tem profissão e renda própria. Na escolha de bens e serviços, ela agora concentra um poder de decisão equiparável ao do homem.

A propaganda vende quimeras. Não se compra apenas um sabonete, uma roupa ou uma bebida.

Compram-se sobretudo o sonho de ser mais uma entre as dez atrizes que se banham com aquele produto, a fantasia de tornar-se tão sedutora quanto a jovem que entra no jeans, a aspiração de desfrutar da alegre ociosidade de tanta juventude a borbulhar no gargalo da garrafa.

Reificada, coisificada, destituída de mente e espírito, a mulher é reduzida a formas e trejeitos, sem que os movimentos feministas consigam fazer ouvir sua voz de protesto. Como um ninho de serpentes, moças retorcem-se em gemidos no prostíbulo televisivo, enquanto no filme e na telenovela o adultério é propagado como direito à liberdade. Nos programas humorísticos, a mulher é imbecilizada e ridicularizada.

Não só homens fazem da mulher objeto do desejo. Basta uma olhada nas capas das revistas femininas. Mulher se compara a mulher na busca de melhor performance social, sexual e estética. Se, além da roupa, a moda dita um corpo esquálido como o de uma africana abatida pela fome, a anorexia impõe-se como salário da vaidade. A medicina cria um novo ramo para atender ao luxo da ditadura estética, como se o corpo que foge ao modelo imperante fosse portador de doenças e anomalias. A ponto de, recentemente, uma mulher ­ Eva na contramão ­ arrancar costelas para renascer bela no corpo atrofiado.

Essa cultura da glamourização move as lucrativas indústrias de cosméticos, publicações, esportes e academias de ginástica. Sua isca é a mulher reduzida à aparência e destituída de direitos, essência, subjetividade, idéias e valores. Dócil aos caprichos da publicidade, o corpo vai à leilão na feira de amostras das revistas maculinas.

Ora, como estranhar que, na esfera da realidade, as relações sejam conflitivas e até violentas? Proliferam delegacias de mulheres. Pois não há de ser essa propagação da mulher como mero objeto de consumo que suscitará no homem respeito e alteridade. Uma coisa é uma coisa. Manipula-se, usa-se, descarta-se.

Enquanto a mulher aceitar esse jogo de marketing, movida pela quimera de ser tão bela quanto a fera, será difícil cegar os olhos do machismo, tanto o masculino, que a submete, quanto o feminino, de quem aceita ser submetida e, portanto, humilhada. A exposição erótica da mulher é uma notória humilhação do feminino, pois torna a beleza resultado da soma de atributos físicos exacerbados pela protuberância das formas e os ditames da moda.

Belas, a meus olhos, são Fernanda Montenegro, Adélia Prado, Lygia Fagundes Telles, Odete Lara e Zilda Arns Neumann. Elas correspondem ao que Marcello Mastroianni, que entendia de mulheres, e com quem estive em 1986, qualificou de mais fascinante que pode haver numa mulher: a coerência de sua história de vida. Mas isto não está à venda. É uma conquista.


PÁSCOA, O LADO AVESSO DA PELE

ABRIL/2000


Uma das características da pós-modernidade é a redução da cultura a mero entretenimento e a exacerbação dos sentidos em detrimento da razão e do espírito. Para estimular o consumismo, utilizam-se como isca recursos capazes de nos fazer sentir mais e pensar menos. Isso vale para a publicidade, certos programas televisivos e até rituais religiosos.

Dissemina-se uma cultura centrada no epidérmico, na qual há mais estética que ética, nádegas que cabeças, urros que melodias, ambições que princípios, devaneios que utopias. Tudo é aqui e agora, a ser devorado por olhos e ouvidos, o corpo entregue a um frenesi de sensações que faz do prazer e do sexo simulacros da felicidade e do amor.

Seres relacionais e racionais, como acentuam os filósofos desde Sócrates, somos agora reduzidos a seres extrofiados, revirados para fora, estranhos a nós próprios, como lamentava Kierkegaard, pois nossa auto-estima passa a depender do que vem de fora ­ da gula e da antropofagia visual aos arremedos de fama, fortuna e poder.

Páscoa significa travessia, passagem. Talvez uma das mais difíceis é a que nos faz percorrer o caminho entre a epiderme e a vida interior, não para dualizar polaridades, mas para resgatar a unidade. O budismo tibetano tem razão ao afirmar que, malgrado todo avanço científico e tecnológico, cada pessoa é ontologicamente a mesma desde que o símio tomou consciência de que o galho de árvore em sua mão poderia servir-lhe de arma de ataque e de defesa.

Aristóteles sintetizou-nos em esferas sensitiva, racional e espiritual, como unidade que exige equilíbrio. A exacerbação de uma resulta na atrofia das outras. Só a predominância do espiritual é capaz de imprimir sensatez "às loucas da casa", como diria o poeta, evitando o sabor de náusea dos sentidos, descritos por Sartre, bem como o racionalismo que, ao contrário de Tomás de Aquino, julga equivocadamente que a razão é a suprema expressão da inteligência.

Fazer Páscoa em si mesmo é cultivar a subjetividade. "Beber do próprio poço", sugerem os místicos. Desnudar-se de ilusões egocêntricas, jejuar os sentidos, adequar a razão a seus limites, orar e meditar para poder contemplar.

Somos seres vocacionados à transcendência. Como dizia Hélio Pellegrino, uma samambaia desfruta de sua plenitude vegetal. Nós, não; escravos do desejo, temos buracos no corpo e na alma. É a "gula de Deus", da qual falava Rimbaud.

Ao deixar de trilhar as veredas que conduzem ao Absoluto, corremos o risco de nos perder no acidentado terreno que cotidianiza o absurdo: iras e mágoas, inveja e competição, medo e, sobretudo, uma incômoda sensação de não saber exatamente o que fazer desse breve período de existência.

A Páscoa é precedida de morte que, emblematicamente, a tradição cristã qualifica de paixão, um ato de amor, de entrega, que faz refluir tudo aquilo que dispersa, aliena e ilude. Jesus no túmulo simboliza o silêncio, a volta ao mais íntimo de si mesmo, abraçar a solidão sem se sentir solitário.

Ressuscitar, renascer na ousadia de assumir valores altruístas e empenhar-se para que a justiça seja o fundamento da paz.

Tudo que existe pré-existe, subsiste e coexiste. É Universo, e não pluriverso. Comunhão e luz. Não é em vão que os orientais chamam o centro energético do nosso ser, lá onde se situa o coração, de plexo solar. O silêncio das galáxias no infinito é um convite para que se saiba fechar os olhos para ver melhor. E descobrir, no âmago de si, a presença amorosa de Deus, que impregna o lado avesso da pele e anseia fluir por todo o corpo, palavras e atos, de modo a fazer de nós seres vitalmente pascais, cuja existência coincida com a sua essênci.

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SABER VIVER, SABER MORRER

MAIO - 2000


O tema da vida é, paradoxalmente, uma evocação da morte. Nesta árdua aventura existencial que não escolhemos e, no entanto, assumimos, vida e morte não são polos antagônicos, mas faces de um mesmo rosto: o do sentido que imprimimos à nossa existência. Do mais íntimo do nosso ser - lá onde tateia a psicanálise - ao mais social e público - onde balbuciam as ciências políticas - a dialética da vida e da morte é expressão de nossos anjos e demônios.

De algum modo, cada um de nós é dois. "Não faço o bem que quero, mas o mal que não quero", dizia são Paulo (Romanos 7, 19). Sem regredir ao maniqueísmo e, muito menos, negar a unidade ontológica do ser humano, é um fato que a ideologia da morte impregna em nossa existência o amargo sabor do egoísmo. Subvertem a nossa bondade intencional o Pinochet que nos habita, o Hitler que nos leva à ira, o aprendiz de ditador que se manifesta em nosso reduzido universo de poder.

Sim, como é difícil praticar, na esfera pessoal, a democracia apregoada em público! Nesse espaço cotidiano de interrelações, toda espécie de opressão pode brotar: palavras que agridem, omissões que prejudicam, infidelidades que minam, ambições que poluem a transparência dos propósitos. Em nome da vida, semeia-se a morte alheia. Assina-se, assim, a própria sentença, pois a vida só alça vôo e transcende o próprio eu na medida em que se faz amor para os outros.

Falar da vida é erguer-se contra o sistema que estruturalmente se alimenta da morte. A agonia diária do trabalhador explorado, a morte cívica dos direitos humanos negados, a marginalização política de quem não participa da escolha de seus governantes - são sinais da necrofilia de uma ordem social.

A violência não está engatilhada apenas no tambor de um revólver. Ela o precede, engendrando economicamente o contingente de excluídos do sistema. Nasce da decisão política de arrancar o pão da boca da coletividade, para que o valor de troca prevaleça sobre o valor de uso. Revestida de fetiche, a mercadoria entra no ritual dos lucros e exclui do templo toda a multidão de fiéis que não está revestida do manto sagrado da propriedade privada dos meios de produção ou do capital.

Mas não é só de pão que temos fome. Como diz o poeta cubano Onélio Cardoso, a fome de pão é saciável, fruto da justiça; voraz e insaciável é a fome de beleza - essa compulsiva atração que sentimos pela transcendência, a razão saturada em seus labirintos geométricos, o sabor estético que, em nosso silêncio, toma emprestado a música, a letra, a imagem, a forma e as cores, que exprimem o sentido do nosso existir.

É a sabedoria brotada da intuição que nos aponta o caminho adequado. É tão profundamente humana essa experiência de tocar o Inefável, que a fé denomina Deus.

No amor, o gesto traduz essa sede, como quem ergue o copo repleto até a borda, bebe e constata, surpreso, que a sede foi apenas aplacada, jamais saciada. Pois só a Fonte de Água Viva, à beira do poço de Jacó, liberta o ser humano das seduções do Absurdo e lhe dá a conhecer a plenitude do Absoluto. Pois Ele veio para dar a vida a todos e vida em abundância (João 10, 10).


 CARTA AOS AMIGOS


S. Paulo, 29 de fevereiro de 2000

Querido(a) amigo(a)

 

Só daqui a quatro anos teremos um novo 29 de fevereiro. Contudo, pode-se fazer o bem a qualquer momento.

Como muitos já sabem, todo ano, na Quaresma, promovo campanha em prol de crianças carentes. Apoio projetos sérios, que fazem bom uso do dinheiro e, em geral, não contam com recursos públicos.

Em 1998, inúmeros amigos e amigas ajudaram a manter o Projeto Cintilar, de São Lourenço (MG), tocado por uma amiga que já passa dos 70 anos, mas conserva o mesmo ardor dos 20 em matéria de justiça social. Ano passado, a beneficiada foi a Casa Vida, que acolhe crianças com aids, monitorada pelo bravo padre Júlio Lancellotti.

Este ano, a Campanha da Fraternidade ­ pela primeira vez promovida por sete Igrejas (católica, luterana, metodista, anglicana, cristã reformada, presbiteriana unida e ortodoxa siriana) ­ tem como tema "Um novo milênio sem exclusões". Nessa direção, escolhi como alvo de nossa solidariedade a Casa Taiguara, em São Paulo, a qual retornei na manhã de hoje.

Fundou-a meu amigo Daniel Fresnot, um francês que, sob a ditadura, esteve exilado na FrançaŠ Tem 51 anos, é escritor e empresário, dono da Fibratam (usina de tambores de fibra) e dotado de um profundo e genuíno espírito gandhiano ou franciscano, tamanho seu despojamento.

A Casa Taiguara, fundada em 1996, fica no centro de São Paulo, na rua Vicente Prado 93, Cep: 01321-020, Telefax: 239-3146. Até dezembro de 1999, atendeu 315 crianças e jovens de rua. Desses, 40 retornaram à escola. E mais da metade já retomaram seus vínculos familiares. Neste início de ano, 14 foram matriculados na escola estadual da Moóca.

Pasmem: a diretora da escola contou que tem alunos da 6ª série que dormem sob os viadutos da cidade.

Por que esses meninos(as) vão pra rua? As principais causas são a violência doméstica (briga entre casais, embriaguez, estupro da filha etc) e desintegração da família (perda damoradia devido o preço do aluguel, desemprego, pai preso e mãe que faleceu etc).

A Casa Taiguara respeita a liberdade das crianças. Elas entram quando querem e, ali, têm direito a refeições, banho, lavar roupas, ganhar roupas novas e dormir. Mas também têm deveres: jamais ingressar com armas, drogas ou objetos roubados; evitar brigas; eparticipar das atividades internas, como ajudar na limpeza e freqüentar as aulas deportuguês e matemática. Há também cursos de eletricidade e informática. Agora, organiza-se uma biblioteca (aceitam-se doações, sobretudo de livros infanto-juvenis, dicionários e didáticos). A cada mês, passam pela casa cerca de 60 crianças e jovens, de 7 a 17 anos.

Os dependentes de drogas são enviados, por livre vontade, a clínicas de desintoxicação.

Isso custa caro à casa. Cada criança precisa ficar pelo menos 6 meses na clínica. E a mensalidade é de              R$ 200,00.

Hoje, trabalham na Casa Taiguara 12 educadores, cada um com salário de R$ 600,00. O custo mensal de manutenção é cerca de R$ 20 mil. Daniel Fresnot tem conseguido chegar aos R$ 12 mil E está comprando a casa, ao preço de 120 mil reais. Já conseguiu pagar a metade. Tudo à base de doações. E atenção: sem um tostão do poder público. Como ele escreveu em artigo na Gazeta Mercantil (23/11/99) "uma cidade como São Paulo, que movimenta bilhões de dólares, tem apenas um abrigo aberto 24 horas para crianças de rua, mantido sem nenhuma ajuda pública nem de fundações; a Casa Taiguara". Isso é Brasil.

Basta dizer que, para registrar a obra, Daniel Fresnot levou um ano e meio enredado nas burocracias municipal e estadual!

Como não convém misturar crianças e jovens, ele tem outra moradia em vista, no Bexiga, onde pretende inaugurar a Casa Taiguarinha. A proprietária, em apoio ao projeto, topou vendê-la pelo mesmo preço da atual: 120 mil. Falta recolher a grana.

Vale a pena investir neste projeto. Se você está disposto, remeta sua contribuição, ainda que seja o que gastaria num jantar em restaurante, em nome da MORADIA ASSOCIAÇÃO CIVIL, para uma dessas três contas:

… Banco Itaú ­ agência 0048 ­ conta 03348-4

… Banco Bradesco ­ agência 0614 ­ conta 054560

… Banco Banespa ­ agência 0115-13 ­ conta 002526-6

Se necessita de recibo, remeta fax do comprovante pelo nº (XX 11) 3664-7938 e seu nome e endereço.

Desejo a você uma Páscoa de profunda alegria no Senhor da justiça, com a minha amizade e paz,

FREI BETTO


CORPO CÓSMICO

JUNHO/JULHO - 2000


A festa de Corpus Christi, no dia 22 de junho, convida os cristãos a refletirem sobre a materialidade do ser. O cristianismo, malgrado as tendências espiritualistas, é a religião da concretude: fatos históricos, como a vida e a morte de Jesus; o pão e o vinho como símbolos da nossa comunhão com Deus; a "ressurreição da carne" proclamada no Credo.

Somos um corpo. Assim como a árvore brota da terra, o corpo humano emerge da evolução do Universo. Somos todos feitos de matéria estelar. Nosso corpo tem a idade aproximada de 15 bilhões de anos! Sua gestação teve início quando o calor da explosão inicial do Universo ofereceu, a olhos nenhum, a primeira festa cósmica de São João. Fogueiras acesas no firmamento pontilharam de luz a escuridão do céu.

Ali, no bojo dos fornos estelares, o hidrogênio, cozido a temperaturas altíssimas e diferenciadas, engendrou o magnífico colar da escala atômica.

Todos os átomos do nosso corpo adquiriram, nas entranhas das estrelas, existência e consistência. Eram, então, como notas da escala musical que ainda não encontraram o instrumento capaz de fazê-las ressoar em música.

Muito tempo depois, os átomos de nosso corpo ganharam pele nas moléculas e vestiram-se com a roupa das células, construindo esse ser que somos. Já não faz sentido falar que somos um corpo dotado de alma. Menos platônico, São Paulo fala em "corpo espiritual" (I Coríntios, 15,44).

O corpo contém o espírito assim como o espírito se consubstancia no corpo. Os jogos labirínticos dos redutos quânticos fazem a energia pulsar em matéria e a matéria expressar-se em energia, unidas no aparente paradoxo das partículas que fluem como ondas e das ondas que se exibem em partículas.

Faces sutis de um mesmo perfil coroado pelos elétrons, que brilham em torno do picadeiro desse fantástico circo onde prótons e nêutrons produzem, na proporção exata, o espetáculo do ser.

Tudo isso é o corpo que somos, no qual a carne é tão espiritual quanto o espírito tão carnal, indivisíveis, dualidade sem dualismo, semente contida na árvore contida na semente que contém tronco e galho, seiva, folha e flor, assim como, desde seu início, o Universo nos continha e, desde sempre, Deus nos enlaça em seu abraço amoroso.

Esse corpo que somos é o corpo personificado do Cosmo. Teilhard de Chardin contempla o Universo como Corpo Cósmico de Cristo. "Nele vivemos, nos movemos e existimos", acentua os "Atos dos Apóstolos" (17,28).

Agora, em nosso corpo, o Universo abandona sua bilenar cegueira e ganha olhos em nossos olhos - espelhos em que ele se contempla e descobre, maravilhado, que é belo. Daí o nome que provém da mesma raiz grega de cosmético, aquilo que embeleza.

Somos a Terra em sua expressão humana. Nós, homens e mulheres, não somos qual o barco colocado sobre as águas. Somos a água moldada em ondas e espumas. Filhos da Terra, trazemos em nosso corpo a mesma proporção de água e sal encontrada neste planeta. Da natureza emergimos e graças a ela nutrimos a nossa vida, e encontramos em nosso corpo matas em forma de pêlos, superfícies lisas e ásperas, reentrâncias e protuberâncias, fendas, canais, fontes e cavernas.

Esse corpo que somos dorme e sonha, sofre e goza, sabe-se feliz ou contrai-se em tristeza, esbanja saúde ou fragiliza-se na doença. Sobretudo, é capaz de algo inacessível a todos os outros animais: sorrir. E, no entanto, ainda vivemos num mundo submerso em lágrimas. Porque esse corpo, provido de sentimentos e emoções, guarda rancores, iras e ódios, embora tão capaz de compaixão, ternura e amor.

Esse corpo que somos é morada divina. Porém, ainda profanado pelo trabalho opressivo, abatido pelas guerras, prostituído pela miséria, excluído pelo Estado de mal-estar social. Corpo feito para se revestir de dignidade, pleno de direitos.

Corpo copo que acolhe vinho e carinho e se projeta em palavras, como o pássaro lança-se ao vento que imprime vôo às suas asas.

Esse nosso corpo, criado à imagem e semelhança de Deus, é idêntico ao

corpo de Cristo e, como ele, vocacionado ressurrecionalmente à eterna idade,

lá onde o tempo se despe do espaço e cede lugar à plenitude do amor.


O PRIMADO DA VIDA

AGOSTO/2000


Doutrina e teologia da Igreja católica conheceram consideráveis avanços neste século, sobretudo a partir do Concílio Vaticano II (1962-1965).

Outrora, o planejamento familiar dependia da abstinência sexual; o carinho entre o casal era considerado pecado; os protestantes e os judeus, abominados; o ecumenismo, impensável; o latim, obrigatório nas missas; a batina, única indumentária social do padre.

Hoje, celebra-se em língua vernácula; o papa reúne-se em Assis com representantes de diversas religiões e visita a sinagoga de Roma; deixa-se fotografar em trajes esportivos, ao esquiar nas férias; e pede perdão pelo anti - semitismo da Igreja, pelos erros da Inquisição, pela condenação de Galileu e das teorias de Darwin.

Mesmo a teologia da libertação, encarada com suspeita na década de 80, incorpora-se agora aos discursos papais. Basta reler seus pronunciamentos em Cuba (1998) e no México (1999), condenando o neoliberalismo e a globalização, bem como seus insistentes apelos em prol da reforma agrária e da suspensão do pagamento da dívida externa.

A cidadela inexpugnável é, ainda, a teologia moral. Sobretudo o capítulo concernente à moral sexual, que proíbe relações sexuais sem finalidade procriatória; condena o homossexualismo; impede os casais de segundas núpcias, exceto na viuvez, de acesso aos sacramentos; e veta o uso de preservativos, malgrado a Aids ter tirado a vida, em 1999, de cerca de 4 milhões de pessoas em todo o mundo.

As autoridades da Igreja católica, felizmente, demonstram maior tolerância nesse mundo pluralista pós-moderno, em que não se pode pretender que a moral preceituada à instituição seja imposta ao conjunto da sociedade.

Talvez isso explique o fato de João Paulo II, em sua última visita ao Rio, ter acolhido no altar cantores que já passaram por vários casamentos, e alguns prelados sentirem-se à vontade entre figuras públicas que estão longe de ser exemplo de virtudes na esfera conjugal.

Frente à ameaça da Aids, o que o padre Valeriano Paitoni declarou ao repórter Armando Antenore, na Folha (2/7), em nada destoa do que antes dissera dom Paulo Evaristo Arns, que o preservativo é "um mau menor".

O magistério eclesiástico sabe que é direito e dever dos teólogos ­ pois é este o carisma deles - debater todas as questões concernentes à vida de fé, e que "alguns documentos magisteriais não estão livres de deficiências. Os pastores nem sempre perceberam todos os aspectos e todas as complexidades de algumas questões" (Congregação para a Doutrina da Fé, 1990).

A questão sexual à luz das fontes da Revelação cristã situa-se num contexto mais amplo, que engloba desde o papel da mulher na Igreja, ainda hoje impedida de acesso ao sacramento da ordem, até o fim do celibato obrigatório para os padres seculares, bem como a volta ao ministério dos que se encontram casados. Como uma lente que se abre progressivamente, tais temas devem ser tratados com menos preconceito e mais estudos bíblicos, menos autoritarismo e mais diálogo com a comunidade dos fiéis, como fez dom Cláudio Hummes, ao receber, semana passada, entidades solidárias aos portadores do vírus HIV.

A tradição ou história da Igreja é uma boa mestra quando não se quer repetir equívocos. Os irmãos Cirilo e Metódio evangelizaram a Morávia, no século IX.

Criaram o alfabeto cirílico, base do russo atual. Traduziram para o eslavo os textos bíblicos e litúrgicos. Os bispos alemães protestaram, alegando que Deus só podia ser louvado nas três línguas da cruz: hebraico, latim e grego.

Cirilo morreu em 869. Metódio foi preso por ordem dos bispos alemães. O papa João VIII negociou sua libertação em troca do latim na liturgia.

Metódio recusou-se a abrir mão do eslavo. Dois anos depois, o papa cedeu e, séculos adiante, João Paulo II exaltaria os dois irmãos na encíclica Slavorum apostoli.

Condenada pela Igreja, ela foi queimada viva, a 30 de maio de 1431, como "herege, relapsa, apóstata e idólatra". Camponesa e analfabeta, tinha 19 anos, vestia-se de homem e andava armada. Canonizada em 1920, hoje é venerada nos altares como santa Joana D¹Arc.

Na encíclica Mirari vos, de 1832, Gregório XVI condenou o mundo moderno, as liberdades de consciência e de imprensa, e a separação entre a Igreja e o Estado. Em 1864, o Syllabus de Pio IX reafirmava a sentença, repudiando proposições como "o romano pontífice pode e deve reconciliar-se e chegar a um acordo com o progresso, o liberalismo e a civilização moderna" (DS 2980).

Continua vigente o decreto do Santo Ofício de 1949, assinado por Pio XII e confirmado por João XXIII em 1959, pelo qual todos os católicos que votarem ou se filiarem a partidos comunistas, escreverem livros ou artigos filocomunistas estão excluídos dos sacramentos. "Ninguém pode, ao mesmo tempo, ser bom católico e socialista verdadeiro" (Pio XI).

Hoje, João Paulo II admite que "o socialismo continha sementes de verdade", visita Cuba, utiliza todos os recursos da moderna tecnologia da mídia, mostra-se encantado com a Internet, louva os progressos científicos e

técnicos, e percorre o mundo em viagens aéreas. "Eppur si muove", malgrado o decreto de 1616, do Santo Ofício, condenando aqueles que diziam que a Terra se move. Não só o nosso planeta, mas também os costumes e a hermenêutica dos fundamentos da doutrina cristã.

Jesus não condenou a mulher adúltera (João 7), nem a samaritana que estava no sexto marido (João 4), nem deixou de escolher Pedro para chefiar o grupo apostólico porque ele era casado (Marcos 1). Ao contrário, cobriu-os de compaixão, revelando-lhes o coração amoroso de Deus.

É hora de o magistério católico se perguntar se o preservativo pode ser descartado, quando se sabe que até mulheres casadas são infectadas por seus maridos pelo vírus da Aids. O preceito evangélico da vida como bem maior de Deus e o princípio tomista da legítima defesa não se aplicariam a tal circunstância?


A EDUCAÇÃO NO OLHAR

SETEMBRO-OUTUBRO - 2000


Desde que me entendo por gente, a escola ensina análise de textos. Graças a essas aulas, aprendi o ufanismo de "criança, jamais verás um país como este", conheci a paixão de Tomás Antônio Gonzaga por sua Marília e deletei-me com os poemas satíricos de Leandro Gomes de Barros, como esses versos tão atuais, escritos no início do século: "O Brasil é a panela/ O Estado bota sal,/ O Município tempera,/quem come é o Federal".

Todo texto tece-se com os fios do contexto em que foi escrito. Quanto mais próximo encontra-se o leitor do contexto em que se produziu o texto, tanto melhor capta o seu pretexto, o significado. Um alemão tem mais condição de apreender, com a sensibilidade, o universo das obras de Goethe, assim como um brasileiro sente o perfume da culinária descrita nos romances de Jorge Amado.

PARA QUE SERVE A LITERATURA?

Pra que serve estudar literatura? Entre outras razões, para ler com mais acuidade o livro da vida, cujos autores e personagens somos nós. Quem lê, sabe distinguir entre arte e panfleto, jogo de rimas e poesia, experimentalismo barato e ficção de qualidade. Ler é um exercício de escuta e ausculta. Por isso, enquanto não chegam novos avanços tecnológicos, tenho a impressão de que ler livro na Internet é como ver a foto de um entardecer de maio sobre as montanhas de Belo Horizonte. Prefiro contemplar a maravilha ao vivo.

Na adolescência tive em cine-clubes minha primeira educação do olhar. Após a exibição do filme, havia debates, onde ficava nítida a diferença entre obra de arte e mero entretenimento. Cultivava-se a sensibilidade, saturada pelas sagas melodramáticas dos pastelões de Hollywood e insaciada diante dos grandes mestres do cinema. A chatice do humor televisivo jamais produzirá um Chaplin.

Hoje, a imagem ocupa em nossos olhos mais espaço que o texto, graças à

universalização da TV. No entanto, a escola parece não se dar conta de que vivemos numa era imagética. Ou pior, compete com a TV em arrogante indiferença ou desprezo. Dentro da sala de aula ainda predomina a narrativa textual, a palavra escrita, a seqüência demarcada por início, meio e fim, marcas da historicidade. Fora da escola, recebemos a avalanche de imagens, o vertiginoso coquetel que embaralha passado, presente e futuro, a narrativa implodida pelo recorte inconcluso dos clipes, a cultura definhada em diversão vazia.

A ESCOLA E A TV

Enquanto a escola se esforça, ao menos teoricamente, para formar cidadãos, a TV forma consumidores. Se, hoje, os alunos são mais indisciplinados que outrora, é porque não podem - ainda - mudar o professor de canal... Por que não destronar a TV como rainha do lar e levá-la para a sala de aula? Chegou a hora de nos emanciparmos do tirânico monólogo televisivo. Pode-se discordar de um jornal e escrever à seção de cartas dos leitores ou protestar no rádio, ligando para a emissora. Como queixar-se à televisão, uma concessão pública utilizada em função de interesses e lucros privados? O melhor recurso é inverter a relação: ela passa a ser objeto e, nós, sujeitos.

Imagino os alunos em sala de aula analisando programas de TV e clipes publicitários; transformando o jogo de emoções - fotos, sons, movimentos - em objeto da razão, decodificando os conteúdos dos programas e a carpintaria da produção televisiva. Atores e produtores de TV seriam recebidos em salas de aula; a qualidade dos produtos ofertados conferida; abrir-se-ia o debate sobre a "ética" implícita nos programas de auditório, onde pobres e nordestinos são ridicularizados, e na publicidade, que reduz a mulher a seus atributos físicos como isca de consumo.

Ver TV na escola e educar o olhar. E, assim, dar importante passo rumo à

democratização dos meios de comunicação, pois instituições de ensino também devem ter suas rádios comunitárias e produzir vídeos. Só um olhar crítico abre-nos o horizonte da cidadania e da democracia real. Caso contrário, corremos o risco de ver cada vez mais caras e menos corações, acreditar que a predominância da estética dispensa ética e crer que os sonhos são apenas casulos que não geram borboletas da utopia.


O GRITO DAS AMÉRICAS


Participei em Nova Iorque, a 12 de outubro, data do "descobrimento" de nosso Continente, do Grito dos Excluídos das Américas. A cidade norte-americana foi escolhida por ser a sede da ONU; foco do noticiário internacional; e palco da Marcha dos Migrantes Indocumentados, realizada dia 14, e da Marcha Mundial das Mulheres, a 17.
Uma comissão de representantes das três regiões continentais, encabeçada pelo argentino Adolfo Perez Esquivel, prêmio Nobel da Paz, foi recebida na ONU por Gillian Martin Sorensen, assistente do Secretário Geral e chefe do Departamento de Relações Internacionais. Do Brasil, presentes Gilmar Mauro, dirigente do MST, e eu. Kofi Annan ausentou-se para viajar às pressas ao Oriente Médio, devido ao conflito entre israelenses e árabes.

EXPOSIÇÃO DE FOTOS

À entrada do edifício da ONU uma exposição de fotos de Sebastião Salgado exibia o rosto de crianças pobres do mundo, o que facilitou o nosso diálogo com Mrs. Sorensen, a quem descrevemos os efeitos nefastos das políticas do FMI e do Banco Mundial em nossos países. Insistimos para que a ONU não se torne um joguete nas mãos da política externa dos EUA.
O grande escândalo deste fim de século e milênio é a carência em que vivem multidões. No mundo, segundo o Bird, 1,2 bilhão de pessoas sobrevivem com renda mensal inferior a US$ 30, e outras 2,8 bilhões com menos de US$ 60. Na América Latina, são 224 milhões de pobres e 90 milhões de miseráveis. No Brasil, 32 milhões de miseráveis e 54,1 milhões de pobres.

Chegamos à Lua, mas não à justiça social. Possuímos telescópios capazes de desvendar as intimidades do Universo, mas não enxergamos as necessidades e os direitos do próximo carente. Clonamos seres vivos, mas não salvamos crianças subnutridas da morte. Fotografamos quanticamente as partículas subatômicas, mas ignoramos os anseios mais profundos do coração humano.

FENÔMENO NOVO

Um fenômeno novo destaca-se no panorama mundial, evidente nas recentes manifestações em Nova Iorque, Praga, Washington e Seattle: os movimentos de solidariedade aos condenados da Terra. O clamor de justiça já não brota apenas da esquerda ideologizada e partidarizada. Ecoa de incontáveis movimentos sociais que, articulados por ONGs e Igrejas, emprestam sua força e sua voz aos que carecem de uma coisa e outra. Têm como ideologia a ética, como partido a solidariedade, como sonho o direito de todos aos bens essenciais à vida, como proposta a denúncia dos responsáveis pelas desigualdades mundiais e a construção de uma civilização do amor.
O mundo já não se divide entre capitalismo e socialismo, mas sim entre o egoísmo neoliberal, centrado na primazia do lucro, e a compaixão dos que lutam por uma economia solidária. Um e outro coexistem nos mesmos países. O avanço da tecnologia de comunicações favorece o entrelaçamento de redes comprometidas com a conquista de um modelo alternativo de sociedade. O perfil da era pós-capitalista desenha-se no esforço de dar um fim à exclusão social, redistribuir a renda, proteger o meio ambiente, priorizar os bens infinitos, como a ética e a espiritualidade, e não superestimar os   bens finitos.
Os novos militantes da solidariedade  não querem apenas estruturas econômicas mais justas, como o acesso ao mercado internacional dos produtos dos países pobres. Querem mais: os bens do espírito. Ao contrário da velha esquerda, são pessoas espiritualizadas e entusiasmadas (que etimologicamente significa "repletos do Espírito de Deus"). Como um são Francisco hodierno, sentem-se irmãos e irmãs de Gaia e da África, dos camponeses da América Latina e dos indígenas da Lapônia, dos curdos e dos iraquianos. Sua lógica não se guia pelo maniqueísmo da política exterior dos EUA, que bloqueia Cuba, anexa Porto Rico a seu território, intervém na Colômbia e faz vista grossa quando tropas de Israel ocupam territórios árabes. Guia-se pelo direito de todos ao bem maior de Deus: a vida.
A queda do socialismo real no Leste europeu coincide com a emergência do socialismo virtual na Internet. Ela quebra o monopólio das agências de notícias que fazem eco à versão dos senhores da Terra. Como o engodo que, em 1992, os EUA tentaram nos impingir, de que os mísseis lançados contra o Iraque só destruíram prédios. Hoje se sabe que pelo menos 100 mil civis iraquianos, inclusive mulheres e crianças, perderam a vida naquela guerra que, aos nossos olhos, não passava de um jogo de videogame.

CONTINENTALIZAÇÃO DO GRITO

O Grito dos Excluídos das Américas continentaliza o Grito dos Excluídos iniciado no Brasil em 1995, por iniciativa da CNBB e dos movimentos sociais. E revela que também no coração do império, como é Nova Iorque, há muitas pessoas e movimentos desiludidos como esse modelo de sociedade que reduz a liberdade ao direito de escolha entre várias marcas de cerveja ou modelos de carros. Elas querem mais. Querem a liberdade de modificar, não silhuetas de corpos envaidecidos, mas o perfil de uma humanidade que ingressa no Terceiro Milênio arrastando uma horda de famintos, desempregados e oprimidos.
Em janeiro próximo, esses militantes da esperança já têm encontro marcado no Fórum Mundial Social, em Porto Alegre.

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