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Convenção Sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial

Flávia Piovesan*

Luis Carlos Rocha Guimarães**

* Procuradora do Estado de São Paulo, Coordenadora do Grupo de Trabalho de Direitos Humanos da Procuradoria Geral do Estado de São Paulo, professora de Direitos Humanos e de Direito Constitucional da PUC/SP, Mestre e Doutora em Direito Constitucional pela PUC/SP.

** Procurador do Estado de São Paulo, membro do Grupo de Trabalho de Direitos Humanos da Procuradoria Geral do Estado de São Paulo.


1. INTRODUÇÃO

A proposta deste estudo é apresentar os aspectos centrais da Convenção sobre a Eliminação de todas das formas de Discriminação Racial, enfocando os mecanismos de implementação dos direitos nela enunciados, bem como o seu impacto no Direito Brasileiro.

A Convenção sobre a Eliminação de todas das formas de Discriminação Racial foi adotada pelas Nações Unidas em 21 de dezembro de 1965, tendo sido ratificada pelo Brasil em 27 de março de 1968. Três relevantes fatores históricos impulsionaram o processo de elaboração desta Convenção na década de 60, destacando-se o ingresso de dezessete novos países africanos na ONU em 1960, a realização da Primeira Conferência de Cúpula dos Países Não-Aliados em Belgrado em 1961 e o ressurgimento de atividades nazifascistas na Europa.(1) Estes fatores estimularam a edição da Convenção, como um instrumento internacional voltado ao combate da discriminação racial.

Na qualidade de instrumento global de proteção dos direitos humanos editado pelas Nações Unidas, a Convenção integra o denominado sistema especial de proteção dos direitos humanos. Ao contrário do sistema geral de proteção que tem por destinatário toda e qualquer pessoa, abstrata e genericamente considerada, o sistema especial de proteção dos direitos humanos é endereçado a um sujeito de direito concreto, visto em sua especificidade e na concreticidade de suas diversas relações. Vale dizer, do sujeito de direito abstrato, genérico, destituído de cor, sexo, etnia, idade, classe social, dentre outros critérios, emerge o sujeito de direito concreto, historicamente situado, com especificidades e particularidades. Daí apontar-se não mais ao indivíduo generica e abstratamente considerado, mas ao indivíduo especificado, considerando-se categorizações relativas ao gênero, idade, etnia, raça,...

Consolida-se, gradativamente, um aparato especial de proteção endereçado à proteção de pessoas ou grupo de pessoas particularmente vulneráveis, que merecem proteção especial. O sistema normativo internacional passa a reconhecer e tutelar direitos endereçados às crianças, aos idosos, às mulheres, às pessoas vítimas de tortura, às pessoas vítimas de discriminação racial, etc. No âmbito internacional, ao lado da Convenção sobre a Eliminação de todas as formas de Discriminação Racial, são elaboradas a Convenção sobre a Eliminação de todas as formas de Discriminação contra a Mulher e a Convenção sobre os Direitos da Criança, dentre outros importantes instrumentos internacionais.(2) Reitere-se que este sistema internacional de proteção realça o processo de especificação do sujeito de direito, objetivando responder a determinado padrão de violação de direito.

Os sistemas geral e especial são sistemas de proteção complementares, na medida em que o sistema especial é voltado, fundamentalmente, à prevenção da discriminação ou à proteção de pessoas ou grupos de pessoas particularmente vulneráveis, que merecem um tratamento jurídico especial.

O complexo sistema normativo de proteção internacional dos direitos humanos revela uma lógica e principiologia própria, fundada no valor da primazia da pessoa humana. Logo, estes instrumentos internacionais somam-se, conjugam-se e reforçam-se com a finalidade de alcançar o mais aprimorado e eficaz aparato de proteção, defesa e promoção dos direitos humanos. 

2. Aspectos Centrais da Convenção sobre a Eliminação de todas as formas de Discriminação Racial

Em seu preâmbulo, a Convenção reafirma o propósito das Nações Unidas de promoção do respeito universal dos direitos humanos, sem discriminação de raça, sexo, idioma ou religião. Enfatiza ainda os princípios da Declaração Universal de 1948, em especial a concepção de que todas as pessoas nascem livres e iguais em dignidade e direitos, sem distinção de qualquer espécie e principalmente de raça, cor ou origem nacional. Acrescenta que qualquer doutrina de superioridade baseada em diferenças raciais é cientificamente falsa, moralmente condenável, socialmente injusta e perigosa, e que não existe justificação para a discriminação racial, em teoria ou na prática, em lugar algum.

Inspirada nestes princípios, a Convenção tem por objetivos eliminar a discriminação racial em todas as suas formas e manifestações e prevenir e combater doutrinas e práticas racistas.

Se o objetivo central da Convenção é a eliminação de todas as formas de discriminação racial, a primeira preocupação deste texto é definir juridicamente o conceito de discriminação racial. Nos termos do artigo 1º da Convenção, a expressão discriminação racial significa qualquer distinção, exclusão, restrição ou preferência, baseadas em raça, cor, descendência ou origem nacional ou étnica que têm por objetivo ou efeito anular ou restringir o reconhecimento, gozo ou exercício em um mesmo plano (em igualdade de condição) de direitos humanos e liberdades fundamentais no domínio político, econômico, social, cultural ou em qualquer outro domínio de vida pública.Isto é, para a Convenção, a discriminação racial é uma distinção, baseada na raça, cor, descendência ou origem nacional ou étnica, que implica na restrição ou exclusão do exercício de direitos humanos e liberdades fundamentais, nas mais diversas áreas. Logo, a discriminação racial sempre tem por objetivo ou efeito anular ou restringir o exercício, em igualdade de condições, dos direitos humanos e das liberdades fundamentais.

No mesmo artigo 1º da Convenção, o § 4º adverte que não serão consideradas discriminação racial as medidas especiais tomadas com o único objetivo de assegurar o progresso adequado de certos grupos raciais ou étnicos, contanto que tais medidas não conduzam, em consequência, à manutenção de direitos separados para diferentes grupos raciais e não prossigam após terem sido alcançados os seus objetivos. Neste sentido, as medidas especiais e temporárias voltadas a acelerar o processo de construção da igualdade não são consideradas discriminação racial. É o caso das chamadas ações afirmativas, que são medidas positivas adotadas para aliviar e remediar as condições resultantes de um passado discriminatório.

Os Estados-partes da Convenção, ao condenar a discriminação racial, comprometem-se a adotar, por todos os meios apropriados, uma política de eliminação da discriminação racial e promoção da igualdade. A Convenção é enfática ao condenar a segregação racial e o apartheid, determinando aos Estados-partes que eliminem em seus territórios todas as práticas dessa natureza. Toda propaganda e todas as organizações que se inspirem em teorias racistas são também condenadas pelos Estados-partes da Convenção, que devem proibir qualquer incitamento ao ódio e discriminação raciais, punindo a difusão de idéias baseadas na superioridade racial.

Os Estados-partes da Convenção também comprometem-se a garantir a todos, sem distinção de raça, cor ou origem nacional, e em igualdade de condições, o exercício de direitos civis, políticos, sociais, econômicos e culturais.(3)

Na hipótese da prática de discriminação racial, os Estados-partes deverão assegurar a todas as pessoas, que estiverem sob a sua jurisdição, proteção e recursos eficazes perante os Tribunais nacionais, assim como o direito à indenização justa e adequada por qualquer dano decorrente do ato discriminatório.

No artigo 7º, a Convenção estabelece aos Estados-partes o dever de adoção de medidas eficazes nos campos do ensino, educação, cultura e informação, contra os preconceitos que levem à discriminação racial, ressaltando, assim, a importância de uma educação para a cidadania, fundada no respeito à diversidade, tolerância e dignidade humana.

Por fim, há que se enfatizar que a Convenção sobre a Eliminação de todas as formas de Discriminação Racial apresenta duas metas básicas, que visam à implementação do direito à igualdade. São elas: o combate a toda e qualquer forma de discriminação racial e a promoção da igualdade.

Na ótica contemporânea, a concretização do direito à igualdade implica na implementação destas duas estratégias, que não podem ser dissociadas. Hoje o combate à discriminação racial torna-se medida insuficiente se não se verificam medidas voltadas à promoção da igualdade. Por sua vez, a promoção da igualdade, por si só, mostra-se insuficiente se não se verificam políticas de combate à discriminação racial. 

3. Mecanismos de Implementação da Convenção

Os tratados internacionais de proteção dos direitos humanos não se limitam a enunciar direitos e consagrar os deveres dos Estados-partes. Ao elenco dos direitos, adicionam uma sistemática peculiar de garantia destes direitos, mediante a instituição de organismos internacionais e mecanismos de implementação de direitos.

Neste sentido, a Convenção sobre a Eliminação de todas as formas de Discriminação Racial prevê a criação do Comitê para a Eliminação da Discriminação Racial.(4) Este órgão é composto de 18 (dezoito) peritos de alta estatura moral, eleitos pelos Estados-partes e que atuarão a título individual e não como representantes dos Estados. Cabe a este Comitê realizar o monitoramento dos direitos reconhecidos pela Convenção.

Além desta instância internacional, a Convenção estabelece mecanismos de implementação dos direitos nela enunciados. Importa observar que os instrumentos internacionais de proteção dos direitos humanos apresentam, em geral, três mecanismos de implementação de direitos: a) os relatórios; b) as comunicações inter-estatais e c) as petições individuais. A Convenção sobre a Eliminação de todas as formas de Discriminação Racial consagra estes três mecanismos, impondo ao Comitê a competência de examinar os relatórios encaminhados pelos Estados-partes, as comunicações inter-estatais e as petições individuais.

De acordo com o artigo 9º da Convenção, os Estados-partes comprometem-se a elaborar relatórios periódicos sobre as medidas legislativas, judiciárias e administrativas adotadas para tornar efetiva a Convenção(5). Estes relatórios são examinados pelo Comitê, que poderá fazer sugestões e recomendações aos Estados-partes.

As comunicações inter-estatais, por sua vez, estão previstas pelo artigo 11 da Convenção. Por este mecanismo, um Estado-parte poderá denunciar que um outro Estado-parte não está cumprindo as disposições da Convenção. Caberá ao Comitê receber e examinar a comunicação inter-estatal, com observância do princípio do contraditório.

Já o artigo 14 consagra o direito de petição, que consolida a capacidade processual internacional dos indivíduos(6). O direito de petição, contudo, é previsto sob a forma de cláusula facultativa(7). Isto é, o direito de petição fica condicionado à declaração do Estado-parte de que reconhece a competência do Comitê para receber e examinar comunicações de indivíduos ou grupos de indivíduos que se considerem vítimas de violação, pelo referido Estado-parte, de qualquer direito enunciado na Convenção(8).

O direito de petição está sujeito a determinados requisitos de admissibilidade, como o prévio esgotamento dos recursos internos disponíveis. Ao admitir uma petição, o Comitê solicita informações e esclarecimentos ao Estado violador e, à luz das informações colhidas, formula sua opinião e faz recomendações. O Estado é convidado a informar o Comitê a respeito das ações e medidas adotadas, em cumprimento às recomendações feitas. A opinião ou ‘decisão’ do Comitê é destituída de força jurídica vinculante. Todavia, é revestida de alta força política e moral, pois é publicada no relatório anual elaborado pelo Comitê, que é, por sua vez, encaminhado à Assembléia Geral das Nações Unidas. 

4. Impacto da Convenção no Direito Brasileiro

Como já analisado, a Convenção sobre a Eliminação de todas as formas de Discriminação Racial objetiva fundamentalmente combater e proibir a discriminação racial, mas também promover a igualdade. Estes são os dois eixos centrais da Convenção, que combina, deste modo, uma vertente repressiva com uma vertente promocional, no que diz respeito à implementação do direito à igualdade.

Ao avaliar o impacto jurídico da Convenção no Direito Brasileiro, constata-se uma grande evolução legislativa nacional em relação ao combate à discriminação racial. Como se verá, no tocante à matéria, a ênfase do Direito Brasileiro centra-se na vertente repressiva.

O primeiro texto legal que buscou combater a discriminação racial foi a Lei n. 1.390/51, mais conhecida como Lei Afonso Arinos. Esta lei tipificou uma das formas de racismo, qual seja, a recusa de entidades públicas ou privadas em atender pessoa em razão de cor ou raça. No entanto, puniu estas condutas como mera contravenção penal, ou seja, delito de menor potencial ofensivo.

O maior marco contra todos os tipos de discriminação é, sem qualquer dúvida, a Constitiução Federal de l988, conhecida como Constituição Cidadã. A Carta de 1988 constitui o marco jurídico da transição democrática e da institucionalização dos direitos humanos na história brasileira.

O princípio básico fundamental da Carta Magna é o da dignidade da pessoa humana, do qual todos os outros são decorrentes.

O texto constitucional de 1998 consagra ineditamente, como objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil, a redução das desigualdades sociais e promoção do bem comum, sem preconceito de origem, raça, sexo, cor, idade ou quaisquer outras formas de discriminação (art. 3º, incisos III e IV).

No artigo 5º, incisos XLI e XLII, a Carta estabelece que "a lei punirá qualquer discriminação atentatória dos direitos e liberdades fundamentais", acrescentando que "a prática do racismo constitui crime inafiançável e imprescritível, sujeito à pena de reclusão, nos termos da lei." Portanto, no tocante à Convenção tratada, a atual Constituição transformou o racismo de mera contravenção penal em crime, tornando-o inafiançável e imprescritível.

Ademais, outra consequência do objetivo fundamental de eliminar o preconceito é a vedação genérica de norma ou disposição infraconstitucional discriminatória.

As Constituições Estaduais também tutelam a proibição de discriminação racial, como se pode notar na Carta Paulista em seu artigo 237, inciso VII, quando veda discriminação no campo educacional.

Em decorrência dos princípios fundamentais da Carta Magna, notadamente contra a discriminação racial, foi promulgada a Lei n. 7.716/89, que define os crimes resultante de preconceito de raça ou cor, tipificando condutas que obstem acesso a serviços, cargos e empregos em razão dos tipos de preconceitos citados.

Muito embora trate a Lei n. 7.716/89 de condutas discriminatórias, não previu as decorrentes de ofensa à honra em razão da raça, muito comum no dia a dia, levando as autoridades policiais a classificarem este tipo de ofensa como calúnia, injúria ou difamação, com penas bem inferiores, além de dependerem de ação privada, facilmente prescritíveis. Isto evidentemente não ocorreria se fossem classificadas como racismo, com reprimenda severa, demandando ação penal pública e sendo constitucionalmente inafiançáveis e imprescritíveis. Cabe ainda observar que a Lei n. 7.716/89 definiu tão somente os crimes resultantes de preconceito de raça ou cor, não prevendo as práticas resultantes de preconceito de descendência ou origem nacional ou étnica, que à luz da Convenção integram também a definição de discriminação racial (9).

Mencionada legislação foi alterada em parte pela Lei n. 9.459/97, que incluiu novos tipos penais, visando principalmente combater os crimes resultantes de discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional. A nova lei amplia as formas de discriminação, acrescentando ao lado de cor e raça, os critérios etnia, religião e procedência nacional. É interessante notar que a Lei n. 9.459/97 não só inclui os critérios etnia e procedência nacional, alinhando-se à definição de discriminação racial prevista pela Convenção, como também inclui o critério religião, não previsto por aquela Convenção. Transcende, assim, a própria Convenção, punindo os crimes resultantes de discriminação racial (adotando-se a terminologia internacional) e os crimes resultantes de discriminação religiosa.

Quanto ao crime de injúria, a nova lei acrescenta um parágrafo ao artigo 140 do Código Penal, prescrevendo pena de reclusão de um a três anos e multa "se a injúria consiste na utilização de elementos referentes a raça, cor, etnia, religião ou origem". Observe-se que o artigo 140 caput do Código Penal atribui ao crime de injúria, sem conotação discriminatória, a pena de detenção de um a seis meses ou multa. Deste modo, a referida lacuna da Lei n. 7.716/89 foi finalmente corrigida pela Lei n. 9.459/97.

Além desta legislação específica, concernente ao combate à discriminação racial, verifica-se ainda no Direito Brasileiro a existência de leis esparsas com relevantes dispositivos normativos voltados à punição da discriminação racial. Neste sentido, destacam-se: a) a Lei n. 2.889/56 (que define e pune o crime de genocídio); b) a Lei n. 4.117/62 (que pune os meios de comunicação que promovem práticas discriminatórias); c) a Lei n. 5.250/67 (que regula a liberdade de pensamento e informação, vedando a difusão de preconceito de raça); d) a Lei n. 6.620/78 (que define os crimes contra a segurança nacional, como incitação ao ódio ou à discriminação racial); e) a Lei n. 8.072/90 (que define os crime hediondos, dentre eles o genocídio, tornando-os insuscetíveis de anistia, graça, indulto, fiança e liberdade provisória); f) a Lei n. 8.078/90 (que trata da proteção ao consumidor e proíbe toda publicidade discriminatória); g) a Lei n. 8.081/90 (que estabelece crimes discriminatórios praticados por meios de comunicação ou por publicidade de qualquer natureza) e h) a Lei n. 8.069/90 (que dispõe sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente, afirmando que estes não podem sofrer qualquer forma de discriminação).

Apesar da legislação avançada (principalmente no âmbito constitucional), não tem se refletido na prática de maneira uniforme e constante a coibição da discriminação racial (10), pois além de ser velada no Brasil, normalmente envolve como infratores pessoas de classes sociais elevadas, as quais dificilmente são punidas criminalmente.

Como exemplos esparsos e isolados de condenação por discriminação racial, merecem destaque duas decisões judiciais, cujas ementas são transcritas a seguir:

"RACISMO - Condomínio - Prática por síndico - Preferência de cor, para fins de emprego, inserida em anúncio de jornal - Enquadramento na conduta prevista no artigo 4º da Lei Federal n. 7.716, de 1989 - Interpretação da expressão empresa privada contida no dispostivo legal - Condenação mantida - Recurso não provido - Voto vencido" (TJ/SP - Apelação Criminal n. 141.820-3 - 10/02/95 - Araçatuba - Apelante: José Parrilha Filho - Apelada: Justiça Pública - JTJ - Volume 172 - p. 326).

"Dano moral fundado em racismo e ofensas morais praticadas pelo empregador no curso da relação de emprego. Competência da Justiça do Trabalho. Critério para a fixação de indenização. Os limites do poder diretivo e o respeito à dignidade humana" (Justiça do Trabalho da 3ª Região - 2ª JCJ/Passos/M.G. - Proc. 118/97 - 15/04/97).

Lamentavelmente, reitere-se, tratam-se de dois casos isolados. Não se verifica na jurisprudência brasileira uma tendência de julgados que aponte à condenação criminal em casos de discriminação racial. Diante desta ineficácia, há uma advocacia ainda incipiente no país que objetiva, no âmbito cível, o pagamento de indenização por danos morais, em casos de comprovada prática discriminatória. Esta advocacia acredita que a adoção desta estratégia talvez possa permitir maiores chances de sucesso, no difícil combate à cultura da discriminação racial.

5. Conclusão

A existência de um instrumental internacional de combate a todas as formas de discriminação racial, por si só, revela um grande avanço. A Convenção traduz o consenso da comunidade internacional acerca da urgência em se eliminar o racismo e ao mesmo tempo promover a igualdade material e substantiva. Este consenso mundial transcende a complexa diversidade cultural dos povos, que passam a compartilhar de uma mesma gramática, quando o tema é a discriminação racial.

Através da Convenção sobre a Eliminação de todas as formas de Discriminação Racial busca-se proteger os valores da igualdade e tolerância, baseados no respeito à diferença. Consagra-se a idéia de que a diversidade étnica-racial deve ser vivida como equivalência e não como superioridade ou inferioridade(11).

Fundamentalmente, a Convenção objetiva erradicar a discriminação racial e suas causas, como também estimular estratégias de promoção da igualdade. Combina a proibição da discriminação com políticas compensatórias que acelerem a igualdade enquanto processo. Como já dito, para garantir e assegurar a igualdade não basta apenas proibir a discriminação, mediante legislação repressiva. São essenciais as estratégias capazes de incentivar a inserção e a inclusão social de grupos historicamente vulneráveis. Alia-se à vertente repressiva-punitiva a vertente positiva-promocional.

Desde 1968 o Brasil é signatário da Convenção. No que tange ao impacto desta no Direito Brasileiro, observa-se que a Convenção introduz relevantes mecanismos internacionais de monitoramento dos direitos que enuncia, o que exige do Estado Brasileiro, por exemplo, a apresentação de relatórios que evidenciem o modo pelo qual o Brasil tem conferido cumprimento aos dispositivos da Convenção. Não bastando o controle da comunidade internacional, no plano normativo nacional, a Convenção tem estimulado o aperfeiçoamente legislativo sobre a matéria. Os avanços normativos mais significativos decorreram do advento da Carta de 1988 e da legislação infra-constitucional regulamentadora — em especial as Leis ns. 7.716/89 e 9.459/97.

No entanto, este aparato normativo nacional é de cunho estritamente repressivo, o que indica que no Direito Brasileiro o problema da discriminação racial tem sido tratado apenas por meio da vertente punitiva e não da vertente promocional. Esta conclusão é agravada pelo fato da vertente punitiva ainda apresentar pouca efetividade, tendo em vista serem isoladas as decisões que condenam criminalmente a prática do racismo.

Por sua vez, esta inefetividade reflete as resistências do próprio Poder Judiciário em implementar a legislação sobre a matéria, por razões de cunho ideológico (já que muitos ainda têm a falsa crença no mito da democracia racial brasileira) e, por vezes, pelo fato de ignorarem a existência do aparato normativo (mormente a legislacão internacional) de combate à discriminação racial (12).

É fundamental estimular uma consciência jurídica crítica capaz de tornar efetiva a eliminação da discriminação racial, combinando estratégias repressivas e promocionais, que propiciem a plena implementação do direito à igualdade, com a crença de que somos iguais, mas diferentes e diferentes, mas sobretudo iguais.

________

(1) A respeito ver José Augusto Lindgren Alves, Os direitos humanos como tema global, São Paulo, Perspectiva e Fundação Alexandre de Gusmão, 1994, p. 54-55.

(2) Não há um elenco exaustivo de Convenções internacionais voltadas à proteção dos direitos humanos. O processo de especificação do sujeito de direitos apontará, no futuro, à necessidade de elaboração de novas Convenções internacionais, que visarão proteger novos sujeitos de direitos. No dizer de Jack Donnelly: "O elenco de direitos humanos tem se desenvolvido e se expandido, e assim continuará, em resposta a fatores como idéias renovadas acerca da dignidade humana, ascensão de novas forças políticas, mudanças tecnológicas, novas técnicas de repressão (...). Esta evolução é particularmente visível em face da emergência dos direitos econômicos e sociais." (Universal Human Rights in theory and practice, Ithaca, Cornell University Press, 1989, p. 26).

(3) O artigo 5º da Convenção apresenta um amplo católogo destes direitos, que inclui: o direito a um tratamento igual perante os Tribunais, o direito à segurança da pessoa ou à proteção do Estado contra a violência, direitos de participação política, direito à liberdade de locomoção, direito à nacionalidade, direito de casar-se e escolher o cônjuge, direito à propriedade, direito à herança, direito à liberdade de pensamento, direito à liberdade de expressão, direito à liberdade de reunião, direitos econômicos, sociais e culturais, como o direito ao trabalho, à habitação, à saúde pública, à previdência social, à educação, à participação em atividades culturais, ao acesso a todos os lugares e serviços destinados ao uso do público, dentre outros direitos.

(4) Observe-se que Comitês análogos foram estabelecidos por outras Convenções internacionais de direitos humanos, destacando-se o Comitê contra a Tortura (instituído pela Convenção contra a Tortura), o Comitê sobre a Eliminação da Discriminação contra a Mulher (instituído pela Convenção sobre a Eliminação de todas as formas de Discriminação contra a Mulher), o Comitê sobre os Direitos da Criança (instituído pela Convenção sobre os Direitos da Criança) e o Comitê de Direitos Humanos (instituído pelo Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos).

(5) O Estado Brasileiro, em novembro de 1995, encaminhou ao Comitê o décimo relatório periódico relativo à Convenção sobre a Eliminação de todas as formas de Discriminação Racial. O referido relatório contém uma parte geral, uma parte dedicada à legislação nacional, seguida da parte concernente às medidas educacionais e administrativas e, por fim, da parte relativa às populações indígenas.

(6) Cf. Antonio Augusto Cançado Trindade, A proteção internacional dos direitos humanos: fundamentos jurídicos e instrumentos básicos, São Paulo: Saraiva, 1991, p. 8. Para Karel Vasak: "Desde que o indivíduo é concebido, ele tem, em minha opinião, adquirido de uma vez e para sempre o direito de deflagrar o aparato de implementação dos direitos humanos internacionais. O direito individual à ação internacional é sempre exercido através do direito de petição, o qual, ainda que não seja um direito humano, é hoje um mecanismo empregado para a implementação internacional dos direitos humanos." (Toward a specific international human rights law. In: Karel Vasak, Ed., The international dimensions of human rights, revisado e editado para a edição inglesa por Philip Alston, Connecticut, Greenwood Press, 1982, v.1, p . 676-677).

(7) Até 31 de dezembro de 1994, vinte e um Estados-partes haviam feito a declaração no sentido de aceitar a competência do Comitê para receber e considerar as comunicações individuais, nos termos do artigo 14 da Convenção. O Estado Brasileiro até hoje ainda não elaborou uma declaração para este fim.

(8) Afirma Siân Lewis-Anthony: "No sistema das Nações Unidas, há três órgãos competentes para receber e considerar, de forma quase judicial, comunicações de indivíduos que clamam serem vítimas de violações de direitos humanos. São eles: o Comitê de Direitos Humanos, o Comitê contra a Tortura e o Comitê sobre a Eliminação da Discriminação Racial. Cada um deles foi estabelecido em tratado, no sentido de monitorar o cumprimento de obrigações decorrentes dos tratados por parte dos Estados-partes. Os Estados devem declarar especificamente que reconhecem a competência dos relevantes Comitês para receber e considerar as comunicações de indivíduos que estejam sob a sua jurisdição. Todos os três Comitês funcionam de forma similar no que tange à consideração de comunicações individuais." (Treaty-based procedures for making human rights complaints within the UN system. Guide do International Human Rights Practice, 2. ed., Philadelphia, University of Pennsylvania Press, 1994).

(9) Nos termos do artigo 1o da Convenção, a expressão discriminação racial significa qualquer distinção, exclusão, restrição ou preferência, baseadas em raça, cor, descendência ou origem nacional ou étnica que têm por objetivo ou efeito anular ou restringir o reconhecimento, gozo ou exercício em um mesmo plano (em igualdade de condição) de direitos humanos e liberdades fundamentais no domínio político, econômico, social, cultural ou em qualquer outro domínio de vida pública.

(12) Em face deste cenário, é de importância crucial estimular o conhecimento da legislação internacional e nacional voltada à proteção dos direitos humanos, através, por exemplo, da inclusão esta disciplina em cursos de graduação e em concursos públicos de ingresso em carreiras jurídicas.

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